Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
399/06.5TBFND-H.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JACINTO MECA
Descritores: AMORTIZAÇÃO DE QUOTA
SOCIEDADE
REGISTO
EFICÁCIA
TERCEIROS
Data do Acordão: 05/24/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FUNDÃO – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 141º DO CIRE E 233º, Nº 5 DO CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS
Legislação Comunitária:
Sumário: I – Nos termos do artº 141º do CIRE, as disposições relativas à reclamação e verificação de créditos são igualmente aplicáveis à reclamação destinada a separar da massa os bens de terceiro indevidamente apreendidos e quaisquer outros bens, dos quais o insolvente não tenha a plena e exclusiva propriedade, ou sejam estranhos à insolvência ou insusceptíveis de apreensão para a massa (nº 1, al. c)).

II – Pode-se extrair do conteúdo do nº 5 do art.º 233º do Código das Sociedades Comerciais que a amortização de quota em sociedade anda associada ao conceito de redução parcial do seu valor ou pura e simplesmente à sua extinção quando a amortização incidir sobre a totalidade da quota.

III – Define-se como “amortização” o acto jurídico da sociedade que implica a extinção total ou parcial da quota e das posições jurídicas que a compõem.

IV- A amortização de quota em sociedade deve ser levada ao registo, sob pena de não produzir efeitos contra terceiros, em particular contra os credores da sociedade insolvente.

Decisão Texto Integral:                 Acordam os Juízes que constituem a 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra.

                1. Relatório

A..., Lda., pessoa colectiva nº ..., com sede na ..., tendo tomado conhecimento por consulta no Registo Comercial que o administrador da insolvente B..., Lda., promoveu a apreensão da quota que a referida insolvente detinha na ora requerente, veio ao abrigo o disposto no art.º 160º, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa (em diante CIRE), requerer a restituição de tal bem, em 19.10.2006. Para tanto, alegou que a insolvente B...LDA era detentora de uma quota no valor de 315.019 EUROS no capital social da requerente, correspondentes a 50% do seu capital social; dispõem os estatutos da requerente, no seu artigo 7º que “a sociedade poderá, independentemente do consentimento do respectivo titular, amortizar a quota ou quotas que sejam arroladas, arrestadas ou penhoradas ou que sejam objecto de qualquer outro procedimento de que possa resultar a transmissão forçada da quota ou quotas a terceiros por um preço igual ao valor de liquidação da quota determinado nos termos do nº 2 do art.º 155º do Código das Sociedades Comerciais”. Acontece que a requerente tomou conhecimento que as credoras, C..., LDA e D..., LDA, promoveram arresto e penhora, respectivamente, sobre a quota que a ora insolvente detinha na requerente, as quais foram levadas a registo, por esse motivo, a requerente atenta as situações descritas (arresto e penhora) fez estatuária e legalmente funcionar o especialmente disposto no art.º 7º do seu Estatuto, nº 2 do art.º 155º do Código das Sociedades Comerciais e art.º 1021º do Código Civil, convocando uma Assembleia Geral Extraordinária, a qual teve lugar no dia 06 de Junho de 2006, para deliberar entre outras matérias, sobre a amortização da quota da sócia B...em face da verificação de tal arresto e inclusive até da própria insolvência da questionada sócia, de harmonia com o seu ponto nº 2 da Ordem de Trabalhos, tendo sido deliberado a amortização da sobredita quota, propriedade da ora insolvente, isto mesmo exarado na ACTA nº  23 da dita Assembleia. Esteve presente a esta Assembleia-Geral Extraordinária o legal represente da Insolvente B..., LDA., Dr. E..., o qual se absteve de votar por tal deliberação visar a sócia que representava, validando, assim, com efeito, tal deliberação tomada pela outra sócia, denominada F..., LDA., que representa 50% do capital social da ora requerente; deliberação de «amortização de quota que não mereceu qualquer reparo, nem censura nem porventura impugnação judicial, pelo que é absolutamente válida e eficaz e inimpugnável. O administrador da Insolvente veio a tomar conhecimento deste facto (amortização da quota operada no dia 06 de Junho de 2006) e ainda assim, sabendo, como sabia, procedeu, e não podia nem devia ter procedido (por ser indevida e ilegal face à realidade jurídica da transmissão da quota), à referida apreensão, causando com isso prejuízos à ora requerente; em face da inadequada e censurável atitude do administrador, a requerente, para fazer face a valores recomendáveis à sua boa gestão, para além ter necessariamente de injectar capitais na sua empresa, viu-se forçada a destituir o gerente nomeado pela INSOLVENTE, por Assembleia-Geral Extraordinária que teve lugar no passado dia 16 de Outubro de 2006; a intenção do administrador da insolvência em relação à requerente era provocar-lhe instabilidade, quer pelos supra alegados actos, quer pela apreensão indevida da quota, por consciente e previamente conhecida dele a realidade da transmissão da sua titularidade para a ora requerente, e assim vir a causar elevados prejuízos não só a esta mas também aos seus credores, importando que, nos termos do disposto no art.º 160º do CIRE, não se proceda à sua liquidação.

Conclui peticionando o levantamento registal e a restituição do bem que foi indevidamente apreendido, pelo Administrador da Insolvente, concretamente a quota que a insolvente deteve na ora requerente até 06 de Junho de 2006, nos termos do preceituado no nº 1 do artº 160º do CIRE, face ao preenchimento de qualquer um dos requisitos previstos nas alíneas do nº 1 da citada norma, visto que, à data da sua apreensão, a propriedade de tal bem já não pertencer à insolvente (mas apenas lhe pertencer o direito ao crédito da amortização então legalmente operada).


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A fls. 33 as credoras da insolvente C..., Lda. e G..., Lda., vieram sustentar que resulta da acta da Assembleia Geral Extraordinária da A... realizada em 6 de Junho de 2006, que a deliberação de amortização foi tomada com o voto único da sócia “ F...”, consignando-se na mesma que à data da deliberação (2006.06.23) a situação líquida da sociedade, depois de satisfeita a contrapartida da amortização, calculada nos termos legais, não fica inferior à soma do capital e da reserva legal, não constando, porém, de tal acta o valor da contrapartida da amortização; ora não constando da acta o valor da contrapartida da amortização não é possível aferir, com rigor, da legalidade da referida deliberação, uma vez que não se pode concluir se estão, ou não, reunidos os pressupostos de que a lei faz depender o exercício do direito de amortização, pelo que requereu ao Tribunal que mandasse proceder à sua avaliação, por revisor oficial de contas, a designar nos termos do artigo 105° do C.S.C., bem como ao apuramento da situação líquida da “ A...” em 2006.06.06, a fim de, habilitado com tais elementos, poder decidir o pedido de restituição apresentado, devendo declarar a nulidade da deliberação de amortização se concluir que não se verificam os respectivos pressupostos legais, previstos no artigo 236° do C.S.C.

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O Sr. Administrador da Insolvência de fls. 36 a 43 apresentou contestação, alegando, em síntese (e naquilo que respeita à questão suscitada nos autos), que o pedido de insolvência deu entrada nesse Tribunal em 22 de Maio de 2006, foi concluso em 26/5/2006, despachado em 19/7/2006 e dele notificado através de carta com a referência n.º 676866 de 21/7/2006, sendo que na sequência da notificação da nomeação como Administrador de Insolvência constatou no ponto 8 do requerimento do pedido de apresentação à insolvência, deter a insolvente uma participação de 50% na empresa A..., pelo que indagou junto da Conservatória do Registo Comercial do Fundão, no âmbito das suas funções, tendo procedido à respectiva apreensão da quota em processo de insolvência, pela Inscrição 9 – AP. 3/20060811; não constava, como não consta, qualquer registo de “Amortização da Quota”, nem os credores que fizeram arresto e/ou penhora da mesma provaram na reclamação de créditos, no âmbito do artigo 128° do C.I.R.E. e todos os demais reconhecidos, terem sido ressarcidos da suas dívidas, na sequência desse acto, por parte da sociedade A...; na sequência da notificação ref.ª 688210 de 7/9/2006, tendo só nesta data tomado conhecimento da acta de 6 de Junho de 2006, constata-se que a deliberação nela referida não cumpre o estipulado no artigo 234º, n° 1 do C.S.C. (porquanto não foi unânime) e também não cumpre o estipulado no art.º 236, nº 1 do C.S.C. (com base no diagnóstico económico-financeiro que foi junto aos autos e que faz parte integrante do relatório elaborado nos termos do art.º 155° do C.I.R.E.), constata-se que em Julho de 2006, a situação líquida era de euros: 404.951,00, ou seja, inferior à soma do Capital Social com a Reserva Legal e que totalizam 630.093,45 €; invoca ainda o estipulado no artigo 88°, n° l do C.I.R.E..

Conclui pugnando pela não restituição do bem, pois este foi devidamente apreendido no âmbito das suas funções previstas no artigo 152° do C.I.R.E., solicitando que preliminarmente a insolvente se pronuncie quanto à pretensa deliberação ou alegada “votação” sobre a amortização de quota e porque se trata de acautelar os interesses da Massa Insolvente se determine a realização de uma auditoria exaustiva às contas da “ A...”, a partir do início do seu investimento, pelo menos, desde o ano de 2002 até actualmente, sendo os custos com a auditoria suportados pela Massa Insolvente.


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Por despacho de fls. 51 foi decidido deixar para a Assembleia de Credores a apreciação do aí requerido, sendo que após ter sido iniciada em 20.10.2006, aquela esteve suspensa até 18.11.2009, altura em que foi retomada e, uma vez já realizada, entenderam os seus intervenientes não se pronunciar sobre esta restituição.

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A requerente apresentou resposta à sobredita contestação mantendo, no geral, a posição manifestada na petição inicial e em síntese alegou que é absolutamente descabida de legalidade e de legitimidade o pedido que o Administrador faz de uma auditoria à A..., em vez de pedir essa auditoria à contabilidade da insolvente dos últimos 5 anos; o facto da amortização da quota não ter ainda sido levada a Registo Comercial não significa que tal acto deliberativo da Assembleia Geral do sócios não seja válido, já que os actos e contratos que importam a alienação com transferência de propriedade de um bem móvel, imóvel ou de um Direito, podem ser feitos em qualquer altura, retroagindo, sempre, à data da

sua aquisição constante em contrato ou em acta probatória dessa alienação/amortização legal; a obrigatoriedade registal referida não invalida nem impede que o mesmo possa ser feito em qualquer outra altura, ou seja, a todo o tempo, validando o mesmo com eficácia “erga omnes” ainda que seja feito depois;

por conseguinte, não é o registo comercial (como de resto também o predial quando se trata de bens imóveis) que prova a propriedade de uma quota ou de um direito então transmitido, mas sim o contrato de compra e venda ou a acta deliberativa de amortização no caso da quota de uma sociedade; muito embora

não fosse necessário, fez-se referência à contrapartida calculada nos termos legais, já que o pacto outra não refere, não ferindo os requisitos do artigo 236°, ns.º 1 e 2 do C.S.C.; a invocada falta de referência ao valor concreto da contra partida, não só não era necessária, como em nada somava a validade de deliberação,  porquanto sempre poderia ser questionado se aquele valor era o que resultava dos critérios legalmente fixados e mencionados na deliberação; nunca a Insolvente, através do seu representante legal, questionou a validade da deliberação, quer no que toca ao quórum deliberativo, quer no que tange à verificação dos rácios impostos pelo artigo 236°, ns.º 1 e 2 do C.S.C., limitando-se a pedir que a deliberação fosse tomada mais tarde uma vez que estava instaurado um processo de insolvência da sua representada B..., sendo que este pedido, conforme consta da acta, não foi atendido face ao facto de se encontrar a terminar o prazo legal que a Assembleia tinha para deliberar a amortização em virtude do arresto de que foi notificada; as contas da sociedade à data da deliberação de amortização cumpriam os rácios previstos no artigo 236° do C.S.C. e o relatório do Administrador refere-se unicamente a elementos contabilísticos em sentido estrito, das contas da ora requerente A... um mês após a deliberação, pelo que nenhum juízo sensato é possível fazer com estes elementos.


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Na Assembleia de credores iniciada em 27.10.2006 a M.ma Juiz que presidiu à mesma determinou que fosse conferido o contraditório, por 30 dias, para se pronunciarem sobre os requerimentos apresentados pelo credor A..., pelo que a fls. 99 veio H..., S.A., credor e membro da comissão de credores, pronunciar-se sobre esta matéria sustentando que não se suscitam dúvidas quanto à legitimidade e legalidade da amortização da quota da insolvente na sociedade A..., Lda., sendo de concluir que há que proceder à restituição da quota, por indevidamente apreendida.

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Em 18.03.2008 foi notificada a Comissão de Credores para se pronunciar quanto ao incidente sendo que, de forma distinta, a fls. 108, veio H..., S.A., reiterar a restituição da quota, enquanto que a fls. 119 e 120, a I..., LDA e G..., LDA, sustentaram que a amortização da quota de que a Insolvente é detentora na “ A..., LDA” não foi feita com observância dos necessários requisitos legais, existindo irregularidades ao nível da deliberação de amortização da quota (artigos 232° e 233º do CSC); a sociedade Requerente não tinha à data em que fundou tal deliberação uma situação líquida que permitisse efectuar tal amortização (art.º 236°, n.º1° do CSC); e, de todo o modo, não procedeu no prazo legal, ou ulteriormente até ao presente, ao pagamento da contrapartida; acrescendo que a quota apreendida foi pelo Administrador da insolvência sujeita a registo e ao invés a requerente não registou a deliberação de amortização da quota em questão.

Posições estas bem patentes no parecer da Comissão junto a fls. 115 e 116.


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De fls. 109 a 111, veio o Sr. Administrador novamente pronunciar-se sobre a matéria.

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Na tentativa de conciliação realizada, nos termos do artigo 136º ex vi 141º do C.I.R.E., em 5.05.2008, foi pelos presentes dito que mantinham as posições já expressas, nada mais se tendo então decidido.

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Nos dois últimos despachos que antecedem foram determinados actos instrutórios e regularizadores da instância importando agora proceder ao seu saneamento. Nessa medida decidiu-se, com a fundamentação aí vertida, que tendo a requerente A..., Lda., protestado juntar no seu requerimento inicial certidão dos seus estatutos, tendo igualmente protestado juntar com a resposta deduzida à posição do Sr. Administrador de Insolvência os elementos contabilísticos em que a deliberação de amortização assentou, nomeadamente no sentido de ter uma situação líquida que a propiciasse, importando esclarecer quanto ao eventual pagamento da contrapartida, determinou-se a notificação da requerente para proceder à sua junção em 5 dias, sendo que

igualmente se determinou a junção ao presente apenso do Relatório do Diagnóstico Económico-Financeiro, junto aos autos principais.

Num segundo momento, e em função dos elementos entretanto juntos de fls. 176 a 199, pela requerente, certidão da Escritura Pública da constituição e respectivos Estatutos da A...; cópia da publicação no Diário da República, III Série, nº 5, de 7 de Janeiro de 2000, da sua supracitada constituição bem como dos seus estatutos, ao tempo obrigatória  e cópia do código de acesso à certidão permanente (comercial), actualizada e válida até 11-12-2010, sendo que nada fora junto ou referido relativamente aos sobreditos elementos contabilísticos em que a deliberação de amortização assentou, nomeadamente no sentido de ter uma situação líquida que a propiciasse, importava ainda esclarecer quanto ao eventual pagamento da contrapartida.

Neste sentido, e porque se entende que a amortização da quota está regularmente consentida pelo recebimento da contrapartida, foram requerente e insolvente notificadas para, em 5 dias, se pronunciarem quanto à realização, ou não, do depósito da contrapartida aludida na deliberação junta aos autos; assim como foi a insolvente notificada para informar, no mesmo prazo, se veio ulteriormente, no contexto societário, consentir na amortização em causa ou se, pelo contrário, reagiu contra a mesma, nomeadamente por via judicial; e ainda renovada a notificação atrás expressa para que a requerente, querendo, junte aos autos os elementos a que alude no art.º 40º da sua resposta.

Ao exposto apenas respondeu a requerente, esclarecendo que:

[…]


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Nos termos do artigo 141º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresa (adiante apenas C.I.R.E.), as disposições relativas à reclamação e verificação de créditos são igualmente aplicáveis à reclamação destinada a separar da massa os bens de terceiro indevidamente apreendidos e quaisquer outros bens, dos quais o insolvente não tenha a plena e exclusiva propriedade, ou sejam estranhos à insolvência ou insusceptíveis de apreensão para a massa (n.º 1, alínea c).

Dispõe o artigo 136º, n.º 2 do CIRE que na tentativa de conciliação são considerados como reconhecidos os créditos que mereçam a aprovação de todos os presentes e nos precisos termos em que o forem. No n.º 3 do artigo 136º do CIRE prevê-se que concluída a tentativa de conciliação, o processo é imediatamente concluso ao juiz, para que seja proferido despacho, nos termos previstos nos artigos 510.º e 511.º do Código de Processo Civil. O artigo 510º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil, dispõe que o juiz profere despacho saneador destinado a conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas. Impõe-se, portanto, a prolação de tal despacho.


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                No despacho saneador julgou-se a instância válida e regular. Na sequência dos articulados oferecidos pelas partes interessadas, foi pela requerente excepcionada a legitimidade das sociedades comerciais requererem a nulidade da deliberação social da ora requerente, o que reveste, em face dos termos processuais do presente apenso, natureza material e nessa sede deverá ser apreciado.

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                2. Deram-se como assentes os seguintes factos

[…]


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                A partir desta factualidade provada e após aturada análise jurídica, o Tribunal a quo decidiu julgar improcedente o pedido de restituição da quota social aprendida nos autos.

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                Notificada da decisão e por dela discordar a requerente, interpôs o necessário recurso que foi admitido como apelação, com subida imediata e nos autos e efeito devolutivo – folhas 306/7.

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                Notificada do despacho de admissão, a requerente atravessou nos autos as suas doutas alegações que sintetizou nas conclusões que passamos a transcrever:

[…]


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                Não contra alegaram

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                2. Delimitação do objecto do recurso

                As questões a decidir na presente apelação e em função das quais se fixa o objecto do recurso sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, nos termos das disposições conjugadas do nº 2 do artigo 660º e artigos 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do Código de Processo Civil, são as seguintes:

Ø Titular da quota amortizada na data da sua apreensão no processo de insolvência. Realidade não abordada que gera a nulidade da sentença por omissão de pronúncia nos termos do disposto no artigo 668º n.º 1 al. d) do CPC.

Ø É indiferente para a solução da questão se a amortização foi ou não registada.

Ø Ilegalidade da apreensão da quota por parte do Sr. administrador da insolvente, já que conhecia ter sido a mesma amortizada na AG de 6 de Junho de 2006.

Ø Apreensão da contrapartida da amortização


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                3. Colhidos os vistos, aprecia-se e decide-se

                3.1 – Nulidade da sentença – alínea d) do nº 1 do artigo 668º do CPC           

A apelante intentou o presente incidente de restituição da quota que a insolvente B..., Lda. detém, no valor de 315.019 €. correspondentes a 50% do seu capital social, sustentando que tal bem foi indevidamente apreendido pelo administrador da insolvência, na medida em que a insolvente só deteve tal quota até ao dia 6 de Junho de 2006, sendo que na data da sua apreensão já não lhe pertencia.

                A apelante parte deste pressuposto para sustentar a nulidade da sentença, em virtude de não ter conhecido do Tribunal a quo da questão reportada à titularidade da quota a partir de 6 de Junho de 2006 data em que ocorreu a deliberação social ao que acresce o facto de não se estar em presença de concorrência de registos, sendo indiferente se a amortização foi levada ou não ao registo.

                Vejamos se lhe assiste razão:

A nulidade prevista na alínea d) do nº 1 do artigo 668º do CPC verifica-se – quando o Juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento – ou seja quando o Juiz deixe de tomar posição sobre todas as causas de pedir invocadas na petição, sobre todos os pedidos formulados e mesmo sobre as excepções suscitadas ou de conhecimento oficioso, isto sem prejuízo do conhecimento de alguma delas prejudicar a apreciação das restantes (artigo 660º, nº 2 do CPC).

                Da conjugação do disposto nos artigos 668º, nº 1 d) e 660º, nº 2, ambos do CPC, o Juiz deve pronunciar-se sobre todas as questões que sejam submetidas à sua apreciação, mas está, naturalmente, impedido de se pronunciar sobre questões não submetidas ao seu conhecimento: no primeiro caso – se não se pronunciar sobre todas as questões – existirá uma omissão de pronúncia, no segundo caso – conhecer de questões não submetidas à sua apreciação – ocorrerá um excesso de pronúncia. Deve sublinhar-se que a lei fala em questões, ou seja, em assuntos juridicamente relevantes, pontos essenciais de direito e de facto em que as partes fundamentam as suas pretensões. Naquele substantivo – questões – como é jurisprudência uniforme não cabem razões ou argumentos usados pelas partes[1].

                Relendo o requerimento inicial verificamos que o fundamento/causa de pedir se estrutura em redor do arresto e penhora levados a cabo pelas firmas C..., Lda e D..., Lda. o que motivou a marcação de assembleia geral para deliberar, entre outros assuntos, sobre a amortização da quota e na sequência de tão complexa causa de pedir – recorde-se que a insolvente B..., Lda era detentora de quota que correspondia a 50% do capital social da requerente A..., Lda. – formulou o pedido de restituição do bem apreendido pelo Sr. Administrador da Insolvente.

                É a partir deste contexto factual que a requerente, invocando a amortização da quota, reclama o levantamento registal e a sua restituição, já que indevidamente apreendida pelo administrador da insolvente, concretamente a quota que a insolvente deteve na requerente até 06 de Junho de 2006.

                Não podemos partilhar, pese o muito respeito pela opinião da apelante, do entendimento de que a sentença recorrida padece de qualquer nulidade das taxativamente enunciadas nos alíneas a) a e) do artigo 668º do CPC[2] na medida em que as «questões» que invoca como capazes de preencher os requisitos da alínea d) do nº 1 do artigo 668º do CPC, não integram tal conceito – causas de pedir; pedidos ou excepções – como antes se reportam a percursos jurídicos distintos por referência à matéria de facto dada como provada. Na verdade, ainda que a sentença recorrida não tivesse, em sede de análise jurídica, abordado a questão da data da amortização e seus efeitos, estas «omissões» por não se integrarem nas questões suscitada pela apelante, nunca podia ser caracterizada como omissão nos termos enunciados no artigo 668º, 1, d) do CPC.

                Ao afirmar e passamos a citar: o Tribunal a quo não conheceu do pedido formulado pela recorrente (…) e que não era senão o de reconhecer ou não à recorrente a titularidade da quota amortizada desde a data em que ocorreu a deliberação social a apelante, parece esquecer que a sua pretensão foi julgada improcedente, que o Exmo. Juiz como forma de enquadrar as questões subsequentes abordou, escorando-se em doutrina autorizada, o conceito de «amortização», concluindo, quanto aos seus efeitos, pela «extinção» ou seja a cessação da participação social por parte do(a) detentor(a) para, concluir, amparado pelos ensinamentos do Sr. Prof. Menezes Cordeiro, que apesar de não se dizer quando é que esta extinção se dá, tudo indica que a sua eficácia interna ocorra com a comunicação ao sócio por ela afectada – nº 1 do artigo 234º do CSC – já a sua eficácia externa dependerá do seu registo – artigos 3º, 1,I, 13º, 14º e 15º, 1 do CRC., sublinhando, ainda na esteira dos ensinamentos do mesmo Mestre que apenas estão ressalvados deste efeito extintivo, os direitos já adquiridos e as obrigações já vencidas – nº 2 do artigo 233º do CSC – relativamente aos quais a amortização não tem efeitos retroactivos.

                    Sublinhe-se que no item – registo da amortização – o Exmo. Juiz tomou posição sobre a questão suscitada quanto à validade da deliberação que amortizou a quota, considerando que a amortização das quotas está sujeita a registo – artigo 3º, 1, alínea I do CRC – sendo que deve ser levado no prazo de 2 meses a contar da data em que tiverem sido titulados (…). Na certidão permanente pela – Insc- AP.3/20060811 – foi levada ao registo a apreensão da quota em processo de insolvência a favor da massa insolvente (…) encontra-se registada pelo Dep. 1081/2007-04-17 a amortização da quota no valor de € 315.019,00 de que a B..., Lda. com data de amortização de 6.6.2006. (…) Segundo o disposto no artigo 234º, nº 1 a deliberação de amortização torna-se eficaz mediante comunicação dirigida ao sócio (…) mas mesmo esta eficácia encontra-se colocada em crise quando o artigo 242ºA estabelece que os actos relativos a quotas são perante a sociedade enquanto não for solicitada, quando necessária, a promoção do respectivo registo (…) Já no plano da eficácia externa depende do seu registo (…).

                Renovando os respeitos devidos, a modo exaustivo e claro como a sentença se encontra redigida permite saber quem era o titular da quota na data da deliberação da sua amortização – claramente a B..., Lda. apesar de tal quota se encontrar registada desde 23 de Março e 21 de Abril de 2006, respectivamente um arresto e uma penhora, promovidos por C..., Lda e D.... Lda. – facto 3. Em 11 de Agosto de 2006 é feita a sua apreensão a favor da massa, apreensão que foi levada ao registo conforme emanada dos factos provados. 

                É lícito e legítimo a recorrente questionar-se e questionar o tribunal se o objecto da lide é ou não de concorrência de registos ou se o registo da amortização é completamente indiferente para a dilucidação da questão já que o administrador da insolvente se encontrava presente na assembleia geral que deliberou amortizar a quota que a insolvente detinha na requerente e daí que a não pudesse apreender porquanto já não fazia parte do património do seu património, como defende a apelante. Todavia, esta questão pode estar inter-relacionada com o bom ou mau julgamento de direito, mas nunca com aspectos processuais delimitadores dos seus conteúdos, ou seja, com eventual nulidade por omissão de pronúncia. Pode discordar-se da sentença, mas apelidá-la de nula por violação da alínea d) do nº 1 do artigo 668º do CPC é que nos parece incorrecto e daí que julguemos nesta parte o recurso improcedente por não provado, tanto mais que a sentença recorrida é explícita quanto ao facto de não ter conhecido os restantes itens, a saber: omissão do valor concreto da contrapartida da amortização; do incumprimento estipulado no artigo 236º, nº 1 do CSC – à data da deliberação e ao tempo do pagamento da contrapartida – e do depósito da contrapartida – por terem ficado prejudicados pelo conhecimento e procedência da questão reportada à procedência do registo da quota.

                Pode ler-se na sentença recorrida: o que se vem de expor torna despiciendas ulteriores considerações sobre as demais questões suscitadas nos autos (…).Como se vê, o não conhecimento das restantes questões não se ficou a dever a qualquer omissão de pronúncia, mas sim ao facto de não ser, no entendimento do Tribunal a quo, oponível aos credores da insolvente a deliberação de amortização da quota apreendida nos autos, acrescentamos nós, ainda que aquela assembleia-geral tenha a insolvente Fundibeiras, Lda. estado representada pelo Sr. administrador judicial - a acta de folhas 21.


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                3.2 – Erro de julgamento. Propriedade da quota apreendida pelo administrador judicial. Contrapartida

                Embora não definida em sede de Código das Sociedades Comerciais podemos extrair do conteúdo do nº 5 do artigo 233º que a amortização de quota anda associada ao conceito de redução parcial do seu valor ou pura e simplesmente à sua extinção quando a amortização incidir sobre a totalidade da quota como sucede no caso em apreço.

                Foge claramente do objecto do recurso o conhecimento da legalidade da deliberação da AG que deliberou amortizar a quota – artigos 233º e 234º do CSC – realidade esta abordada na sentença objecto de recurso e tratada de modo exaustivo para concluir que se mostra legal e estatutariamente adequada a deliberação adoptada quer relativamente ao quórum deliberativo quer à votação expressa. Assim, sendo não podemos deixar de concluir que a quota no valor de € 325.019€ que a insolvente B..., Lda. era detentora no capital social da requerente A..., Lda. correspondente a 50% do seu capital social “se extinguiu” por via de tal deliberação de amortização, nada emergindo dos autos que permita concluir que, à data da deliberação a requerente/apelante, não reunisse os requisitos vazados no artigo 236º do CSC e que expressou, transcrevendo o conteúdo do nº 1 deste artigo na respectiva acta – cf. folhas 24 último parágrafo.

                Cumprindo a regra de que a amortização é onerosa a requerente/apelante no seu contrato de sociedade – artigo 7º - fez constar o seguinte: a sociedade poderá, independentemente do consentimento do respectivo titular amortizar a quota ou quotas que sejam arroladas, arrestadas ou penhoradas ou que sejam objecto de qualquer outro procedimento de que possa resultar a transmissão forçada da quota ou quotas a terceiros, por um preço igual ao valor de liquidação da quota determinada nos termos do nº 2 do artigo 105º do CSC – normativo que quanto à metodologia de cálculo respeita a alínea a) do nº 1 do artigo 235º do CSC.

                Quanto ao momento e formas de pagamento a alínea b) do nº 1 do artigo 235º expressa que o pagamento da contrapartida é fraccionado em duas prestações dento de seis meses e um ano, após a fixação definitiva da contrapartida – emergindo da matéria de facto provada que a contrapartida pela amortização corresponde ao pagamento da quantia de € 315.019,00, sendo que a primeira das prestações devia ter sido paga nos seis meses subsequentes a 18 de Novembro de 2009 – deliberação da Comissão de Credores – o que sabemos não ter sucedido.

                Feito este enquadramento, vejamos a questões elencadas pela apelante como estruturantes de uma decisão de deferimento da sua pretensão.

Todo o enfoque da apelante se situa justamente nos efeitos internos e externos da amortização da quota, considerando que é totalmente indiferente o facto de ter sido levada ao registo meses depois da apreensão pela massa insolvente, concluindo que tendo estado presente o Sr. administrador da insolvente B..., Lda. na AG que deliberou amortizar a quota que esta detinha no capital social da requerente/apelante, então estava-lhe vedado o caminho de em data posterior apreender a quota à ordem da massa insolvente.

                Partilhamos com a sentença recorrida a necessidade de trilharmos um determinado caminho na apreciação jurídica dos factos – amortização da quota; eficácia da deliberação; conhecimento do administrador da insolvente e reflexos na sua posterior apreensão a favor da massa falida -  e a partir dessa análise crítica tomar-se posição quanto à legalidade – vista no quadro de uma correcta subsunção dos factos ao direito – da decisão que julgou improcedente o pedido formulado pela requerente ou se ao invés encontramos fundamento no quadro legal que disciplina amortização, tal como pretendido pela apelante e pelo menos assim o entendemos, que a quota não podia ser apreendida pelo administrador da insolvência por já não existir em consequência da amortização e, neste sentido, deveria limitar-se a notificar a requerente para entrega da contrapartida à ordem da massa insolvente e caso o não o fizesse podia o Sr. administrador apreender a quota retornada ao património da insolvente, notificando a apelante dessa diligência.

                Será este entendimento defensável?

                Embora não possamos deixar de correr riscos de repetirmos o que a propósito da amortização e respectiva eficácia se escreveu na sentença recorrida, a verdade é que o artigo 232º, nº 2 do CSC, embora não defina o que se deve entender por «amortização» acaba por nos fornecer os seus efeitos, ou seja, a sua extinção, sem prejuízo dos direitos já adquiridos e das obrigações já vencidas, não se discutindo neste recurso a validade e cumprimento das questões procedimentais enunciadas no artigo 234º do CSC, devendo, porém, analisar-se o conteúdo normativo vazado no artigo 235º do CSC caso mereça procedência os argumentos avançados pela apelante.

                Por nos parecer de interesse não deixaremos de transcrever o fundamento estruturante do indeferimento da pretensão da apelante:

                (…)

                Acresce que os factos sujeitos a registo e a publicação obrigatória só produzem efeitos contra terceiros depois da data da publicação – artigo 14º, nº 3 do CRC. De tudo o exposto decorre, pois, que aquando do registo da apreensão de quota levada a cabo nestes autos de insolvência inexistia qualquer registo da deliberação de amortização (sendo que a mesma apenas foi levada a registo muito depois dos dois meses previstos para tal) tal deliberação não poderá ser oponível, nos termos sobreditos, aos credores da insolvente então titular da quota pretendida amortizar, aqui “representados” pelo Administrador de Insolvência. Cumpre sublinhar que, neste contexto, os “terceiros” serão naturalmente os credores da insolvente que beneficiam com a apreensão preconizada pelo Administrador no exercício das suas funções (…). É pois a plena eficácia da sobredita deliberação de amortização que aqui está em causa, a qual não pode estender-se aos presentes autos atenta a confiança preconizada pelo registo, nos termos expendidos a respeito da teoria da publicidade (negativa), segundo a qual os actos sujeitos a registo estão perfeitos, simplesmente cedem perante a omissão no registo que, dotado, de fé pública, enquanto nele não estiverem inscritos os factos, considera-os inexistentes, apenas não o sendo em relação aos inscritos após o seu registo. Assim, e não sendo oponível aos credores da insolvente a deliberação da amortização da quota apreendida nos autos não se poderá proceder à sua restituição (…).

                Pensamos ter delimitado o fundamento estruturante do indeferimento da pretensão da apelante, porém, na análise do fundamento do recurso não podemos deixar de recuar à data da deliberação, à definição do papel e poderes do administrador da insolvência na AG que deliberou amortizar a quota, como não podemos deixar de considerar, de resto à semelhança do que foi defendido na sentença recorrida, os efeitos da deliberação que votou a amortização da quota.

3.2.1 – Defende a apelante que a questão não é de concorrência de registos, sendo indiferente ter ou não sido registada a amortização, tanto mais que o Sr. administrador da insolvente esteve presente na assembleia-geral que deliberou amortizar a quota. Está provado que esteve presente na Assembleia-Geral Extraordinária o legal represente da Insolvente B..., LDA., Dr. E..., o qual se absteve de votar quanto a esta matéria, tendo proposto que ela fosse postergada “…em conformidade, designadamente porque assuntos como a aprovação de contas e a pretensão de amortização da quota se afiguram inoportunas para ela, B... se pronunciar sem ter em atenção a posição que venha ser a dos referidos órgãos da insolvências”.

Não pode restar a mais leve dúvida em face do que consta na acta da assembleia-geral de 6 de Junho de 2006 que um dos pontos a tratar era justamente a amortização da quota titulada pela sócia B..., Lda. em virtude de a requerente/apelante ter sido notificada que a quota havia sido arrestada e penhorada por dois dos seus credores, sendo que na inexistência de impedimento legal – v.g. 236º, nº 1 do CSC – e não se colocando qualquer questão relativamente à forma e prazo da amortização – artigo 234º do CSC – nem sequer quanto ao consentimento da insolvente que esteve representada na AG em que foi deliberado amortizar a quota.

Define-se amortização «como o acto jurídico da sociedade que implica a extinção total ou parcial da quota e das posições jurídicas que a compõem[3], mas a verdade é que, a protecção de terceiros de boa fé, depende, do seu registo, o que sabemos ter sido feito meses depois da deliberação - 17 de Abril de 2007 – que amortizou a quota – cf. folhas 198. Também só tempo depois do registo da apreensão da quota é que a Assembleia de Credores, na defesa dos seus interesses, mandatou o Sr. Administrador para utilizar os mecanismos legais que permitisse à insolvente receber o valor da quota[4], o que sabemos não ter ocorrido.

Não vale a pena repetirmos os argumentos aduzidos na sentença recorrida a propósito da eficácia interna da deliberação de amortização da quota não levada a registo – alínea i) do nº 1 do artigo 3º do CRC – na medida em que não estão em discussão no recurso, pese o facto de se desconhecer o alcance dos poderes conferidos ao Sr. Administrador pela procuração a que se alude na acta da AG de 6 de Junho de 2006, aceitando-se, como defende a apelante, que era do conhecimento do Sr. Administrador a deliberação da amortização da quota, o que no seu entender inviabilizava que levasse ao registo uma «apreensão» de uma quota que sabia amortizada/extinta, classificando de ilegal tal apreensão.

Com o respeito que nos merece a posição da apelante a lei só lhe abria uma possibilidade de evitar que o Sr. administrador judicial no âmbito das competências que lhe estão conferidas por lei – cf. artigos 55º e 149º e seguintes do CIRE – apreendesse a quota se, para além de ter reflectido na acta da AG o nº 1 do artigo 236º do CSC, tivesse fixado um prazo de avaliação da quota “amortizada”[5] e procedido ao registo da mesma de modo a ficarem acautelados os interesses de terceiros que mais não são do que os credores da insolvente B..., Lda. Não se diga, como defende a apelante, que para a solução da questão é indiferente ter havido ou não o registo da amortização, estando subjacente a tal raciocínio que amortizada a quota a mesma «extinguiu-se» o mesmo é dizer que os efeitos da amortização se produziram imediatamente após a deliberação onde esteve presente o Sr. administrador e assim estava-lhe vedada a apreensão de algo que já havia «desaparecido» por via da deliberação.

Não partilhamos a indiferença quanto ao registo, na medida em que a apelante não avança com qualquer quadro legal que lhe permita escorar a sua posição e não avança simplesmente porque não existe, a menos que a apelante se estivesse a referir a eficácia interna da deliberação de amortização nos termos definidos no artigo 13º, nº 1 do CRC. Mas se é este o argumento ele encontra no caminho uma dificuldade que nos parece inultrapassável e que se prende com o conceito de «parte» na qual, seguramente o Sr. Administrador da insolvente e sócia B..., Lda. não se insere na medida em que naquela assembleia-geral ele não era mais do que o representante de todos os credores sem poderes para aprovar ou não a deliberação de amortização, como de resto, emana da declaração expressa em acta e nos factos provados ao propor que sejam postergadas, (…) porque assuntos como a aprovação de contas e a pretensão de amortização da quota se afiguram inoportunos para ela B...se pronunciar sem ter em atenção a posição que venha a ser a ser a dos referidos órgãos da insolvência. Neste contexto e considerando-se, repete-se, as suas responsabilidades – artigos 55º, 149º, 150ºe 151º do CIRE – o Sr. administrador procedeu ao registo da apreensão da quota, apreensão que nos termos do nº 3 do artigo 14º do CRC só após a respectiva publicação é que produz efeitos contra terceiros.

Não só a amortização devia ter sido levada a registo pela apelante o não foi e daí que não possa produzir efeitos contra terceiros – em particular contra os credores da insolvente – como não pode ser considerado indiferente o seu registo face à protecção que a lei confere a terceiros, como não existe qualquer ilegalidade na apreensão e registo da quota por parte do Sr. administrador que se limitou a cumprir as obrigações que emanam da lei, não relevando para tal efeito – apreensão e registo da quota – o facto de ter estado em representação da B..., Lda. na assembleia-geral que deliberou amortizar a quota, representação de poderes claramente limitada e não representativa dos interesses dos credores que não lhe haviam conferido poderes sobre a amortização da quota, cálculo do seu valor e pagamento por parte da apelante – cf. artigos 1157º, 1159º e 1161º do CC.

A dado passo a apelante insiste com o facto do Sr. administrador ter apreendido «um património que sabe já não ser seu, valendo-se do facto do registo ainda não ter sido promovido (…) e é também verdade que representa os credores e seus interesses, pelo que também esses credores, por esta via tinham conhecimento da amortização».

Por razões que julgamos compreender - mas que não podemos aceitar à luz dos factos provados -  a apelante pretende impor erga omnes a deliberação de amortização não registada nos termos exigidos por lei e a partir deste seu conceito colocar em causa o fundamento da apreensão e subsequente registo, apelidando-a de «ilegal» na medida em que entende que  bastava a deliberação de amortização da quota para que esta se extinguisse, sendo o registo um aspecto menor no quadro da situação em análise já que os credores, através do administrador judicial, sabiam da amortização.

Embora a matéria de facto não evidencie este conhecimento tomemo-lo como bom e então perguntemos onde e como é que a apelante procedeu ao pagamento da contrapartida considerando o valor aprovado de € 315.019,00, sendo que, com toda a segurança, respiga da sentença recorrida que em Assembleia de credores foi aprovado que fossem utilizados os mecanismos legais para que a insolvente possa receber o valor da quota – folhas 258.

Ou seja, em data que desconhecemos mas seguramente posterior à apreensão e registo da quota e à tomada de conhecimento por parte dos credores que a mesma havia sido amortizada, estes conferiram poderes ao Sr. administrador judicial para receber o valor da quota, o que sabemos não ter acontecido.

No contexto da matéria de facto que não foi colocada em crise, na evidente falta de cumprimento do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 235º do CSC, considerando-se que a data em que foi tomada a deliberação amortização da quota, não seguida do necessário registo, não pode tal deliberação, pese a presença de um representante da insolvente sem mandato para o efeito, vincular os credores da insolvente como pretende a apelante.

De resto, tivesse a apelante, depois de ter diligenciado por calcular o valor da quota, valor aceite pelos credores, cumprido o que determina a alínea b) do nº 1 do artigo 235º do CSC e a questão do levantamento da apreensão já estava resolvida. Agora, proceder-se ao levantamento de uma quota amortizada, mão não paga, nem registada em prazo, era colocar em crise a massa insolvente – artigo 46º do CIRE – e com ela, os legítimos interesses dos credores.


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Decisão

 Nos termos e com os fundamentos expostos, acorda-se em negar provimento ao recurso e consequentemente mantém-se a decisão recorrida.


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                Custas pela apelante – artigo 446º do CPC.

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                Notifique.

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Jacinto Meca (Relator)
Falcão de Magalhães
Regina Rosa


[1] Ac. STJ, datado de 4.3.2004, proferido no âmbito do processo nº 04B522, publicado no endereço electrónico www.dgsi.pt.
[2] Redacção anterior à introduzida pelo artigo 1º do DL 303/2007, de 24.8.
[3] Sr. Hélder Quintas – Regime Jurídico das Sociedades por Quotas, Almedina, 2010, pág. 295.
[4] Cf. sentença folhas 258.
[5] Recorde-se que não há meio legal que evite, no cumprimento da alínea i) do nº 1 do artigo 3º do CRC, o registo da amortização.