Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2510/19.7T8CBR-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: INSOLVÊNCIA
CÔNJUGE DEVEDOR
APREENSÃO DE BENS
SEPARAÇÃO DE BENS
EX CÔNJUGE
CITAÇÃO
COMUNICABILIDADE DA DÍVIDA
SEPARAÇÃO DE MEAÇÕES
Data do Acordão: 05/18/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – SECÇÃO DE COMÉRCIO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 17, 141, 159 CIRE, 740, 743, 781 CPC, 1688 CC
Sumário: 1 – Durante a pendência do casamento, em insolvência de um só dos cônjuges, só os próprios e concretos bens comuns (e nunca a meação, uma vez que, enquanto há casamento, esta não passa duma situação jurídica ideal) podem ser apreendidos.

2 – Após a dissolução do casamento (após a cessação das relações patrimoniais, cfr. art. 1688.º do C. Civil), é a meação no património comum (em insolvência de um só dos ex-cônjuges) que, em princípio, deve ser apreendida (cfr. arts. 781.º e 743.º/1 do CPC).

3 – Porém, nas hipóteses em que há concretos bens do património comum dados por ambos para garantir dívidas da responsabilidade dos dois ex-cônjuges, também tais concretos bens (e não a meação no património comum) podem/devem ser aprendidos na insolvência de apenas um dos ex-cônjuges.

4 - Efetuada tal apreensão (nos próprios bens), tem o ex-cônjuge (do devedor/insolvente) que ser citado (aplicando-se com as necessárias adaptações o art. 741.º do CPC) para declarar se aceita a comunicabilidade da dívida assim como a garantia/hipoteca (e não que ser citado para requerer a separação de bens, nos termos do art. 740.º/1 do CPC).

5 – Após o que, uma de duas: ou, vindo a dívida a ser considerada comum, a apreensão se mantém sobre os próprios bens (que serão liquidados na totalidade); ou, não sendo a dívida considerada comum e não subsistindo em relação a ela a garantia, a apreensão tem que ser considerada como incorretamente efetuada, devendo a mesma ser retificada, levantando-se a apreensão sobre os próprios bens e passando a mesma a incidir sobre a meação (do devedor/insolvente) no património comum.

Decisão Texto Integral:

Insolvência

De um só dos ex-cônjuges

Modo de apreender os bens

Citação do ex-cônjuge para declarar se aceita a comunicabilidade das dívidas

Citação do ex-cônjuge para requerer a separação de meações

1 – Durante a pendência do casamento, em insolvência de um só dos cônjuges, só os próprios e concretos bens comuns (e nunca a meação, uma vez que, enquanto há casamento, esta não passa duma situação jurídica ideal) podem ser apreendidos.

2 – Após a dissolução do casamento (após a cessação das relações patrimoniais, cfr. art. 1688.º do C. Civil), é a meação no património comum (em insolvência de um só dos ex-cônjuges) que, em princípio, deve ser apreendida (cfr. arts. 781.º e 743.º/1 do CPC).

3 – Porém, nas hipóteses em que há concretos bens do património comum dados por ambos para garantir dívidas da responsabilidade dos dois ex-cônjuges, também tais concretos bens (e não a meação no património comum) podem/devem ser aprendidos na insolvência de apenas um dos ex-cônjuges.

4 - Efetuada tal apreensão (nos próprios bens), tem o ex-cônjuge (do devedor/insolvente) que ser citado (aplicando-se com as necessárias adaptações o art. 741.º do CPC) para declarar se aceita a comunicabilidade da dívida assim como a garantia/hipoteca (e não que ser citado para requerer a separação de bens, nos termos do art. 740.º/1 do CPC).

5 – Após o que, uma de duas: ou, vindo a dívida a ser considerada comum, a apreensão se mantém sobre os próprios bens (que serão liquidados na totalidade); ou, não sendo a dívida considerada comum e não subsistindo em relação a ela a garantia, a apreensão tem que ser considerada como incorretamente efetuada, devendo a mesma ser retificada, levantando-se a apreensão sobre os próprios bens e passando a mesma a incidir sobre a meação (do devedor/insolvente) no património comum.

Apelação n.º 2.510/19.7T8CBR-C.C1

Comarca de Coimbra – Secção de Comércio

F (…), com os sinais dos autos, veio, por apenso aos autos de insolvência de C (…), intentar a presente ação de separação de bens contra a Massa Insolvente, a Devedora e os Credores, tendo em vista que seja determinada “a separação da meação do autor nos bens comuns supra referidos, liquidando-se na insolvência apenas a meação nos mesmos da devedora insolvente ou, a não ser assim, liquidando-se na insolvência a totalidade dos bens comuns não partilhados do dissolvido casal do autor e da devedora insolvente e revertendo para o autor metade do produto da venda efetuada em tal liquidação”

Alegou para tal que foi casado com a insolvente, casamento entretanto dissolvido por divórcio; e que, na constância do casamento, compraram os 3 prédios (2 imóveis urbanos e 1 imóvel rústico) apreendidos para a massa insolvente, que ainda não haviam partilhado.

Mais refere que “os créditos hipotecários da responsabilidade comum do dissolvido casal – que oneram com hipotecas os 3 imóveis – foram objeto de verificação na insolvência e no valor total de 60.757,59€”[1]; que, pelos créditos da devedora insolvente, “respondem os seus bens próprios e a sua meação nos bens comuns do dissolvido casal que aquela compunha com o autor, mas não a meação deste em tais bens comuns”[2], razão pela qual se “impõe a separação da meação do autor nos bens comuns referidos, liquidando-se na insolvência apenas a meação nos mesmos da devedora insolvente ou, a não ser assim, liquidando-se na insolvência a totalidade dos bens comuns não partilhados do dissolvido casal do autor e da devedora insolvente e revertendo para o autor metade do produto da venda efetuada em tal liquidação.[3]

Foram citados editalmente os credores e pessoalmente a massa insolvente e a devedora, não tendo sido apresentada qualquer oposição, vindo, porém, o Administrador Judicial dizer que “notificado do pedido de separação da meação do ex-cônjuge da insolvente nos bens comuns, onde se admite que a liquidação possa efetuar-se no presente processo, manifesta a sua concordância por considerar tal solução mais consentânea com a valorização da venda dos bens em causa.”

Conclusos os autos, a Exma. Juíza, entendendo estar já em condições de decidir, passou a fazê-lo, tendo proferido sentença, em que “julgou improcedente a presente ação especial para separação de bens, devendo os referidos bens permanecer apreendidos para a massa insolvente, respondendo, contudo, o produto da sua venda exclusivamente pelas dívidas comuns dos cônjuges, e sendo o eventual (e improvável) saldo positivo (remanescente existente se o valor da venda exceder o montante das dívidas comuns) dividido pelos cônjuges.”

Inconformado com tal decisão, interpõe a A. recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que ordene a separação da meação do autor nos bens comuns, liquidando-se na insolvência apenas a meação nos mesmos da devedora insolvente.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

 (…)

B ) Como se refere no Acórdão do T. R. de Lisboa de 24 - 05 – 2018 (…): «Como se entendeu no acórdão da Relação de Guimarães de 19/05/2016, “de acordo com o disposto no art. 159º do CIRE (...) verificado o direito à restituição ou separação de bens indivisos, ou verificada a existência de bens de que o insolvente seja contitular, só se liquida no processo de insolvência o direito que o insolvente tenha sobre esses bens (...)”

No já mencionado acórdão da Relação de Coimbra de 24/09/2013, pode ainda ler-se: “Em caso de venda do direito da meação do insolvente no património comum do ex-casal, a hipoteca não é afetada, porque não é o imóvel sobre o qual a mesma incide que é vendido. Quem adquire tal direito adquire uma parte do património comum no qual se integra um imóvel hipotecado. Apesar do direito passar para outro titular, o bem imóvel hipotecado continua a responder pela satisfação do crédito garantido, pois tal resulta da natureza da hipoteca enquanto direito real de garantia e da sequela que lhe anda associada”»

C) Nas palavras de Carvalho Fernandes e João Labareda (…) , «Estão, com efeito, em causa, por um lado, a verificação do direito de restituição ou separação de bens indivisos e, por outro la do, a existência de bens de que , por qualquer título, o insolvente seja apenas contitular.

Em ambos os casos , só se liquida no processo o direito que o insolvente tenha sobre os bens, ou seja, só esse direito é alienado » . Ademais ,

D) A Sentença recorrida e interpretação diversa da norma do art. 159.º do CIRE, permitindo-se que se execute num processo património de quem nele não é parte, não é ouvido, nem tido nem achado, sendo como que um insolvente por arrastamento, viola e atenta claramente princípios e regras basilares de contraditório e contraditoriedade, contra a esfera e os direitos patrimoniais do autor / requerente e contra qualquer espécie de processo justo e equitativo e de acesso ao direito e aos tribunais, princípios e direitos previstos no art. 20.º, n.º s 4 e 5, ínsitos ainda no princípio do Estado de Direito Democrático previsto no art. 2.º, todos da CRP. (…)”

Não foi apresentada qualquer resposta.

Dispensados os vistos – mantendo-se a regularidade da instância – cumpre, agora, apreciar e decidir.


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II – Elementos Factuais com Relevo

1.º -  F (…) e a devedora/insolvente C (…) foram casados e encontram-se divorciados;

2.º - Na constância de tal casamento, entretanto dissolvido, compraram a C (…)  e marido F (…) e a M (…) e marido M (…) (aquisições inscritas nas respetivas descrições registrais pela AP. 5 de 2001/11/16) os seguintes bens:

- o prédio urbano sito em  (...), União das Freguesias de  (...) do Concelho de  (...), descrito na Conservatória do Registo Predial de  (...) sob o n.º 3559 e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 290, da referida freguesia ( ...);

- o prédio urbano sito em  (...), União das Freguesias de  (...) do Concelho de  (...), descrito na Conservatória do Registo Predial de  (...) sob o n.º 3560 e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 1753, da referida freguesia ( ...);

- o prédio rústico sito em (...), União das Freguesias de  (...) do Concelho de  (...), descrito na Conservatória do Registo Predial de  (...) sob o n.º 3561 e inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo 3561, da referida freguesia ( ...) - cfr. auto de apreensão;

3º - Tais imóveis foram penhorados no âmbito da execução a correr termos sob o nº 3364/18.6T8CBR do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra - Juízo Execução - Juiz 1 em que é exequente, Banco Comercial Português, S.A. e executados o aqui autor e a aqui insolvente;

4.º - Tais imóveis constituem a integralidade dos bens comuns do dissolvido casal composto que foi pelo autor e pela devedora insolvente, não foram objeto de partilha e encontram-se apreendidos no âmbito da insolvência;

5.º - Os créditos hipotecários da responsabilidade comum do dissolvido casal – que oneram com hipotecas os imóveis referidos – foram objeto de verificação na presente insolvência e com efeitos nesta no valor total de 60.757,59 €;

6º - Foram reconhecidos no Apenso A os seguintes credores, num passivo total de € 67.253,69:

- B (…) S.A.;

- I (…), Lda.;

-C (…);

- G (…) S.A.;

-Fazenda Nacional representada pelo Ministério Público com privilégio creditório imobiliário especial (por IMI) sobre os referidos imóveis.

7.º - O A., na pessoa do seu mandatário, foi pelo Administrador de Insolvência citado, em 11/10/2019, para, “conforme o estatuído no art. 740.º/1 do CPC, vir requerer, querendo, no prazo de 20 dias a separação de bens ou juntar certidão comprovativa de assim ter requerido”, acrescentando-se que “mais se consigna que, caso nada diga no prazo indicado, a apreensão, seguida de liquidação, prosseguirá nos referidos bens comuns, na sua totalidade”


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III – Direito

Diz o A./apelante, no art. 6.º da sua PI, que, na sequência da citação referida no ponto 7.º dos factos, vem “requerer a presente separação”, ou seja, os presentes autos são a “resposta” do A./apelante à citação que recebeu para, “conforme o estatuído no art. 740.º/1 do CPC, vir requerer, querendo, no prazo de 20 dias a separação de bens ou juntar certidão comprovativa de assim ter requerido”.

Só que – é a primeira e imediata observação a fazer – o meio processual próprio para a separação de bens para que o A. foi citado (estando ele e a devedora/insolvente já divorciados) não é, ao contrário do que o A. faz, o procedimento de restituição/separação de bens previsto no art. 141.º e ss do CIRE: o meio processual próprio era/é o previsto no art. 79.º da Lei n.º 23/2013, de 05-03 (Novo Regime do Inventário) e hoje no art. 1133.º do CPC, em que sob a epígrafe “inventário em consequência de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento” se dispõe que “decretada a separação judicial de pessoas e bens ou o divórcio, ou declarado nulo ou anulado o casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer inventário, para partilha dos bens comuns do casal”[4].

Compreende-se o equívoco do A.[5]; o CIRE (mais exatamente, as fases executivas do CIRE) coloca-nos, a cada passo, perante preceitos de leitura e compreensão difícil, para além de nos colocar perante questões cuja solução só pode ser encontrada com recurso à aplicação, com as devidas adaptações, do subsidiário CPC (cfr. art. 17.º do CIRE).

E para tentar desfazer equívocos importa ir um pouco atrás, ao momento/modo de apreensão dos bens.

Vejamos:

Não é de todo pacífico, numa insolvência de um só dos cônjuges, o modo como se deve proceder à apreensão dos bens comuns do casal; não é exatamente o caso dos autos, uma vez que, frisa-se, o casamento já se encontra dissolvido por divórcio[6], porém, vale a pena encadear o raciocínio a partir da primeira situação.

Nessa primeira situação (em que ainda estão casados), há quem entenda que se deve apreender o direito à meação e quem entenda que são os próprios bens comuns que devem ser apreendidos, havendo depois a possibilidade de separação de meações (para o que, depois, segundo este entendimento, se procede à citação, nos e para os termos do art.740.º/1 do CPC).

Temos para nós como seguro, guardado o devido respeito por opinião diversa, que é este último – em face das características e natureza jurídica da comunhão conjugal – o bom entendimento[7].

É que, enquanto há casamento e sociedade conjugal, o direito à meação é algo que, verdadeiramente, não tem sequer uma consistente existência jurídica.

Efetivamente, enquanto há casamento, nenhum dos cônjuges pode, em princípio[8], requerer a divisão, mantendo-se a comunhão, por imperativo da lei, enquanto persistir a sociedade conjugal, a cuja sustentação económica os bens comuns se encontram adstritos.

Seguindo de perto o referido pelo Prof. Antunes Varela[9], importa notar que nenhum dos cônjuges pode alienar ou onerar bens determinados da comunhão conjugal, nem parte especificada da qualquer um dos bens comuns, nem sequer dispor de qualquer quota ideal de participação no direito comum; uma vez que os bens comuns estão especialmente afetados aos encargos da sociedade conjugal, constituindo um património autónomo[10] sujeito a um regime/afetação especial, consistente no facto de os bens comuns responderem pelas dívidas de interesse comum do casal, ou seja, pelas dívidas que responsabilizam ambos os cônjuges (cfr. art. 1695.º/1/1.ª parte), e ainda no facto de, por essas dívidas, só responderem outros bens quando não haja bens comuns ou estes sejam insuficientes (cfr. art. 1695.º/1/2.ª parte); e sem prejuízo da meação ideal responder subsidiariamente por dívidas da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges (cfr. art. 1696.º/1/2.ª parte).

Daí que se afirme, na doutrina, que os bens comuns dos cônjuges constituem objeto, não de uma relação de compropriedade, mas duma propriedade coletiva (a que se dá a designação de propriedade/contitularidade de mão comum ou comunhão germânica), em que os sujeitos dessa propriedade coletiva são ambos os cônjuges, sem que seja correto falar, enquanto persiste a comunhão, numa divisão de quotas entre eles; em que há a contitularidade de duas pessoas (os cônjuges) num único direito, em que os sujeitos da comunhão conjugal são titulares de um único direito sobre o chamado bem comum, razão pela qual a comunhão conjugal, enquanto propriedade coletiva, é uma comunhão una, indivisível e sem quotas[11].

Pelo que o direito à meação, de que cada um dos cônjuges é idealmente titular, só ganha consistência, a ponto de se tornar exequível, depois de finda a sociedade conjugal[12].

E é como corolário e consequência de tudo isto que surge o disposto nos art. 740.º a 742.º do CPC, que mais não é que a devida e inevitável adjetivação do que resulta do recorte substantivo do regime dos bens comuns na sociedade conjugal; importando aqui salientar que tal adjetivação (no âmbito da execução singular) não se circunscreve à citação para requerer a separação de bens prevista no art. 740.º/1 (situação/citação esta que pressupõe que se está perante dívida da exclusiva responsabilidade do cônjuge executado/insolvente), incluindo também uma outra solução processual: o incidente de comunicabilidade da dívida (previsto no art. 741.º), que não conduz, caso a dívida venha a ser considerada comum, à possibilidade de vir a ser requerida a separação de bens.

Efetivamente, a lei processual comum – subsidiariamente aplicável ao CIRE (cfr. art. 17.º do CIRE) – vem estabelecendo, quanto à comunicação da dívida, regras, procedimentos e comportamentos processuais, que têm um papel que não é meramente indicativo/facultativo.

Assim[13]:

A reforma processual de 2003 – lei processual, ao caso não aplicável – optou por estabelecer, nos n.º 2, 3, 4 e 6 do então art. 825.º, um incidente (provocado pelo exequente ou pelo executado) de comunicação da dívida não contraída por ambos os cônjuges; ou seja, desde que o título executivo fosse extrajudicial[14] e dele constasse apenas um dos cônjuges, passou a admitir-se a alegação da comunicabilidade pelo exequente e pelo executado na ação executiva.

Estabeleceu tal reforma de 2003 um mecanismo/incidente de base declarativa em que se previu a oposição à alegação do requerente e em que se associou ex lege um efeito ao funcionamento de tal mecanismo.

Concretizando um pouco mais: o exequente procedia à alegação fundamentada de que a dívida, a despeito da singularidade passiva do título, era comunicável (alegação feita no modelo de requerimento executivo, a par da indicação dos bens comuns); sendo citado o cônjuge do devedor, neste contexto alegatório, para requerer a separação de bens ou para a junção de certidão de ação pendente (n.º 1) e para declarar se aceita ou não a comunicabilidade nos termos fundados pelo exequente (n.º 2).

Após o que, assim cominatoriamente citado o cônjuge do devedor, duas coisas podiam acontecer:

Ou o reconhecimento da comunicabilidade da dívida quer por falta de oposição (confissão ficta) quer por confissão expressa; produzindo-se a comunicabilidade da dívida, que passava a ser tida da responsabilidade de ambos os cônjuges (passando a valer o regime de responsabilidade subsidiária do art. 1695.º/1/2.ª parte do C. Civil); e passando a execução a “prosseguir também contra o cônjuge não executado” (na expressão do art. 825.º/3), o mesmo é dizer, passando este à condição de parte executada (e a execução a ter dois executados, em regime de litisconsórcio necessário superveniente) e resultando, assim, do encadeamento processual, a exequibilidade da obrigação contra quem não constava do título original (e formando-se um título executivo ex novo, autónomo, embora genericamente ligado ao título executivo extrajudicial inicial).

Ou o não reconhecimento da comunicabilidade da dívida, caso o cônjuge a recusasse, hipótese em que podia/devia, então, requerer a separação de bens ou juntar certidão de ação pendente, nos termos da norma mais geral do art. 825.º/1 do CPC, uma vez que, se o não fizesse, a execução prosseguiria sobre os bens comuns penhorados - art. 825.º/4 do CPC; ou seja, caso o cônjuge recusasse a comunicabilidade da dívida, esta mantinha a qualidade de dívida própria do outro cônjuge (o problema substantivo saía, então, da esfera da execução) e a execução continuaria a contar com um único executado, porém, se não requeresse a separação de bens ou juntasse certidão de ação pendente, a execução prosseguiria sobre os bens comuns penhorados – cfr. art. 825.º/4 do CPC.

Parte disto (da reforma processual de 2003) foi modificado na reforma processual de 2013 – lei processual ao caso não aplicável – passando a questão da comunicação da dívida a merecer uma tratamento autónomo nos novos art. 741.º e 742.º[15].

Agora, o cônjuge do executado é citado – do pedido de comunicabilidade da dívida formulado no requerimento executivo – para dizer se aceita; e pode:

 - reconhecer expressamente a natureza comum da dívida;

 - nada dizer, o que dita que a dívida será considerada comum;

 - recusar a comunicabilidade da dívida, por oposição/impugnação.

O que – esta última possibilidade – constitui a novidade; uma vez que, se antes, a mera recusa do cônjuge impedia logo a comunicação, agora a recusa de reconhecimento da comunicabilidade determina a abertura duma fase contraditória.

Assim, se o pedido de comunicação da dívida foi deduzido pelo exequente no requerimento executivo, a oposição do cônjuge à comunicabilidade da dívida, caso também pretenda opor-se à execução, será cumulada com a própria oposição à execução.

Após o que, julgado o incidente da comunicabilidade – ou na sequência declarativa da própria oposição à execução ou dum incidente autónomo (caso não tenha havido oposição à execução) – se a dívida for considerada comum, vale a mesma solução do 825.º/3 do vCPC: a execução prossegue também contra o cônjuge (que passa a ter o estatuto de executado) cujos bens próprios podem ser nela subsidiariamente penhorados (e se, antes da penhora dos bens comuns, tiverem sido penhorados bens próprios do executado inicial, pode este requerer a respetiva substituição); se a dívida não for considerada comum, retoma-se à solução do art. 825.º/1 do vCPC=art. 740.º/1 do nCPC: se já tiverem sido penhorados bens comuns do casal, o cônjuge do executado deve, no prazo de 20 dias após o transito em julgado da decisão, requerer a separação de bens ou juntar a certidão comprovativa da pendência da ação em que a separação já tenha sido requerida, sob pena da execução prosseguir sobre os bens comuns (art. 741.º/6 do nCPC).

Significa tudo isto – e resulta claramente do confronto entre a lei processual de 2003 e a “novidade” trazida pela atual (de 2013) – que passou a estar prevista, na lei processual de 2013, a possibilidade de haver uma discussão e uma decisão sobre a comunicabilidade da dívida[16]; sendo que esta novidade, com as devidas adaptações, também é aplicável à fase executiva do CIRE.

Isto exposto, voltando ao raciocínio que estávamos a efetuar, do mesmo modo que, de acordo com o recorte substantivo referido, os cônjuges não podem sequer dispor de qualquer quota ideal de participação no direito comum (comunhão conjugal) – ou seja, não podem dispor do seu direito à meação, razão pela qual supra referimos que este direito não tem, enquanto há casamento, uma verdadeira e consistente existência jurídica – também qualquer diligência de cariz executivo por parte do tribunal (penhora, arresto, apreensão em insolvência, etc.) não pode incidir sobre o chamado direito à meação.

O que “obrigou” o legislador processual, pese embora a existência duma disposição como a do art. 781.º do CPC (que prevê, entre outras, a penhora de quinhão em património autónomo e que, não fosse o específico regime substantivo dos bens comuns na sociedade conjugal, se ajustava, na sua aplicação, ao chamado direito à meação), a prever uma outra e diversa solução processual para os bens comuns, enquanto há casamento, tendo em vista estes bens comuns serem efetivamente chamados a responder pelas dívidas pelas quais são substantivamente responsáveis, nos termos do art. 1695.º/1/1.ª parte e 1696.º/1/2.ª parte, ambos do C. Civil.

E, claro está, não havendo no CIRE nenhuma específica disposição sobre o tema, é a matéria regida, como se diz no art. 17.º do CIRE, pelo CPC, o que significa que são aplicáveis os art. 740.º a 742.º do CPC (todos eles e não apenas o art. 740.º), o mesmo é dizer que, enquanto há casamento e sociedade conjugal, o direito à meação é insuscetível de ser apreendido como bem integrante duma massa insolvente (em que só um cônjuge foi declarado insolvente), devendo, isso sim, ser apreendidos os próprios bens comuns (v. g. os próprios imóveis), tendo que haver, a seguir, ou a citação para separação de meações ou o incidente de comunicabilidade da dívida[17].

Não é este, como já referimos (e repetimos sempre para que não haja equívocos), o caso dos autos – o casamento do A. com a devedora/insolvente encontra-se já dissolvido por divórcio – mas fomos um pouco atrás para encadear o raciocínio e estabelecer as devidas diferenças e semelhanças.

Dissemos (em termos formais porventura não totalmente rigorosos) que, enquanto há casamento e sociedade conjugal, o direito à meação não tem sequer uma verdadeira e consistente existência jurídica para, em termos impressivos, destacar a razão pela qual o “direito à meação” (algo que não tem existência jurídica) não pode ser penhorado/apreendido (enquanto há sociedade conjugal); e para, agora, dizer que a consistência e existência jurídica do “direito à meação” surge no exato momento em que as relações patrimoniais entre os cônjuges cessam nos termos do art. 1688.º (ou seja, v. g, quando o casamento, como é o caso dos autos, se dissolveu por divórcio) e mantém-se até que os ex-cônjuges procedam à partilha.

E a razão de tal “transfiguração” está, mais uma vez, nas características e natureza jurídica da comunhão que passa e existir e que se mantém até que se proceda à partilha.

“Com o divórcio, termina a “comunhão conjugal” que, até à conclusão duma partilha do património comum, será uma “comunhão pós-conjugal”, uma comunhão que apresenta dificuldades quanto ao seu estatuto (a lei parece mandar aplicar as regras da compropriedade – art. 1404.º do C. Civil – mas vários autores entendem que o estatuto conveniente é o da comunhão hereditária).[18]

Ainda segundo Guilherme de Oliveira[19], “(…) qualquer tentativa de eleger um regime específico tem que passar por afastar o regime legal do art. 1404.º, segundo qual  “as regras da compropriedade são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à comunhão de quaisquer outros direitos (…). Por outras palavras, é preciso demonstrar que as regras subsidiárias da compropriedade que a lei recomenda são inaplicáveis, mesmo “com as necessárias adaptações”: antes disto, não se pode dizer, em geral, que há uma lacuna no sistema, a carecer de integração através de uma analogia com a comunhão hereditária, ou através de outras normas construídas pelo intérprete dentro do espírito do sistema (cfr. art. 10.º).

Seja como for, uma coisa é certa e pacífica: com a cessação das relações patrimoniais dos cônjuges termina a comunhão matrimonial de bens e, enquanto não ocorrer a partilha, passa-se da supra referida contitularidade de mão comum para uma contitularidade de tipo romano, ou na variante da compropriedade ou na variante de herança indivisa.

É pois apenas aqui – na opção entre as regras da compropriedade e as regras da comunhão hereditária – que as opiniões se dividem quanto às características e natureza jurídica da comunhão “pós-conjugal”.

Sendo indiscutível, quer segundo as regras da compropriedade (art. 1408.º do C. Civil), quer segundo as regras da comunhão hereditária (art. 2124.º e ss do C. Civil), que os ex-cônjuges podem dispor da sua quota ideal de participação no património comum[20], pelo que fora de qualquer dúvida, a nosso ver, também qualquer diligência de cariz executivo por parte do tribunal – penhora, arresto, apreensão em insolvência, etc. – pode incidir sobre a meação em tal património comum.

E, isto dito, estamos chegados ao cerne do recurso.

Como começámos por referir, o A. foi citado para, querendo, intentar inventário (nos termos do art. 79.º da Lei n.º 23/2013, de 05-03 e, agora, nos termos do art. 1133.º do CPC) e, em vez disso, veio com o procedimento de restituição/separação previsto no art. 141.º do CIRE.

Porém, se se entender, estando o A. e a devedora/insolvente divorciados, que o único modo correto de aprender a parte da devedora/insolvente no património comum é apreendendo a sua meação, temos que o procedimento intentado e o pedido nele formulado têm toda a relevância[21] e conciliam-se e ajustam-se à reclamação do que então seria uma incorreta apreensão, decorrendo de tal incorreção, como se pede, “a separação da meação do autor” e a “liquidação na insolvência apenas da meação da meação da devedora/insolvente”.

Razão pela que, a nosso ver, o cerne do desfecho do recurso está em saber, num caso como o dos autos (em que já estão divorciados), se a apreensão está bem feita (sendo apreendidos os próprios bens/imóveis) ou se o único modo correto de aprender o património comum da devedora/insolvente (por já estar divorciada) é apreendendo a sua meação.

Para que não haja confusões interpretativas, repetimos:

 - se ainda estivessem casados, só os próprios bens/imóveis comuns podiam ser apreendidos (e nunca a meação);

 - estando já divorciados[22], é a meação que, em princípio, deve ser apreendida (uma vez que passamos a estar perante hipótese que cabe na previsão do art. 781.º do CPC e a que se aplica a “advertência” constante do art. 743.º/1 também do CPC).

Mas, nesta hipótese, estando divorciados, quer-nos parecer que pode/deve ser também considerado admissível que sejam apreendidos os próprios bens se e quando tais bens (que constituem a integralidade do património comum – cfr. ponto 4.º dos factos) respondam por dívidas que são de ambos e, principalmente, quando, como é o caso, tais bens foram por ambos, quando ainda eram casados, dados de hipoteca para garantir tal dívida da responsabilidade de ambos.

Mais, não faz sequer grande sentido – não tem a menor razoabilidade e utilidade práticas – que numa tal situação (em que os bens, que são todo o património comum, foram por ambos dados em garantia duma dívida de ambos) a meação seja o bem apreendido, bem/meação em que não se vê que possa haver interessados (além do outro ex-cônjuge e do próprio credor) e sobre o qual o credor não goza de garantia (que incide apenas sobre os concretos bens), acabando por, finda a insolvência, tudo estar/ficar na mesma: o não pagamento de qualquer montante significativo do crédito, a manutenção de ambos os ex-cônjuges como devedores e a manutenção da respetiva garantia.

Mais ainda, numa hipótese como a dos autos, em que até havia uma execução a correr contra ambos os ex-cônjuges (o que também será o mais comum), não consentir que sejam apreendidos os próprios bens (que, repete-se, constituem a integralidade do património comum) configuraria até um certo contra-senso: por um lado, a execução, onde tais bens estariam penhorados, teria ficado suspensa (uma vez que tais bens faziam parte da meação apreendida para a insolvência) enquanto durasse a insolvência e nesta, por outro lado, acabaria por não se “resolver” nada sobre os bens.

Enfim, embora, estando divorciados, seja a meação que, em princípio, deve ser apreendida, nas hipóteses em que há bens do património comum (dados em garantia) a responder por dívidas dos dois ex-cônjuges, tudo aconselha que os próprios bens possam/devam ser aprendidos na insolvência de apenas um dos ex-cônjuges.

E o que incutirá tal solução – ao arrepio da que, à partida, seria preconizada pela natureza jurídica da comunhão “pós-conjugal” [23] – é a circunstância já enfatizada de estarmos perante bens que foram por ambos dados em garantia e para responderem por uma dívida que era comum e que agora, divorciados, é de ambos, ou seja, é estarmos perante bens que respondem na sua totalidade (e não apenas na sua meação)

Pelo que, sendo esta a ratio/pressuposto de tal solução, não fará sentido, com todo o respeito, ir a seguir citar o ex-cônjuge do devedor/insolvente para os termos do art. 740.º/1 do CPC[24], ou seja, para requerer inventário para separação de bens, uma vez que o que está pressuposto no art. 740.º/1 do CPC e na respetiva citação é exatamente o oposto, ou seja, que se estará perante uma dívida que não é comum (e de que não foi colocada a questão da comunicabilidade), razão pela qual os bens comuns não respondem na totalidade, mas apenas na sua meação (o que, consequentemente, confere todo o interesse e relevo à separação de bens).

Como já se referiu, o disposto nos art. 740.º a 742.º do CPC contém as soluções adjetivas decorrentes do recorte substantivo do regime dos bens comuns na pendência da sociedade conjugal, ou seja, não foi gizado para a hipótese, que é a dos autos, de os cônjuges já estarem divorciados e de já não haver comunhão conjugal[25]; para além de – insiste-se mais uma vez – tal adjetivação não se cingir à citação para requerer a separação de bens (prevista no art. 740.º/1), incluindo também o não menos relevante incidente de comunicabilidade da dívida (previsto no art. 741.º), que não conduz (muito naturalmente), caso a dívida venha a ser considerada comum, à possibilidade de vir a ser requerida a separação de bens[26].

Constatamos pois, se refletirmos, que não faz qualquer sentido e não tem qualquer razoabilidade e utilidade práticas citar alguém para requerer uma separação de bens, quando o pressuposto que leva a consentir na apreensão dos próprios bens (e não na apreensão da meação) é aquele que se pretende citar e os bens, na sua totalidade, responderem pela dívida em causa (e, quando todos os bens respondem, não é a separação de bens que faz sentido)[27].

O que não significa, como é evidente, consentindo-se na apreensão dos próprios bens (que fazem parte do património comum), que o processo possa prosseguir “à revelia” do ex-cônjuge do devedor/insolvente, que sempre tem que ser interpelado/ouvido para poder exercer o devido contraditório (cfr. art. 3.º do CPC).

E – é a questão – qual é/será o devido contraditório a que o ex-cônjuge tem que ser chamado?

Como se extrai de tudo o já referido, o que é útil e faz sentido, em termos de contraditório, é aplicar com as necessárias adaptações (porventura até por analogia, uma vez que, repete-se, os arts. 740.º e 742.º do CPC regulam apenas, adjetivando o direito substantivo, a hipótese em que ainda há casamento e comunhão conjugal) o art. 741.º do CPC e o ex-cônjuge (do devedor/insolvente) ser citado para declarar se aceita a comunicabilidade da dívida (assim como, no caso, as hipotecas) que justifica que os próprios bens (e não a meação no património comum) hajam sido apreendidos; após o que, uma de duas: ou, vindo a dívida a ser considerada comum, a apreensão se mantém sobre os próprios bens (que serão liquidados na totalidade)[28]; ou, não sendo a dívida considerada comum, então a apreensão tem que se considerar como incorretamente efetuada, devendo a mesma ser retificada, levantando-se a apreensão efetuada sobre os próprios bens e passando a mesma a incidir sobre a meação do devedor/insolvente no património comum (nos termos dos já referidos arts. 781.º e 743.º/1 do CPC)[29].

Pelo que, aqui chegados, estamos em condições de, em síntese, afirmar:

A circunstância de estarmos perante bens que foram dados em garantia por ambos e para responderem por uma dívida que foi apresentada como sendo de ambos justificava, não obstante estarem já divorciados, que a apreensão incidisse sobre os próprios bens e não sobre a meação no património comum.

Efetuada tal apreensão, tinha o ex-cônjuge (e aqui A.) que ser necessariamente citado para declarar se aceitava a comunicabilidade da dívida[30] (assim como as hipotecas), razão pela qual a citação que lhe foi feita padece de irregularidade.

Irregularidade que, porém, não tem influência no exame e decisão da questão/causa (não produzindo, de acordo com o art. 195.º/1 do CPC, nulidade[31]), na medida em que é o próprio A. a aceitar no art. 6.º da sua PI – em que refere que os créditos hipotecários são da responsabilidade comum do dissolvido casal e oneram com hipotecas os 3 imóveis – a comunicabilidade da dívida, assim como as hipotecas incidentes sobre os 3 imóveis.

É quanto basta para, embora por um percurso algo diverso, concluir pela improcedência do que o A./apelante invocou e concluiu na sua alegação recursiva, o que determina o naufrágio do recurso e a confirmação do sentenciado na 1ª instância, que não merece os reparos que se lhe apontam, nem viola qualquer uma das disposições indicadas, designadamente, os art. 46.º e 159.º do CIRE, uma vez que, repete-se, a razão da apreensão e liquidação da totalidade dos bens resulta justamente de eles responderem por dívidas de que está (e sempre terá que estar) assente/reconhecido/confessado serem também da responsabilidade do A/apelante.

Em todo o caso – e sem contender com o teor literal do decidido e sob recurso – refere-se, em sentido um pouco diverso da fundamentação jurídica da sentença, que não se pode dizer, em tese e generalizando, que é o ex-cônjuge do devedor/insolvente que tem que demonstrar que as dívidas reclamadas não são comuns e da sua responsabilidade.

A nosso ver, a comunicabilidade das dívidas reclamadas tem que resultar da aplicação do direito aos factos alinhados/provados[32] pelos credores e pelo AI (como acontece, no caso, em relação ao crédito hipotecário, contraído por ambos durante a constância do casamento, e aos créditos por IMIS) – sendo, aliás, neste encadeamento que o ex-cônjuge é citado para declarar se aceita tal comunicabilidade[33] – e, se não resultar, impõe-se considerar que as dívidas em causa não são comuns (e se não houver dívidas que possam ser consideradas como comuns o desfecho até será, como se referiu, levantar a apreensão sobre os bens e passar a apreender a meação, nos termos dos arts. 781.º e 743.º/1, ambos do CPC).


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IV - Decisão

Nos termos expostos, decide-se julgar totalmente improcedente a apelação e confirma-se a sentença recorrida.

Custas pelo apelante.


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Coimbra, 18/05/2020

Barateiro Martins ( Relator )

Arlindo Oliveira

Emídio Santos



[1] Art. 4.º da PI.
[2] Art. 5.º da PI.
[3] Art. 7.º da PI.

[4] Diferente seria, a nosso ver, a situação caso ainda estivessem casados; aí, segundo o entendimento pregresso (cfr. Sousa Macedo, Manual das Falências, Vol. II, pág 344 a 351, máxime pág. 347), o direito à separação de bens teria que começar por ser declarado – então, sim, nos termos do art 141.º/1/b) do CIRE – após o que, reconhecido/declarado tal direito, se passaria ao procedimento (que funcionaria como execução da decisão tomada nos termos do art. 141.º/1/b) do CIRE) hoje previsto no art. 1135.º do CPC. Estando já divorciados – e é aqui que reside a diferença – o referido direito já resulta dos arts. 1689.º do C. Civil e 1133.º do CPC (não tendo que ser declarado nos termos do art. 141.º1/b) do CIRE).
[5] Aliás, o teor da citação que recebeu também é, a nosso ver e como se procurará explicar, um equívoco.
[6] E já não há, verdadeiramente, bens comuns, mas sim património comum.
[7] Em que não incluímos para todos os casos, como infra referiremos, a citação para os termos do art. 740.º/1 do CPC (há casos em que a citação certa deve ser efetuada, nos termos do art. 741.º/2 do CPC, para aceitar a comunicabilidade da dívida).
[8] Uma exceção é exatamente o que se prevê quer no art. 740.º/1 quer no art. 741.º/6, ambos do CPC.
[9] In Direito da Família, pág. 373 e ss.

[10] Disto – afirmar-se que a comunhão conjugal é um património autónomo – diverge Jorge D. Pinheiro (in O Direito da Família Contemporâneo, pág. 430), com fundamento em, “por um lado, os bens próprios poderem também ser usados para pagar as dívidas da responsabilidade de ambos (art. 1695.º/1/2.ª parte) e, por outro lado, os bens comuns poderem ser destinados à satisfação de dívidas da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges (1696.º)”, embora não deixe de frisar que “a comunhão conjugal é um património de afetação especial, na medida em que se destina preferencialmente à satisfação de determinadas dívidas, as dívidas que responsabilizam ambos os cônjuges (1695.º/1).

[11] Disto – afirmar-se que a comunhão conjugal é uma comunhão sem quotas – também diverge Jorge D. Pinheiro (in O Direito da Família Contemporâneo, pág. 429), dizendo que cada cônjuge tem necessariamente uma quota na comunhão, que é designada pela meação nos bens comuns, porém, logo acrescenta que é uma quota com um regime especial, em que, ao contrário da quota na compropriedade (art. 1408.º/1 do C. Civil), um cônjuge não pode dispor válida e eficazmente da sua meação nos bens comuns (cfr. arts. 690.º, 1730.º/2, 1730.º/2 do C. Civil e 740.º-742.º do CPC), enquanto não cessar, nos termos que a lei prevê, a própria comunhão patrimonial.

[12] Enquanto os credores de qualquer comproprietário podem executar a quota do seu devedor no direito comum (de compropriedade), os credores de qualquer dos cônjuges, por dívida da sua exclusiva responsabilidade, têm que fazer recair a execução sobre bens determinados do património comum (que respondam pelas dívidas de ambos os cônjuges) e não sobre a meação do cônjuge devedor.
[13] Seguindo de perto Rui Pinto, in Manual da Execução e Despejo, pág. 551 e ss.

[14] Se o título executivo for uma sentença, não se admitiu a alegação da comunicabilidade, dado que qualquer das partes já o poderia ter feito na ação declarativa – cfr. 825.º/2 e 6; preexistindo um processo judicial ou administrativo, entendeu-se que havia o ónus, quer do autor, quer do réu, de invocar a comunicabilidade nesse processo, sob pena de não o poderem fazer na ação executiva.

[15]Assiste-se ao recentramento e clarificação de todo o sistema de alegação da comunicabilidade da dívida na execução” (…) “estabelecendo-se várias regras que densificam o até agora escassamente regulado “incidente de comunicabilidade da dívida”, refere Rui Pinto a fls. 559.

[16] Discussão esta, sobre a comunicabilidade da dívida, que conduz a um desfecho semelhante ao previsto no art. 141.º/1/b) do CIRE; efetivamente, ainda segundo o entendimento pregresso atrás referido (a propósito do então 1237.º/1/b do CPC, cfr. Sousa Macedo, Manual das Falências, Vol. II, pág 348), “a separação (de bens) pressupõe que, segundo a lei substantiva, não seja o cônjuge reclamante responsável pelo pagamento das dívidas contraídas pelo outro cônjuge

[17] E não apenas, repete-se, a citação prevista no art. 740.º/1 do CPC: se estiverem em causa dívidas comuns (pese embora só um dos cônjuges tenha sido declarado insolvente), o que é ajustado que aconteça é o incidente de comunicabilidade da dívida. Embora, reconhece-se, estando casados (e havendo processo de insolvência em que só um dos cônjuges assim foi declarado), não faça muita diferença, uma vez que a separação de meações tem que passar pela fase declarativa de reconhecimento do direito à separação (prevista no art. 141.º/1/b) do CIRE) e aqui será discutida a comunicabilidade, não sendo “autorizada” a separação (e não se passando à fase executiva do art. 1355.º do CPC) se a dívida acabar por ser considerada comum.

[18] Guilherme de Oliveira – Manual de Direito da Família - Pág. 286.
[19] Local citado, pág. 194/5.

[20] O que até ali se designava como “bens comuns” passa a designar-se, como o art. 1689.º do C. Civil o exprime, por “património comum”.

[21] Não sendo já casados, não tem aplicação a alínea b) (o A. não precisa que lhe seja reconhecido o direito a poder pedir a separação de bens), enquadrando-se assim o procedimento intentado pelo A. na alínea c): terem sido aprendidos bens de que a insolvente não tem a plena e exclusiva propriedade.

[22] Será esta, parece-nos, a hipótese mais comum, uma vez que, estando já divorciados, passa a ser insuscetível de aplicação o art. 264.º do CIRE.

[23] Sem que também se possa dizer que a natureza jurídica da contitularidade pós-conjugal – que, a nosso ver, se aproxima mais da indivisão hereditária: a cessação da indivisão entre os cônjuges faz-se através da partilha (e não da divisão de coisa comum) e há uma certa autonomia patrimonial (na medida em que o património comum responde por um certo tipo de dívidas) – se opõe à admissibilidade, numa hipótese como a nossa, da apreensão dos próprios bens.
[24] Tanto mais que, repete-se, não estando já casados, o direito a pedir a separação de bens não tem a seguir que passar pelo “crivo” do art. 141.º/1/b) do CIRE.
[25] Como referimos a natureza jurídica da comunhão conjugal e da comunhão pós-conjugal são diversas.
[26] Numa execução comum intentada apenas contra um dos cônjuges, se a dívida for reputada como comum pelo exequente, não é o art. 740.º que é chamado à liça, mas sim o art. 741.º.

[27] Mais – daí o interesse da comparação entre as duas situações (casados e já divorciados) – chama-se mais uma vez a atenção que, caso ainda estivessem casados, para se passar à fase executiva da separação, tinha o cônjuge não insolvente que passar pelo “crivo” do art. 141.º/1/b) do CIRE, em que, repete-se, se discute a questão da comunicabilidade da dívida (só vindo a ser reconhecido o seu direito a pedir a separação do art. 1135.º do CPC se a dívida não vier a ser considerada comum); “crivo” que não existe, estando já divorciados.
[28] No fundo, um desfecho idêntico ao que, caso ainda fossem casados, resultaria da aplicação do art. 141.º/1/b) do CIRE.

[29] Haverá certamente casos em que os ex-cônjuges estão divorciados há anos e em que as dívidas nada tenham a ver com o tempo da sociedade conjugal, hipóteses em que apenas será correto, a nosso ver, apreender a meação no património comum.

[30] Em insolvência de apenas um dos ex-cônjuges em que hajam sido aprendidos bens do património comum, esta é a única citação que, a nosso ver, faz sentido.

[31] E muito menos ocorrendo a situação invocada na 2ª parte da conclusão D): como é evidente e resulta da citação que o próprio A. refere no art. 6.º da sua PI, o processo não seguiu sem ele “ser ouvido, nem achado”, tendo-lhe sido concedido o contraditório que ele exerceu intentando o presente procedimento, não se mostrando assim violados os preceitos e direitos constitucionais invocados.

[32] Da aplicação do que se dispõe no art. 1691.º do C. Civil aos factos que forem alinhados/provados: se, por ex., a dívida foi contraída durante o casamento apenas pelo ex-cônjuge declarado insolvente e este for comerciante, valem as presunções conjugadas do art. 15.º do C. Comercial e art. 1691.º/1/d) do C. Civil; se a dívida foi contraída durante o casamento por ambos, vale o que consta do art. 1691.º/1/a) do C. Civil; mas, fora disto, se a dívida foi contraída durante o casamento apenas pelo ex-cônjuge declarado insolvente, já será o AI e os credores a terem que alegar/provar o proveito comum.

[33] A nosso ver, a comunicabilidade da dívida só se colocará em relação às dívidas para as quais o ex-cônjuge foi citado para declarar se aceita tal comunicabilidade (ou seja, no caso, só as duas referidas dividas podem/devem ser consideradas comuns).