Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | LUÍS RAMOS | ||
Descritores: | REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA | ||
Data do Acordão: | 03/23/2011 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | 2º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGO 50º CP | ||
Sumário: | I- De acordo com as regras da experiência, tendo sido encontrados na casa do arguido a quase totalidade do recheio subtraído da casa do queixoso, que o arguido não tinha condição económica que lhe permitisse adquiri-lo, que uma parte razoável do mesmo era constituída por produtos que não fazem parte do trem de vida de pessoas com fracos recursos económicos como é o caso do arguido, que este se fazia transportar num Seat Ibiza do qual tinha retirado todos os bancos com excepção do do condutor, embora vivesse com mulher e quatro filhos menores e que era este o único veículo em que era visto conduzir, que dentro deste veículo transportava uma série de objectos adequados para arrombar portas e janelas e ainda uma lanterna de mãos livres, e ponderando ainda que não resulta dos autos qualquer justificação para que os objectos do ofendido estivessem na casa do arguido, que este os haja adquirido a qualquer título, para que se fizesse transportar num veículo assim alterado e para que nele transportasse objectos próprios para arrombamentos e uma lanterna de mãos livres, tem de se concluir, que o arguido foi co-autor do crime de furto julgado nos autos (co-autor uma vez que não podia “despejar” uma residência sem a ajuda directa de terceiros). II- A execução da pena não deve ser suspensa uma vez que comunidade rejeita veementemente a prática de tais actos e exige que os seus autores sejam punidos com uma pena que os faça sentir a enorme dimensão da censura social por tais condutas e que ao mesmo tempo se mostre suficientemente intimidante para futuros comportamentos idênticos. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra
Por sentença proferida nos autos supra identificados, decidiu o tribunal absolver os arguidos FP... e SC... do crime furto qualificado, previsto e punido pelo art.º 204º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. e), com referência aos art.ºs 202º, alínea a) e art.º 202º, alíneas s) e e), todos do Código Penal, por que vinham acusados. Inconformado com o decidido, o MP interpôs recurso no qual apresentou as seguintes conclusões (transcrição): Não houve resposta. O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo. Nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta pela procedência do recurso. No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal o arguido nada disse. Os autos tiveram os legais vistos após o que se realizou a conferência. Cumpre conhecer do recurso Constitui entendimento pacífico que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto e o âmbito dos mesmos, excepto quanto àqueles casos que sejam de conhecimento oficioso. É dentro de tal âmbito que o tribunal deve resolver as questões que lhe sejam submetidas a apreciação (excepto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras). Cumpre ainda referir que é também entendimento pacífico que o termo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a dirimir. Questões a decidir: - Erro na apreciação da prova - Imputação dos factos ao arguido - Integração jurídica dos factos como crime de furto qualificado previsto e punido pelos artºs 203º, nº 1 e 204º, nº 2, alínea e., ambos do Código Penal Na 1.ª instância foi dada como provada a seguinte factualidade (transcrição): Quanto à factualidade não provada, consignou-se (transcrição): O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição): ****** Entende o Ministério Público que o tribunal a quo fez uma errada interpretação da prova produzida em audiência ao dar como não provados os factos constantes da acusação e que imputavam ao arguido FP... a co-autoria do crime de furto ocorrido na residência de FJ...entre os dias 2 e 3 de Março de 2008. Vejamos: Da conjugação dos depoimentos produzidos em audiência de julgamento com a análise do auto de reconhecimento de fls. 51 apenas decorre, resumidamente, que, entre 2 e 3 de Março de 2008, alguém entrou na casa do ofendido através de uma janela e daí retirou inúmeros objectos, entre os quais os identificados no auto de fls. 51 (factos descritos de 1 a 6 da matéria de facto provada), os quais foram encontrados na garagem e na residência do arguido FP... em 31 do mesmo mês. Esta factualidade baseia-se em prova directa: as testemunhas constataram directamente tais factos e o auto especifica os objectos que “transitaram” da posse do ofendido para a posse do arguido FP.... Por isso, a análise a efectuar reconduz-se a saber se com base nos dados objectivos constatados, devemos concluir que foi este arguido (ainda que acompanhado por terceiros não identificados), quem, naquelas circunstâncias, se apropriou dos objectos identificados no auto de fls. 51 e ainda de todos os outros que foram retirados do interior da casa do ofendido e que não constam deste auto. Ora, para se chegar a esse conhecimento não é possível utilizar prova directa e por isso o tribunal a quo viu-se obrigado a apoiar-se em prova indirecta ou indiciária. Foi com base na análise desta prova que considerou subsistirem dúvidas que não podia ultrapassar, pelo que concluiu que “face à existência de tais dúvidas, a nosso ver insanáveis, terá o Tribunal que presumir a inocência daqueles, em obediência ao princípio do “in dúbio pro reo”. Vejamos: Decorre da conjugação dos artºs 412.º n° 3 al. b) e 127º do Código Processo Penal[[1]] que a convicção a que chegou o tribunal apenas pode ser substituída por outra se se mostrar errada e não apenas se concorrer com outra convicção possível, pois que se a convicção resulta clara destas e tal é demonstrado no exame crítico das provas que a lei lhe impõe (artº 374.º n.º 2), o raciocínio feito pelo tribunal (“a “entidade competente” a que se refere o artº 127º”) não pode ceder perante um qualquer outro raciocínio do recorrente. Exige-o o princípio da livre apreciação da prova (artº 127.º)([2]). Neste sentido, explica-se, v.g., no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 3 de Março de 2004 (www.pgdlisboa.pt), que “só em caso de inexistência de provas para se decidir num determinado sentido, ou de violação de normas de direito probatório (nelas se incluindo as regras da experiência e/ou da lógica) cometida na respectiva valoração feita na decisão da 1.ª instância, esta pode ser modificada, nos termos do artigo 431.º do Código de Processo Penal. Se os critérios subjectivos expressos pelo julgador se apresentarem com o mínimo de consistência para a formulação do juízo sobre a credibilidade dos depoimentos apreciados, e, com base no seu teor, alicerçar uma convicção sobre a verdade dos factos, para além da dúvida razoável, tal juízo há-se sempre sobrepor-se às convicções pessoais dos restantes sujeitos processuais, como corolário do princípio da livre apreciação da prova ou da liberdade de julgamento.” Vejamos então a fundamentação do tribunal: Começando por explicar que não há prova directa de que o arguido tenha sido autor de crime, o tribunal tece uma série de reflexões sobre se a prova indirecta permite comprová-la. Para o efeito considerou que “os vestígios lofoscópicos retirados do local e apreciados, constantes do relatório de fls 46 e 47, excluem a participação dos arguidos, pois que, as impressões digitais recolhidas foi negativa quanto a ambos os arguidos”, “que o simples facto de terem sido encontrados alguns dos bens do ofendido na casa dos arguidos, não é por si só suficiente para que se conclua que foram os mesmos que os furtaram” porque embora constitua “um indício, uma vez que, os bens foram encontrados na casa dos arguidos um mês depois de terem sido furtados da casa do ofendido”, “o período de um mês é manifestamente excessivo para que se possa concluir, sem mais, que foram os arguidos que os furtaram, tanto mais que a testemunha de acusação, HH…, cabo da GNR que teve intervenção directa na busca efectuada à residência dos arguidos e onde foram apreendidos os bens, referiu que estava por eles referenciado como autor de vários furtos a residências, um outro indivíduo que vivia em casa do arguido FP..., um individuo de nome SC...”, pelo que “poderia ter sido o tal SC... ou outra pessoa qualquer, etc.”. Perante isto, conclui o tribunal que “podemos levantar uma série de suposições que não permitem, como se disse, formular um juízo sério e seguro acerca da participação dos arguidos nos factos criminosos em questão e que lhes vêm imputados” O recorrente entende que esta fundamentação revela que o colectivo incorreu em “erros, deficiências e contradições lógicas” com o consequente “erro na apreciação da prova”. Apreciando: 1) Considera o recorrente que é “ilógico e contraditório — violador do mais elementar raciocínio silogístico — concluir” que o relatório de fls. 46 e 47 exclui a participação dos arguidos. Tem razão. Com efeito, do exame aos vestígios lofoscópicos recolhidos na casa do ofendido concluem os peritos que “pode afirmar-se que os vestígios lofoscópicos não foram produzidos por nenhum dos indivíduos ” — (elemento complementar ao relatório, constante de fls. 80). Ora, desta conclusão, não se pode, como fez o tribunal a quo, retirar que esteja excluída “a participação dos arguidos”. O que desta prova se extrai é que as impressões digitais recolhidas não pertencem aos arguidos, ou seja, não provam que estes lá tenham estado. Não afasta a sua presença no local, podendo esta ser demonstrada por qualquer outro meio de prova. Há assim uma errada apreciação desta prova na medida em que o exame lofoscópico apenas afasta a hipótese de terem sido os arguidos produzir tais vestígios, o que é diferente de não terem lá estado (as regras da experiência comum dizem-nos, por exemplo, que qualquer pessoa que cubra as mãos não deixa impressões digitais). Em suma: do exame lofoscópico apenas resulta que no local não foram recolhidas as impressões digitais do FP..., o que tem como única consequência o podermos concluir que a prova por vestígios lofoscópicos não sustenta a presença do arguido no local. Nada mais, e muito menos prova que ele lá não esteve. 2) Considera também o recorrente que a afirmação na fundamentação de que foram “encontrados alguns dos bens do ofendido na casa dos arguidos” não corresponde à realidade pois que “bem diversamente, foram ali detectados 74 (!) itens de coisas do ofendido”. Afigura-se-nos uma mera questão semântica, em que, perante a totalidade dos objectos furtados (veja-se fls. 6), os que foram apreendidos representam apenas uma parte dos mesmos: foram muitos os subtraídos, mas apenas alguns os encontrados na casa do arguido P... (como o próprio recorrente reconhece ao afirmar que “tais artigos representam uma pequena parte, em número, em peso e em valor do que foi retirado da residência do ofendido”). De qualquer maneira, a quantidade apreendida na casa do arguido foi tal que nos parece ter havido alguma desvalorização deste indício por parte do tribunal. 3) Entende também o recorrente que o arguido SP… não tinha capacidade económica para adquirir tais bens. Vejamos o que ficou provado a este respeito: Retira-se daqui - que os bens do ofendido que foram apreendidos, foram avaliados em € 4.745 — com os valores discriminados no auto de avaliação de fls. 106/111 - e que o arguido tem que ser considerado como pessoa que vive pouco acima do limiar da pobreza (note-se que o recorrente não põe em causa a factualidade dada por provada quanto à situação sócio-económica do arguido, embora saibamos que quanto a esta é normal que os arguidos tendam a “desenhá-las” de acordo com os interesses da sua defesa e que, no caso dos autos, a testemunha HH… — única prova para além das declarações do próprio arguido — referiu várias vezes ao longo do seu depoimento que aquele não trabalhava). Por isso, atenta a grande quantidade de objectos do ofendido encontrados na casa do arguido, a sua variedade e, não de somenos importância, o facto de grande parte deles não fazerem parte do acervo de bens que pessoas com a situação económica do arguido compram — referimo-nos, por exemplo, aos vários electrodomésticos “repetidos”, aos inúmeros whiskies e perfumes de marca, etc. —, dizem-nos as regras da experiência que não foram por ele comprados “comprados”. Para mais quando examinamos a totalidade dos objectos apreendidos na casa do FP..., onde os mesmos se voltam a “repetir” (fls. 345 a 351)! Acresce que nada nos autos aponta para qualquer explicação que contrarie ou que ao menos fragilize aquela conclusão. 4) Entende ainda o recorrente que ”é, de todo irrazoável, inoperante e aleatório o critério temporal” que levou o tribunal a considerar que “o período de um mês é manifestamente excessivo para que se possa concluir, sem mais, que foram os arguidos que os furtaram” e que tenha acrescetado que “tanto mais que a testemunha de acusação, HH…, cabo da GNR que teve intervenção directa na busca efectuada à residência dos arguidos e onde foram apreendidos os bens, referiu que estava por eles referenciado como autor de vários furtos a residências, um outro indivíduo que vivia em casa do arguido FP..., um individuo de nome SC...”, pelo que “poderia ter sido o tal SC... ou outra pessoa qualquer, etc.”. Examinando esta parte da fundamentação teremos que concluir que a mesma não se estriba nas regras da experiência (primeira parte) e que até se revela contrária ao que foi dito pela testemunha AH... na audiência de julgamento — única testemunha que tinha conhecimento destes factos — (segunda parte). Com efeito, não percebemos em que regras da experiência assentou o tribunal para afirmar que “o período de um mês é manifestamente excessivo para que se possa concluir, sem mais, que foram os arguidos que os furtaram”. Não entendemos em que regras da experiência se baseou o tribunal para assim ponderar, tanto mais que não percebemos em que prova se baseia para dar tanta relevância ao SC... , quando a única testemunha que dele fala, o agente HH…, disse que a investigação apurou que o furto destes autos ocorreu já depois daquele ter deixado de residir na casa do FP.... Por isso, não faz qualquer sentido a ponderação que a este respeito fez o tribunal. 5) Por outro lado, o tribunal não atribuiu qualquer relevância ao facto de o arguido se fazer transportar num Seat-Ibiza em que todos os bancos, com excepção do do condutor, haviam sido retirados, o que é revelador, no mínimo, de que era usado para transporte de muita bagagem ou de bagagem volumosa. Mas não só: é também denunciador de que o transporte de passageiros era preterido em favor do transporte de bagagem, o que se revela pouco consentâneo com o facto de ser o único veículo que possuía (não foi visto a conduzir outro veículo e a testemunha HH… refere no seu depoimento que apenas o arguido SP… o conduzia) e de viver com a família (vive com a mulher e quatro filhos de 14, 10, 5 e 3 anos de idade). Atenta esta configuração do interior do veículo, para a qual não há nos autos qualquer justificação, temos que concluir que o mesmo não tinha a utilização que é de esperar de um carro familiar, pertencente a uma pessoa que vive com mulher e quatro filhos. Por isso, não havendo qualquer outra explicação para tal anormalidade, podemos concluir que o estado em que se encontrava o carro do arguido é perfeitamente compatível com o transporte no mesmo dos objectos que transitaram da casa do ofendido para a casa do arguido P.... 6) O tribunal também não deu atenção ao facto de no interior do referido Seat Ibiza o arguido transportar um pé-de-cabra, um alicate de pressão, sete chaves sextavadas, uma chave-de-fendas, uma chave de parafusos, um alicate de corte, uma navalha, com lâmina de aço, partida na ponta e uma lanterna, em plástico, com fixador de cabeça. Estes objectos são adequados a arrombar portas e janelas e, no caso do último, muito apropriado a iluminar locais escuros mantendo as mãos livres. Não se vislumbra qualquer justificação para que o arguido os transportasse e a sua posse é compatível com a acção desenvolvida na casa do ofendido de 2 para 3 de Março de 2008: destruição do fecho de uma portada e da respectiva janela de alumínio localizada nas traseiras da casa, introdução nesta através da referida janela e circulação no seu interior com possibilidade de utilização de ambas as mãos ao mesmo tempo. É o que as regras da experiência nos dizem. *** Posto isto, vejamos: Pelas razões expostas na fundamentação, considerou o tribunal a quo que do exame da prova produzida em julgamento resultava uma dúvida insanável quanto à autoria do furto, pelo que, atento o princípio “in dubio pro reo”, deu como não provados os factos da acusação que a imputavam ao arguido. Contudo, como vimos, a convicção do tribunal assentou em alguns desacertos na apreciação da prova que conduziram a dúvidas que não tinham qualquer razão de existir, tanto mais que não é toda e qualquer dúvida que serve de fundamento à aplicação do princípio, mas apenas a dúvida razoável. Está assim afastada a argumentação com que o tribunal justificou as suas dúvidas e o levaram a absolver o arguido FP.... Por isso, considerando que na casa do arguido SP… foram encontrados setenta e quatro objectos que entre 2 e 3 de Março de 2008 foram subtraídos da casa do queixoso, que o arguido não tinha condição económica que lhe permitisse adquiri-los, que uma parte razoável dos mesmos era constituída por produtos que não fazem parte do trem de vida de pessoas com fracos recursos económicos como é o caso do arguido, que este se fazia transportar num Seat Ibiza do qual tinha retirado todos os bancos com excepção do do condutor, embora vivesse com mulher e quatro filhos menores e que era este o único veículo em que era visto conduzir, que dentro deste veículo transportava uma série de objectos adequados para arrombar portas e janelas e ainda uma lanterna de mãos livres, e ponderando ainda que não resulta dos autos qualquer justificação, por mínima que seja, para que os objectos do ofendido estivessem na casa do arguido, que este os haja adquirido a qualquer título, para que se fizesse transportar num veículo assim alterado e para que nele transportasse objectos próprios para arrombamentos e uma lanterna de mãos livres, temos que concluir, sem receio de errar, que o arguido foi co-autor do crime de furto julgado nestes autos (co-autor uma vez que não podia “despejar” uma residência sem a ajuda directa de terceiros). É o que nos dizem as regras da experiência. Por isso, há que alterar a matéria de facto no que ao FP... diz respeito. Assim, considera-se provada a seguinte factualidade: ** Comete o crime de furto qualificado previsto e punido pelos artºs 203º, nº 1 e 204º, nº 2, alínea e., ambos do Código Penal “quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia (...), penetrando em habitação (…) por arrombamento”, ou seja, comete crime de furto qualificado quem subtrai coisa móvel alheia, com ilegítima intenção de apropriação da mesma para si ou para terceiro que se encontre no interior de uma habitação e que nesta penetre através de arrombamento. Ora, tendo ficado provado que o arguido, mediante plano previamente traçado e em conjugação de esforços e de intenções com terceiro ou terceiros não identificados, após destruírem o fecho de uma portada e da respectiva janela de alumínio localizadas nas traseiras da casa do FJ…, penetraram nesta e de lá retiraram bens num valor superior a € 5 000, bens estes que o FP... sabia pertencer àquele e que tudo fez sabendo que actuava contra a vontade e sem a autorização do dono e com a intenção concretizada de os integrar no seu património, embora soubesse que os mesmos lhe não pertenciam, dúvidas não existem de que com a sua conduta preencheu todos os elementos do crime de furto qualificado previsto e punido pelos artºs 203º, nº 1 e 204º, nº 2, alínea e., ambos do Código Penal. Medida da pena: A pena a aplicar ao arguido será a resultante da concretização dos critérios do artº 71º do Código Penal, ou seja, num primeiro momento apura-se a moldura abstracta da pena e num segundo momento a medida concreta da mesma. Assim, no caso “sub judice” e dentro da moldura penal abstracta de 2 (dois) a 8 (oito) anos de prisão, há que atender à culpa do arguido e às exigências de prevenção, bem como a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo depuserem a favor ou contra o arguido. Nesta conformidade, há que ter em consideração que a culpa (enquanto censura dirigida ao agente em virtude da sua atitude desvaliosa e avaliada na dupla vertente de culpa pelo facto criminoso e de culpa pela personalidade[[3]]) para além de constituir o suporte axiológico-normativo da pena, estabelece o limite máximo da pena concreta dado que sem ela não há pena e que esta não pode ultrapassar a sua medida (retribuição justa). Como diz Figueiredo Dias, em “Direito Penal – As Consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 56, o princípio da culpa «não vai buscar o seu fundamento axiológico a uma qualquer concepção retributiva da pena, antes sim ao princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal. A culpa é condição necessária, mas não suficiente, da aplicação da pena; e é precisamente esta circunstância que permite uma correcta incidência da ideia de prevenção especial positiva ou de socialização», ou como diz ainda o mesmo autor em “Temas Básicos da Doutrina Penal”, Coimbra Editora, 2001, pág. 109 e ss., “a verdadeira função da culpa no sistema punitivo reside efectivamente numa incondicional proibição de excesso; a culpa não é fundamento de pena, mas constitui o seu limite inultrapassável: o limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações ou exigências preventivas – sejam de prevenção geral positiva de integração ou antes negativa de intimidação, sejam de prevenção especial positiva de socialização ou antes negativa de segurança ou de neutralização. A função da culpa, deste modo inscrita na vertente liberal do Estado de Direito, é por outras palavras, a de estabelecer o máximo de pena ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade nos quadros de um Estado de Direito democrático. E a de, por esta via, constituir uma barreira intransponível ao intervencionismo punitivo estatal e um veto incondicional aos apetites abusivos que ele possa suscitar». Por outro lado e ainda numa primeira linha, relevam as necessidades de prevenção (com um fim preventivo geral, ligado à contenção da criminalidade e defesa da sociedade — e cuja justificação assenta na ideia de sociedade considerada como o sujeito activo que sente e padece o conflito e que viu violado o seu sentimento de segurança com a violação da norma, tendo, portanto, direito a participar e ser levada em conta na solução do conflito — e com um fim preventivo especial, ligado à reinserção social do agente). Assim e em termos de prevenção geral, a medida da pena é dada pela necessidade de tutela dos bens jurídicos concretos pelo que o limite inferior da mesma resultará de considerações ligadas à prevenção geral positiva ou reintegração, contraposta à prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente. Para além de constituir um elemento dissuasor da prática de novos crimes por parte de terceiros, a pena deve neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validade das normas violadas. No que toca à prevenção especial há a ponderar a vertente necessidade de ressocialização do agente e a vertente necessidade de advertência individual para que não volte a delinquir (devendo ser especialmente considerado um factor que também toca a culpa: a susceptibilidade de o agente ser influenciado pela pena). Como bem explica o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Janeiro de 2000 (processo n.º 1193/99), “se, por um lado, a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena e se, por outro, esta nunca pode ultrapassar a medida da culpa, então parece evidente que — dentro, claro está, da moldura legal —, a moldura da pena aplicável ao caso concreto (“moldura de prevenção”) há-de definir-se entre o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa do agente consente: entre tais limites, encontra-se o espaço possível de resposta às necessidades da sua reintegração social” e também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Outubro de 2000 (processo n.º 2803/00-5ª), “pelo que nos art.ºs 71. °, n.ºs 1 e 2 e 40.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, se plasma, logo se vê que o modelo de determinação da medida a pena é aquele que comete à culpa a função (única, mas nem por isso menos decisiva) de estabelecer o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma “moldura de prevenção”, cujo limite máximo é dado pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos — dentro do que é consentido pela culpa — e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto da pena, dentro da referida “moldura de prevenção”, que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares, de advertência ou de segurança) do delinquente.” Em suma “a defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quando possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Setembro de 1997, processo n.º 624/97) Ponderados estes limites, deve ainda o tribunal atender e a quaisquer outras circunstâncias que não fazendo parte do tipo (para que não haja violação do princípio ne bis in idem), deponham contra ou a favor do agente. Assim e para além do mais (como ensina Jorge Figueiredo Dias in "Direito Penal Português – as Consequências Jurídicas do Crime", pág. 245, § 335 v.g., factores relativos à própria vítima — personalidade, concorrência de culpas, etc. — e/ou relacionados com a necessidade de pena — decurso do tempo), deverá ser sopesado: - O grau da ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências e o grau de violação dos deveres impostos ao agente - A intensidade do dolo ou da negligência - Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram - As condições pessoais do agente e a sua situação económica - A conduta anterior ao facto e posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime - A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena. Assim e concretizando: A culpa é de grau é elevado. As exigências de prevenção geral são também elevadas e as de prevenção especial mostram-se normais. O grau de ilicitude é elevado, tal como a intensidade do dolo. Pondera-se também a situação social do arguido e que não é primário. Pondera-se ainda que uma parte dos objectos furtados foi recuperada, mas que tal aconteceu por razões externas à vontade do arguido e que este não beneficia de atenuantes de carácter geral como sejam a confissão, o arrependimento e a reparação ou vontade de reparação do prejuízo. Atentas todas estas circunstâncias, mostra-se adequado condenar o arguido em 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão. Entendemos que esta pena não deve ser suspensa na sua execução. Explicando: Diz-nos o art.º 50.º n.º 1 do Código Penal que “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.” Como é jurisprudência pacífica (v.g., Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Dezembro de 2008, in www.dgsi.pt), a suspensão da execução da pena apenas deverá ser aplicada nos casos em que seja possível fazer um juízo de prognose favorável, centrado no arguido e no seu comportamento futuro. Como juízo de prognose que é, não encerra em si uma certeza, mas apenas a esperança fundada de que a socialização do arguido em liberdade se consiga realizar, ou seja, como diz o Professor Jorge de Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, § 521, “o que aqui está em causa não é qualquer «certeza», mas a esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser lograda, o tribunal deve encontrar-se disposto a correr um certo risco — digamos: fundado e calculado — sobre a manutenção do agente em liberdade.” Contudo, “apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável — à luz consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização —, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem «as necessidades de reprovação e prevenção do crime»” dado que há que levar em conta “considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico”, pois “só por estas exigências se limita — mas por elas se limita sempre — o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto ora em análise” (ob. cit. § 520), ou seja, como se diz no citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Dezembro de 2008, “importa que a comunidade não encare, no caso, a suspensão, como sinal de impunidade, retirando toda a sua confiança ao sistema repressivo penal.” Temos assim que a decisão sobre a suspensão da execução da pena terá que apreciar os factos relativos à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste e apurar se é possível, no caso concreto, uma prognose favorável ao nível da prevenção especial de socialização e, sendo a mesma possível, terá também que se ponderar se as exigências de reprovação e prevenção geral ficarão satisfeitas com a aplicação de tal pena. No caso “sub judice”, estamos perante um arguido que já tem antecedentes criminais, ou seja, já foi condenado por outros crimes, mas que não conseguiu ser positivamente influenciado pelas penas que lhe foram aplicadas e voltou a delinquir. No entanto, poderíamos considerar que, no limite, podíamos admitir que esta nova pena era passível de ser substituída na sua execução por pena suspensa, ainda que com base num alargado juízo de prognose positiva. Contudo, já não se pode considerar que com a aplicação da pena suspensa seja atingido o grau mínimo imposto pelas exigências de reprovação e prevenção geral. Na realidade, estamos perante uma situação em que o arguido “limpou” a quase totalidade do recheio de uma casa de habitação, o que causa grande apreensão e mesmo medo à sociedade e que aos olhos da mesma é revelador de grande insensibilidade aos valores que fundamentam o direito de propriedade e, não de somenos importância, o direito que cada um tem a usufruir em paz o que consegue com o seu próprio trabalho e lhe dá o conforto que precisa na vida familiar. A comunidade rejeita veementemente a prática de tais actos e exige que os seus autores sejam punidos com uma pena que os faça sentir a enorme dimensão da censura social por tais condutas e que ao mesmo tempo se mostre suficientemente intimidante para futuros comportamentos idênticos. Podemos dizer que em situações como a dos autos, a execução da pena não deve ser suspensa uma vez que a comunidade não compreenderia que a punição de um crime como o dos autos, com um elevado grau de ilicitude e de censurabilidade ético-jurídica, fosse compatível com a ressocialização do criminoso em liberdade, ou seja, as exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico não são conciliáveis com a aplicação de uma pena de substituição à pena de prisão. Temos assim que a suspensão de execução da pena se mostra desajustada no caso dos autos. * Face ao exposto, acorda-se em alterar a matéria de facto nos termos acima decididos e, consequentemente, em condenar o arguido FP…, como autor de um crime de furto qualificado previsto e punido pelos artºs 203º, nº 1 e 204º, nº 2, alínea e., ambos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão. * Sem tributação. *
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