Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
285/07.1TBTND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO COSTA
Descritores: RESERVA DE PROPRIEDADE
MÚTUO
Data do Acordão: 03/09/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TONDELA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Legislação Nacional: ARTS. 405, 408, 409 CC, DL Nº 54/75 DE 12/2
Sumário: I - A cláusula de reserva de propriedade pode ser incluída em qualquer contrato de alienação e não apenas na compra e venda e permite a subordinação da transmissão da propriedade não só ao pagamento do preço, mas a qualquer obrigação da contraparte ou a qualquer evento.

II - Não obstante a cláusula da reserva de propriedade não ter sido concebida para o contrato de mútuo, vem sendo admitida a sua fixação, nomeadamente quando aquele contrato está intensamente conexionado com o de compra e venda, ou seja, nos chamados “contratos de crédito coligados”.

III - O mutuante com reserva do direito de propriedade sobre veículo inscrita a seu favor no registo pode lançar mão do procedimento cautelar de apreensão de veículo regulado nos artºs 15º e 16º do Dec-Lei nº 54/75, de 12/2.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO

(…) S.A.” intentou, no Tribunal Judicial da Comarca de Tondela, a presente acção com processo ordinário contra:

- “G (…) & C (…) Lda.”,

- “Garagem (…)  Lda.”, e

- “R ( …) (Sucursal Portugal)”, pedindo que:

a) Seja declarado e reconhecido o direito de propriedade da Autora sobre o veículo automóvel Renault, Laguna 1.9 DTI, de matrícula .....MX, registado na Conservatória do Registo de Automóveis de Lisboa a favor da 1ª Ré com o nº de ordem.... de 23/03/1999;

b) Sejam condenadas as Rés a reconhecerem e a respeitarem o referido direito de propriedade e absterem-se da prática de qualquer acto que o possa pôr ou ponha em causa; e

c) Seja ordenado o cancelamento dos registos de propriedade e reserva com os nºs de ordem ... e .... de 23/03/1 999, pendentes, respectivamente a favor da primeira e da segunda Rés.

Alegou, para tanto, em resumo, que vendeu, em 20/01/2000, à 1ª Ré um Audi A6 Avant, adquirindo, por retoma, um veículo Renault Laguna 1.9 Dti, o qual foi entregue com chaves, livrete e título de registo de propriedade, comprometendo-se tal Ré a entregar o documento necessário para o cancelamento da reserva de propriedade, já que o gerente informava que já tinha pago o preço que originara a reserva, o que nunca chegou a ocorrer; pouco tempo depois da compra, a 1ª Ré mudou de sede e gerência para local que a Autora não conseguiu localizar, pelo que tentou obter tal documento junto da 2ª Ré, vindo a tomar conhecimento que a 1ª Ré tinha adquirido o veículo a crédito e prestações, com reserva de propriedade a favor daquela, tendo a 3ª Ré financiado a venda, cedendo a 2ª Ré à 3ª os seus direitos de crédito e garantias, consubstanciadas na reserva de propriedade, bem como conferindo os poderes necessários à execução do cancelamento da reserva ou executá-la em acção, subrogando assim a 3ª Ré nos direitos que lhe assistiam e os poderes que lhe competiam, expressamente no contrato celebrado; com o recebimento do preço por parte da 2ª Ré, o registo da reserva de propriedade em nome desta deixou de ter subjacente causa válida, considerando que, mesmo que a cláusula possa ter sido estabelecida para garantir o cumprimento do contrato celebrado quanto à 3ª Ré, esta nunca usou de tal prerrogativa, nem resolvendo o contrato nem fazendo funcionar a reserva, antes optando por exigir as prestações em dívida.

Contestou a Ré Garagem (…) L.da, alegando, também em resumo, ser parte ilegítima na acção já que na acção de consignação em depósito, com o nº 63/2002, que correu termos no Tribunal Judicial de Tondela, em que figurava como Autora a aqui Autora e Ré a segunda Ré, aquela pediu o cancelamento da reserva de propriedade, tendo a contestante sido absolvida da instância por ser parte ilegítima, já que havia transmitido os seus direitos de crédito, considerando que tal decisão faz caso julgado; aduziu ainda que a 1ª Ré e o fiador (….) aceitaram o clausulado; alegou também que naquela acção a Autora alegou ter vendido o veículo MX, pelo que não teria legitimidade para propor a presente acção; impugna a matéria alegada e refere que naquela acção a Autora referia ter efectuado a venda do Audi a 14/01/2001, mais dizendo que a Autora foi incauta.

Contestou também a 3ª Ré, alegando, também em resumo, ter financiado a aquisição do Renault à 1ª Ré, pagando à Ré Garagem (….) o montante de € 19.997,92, tendo aquela ficado com a obrigação de pagamento de tal quantia em 60 prestações mensais de € 439,53, tendo sido constituída reserva de propriedade a favor da vendedora; a partir de 30/06/2000, a 1ª Ré não cumpriu as obrigações contratuais, o que fez com que se vencessem as prestações acordadas, intentando acção de condenação no pagamento que correu termos nas Varas Cíveis do Porto e que está na fase de execução; invoca a conduta negligente da Autora por não cuidar de obter a informação sobre o estado do veículo, referindo que a 1ª Ré ainda não liquidou o débito emergente do contrato pelo que a extinção da reserva de propriedade apenas deveria ocorrer com a satisfação integral das obrigações subjacentes à sua constituição.

A 1ª Ré, que foi citada editalmente, não contestou.

Na réplica, a Autora pugnou pela improcedência das deduzidas excepções.

Proferiu-se o despacho saneador, onde se julgaram improcedentes as invocadas excepções, consignaram-se os factos tidos como assentes e organizou-se a base instrutória, de que reclamou a Autora, com êxito.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, finda a qual se respondeu à matéria da base instrutória, sem reclamações.

Finalmente, verteu-se nos autos sentença que, julgando a acção totalmente improcedente, absolveu as Rés do pedido.

Inconformada com o assim decidido, interpôs a Autora recurso para este Tribunal, o qual foi admitido como de apelação e efeito meramente devolutivo.

Alegou, oportunamente, a apelante, a qual finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:

1ª - “Ao ter decidido que a proprietária do veículo automóvel ....MX continua a ser a apelada Garagem (…), Lda. até que ocorra o evento a que as partes sujeitaram o contrato de compra e venda celebrado, ou seja, o pagamento das prestações convencionadas à apelada (…), o Tribunal a quo procedeu a uma errada interpretação e aplicação da lei à concreta factualidade provada;

2ª - A previsão final do n° 1 do artigo 409° do CC “até à verificação de qualquer outro evento” não pode ser interpretada no sentido de tal evento se poder reconduzir a um contrato de mútuo, ainda que coligado a um contrato de compra e venda, reportando-se a reserva de propriedade unicamente a contratos de alienação;

3ª - Atenta a previsão do artigo 409° e o disposto no artigo 294°, ambos do Código Civil, é nula a reserva de propriedade constituída a favor da apelada Garagem (…) para garantia do pagamento das prestações à apelada (…);

4ª - Os interesses subjacentes ao propósito lucrativo das financiadoras e, em especial, o de garantir o seu crédito de forma consistente e com o mínimo dispêndio possível, não podem ser fundamento para se moldar a interpretação das normas vigentes a tais conveniências, nem mesmo sob a égide de uma união de contratos de compra e venda e de mútuo;

5ª - A titularidade da reserva de propriedade cabe e encontra-se registada em nome da apelada Garagem (…), Ida., que não é detentora de qualquer crédito sobre a apelada (…) Lda. que cumpra acautelar, pois que recebeu a totalidade do preço do bem alienado à data da celebração do contrato de compra e venda;

6ª - Verificado o incumprimento da apelada (…), Lda. relativamente à apelada (…), por falta de pagamento das prestações acordadas, não assiste nem pode assistir à apelada Garagem (…), Lda. o direito de, por falta do pagamento do preço, que já recebeu directamente da mutuante, proceder à resolução do contrato de alienação e, assim, recuperar o veículo;

7ª - Por seu turno, à apelada (…), a quem caberia o direito de resolver o contrato de mútuo, não seria possível, por via dessa resolução, obter a restituição do veículo, do qual nunca foi proprietária e que nunca alienou;

8ª - Os contratos de alienação e de mútuo, embora conexionados, mantêm a sua própria individualidade;

9ª - O Decreto-lei n° 359/91 de 21 de Setembro, entretanto revogado pelo Decreto-lei n° 133/2009 de 2 de Junho, teve por objectivo prioritário e fundamental a protecção não dos interesses do financiador, e sim dos direitos do consumidor, sendo certo que a apelada (…), Lda. não assume sequer a qualidade de consumidora nos termos por aquele definidos, pelo que não faz sentido que na douta sentença recorrida se invoque a referida disciplina;

10ª - A única a beneficiar com tal cláusula é a apelada (…), para além de que os seus interesses podem ser tutelados através de outros mecanismos legais;

11ª - Por um lado, o registo da reserva de propriedade em nome da apelada Garagem (…) Lda. não tem qualquer causa válida e, por outro, é inoponível à apelante o acordo mediante o qual tal reserva garante o direito de crédito da apelada R (…), que nunca a inscreveu no registo a seu favor;

12ª - A admitir-se que o registo da reserva de propriedade seja titulado por quem não é o respectivo beneficiário, estar-se-á também a admitir que o registo não espelhe a real situação do bem e, assim, a deturpação das finalidades essenciais subjacentes ao registo, quais sejam as da segurança do comércio jurídico e, no caso do registo automóvel, da publicidade dos direitos inerentes aos veículos;

13ª - Ao optar por, em acção declarativa de condenação, invocar o vencimento antecipado das prestações e exigir o respectivo pagamento à apelada (….), Lda., a apelada (…) prescindiu, mesmo que se entenda que tacitamente, da reserva de propriedade constituída a seu favor, manifestando claramente que não pretende obter a restituição do veículo;

14ª - Nunca as apeladas (….) e (…), Lda. diligenciaram ou sequer evidenciaram qualquer interesse na restituição da viatura, que se encontra na posse da apelante desde 20 de Janeiro de 2000, ou seja, há aproximadamente dez anos e que, à data, não possui qualquer valor comercial, pelo que a sua conduta traduz uma mera obstaculização da pretensão da apelante, sem que daí retirem qualquer utilidade;

15ª - Uma vez que a venda de veículos automóveis é consensual e o registo constitui mera presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, a existência indevida do registo da reserva a favor da vendedora, à data da aquisição da propriedade do veículo pela apelante à apelada (...), Ida., não afectou a plena eficácia desta transmissão;

16ª - Assim, sendo a reserva de propriedade registada a favor da apelada Garagem (…) Lda. ilegal e infundada, a apelante adquiriu a propriedade da viatura a quem tinha legitimidade para a transmitir, pelo que não se tratou de venda de bem alheio e sim próprio, devendo ser-lhe viabilizado o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a viatura ....MX, bem como a concretização do respectivo registo de propriedade a seu favor e o consequente cancelamento do registo da reserva de propriedade a favor da apelada (…) Ida;

17ª - Ao decidir como decidiu, a douta sentença violou e fez errada interpretação do disposto nos artigos 409°, 294° e 408° no i, todos do Código Civil, 467° do Código Comercial e 7° e 13° do Código do Registo Predial ex vi artigo 29° do Decreto-lei n° 54/75 de 12 de Fevereiro;

18ª - Deve, assim, ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida por douto acórdão que considere a apelante legítima proprietária do veículo automóvel marca Renault, modelo Laguna, 1.9DTI, com a matrícula ....MX, registado na Conservatória do Registo de Automóveis de Lisboa a favor da apelada (…) condenando as apeladas a tal reconhecerem e respeitarem e ordenando o cancelamento dos registos de propriedade e reserva com os n°s de ordem ...e ...de 23/03/1999, pendentes, respectivamente, a favor das apeladas (…). e Garagem (…)”.

Não foi apresentada contra-alegação.


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O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, nos termos do disposto nos artºs 684º, n.º3, e 690º, n.º 1, do C. de Proc. Civil, na versão anterior ao Dec. Lei nº 303/2007, de 24/8.

De acordo com as apresentadas conclusões, as questões a decidir por este Tribunal são as de saber se é nula a reserva de propriedade constituída a favor da Ré Garagem (…) L.da, e se a apelante deve ser reconhecida como proprietária do veículo em causa.

Foram colhidos os vistos legais.

Cumpre decidir.


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OS FACTOS

Na sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos, que não se mostram impugnados nem esta Relação vê razão para alterar, pelo que os considera como assentes:

1º - A Autora é uma sociedade comercial que tem por objecto o comércio de automóveis, novos e usados, oficina de reparação, comércio de peças e acessórios, óleos, lubrificantes e posto de venda de combustíveis (alínea A) dos Factos Assentes);

2º - O veículo de matrícula ....MX, marca Renault encontra-se registado na Conservatória do Registo Automóvel, tendo a propriedade sobre o mesmo sido registada a favor da Ré G(…) e C(…), Lda, em 23/03/99, com o nº de ordem ... mostrando-se registada reserva a favor da Ré Garagem (…) desde 23/03/1999, com o nº de ordem ...(alínea B) dos Factos Assentes);

3º - No documento escrito cuja cópia está junta de fls. 25 a 26, denominado “contrato de compra e venda a prestações” consta como vendedora a Ré Garagem (…), como compradora a Ré G(…)e C(…), Lda e como entidade financiadora a Renault (…) SA, identificando-se como bem o veículo Renault com a matrícula ....MX, dando-se aqui como integralmente reproduzido o teor de tal documento (alínea O) dos Factos Assentes);

4º - No documento aludido em 3º consta nas alíneas b) e d) da cláusula 1ª das Condições Gerais ali fixadas que a Ré Garagem (…) (vendedora) recebeu da Ré G (…) e C (…), Lda (compradora) o montante da entrada inicial e da Ré R (…), então denominada Renault (…), que financiou a venda, o montante de 4.001.210$00 (€ 19.997,92) “o montante que, adicionado ao da entrada inicial, perfaz o preço a contado do bem alienado” (alínea D) dos Factos Assentes);

5º - No documento aludido em 3º consta na al. e) da cláusula primeira das Condições Gerais ali fixadas que a Ré Garagem (…) cedeu à Ré Renault (…), então denominada Renault (…) os seus direitos de crédito relativos às referidas prestações, “bem como as inerentes garantias, gerais e especiais, estas últimas consubstanciadas na reserva de propriedade e na fiança eventualmente prestada” (alínea E) dos Factos Assentes);

6º - Na alínea f) da cláusula primeira das Condições Gerais fixadas no documento aludido em 3º a Ré Garagem (…) conferiu ainda à Ré Renault (…), então denominada Renault (…)A “os poderes necessários para, no caso de esta ter que agir em seu nome, proceder ao cancelamento do registo da reserva de propriedade ou executar essa reserva em acção judicial de resolução do contrato, por motivo de incumprimento praticado pelo comprador” (alínea F) dos Factos Assentes);

7º - No documento aludido em 3º consta que o financiamento concedido pela Ré (…) então denominada Renault (…), à Ré G (…) e C (…), Lda seria pago em 60 prestações mensais e sucessivas, no valor de € 88.118$00 (€ 439,53) com início em 30-04-1999 (alínea G) dos Factos Assentes);

8º - A Ré Renault (…) intentou contra a Ré G(…) e C (…), uma acção declarativa de condenação que correu termos pela 2ª secção da 2ª Vara Cível do Porto com o nº 45/2002 exigindo da Ré (…), Lda o montante 4.519.135$00 (€ 22.541,35) relativa às prestações em dívida referentes ao acordo celebrado com o documento aludido em 3º, conforme documento de fls. 90 a 98 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (alínea H) dos Factos Assentes);

9º - A Autora no exercício da sua actividade, vendeu em 20 de Janeiro de 2000, à Ré G (…) e C (…), Lda, um veículo novo, da marca Audi, modelo A6 Avant 1.9TDI, com a matrícula 10-43-OU (art. 1º da Base Instrutória);

10º - Na mesma data, e em consequência deste negócio, a Autora adquiriu-lhe, por retoma, o veículo aludido em 2º, da marca Renault, modelo Laguna 1.9DTI, com a matrícula ....MX, nos termos constantes do documento de fls. 23 (art. 2º da Base Instrutória);

11º - Na data aludida em 9º e 10º a Ré G (..)  e C (…) entregou à Autora o veículo aludido em 2º e 10º, acompanhado das respectivas chaves, livrete e título de registo de propriedade (art. 3º da Base Instrutória);

12º - Tendo-se a Ré G (…)  e C (…) comprometido a entregar à Autora, na semana seguinte, o documento necessário para o cancelamento da inscrição de reserva de propriedade a favor da Ré Garagem (…)aludida em 2º (art. 4º da Base Instrutória);

13º - A Ré G (…) e C (…)  havia informado a Autora que já havia liquidado antecipadamente a totalidade do preço que originara a reserva (resposta ao art. 5º da Base Instrutória);

14º - Apesar das repetidas insistências da Autora junto da Ré G (…) e C (…)  e das sucessivas promessas desta em entregar-lhe o documento aludido em 12º, nunca chegou a fazê-lo (art. 6º da Base Instrutória);

15º - A Autora tentou contactar e obter directamente da Ré Garagem (…) o necessário modelo para cancelar a inscrição de reserva de propriedade (resposta ao art. 8º da Base Instrutória);

16º - Após a data aludida em 9º e 10º a Autora vendeu o veículo aludido em 2º a um cliente (art. 10º da Base Instrutória);

17º - Em 20.09.2006 a Autora e a cliente referida em 17º celebraram um acordo, mediante o qual esta entregou à Autora o referido veículo, acompanhado dos respectivos documentos, retransmitindo-lhe todos os direitos sobre tal viatura, nos termos constantes do documento de fls. 174 a 175 (art. 10º-A da Base Instrutória);

18º - A Ré G (…) e C (…)  ainda não pagou à Ré ( …)  a totalidade do montante das prestações referentes ao acordo constante aludido em 3º, designadamente a quantia aludida em 8º (art. 11º da Base Instrutória).


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O DIREITO

Como decorre da matéria fáctica adquirida, o veículo de matrícula ....MX, marca Renault, encontra-se registado na Conservatória do Registo Automóvel, tendo a propriedade sobre o mesmo sido registada a favor da Ré G (…) e C (…), Lda, em 23/03/99, com o nº de ordem ... mostrando-se registada reserva a favor da Ré Garagem (…) desde 23/03/1999, com o nº de ordem ...(item 2º).

Aquele veículo foi objecto de um “contrato de compra e venda a prestações”, no qual figura como vendedora a Ré Garagem (…), e como compradora a Ré G (…) e C (…), Lda, e como entidade financiadora a Renault (…), SA (item 3º).

Naquele contrato, foi clausulado que a vendedora (Ré Garagem (…)) recebeu da compradora (Ré G (…) e C (…) Lda) o montante da entrada inicial e da Ré (…), então denominada Renault (…), que financiou a venda, o montante de 4.001.210$00 (€ 19.997,92) “o montante que, adicionado ao da entrada inicial, perfazia o preço a contado do bem alienado” (item 4º).

No referido contrato de compra e venda foi também clausulado que a Ré Garagem (…) cedeu à Ré Renault (…), então denominada Renault (…) os seus direitos de crédito relativos às referidas prestações, “bem como as inerentes garantias, gerais e especiais, estas últimas consubstanciadas na reserva de propriedade e na fiança eventualmente prestada” (item 5º).

A Autora vendeu, em 20 de Janeiro de 2000, à Ré G (…) e C (…) Lda, um veículo novo, da marca Audi, modelo A6 Avant 1.9TDI, com a matrícula 10-43-OU (item 9º).

Na mesma data, e em consequência deste negócio, a Autora adquiriu-lhe, por retoma, o veículo Renault, supra identificado, veículo esse que a Ré G (..) e C (…) entregou à Autora, acompanhado do livrete e título de registo de propriedade, tendo-se comprometido a entregar-lhe, na semana seguinte, o documento necessário para o cancelamento da inscrição de reserva de propriedade a favor da Ré Garagem (…), o que, todavia, não fez (itens 9º a 12º e 14º).

Não obstante a existência do registo da reserva de propriedade do veículo a favor da Ré Garagem (…), pretende a Autora, através da presente acção, ser reconhecida como a proprietária do Renault e ver cancelados os registos inscritos sobre o veículo, designadamente o da já referida reserva de propriedade. Vai ao ponto de dizer que este último registo é nulo, por contrariar o disposto nos artºs 409º e 294º, ambos do C. Civil. Mas, salvo o devido respeito, não lhe assiste razão alguma, como, de forma douta, considerou a sentença recorrida.

Estamos em presença de um contrato de compra e venda conexo com um contrato de crédito, articulados entre si. Na verdade, para além do contrato de compra e venda celebrado entre as Rés Garagem (…)  como vendedora, e G (…) & C(…), como compradora, que teve por objecto a viatura em causa, foi celebrado entre a Renault (…) actualmente representada pela 3ª Ré, e a compradora do veículo um contrato de crédito, na modalidade de mútuo, destinando-se o respectivo capital ao pagamento das prestações em dívida do veículo.

Muito embora não se possa considerar tal contrato de mútuo como de crédito ao consumo, já que a beneficiária do empréstimo em causa foi uma pessoa colectiva, o que afasta a aplicação ao caso do regime estabelecido pelo Dec. Lei nº 359/91, de 21/9 (vide respectivo artº 2º, nº 1, al. b)), os casos, no que concerne à cláusula de reserva de propriedade, são inteiramente similares.  

Como se vem afirmando na jurisprudência, que se julga maioritária, os contratos de crédito ao consumo e de compra e venda, como se escreveu no Ac. da R. de Lisboa de 31/01/2008 (disponível em www.dgsi.pt), embora coexistindo com autonomia, têm, entre si, uma estreita e forte conexão, expressamente afirmada no nº 1 do artº 12º do Dec. Lei nº 359/91, de 21/9, cuja validade, designadamente quanto ao seu conteúdo, se possibilita pelo princípio da autonomia privada consagrado no artº 405º do C. Civil.

Nesta estrutura de conexão – como se diz no voto de vencido do Ex.mo Conselheiro Salvador da Costa lavrado no Ac. do S.T.J. de 12/05/2005 (www.dgsi.pt, Proc. 05B538), em termos de finalidade económica comum e de subordinação, as vicissitudes de um, como é característica dos contratos coligados, repercute-se no outro.

Conforme refere aquele voto de vencido, “considerando a referida pluralidade de contratos, ocorre uma espécie de relação jurídica triangular, em que B se obrigou a vender um veículo automóvel a C e A a mutuar à compradora parte substancial do respectivo preço. Estamos perante o desenvolvimento do princípio da liberdade contratual que faculta às partes, além do mais que aqui não revela, a livre fixação do conteúdo dos contratos e a sua coligação (artigo 405º do Código Civil). Neste quadro de relações contratuais complexas, distingue-se, além do mais, conforme o caso, entre contratos mistos e união ou coligação de contratos, reunindo os primeiros, em termos de fusão, elementos próprios de uma pluralidade de contratos, mas assumindo-se como contrato único, e conservando os últimos a sua individualidade, mas estando entre si ligados de forma mais ou menos intensa.

No segundo caso, isto é, quanto aos contratos coligados, revela a sua estrutura serem pensados pelas partes como conjunto económico envolvente de um nexo funcional, do que resulta, em regra, depender a validade e a vigência de um dos contratos da validade e vigência do outro (INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, "Direito das Obrigações", Coimbra, 1997, páginas 86 a 88).

(…)

Excepcionando a regra de que a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada ocorre por mero efeito do contrato, nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento e, tratando-se de coisa móvel sujeita a registo, como ocorre no caso vertente, só a cláusula constante do registo é oponível a terceiros (artigos 408º, nº1 e 409º do Código Civil).

A transmissão do direito de propriedade sobre a coisa no contrato de compra e venda sob reserva de propriedade a favor do vendedor fica suspensa até à verificação de um evento futuro e incerto, como é o caso do pagamento do preço, ou de um evento futuro e certo, como ocorre com o termo inicial, o que significa que o referido efeito translativo fica subordinado a uma condição suspensiva ou a um termo inicial”.

A questão da validade da reserva de propriedade nos contratos de crédito ao consumo debatida na jurisprudência tem a ver com a possibilidade de a sociedade financiadora poder reservar para si a propriedade do bem vendido e poder valer-se do procedimento cautelar especificado de apreensão do veículo vendido e respectivos documentos, nos termos do artº 15º e seguintes do Dec. Lei nº 54/75, de 12/2.

Temos vindo a defender o entendimento de que a mutuante com reserva do direito de propriedade sobre veículo inscrita a seu favor no registo pode lançar mão do procedimento cautelar de apreensão de veículo regulado nos artºs 15º e 16º do Dec-Lei nº 54/75, de 12/2 (vide o Ac. por nós proferido no Proc. 2007/08.0TBFIG.C1).

No mesmo sentido, podem ver-se também os acórdãos do S.T.J. de 4/5/2004 e 14/2/2008, disponíveis em www.dgsi.pt, Procs. 05B006 E 08B074).

 

A cláusula da reserva de propriedade, admissível nos termos do citado artº 409º, tem como efeito suspender a transmissão da coisa decorrente do respectivo contrato. Por isso, a propriedade da coisa apenas se transmite para o respectivo adquirente quando este tiver cumprido as obrigações a que se vinculou e que determinaram a reserva da propriedade.

E, não obstante a cláusula da reserva de propriedade não ter sido concebida para o contrato de mútuo, vem sendo admitida a sua fixação, nomeadamente quando aquele contrato está intensamente conexionado com o de compra e venda, cujo preço é pago mediante o capital obtido através do contrato de mútuo.

Desde há muito, com efeito, que se assiste a uma evolução rápida no financiamento da aquisição de veículos automóveis, designadamente através de empresas especialmente vocacionadas para esse fim, possibilitando o alargamento da oferta e uma melhor satisfação da procura, num mercado que tem por objecto bens de considerável valor e de acentuada e rápida desvalorização.

O interesse do credor, que assim facilita a aquisição do veículo automóvel, não pode ficar desprovido da garantia resultante da inclusão da cláusula da reserva da propriedade, sendo certo que o legislador, desde há muito, nomeadamente através do citado Dec. Lei nº 54/75, que procura acautelar o interesse do credor que contribui para a aquisição de veículos automóveis.

Assim, não só se previne o pontual pagamento das prestações pecuniárias decorrentes do preço da aquisição de veículo automóvel, como também de outras obrigações, designadamente as emergentes do contrato de crédito, sob a forma de mútuo, destinado à aquisição daquele tipo de bem, em que o próprio vendedor também pode intervir ou de cujo conteúdo lhe deriva um interesse relevante.

No caso presente, a reserva de propriedade do veículo foi feita a favor da respectiva vendedora, muito embora visasse garantir o pagamento do contrato de mútuo com ele conexo. Note-se que o Dec. Lei nº 133/2009, de 2/6, que revogou o já referido Dec. Lei nº 359/91, veio instituir a figura do “contrato de crédito coligado” (artº 4º, nº 1, al. o)), dando corpo a uma realidade há muita instituída na vida corrente.

A cláusula de reserva de propriedade pode ser incluída em qualquer contrato de alienação e não apenas na compra e venda e permite a subordinação da transmissão da propriedade não só ao pagamento do preço, mas a qualquer obrigação da contraparte ou a qualquer evento.

O negócio celebrado com reserva de propriedade é realizado sob condição suspensiva, quanto à transferência da propriedade. A reserva, quando incida sobre coisas imóveis, ou sobre coisas móveis sujeitas a registo, carece de ser registada, sem o que não produz efeitos em relação a terceiros (vide Pires de Lima e Antunes Varela, C.C. Anotado, vol 1º, 4ª ed., 376).

Ora, a reserva de propriedade a favor da alienante Garagem (…) foi levada a registo em 23/03/99, pelo que a Autora não podia ignorar que o Renault, aquando do contrato celebrado com a Ré G (…) & C (…), em 20/01/2000, era pertença da Garagem (…) e não da G (…) & C (..).

E se esta sociedade informou a Autora de que já havia liquidado a totalidade do preço que originara a reserva de propriedade (item 13º), essa informação não tinha tradução na realidade, já que a Ré (…) se viu na contingência de intentar contra a Ré G (…) e C (…) uma acção declarativa de condenação que correu termos pela 2ª secção da 2ª Vara Cível do Porto com o nº 45/2002 exigindo da Ré G (…) e C (…), Lda o montante 4.519.135$00 (€ 22.541,35) relativa às prestações em dívida referentes ao acordo celebrado com o documento aludido em 3º (item 8º).

Não tendo sido, pois, cumprida a condição que originou a reserva de propriedade sobre o veículo a favor da Garagem (…), a Autora não podia adquirir validamente o veículo da G (…) & C(…).

O artº 294º do C. Civil atribui o vício da nulidade aos contratos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo, salvo se outra solução resultar da lei.

Não é manifestamente isso que ocorre nos autos. A cláusula de reserva de propriedade do veículo a favor da Garagem (…) é inteiramente legal e válida, não ofendendo, pois, disposição alguma e, muito menos, de carácter imperativo. Por isso, a invocação de tal norma pela apelante é inteiramente despropositada.

Improcedem, assim, as conclusões da alegação da apelante, pelo que a sentença recorrida terá de se manter.


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DECISÃO

Nos termos expostos, decide-se julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.

Custas pela apelante.