Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
433/14.5TBSCD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
DOCUMENTO PARTICULAR
CONTRATO DE MÚTUO
CAIXA DE CRÉDITO AGRÍCOLA MÚTUO
Data do Acordão: 05/19/2015
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – VISEU – SEC. DE EXECUÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: 703º DO NCPC; REGIME JURÍDICO DO CRÉDITO AGRÍCOLA MÚTUO, APROVADO PELO DECRETO-LEI Nº 24/91, DE 11 DE JANEIRO.
Sumário: I – Os documentos particulares, relativos a contratos de mútuo celebrados pelas caixas de crédito agrícola mútuo, desde que assinados pelo devedor, são, por força de disposição especial, títulos executivos.

II - O indeferimento in limine do requerimento executivo, com fundamento na falta de título executivo, só é admissível quando essa falta seja manifesta, ostensiva, evidente ou indiscutível.

Decisão Texto Integral:
I. Forma de julgamento do recurso.

Dado que a questão objecto da impugnação é simples, declaro que o recurso será julgado singular, sumária e liminarmente (artºs 652 nº 1 c) e 656 do nCPC).

II. Julgamento do recurso.

Relatório.

C..., CRL, promoveu, no Tribunal Judicial da Comarca de Santa Comba Dão, por requerimento executivo apresentado por via electrónica no dia 2 de Julho de 2014, contra L... e V... execução para pagamento de quantia certa, com processo ordinário, para haver dos últimos a quantia de € 147.948,36, e juros de mora vincendos, á taxa de 8,898%, até pagamento.

Fundamentou esta pretensão executiva no facto de, no exercício da sua actividade de crédito agrícola em favor dos seus associados e dos demais actos inerentes à actividade bancária, ter, por contrato de mútuo, concedido aos executados, em 28 de Outubro de 2011, pelo prazo de 10 anos, com início daquela data, um crédito no montante de € 130.200,00, à taxa que é actualmente de 4,898%, a que é aplicável, em caso de mora, a sobretaxa de 4%, do qual os executados se confessaram devedores e se obrigaram a pagar em 120 prestações mensais, crescentes e sucessivas, de capital e juros, e de os executados terem, em 28 de Junho de 2012, deixado de pagas as prestações, pelo que se venceu todo o empréstimo, sendo devedores da quantia de € 147.897,36.

A exequente apresentou, com o requerimento executivo, um documento, epigrafado Contrato de Mútuo com Livrança, datado de 28 de Outubro de 2011, assinado pelos executados, assinatura que foi reconhecida, por ter sido feita da sua presença, pelo Sr. Advogado, Dr. ...

Por despacho de 6 de Janeiro de 2015, o Sr. Juiz de Direito da secção de execução da Instância Central de Execução da Comarca de Viseu, com fundamento em que actualmente, contrariamente ao estabelecido no regime pretérito, i.e., anterior à Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, nenhum dos documentos apresentados pode valer como título executivo, entende-se que o documento apresentado não se subsume a nenhuma das espécies previstas no artº 703 do CPC, indeferiu liminarmente o requerimento executivo apresentado, nos termos do disposto no artº 726, nº 2 a), do CPC, por ser manifesta a falta de título.

É esta decisão que a exequente impugna no recurso ordinário de apelação – no qual pede a sua revogação – tendo encerrado a sua alegação com estas conclusões:

I. Por decisão de 03-10-2013, proferida nos autos, foi decidido «indeferir liminarmente o requerimento executivo apresentado, nos termos do disposto no artigo 726º, nº 2, a) do CPC, por ser manifesta a falta de título.».

II. No douto entendimento do Mmo Juiz a quo, o título de crédito dado à execução não goza de força executiva apesar de, do mesmo, constarem os factos constitutivos da relação subjacente e de no requerimento executivo terem sido também alegados os factos constitutivos da relação subjacente.

III. A decisão recorrida afigura-se desacertada já que o preceituado na alínea c) do nº 1 do artigo 703º do C.P.C. confere força executiva aos títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que os factos constitutivos relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo, como é o caso dos autos.

IV. Acresce que, nos termos do Regime Jurídico do Crédito Agrícola Mútuo, aprovado pelo Decreto-Lei nº 24/91, de 11 de Janeiro, “Para efeito de cobrança coerciva de empréstimos vencidos e não pagos, seja qual for o seu montante, servem de prova e título executivo as escrituras, os títulos particulares, as letras, as livranças e os documentos congéneres apresentados pela caixa agrícola exequente.” (cfr. artigo 33º do Regime Jurídico do Crédito Agrícola Mútuo).

V. Pelo que, também por esta via, resulta inequívoco que o contrato dado à execução tem efectiva força executiva por força do disposto no artigo 703º, nº 1, alínea d) do C.P.C. conjugado com o artigo 33º do Decreto-Lei nº 24/91, de 11 de Janeiro.

VI. Por último, apela-se ao decidido no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 847/2014, proferido pela 1ª Secção, em 3 de Dezembro de 2014, que julgou inconstitucional a norma resultante dos artigos 703º do CPC e 6.º, n.º 3 da Lei nº 41/2013 de 26 de Julho, na interpretação de que aquele artigo 703º se aplica a documentos particulares emitidos em data anterior à da entrada em vigor do novo CPC e então exequíveis por força do artigo 46º, nº 1, alínea c), do CPC de 1961).

VII. A decisão recorrida violou o disposto nas alíneas c) e d) do nº 1 do artigo 703º do C.P.C., bem como, o artigo 33º do Regime Jurídico do Crédito Agrícola Mútuo, aprovado pelo Decreto-Lei nº 24/91, de 11 de Janeiro.

VIII. A interpretação que a decisão recorrida fez do artigo 703º do C.P.C. é manifestamente inconstitucional como, aliás, já foi decidido pelo Acórdão supra referido, que aqui se dá por integralmente reproduzido.

Não foi oferecida resposta.

Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

Os factos relevantes para o conhecimento do objecto da impugnação – relativos à espécie e à data do documento apresentado pela recorrente como título executivo – são os que o relatório, em síntese apertada, documenta.

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito objectivo do recurso pode ser limitado, pelo próprio recorrente, no requerimento de interposição ou, expressa ou tacitamente, nas conclusões da alegação (artº 635 nºs 2, 1ª parte, e 3, do nCPC).

Nestas condições, tendo em conta o conteúdo da decisão impugnada e da alegação da recorrente, é uma só a questão objecto da controvérsia: a de saber se deve ou reconhecer-se valor executivo ao documento negocial no qual a exequente funda a realização coactiva da prestação pecuniária nele constitutivamente incorporada.

A resolução deste problema vincula, naturalmente, ao exame, ainda que leve, da função do título executivo e do fundamento de indeferimento liminar do requerimento executivo representado pela sua falta, e da invalidade – por força da sua inconstitucionalidade material – da norma ordinária aplicada pelo tribunal recorrido, caso se deva concluir que essa norma é, efectivamente, aplicável ao caso objecto do processo,

3.2. Função do título executivo e do fundamento de indeferimento liminar do requerimento executivo representado pela sua falta.

Título executivo é o documento do qual resulta a exequibilidade de uma pretensão, e, consequentemente, a possibilidade de realização coactiva da prestação correspondente (artºs 817 e 818 do Código Civil). A exequibilidade extrínseca é atribuída pela incorporação da pretensão no título executivo, portanto, num documento que formaliza, por disposição da lei, a faculdade de realização coactiva da prestação não cumprida (artº 10 nºs 4 e 5 do nCPC). A inexequibilidade extrínseca, i.e., a falta de título executivo constitui fundamento de indeferimento liminar do requerimento executivo – desde que essa falta seja manifesta (artº 726 nº 2 a) do nCPC).

O título executivo cumpre, antes de mais uma função constitutiva – nulla executio sine titolo – dado que atribui exequibilidade a uma pretensão, permitindo que a prestação correspondente seja realizada através de medidas coactivas impostas pelo tribunal ao executado. Ás partes não é lícito atribuir, ex voluntate, força executiva a um documento a qual a lei não conceda a eficácia de título executivo – nullus títulos sine lege: os títulos executivos são aqueles, e só aqueles, que a lei indica (artº 703 nº 1 do nCPC). A enumeração legal dos títulos executivos está, portanto, submetida a uma regra de tipicidade ou de numerus clausus.

A exequibilidade de um título é aferida pela lei vigente à data da propositura da acção executiva[1], do que decorre que, ainda que o documento não possua força executiva no momento da sua elaboração, a execução é admissível se essa eficácia lhe for atribuída por uma lei posterior, regra que vale – por força da aplicação imediata da lei nova – mesmo que a execução já se mostre pendente[2]. Nesta mesma hipótese, se a lei nova retirar eficácia ao documento, ela não deve ser imediatamente aplicada às execuções pendentes, dado que essa aplicação frustraria os interesses do exequente.

Deveras mais complexa – e de solução controversa – é o caso de a lei retirar eficácia executiva a documento que na altura da sua elaboração, a possuía, em momento anterior ao da proposição, com base nesse mesmo documento, da acção executiva. Note-se que o problema não é de retroactividade da lei nova – dado que para que se pudesse falar de retroactividade seria necessário que a lei nova retirasse carácter executivo a título que já tivesse produzido a sua eficácia executiva no passado, i.e., seria necessário que a lei nova atingisse execuções fundadas em títulos a que essa lei retirasse eficácia executiva – mas de aplicação imediata da lei nova os títulos que se formaram na vigência de lei antiga.

Como é intuitivo, se a obrigação se encontra titulada por um documento escrito, pode inferir-se, com um elevado grau de probabilidade, a sua constituição ou a sua existência; nesta eventualidade, compreende-se que deva permitir-se ao credor, utilizando esse documento como título executivo, instaure directamente – i.e., sem a prévia propositura de uma acção condenatória para obter esse mesmo título – a acção executiva.

E era essa, até há bem pouco tempo, a orientação do direito português que atribuía, com uma generosidade sem paralelo noutros sistemas jurídicos[3], a todo um conjunto de documentos, a qualidade de título executivo.

Estavam nessas condições, precisamente, os documentos particulares simples ou documentos particulares não autenticados: os documentos particulares que se encontrem assinados pelo devedor eram título executivo quando importassem a constituição ou o reconhecimento de uma obrigação pecuniária, cujo montante estivesse determinado ou fosse determinável mediante simples cálculo aritmético (artº 46 c), 1ª parte, do CPC de 1961). Assim, no tocante às obrigações pecuniárias, os documentos particulares simples, só não possuíam eficácia executiva, relativamente a obrigações, daquela espécie, ilíquidas, i.e., cuja quantidade não estivesse determinada. Repare-se, face a este enunciado, que os documentos particulares simples constituíam título executivos tanto no caso de documentarem a constituição de uma obrigação pecuniária, como na hipótese de deles constar o reconhecimento, pelo devedor, de uma obrigação pré-existente, como sucede, no caso de reconhecimento de dívida. Dito doutro modo: Os documentos particulares simples puramente recognitivos – i.e., que contenham um acto unilateral de acertamento da obrigação causal subjacente, consubstanciado no reconhecimento de uma dívida – eram também título executivo (artº 458 nºs 1 e 2 do Código Civil)[4].

Em 2013, o legislador mudou de orientação e restringiu, de forma drástica a exequibilidade dos documentos particulares, apenas reconhecendo força executiva aos títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo (artº 703 nº 1 c) do nCPC).

Maneira que, no tocante a documentos negociais, hoje apenas são títulos executivos os documentos autênticos – i.e., os que são exarados por autoridades públicas, notários ou outros oficiais públicos ou dotados de fé publica – os títulos de crédito e os documentos particulares autenticados, ou seja, aqueles que são confirmados pelas partes perante o notário (artºs 363 nºs 2 e 3 do Código Civil, 35 nºs 1 e 2, 150 nº 1 e 151 nº 1, a), do Código do Notariado, e 703 nº 1 b) e c) do nCPC).

Os documentos particulares simples, que são os documentos escritos ou assinados por qualquer pessoa, sem intervenção alguma, de funcionário publico, notário ou equiparado e mesmo os documentos com reconhecimento notarial – i.e., os documentos particulares cuja letra ou assinatura se mostrem reconhecidos por notário ou equiparado, deixaram de ter força executiva (artºs 35º, nº 4 e 153º, nºs 5 e 6, do Código do Notariado).

Ora, o documento com que a exequente aparelhou a acção executiva é um puro documento particular, embora com reconhecimento presencial da assinatura das pessoas contra quem foi promovida a execução. Por aplicação da regra geral da lei adjectiva, tal documento deixou, em momento anterior ao da proposição da execução, de ter a eficácia executiva que, aquela mesma lei, lhe reconhecia no momento da sua elaboração (artºs 46 nº 1 c) do CPC de 1961, 6 nº 3 da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, e 703 nº 1 do nCPC).

Simplesmente, além das sentenças condenatórias e dos documentos negociais a lei qualifica como títulos executivos todos os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva, previsão que compreende todo um universo, heterogéneo, de títulos judiciais impróprios, particulares e administrativos (artº 703 nº 1 d) do nCPC).

A exequente é uma caixa de crédito agrícola mútuo, portanto, uma instituição de crédito sob a forma de cooperativa (artº 1 do Regime Jurídico do Crédito Agrícola Mútuo e das Cooperativas de Crédito Agrícola, Anexo ao Decreto-Lei nº 24/91, de 11 de Janeiro). E, de harmonia com a sua lei estatutária, para efeitos de cobrança coerciva de empréstimos e não pagos, seja qual for o seu montante, servem de prova e título executivo as escrituras, os títulos particulares, as letras e as livranças e os documentos congéneres apresentados pela caixa agrícola exequente, desde que assinados por aquele contra a acção é proposta, nos termos previstos no Código de Processo Civil (artº 33 nº 1 do Regime Jurídico do Crédito Agrícola Mútuo e das Cooperativas de Crédito Agrícola, Anexo ao Decreto-Lei nº 24/91, de 11 de Janeiro).

Trata-se, nitidamente, de uma regra especial, e, de acordo com um critério pessoal, de uma regra particular, dado que só é aplicável a uma certa categoria de pessoas jurídicas - as caixas de crédito agrícola – ditada pela especificidade da sua forma e do universo dos seus sócios, pela sua estrutura financeira e pela especialidade do seu objecto (artº 1 do Regime Jurídico do Crédito Agrícola Mútuo e das Cooperativas de Crédito Agrícola, Anexo ao Decreto-Lei nº 24/91, de 11 de Janeiro). Razões que explicam também que, na falta de uma intenção inequívoca do legislador, se deva entender que a superveniência do novo Código de Processo Civil – lei geral posterior – não revogou aquela lei especial – anterior – uma vez que esta lei contém um regime que foi definido para corresponder a certas circunstâncias particulares, a que a lei geral não atende (artº 7 nº 3 do Código Civil).

E sendo isto exacto – aspecto que, decididamente, não foi tomado em devida e boa conta pela decisão impugnada – a conclusão a tirar é que o apontado documento – apesar da superveniência do Código de Processual vigente – constitui título executivo.

É particularmente controversa a questão da propriedade ou legitimidade constitucional da aplicação imediata – a partir de 1 de Setembro de 2013 – data do início de vigência do novo Código de Processo Civil – e para o futuro, da norma nele contida que exclui do elenco dos títulos executivo os documentos particulares simples – com a consequente eliminação da eficácia executiva reconhecida àqueles mesmos documentos no momento da sua elaboração (artº 703 nº 1 do nCPC e 6 nº 3 da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho).

O problema deu lugar a uma jurisprudência desencontrada das Relações, sustentando algumas decisões a impropriedade constitucional dessa solução legislativa – por violação do princípio constitucional da confiança[5] – e outras a solução inversa[6]. Todavia, a jurisprudência constitucional – à qual compete, em definitivo, por força do primado da competência do Tribunal Constitucional em questões de constitucionalidade, a última palavra sobre a questão – concluiu em duas decisões –  contidas nos Acs. nºs 847/14 e 161/2015[7] - nemine discrepanti, pela inconstitucionalidade – material – por violação do princípio da protecção da confiança decorrente do princípio do Estado de Direito democrático constante do artº 2 da Constituição, a norma resultante dos artigos 703 do CPC e 6, nº 3 da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, na interpretação de que aquele artigo 703 se aplica a documentos particulares, emitidos em data anterior à da entrada em vigor do novo CPC e então exequíveis por força do artº 46, nº 1, alínea c), do CPC de 1961.

Dado que se trata de decisões tiradas na actuação da competência de fiscalização concreta da constitucionalidade, o juízo de inconstitucionalidade não tem efeitos senão para o caso concreto, i.e., só tem efeitos na decisão recorrida, nada impedindo, portanto, que a norma julgada inconstitucional, nesse caso concreto, possa continuar a ser aplicada subsequentemente pelos tribunais. Todavia, o juízo de inconstitucionalidade em fiscalização concreta, se não tem qualquer efeito directo fora do processo em que foi proferida, não deixa de ter efeitos indirectos, constitucionalmente relevantes, dado que, desde logo, a partir daí, são necessariamente recorríveis para o Tribunal Constitucional todas as decisões em que os Tribunais apliquem a norma que foi julgada inconstitucional (artº 280 nº 5 da Constituição da República Portuguesa). Do que decorre que, embora com efeitos limitados à causa que foi proferida a decisão, o juízo de inconstitucionalidade estabelece, a partir desse momento, uma espécie de presunção de inconstitucionalidade abstracta da norma. E a reiteração, una voce, dessa jurisprudência – pese embora a discutibilidade da sua correcção – inculca o carácter tendencialmente definitivo dessa orientação e a probabilidade séria da declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma apontada (artº 281 nº 3 da Constituição da República Portuguesa).

Na espécie do recurso, não temos, porém, que nos preocupar com o problema da conformidade constitucional da norma indicada com bens e valores constitucionais, dado que essa norma não é aplicável ao caso objecto do processo, uma vez que – como se mostrou - a exequibilidade do documento no qual a recorrente funda a execução, decorre de uma disposição legal especial, que a superveniência do – novo – Código de Processo Civil deixou incólume.

Todavia, as considerações sobre a controvérsia relativa à propriedade constitucional da solução legislativa da aplicação imediata, para o futuro, da supressão dos documentos particulares simples do elenco dos títulos executivos, com a consequente exclusão da eficácia executiva que lei revogada lhes reconhecia ao tempo da sua formação, não deixam de ser relevantes - mas por um outra razão. E esse motivo é o seguinte.

Como se notou, o indeferimento in limine do requerimento executivo, com fundamento na falta de título executivo, só é admissível quando essa falta seja manifesta (artº 726 nº 2 a) do nCPC).

E a falta de título só é manifesta quando seja patente, ostensiva, evidente, quando não possa ser oferecida qualquer dúvida, por mínima que seja, para a inexequibilidade extrínseca do documento no qual o exequente funda a pretensão de realização coactiva da prestação objecto do pedido executivo. Como o juízo sobre o carácter ostensivo da falta de título é feito na fase liminar da execução, deve fazer-se um uso prudente, circunspecto e moderado da prerrogativa de indeferimento in limine do requerimento executivo, de que, portanto, só deve lançar-se mão, em casos extremos e contados. Dito doutro modo: o requerimento executivo só deve ser liminarmente indeferido com fundamento na falta de título, se for possível fazer, logo nesse momento, um juízo consciencioso e seguro sobre a manifesta, evidente, patente ou ostensiva falta dessa condição da acção executiva.

E não é esse, de todo, o caso do recurso. A existência da norma especial indicada e as dúvidas sobre a constitucionalidade material da aplicação imediata do novo Código de Processo Civil a documentos particulares a que a lei anterior reconhecia, ao tempo da sua formação, eficácia executiva – dúvidas mais do que fundadas em face dos dois juízos de inconstitucionalidade já formulados pela jurisprudência constitucional – torna claro que, no caso, a falta de título não é seguramente manifesta, evidente, patente, ostensiva ou indubitável. E não o sendo, segue-se, como corolário que não pode ser recusado, que aquela falta – mesmo a verificar-se – não autorizaria a decisão de indeferimento in limine do requerimento executivo.

Estas razões são suficientes para mostrar a incorrecção da decisão impugnada e, consequentemente, a bondade da impugnação que contra ela foi deduzida pela recorrente.

Importa, pois, revogar a decisão recorrida e ordenar a sua substituição por outra que determine o prosseguimento da acção executiva.

Síntese conclusiva:

a) Os documentos particulares, relativos a contratos de mútuo, celebrados pelas caixas de crédito agrícola mútuo, desde que assinados pelo devedor, são, por força de disposição especial, títulos executivos.

b) O indeferimento in limine do requerimento executivo, com fundamento na falta de título executivo, só é admissível quando essa falta seja manifesta, ostensiva, evidente ou indiscutível.

As custas deste recurso serão satisfeitas pela parte que deva, em definitivo, suportar as custas da acção executiva (artº 527 nºs 1 e 2 do nCPC).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, concedo provimento ao recurso, revogo a decisão nele impugnada e determino a sua substituição por outra que determine o prosseguimento, como for de direito, da execução.

Custas pela parte que deva suportar, em definitivo, as custas da execução.

                                                                                                           15.05.19

Henrique Antunes (Relator)

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[1] Ac. da RE de 02.02.89, BMJ nº 384, pág. 681.
[2] Ac. do STJ de 29.09.93, CJ, STJ, 93, III, pág. 49. Exceptua-se, evidentemente, o caso de a lei nova se fazer acompanhar de uma norma de direito transitório de sentido diverso. É o que sucede com Lei nº 42/2013 de 26 de Junho – que aprovou o nCPC – que, de harmonia com a norma de direito transitório nela contida, relativamente, designadamente, aos títulos executivos, aquele Código apenas é aplicável às execuções iniciadas depois da sua entrada em vigor, ocorrida em 1 de Setembro de 2013 (artºs 6 nº 3 e 8).
[3] José Lebre de Freitas, “Os paradigmas da acção executiva”, ROA; 2001, págs. 543 e ss.
[4] Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 1999, pág. 69.
[5] Acs. da RE de 27.02.14 e 26.03.14 e da RC de 05.05.15, www.dgsi.pt.
[6] Acs. da RL de 24.09.14 e 19.06.14, da RG de 19.03.15 e 17.02.14, da RP de 27.01.15 e 09.12.14 e da RC de 07.10.14.
[7] Disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt.