Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
721/12.5TBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: INSOLVÊNCIA
INDEFERIMENTO LIMINAR
Data do Acordão: 06/20/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FIGUEIRA DA FOZ 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.27º Nº1 AL A) CIRE
Sumário: I – A apresentação à insolvência do devedor implica a confissão e reconhecimento da sua situação de insolvência;

II – Não tem fundamento o despacho liminar de indeferimento de declaração de insolvência por manifesta improcedência relativamente ao apresentante que, não dispondo de quaisquer bens ou rendimentos, está desempregado há mais de 3 anos, embora procure trabalho e esteja inscrito no Centro de Emprego e tenha uma dívida por crédito ao consumo (compra de veículo automóvel) a uma instituição financeira, no valor de € 10.355,85, em fase de execução judicial.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório

A..., em 2 de Abril de 2012, apresentou-se à insolvência, no 3.º Juízo do Tribunal Judicial da comarca da Figueira da Foz, simultaneamente formulando pedido de exoneração do passivo restante, com fundamento em não ter trabalho desde há mais de 3 anos, não obstante procurá-lo e estar inscrito no Centro de Emprego, ser solteiro e desprovido de bens ou rendimentos e viver de ajudas de seus familiares, tendo como única dívida a quantia de € 10.355,85, há muito vencida, correspondente a um crédito que pediu ao “B..., SA”, para compra de um veículo automóvel, que teve que vender por economicamente o não poder manter, em consequência do que essa instituição lhe moveu o processo [de execução] n.º 1007/10.5TBFIG, pendente naquele Juízo.

Mais acrescentou que a insolvência é a única forma de restabelecer a verdade da sua situação financeira e única esperança de, um dia, com emprego, poder de facto recomeçar, para tanto alegando dispor dos requisitos para que não seja indeferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante correspondente àquela dívida.

Por despacho de 2 de Maio de 2012 foi liminarmente indeferido o pedido de declaração de insolvência e implicitamente também de exoneração do passivo restante, nos termos do art.º 27.º, n.º 1, alín. a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) com fundamento em que “não está caracterizada uma situação de insolvência do requerente, não por deficiência do requerimento (o que levaria a um eventual convite ao aperfeiçoamento), mas antes porque a situação descrita, objectivamente considerada, não traduz aquele estado de insolvência que deve estar na base da propositura deste tipo de processos”.

Inconformado, recorreu o requerente, apresentando alegações que rematou com as seguintes conclusões:

a) - A sentença recorrida não especifica os factos provados e não provados, pelo que, carecendo de fundamentação, é nula (art.ºs 666.º, n.º 3 e 668.º, n.º 1, alín. b), do CPC);

b) – A sentença violou o prazo fixado no art.º 27.º, n.º 1, alín. a), do CIRE ao ser proferida 1 mês após a distribuição da acção, mas igualmente os seus fundamentos, porquanto não estão reunidos os elementos para o indeferimento;

c) - Contrariamente ao que nela se afirma, a petição inicial identificou as suas obrigações em dívida, ou melhor, a sua dívida de € 10.355,85, vencida, não paga e em processo executivo;

d) – Ficou claro pela petição inicial que o devedor não tem emprego, não tem qualquer rendimento e os seus únicos bens são a sua roupa, na grande maioria sobras de roupas de seus irmãos;

e) – O devedor não tem qualquer perspectiva de emprego e vive, de favor, em casa de irmãos, alternadamente;

f) – No processo executivo não foram encontrados quaisquer bens ou rendimentos, sendo o seu passivo muito superior ao activo;

g) – Porque nos termos do disposto no art.º 28.º do CIRE estes factos deveriam ter sido considerados confessados e provados, deveriam, por outro lado, ter fundamentado decisão de declaração de insolvência e, tendo sido decidido o contrário, foi esse preceito violado;

h) – O devedor confessa a sua única dívida e a sua impossibilidade de cumprir, pelo que demonstrada fica a sua impossibilidade de cumprimento da generalidade das obrigações;

i) – O facto de inexistirem bens penhoráveis ou rendimentos não pode fundamentar um indeferimento liminar do processo de insolvência;

j) – Os factos - índice do art.º 20.º do CIRE encontram-se alegados, reunidos e confessados, pelo que houve má aplicação do direito e desse normativo, pelo que deveria o processo ter culminado com declaração de insolvência ainda que inicialmente o despacho pudesse ter sido de aperfeiçoamento.

Não houve lugar a resposta, nem tinha que haver, dado não existir ainda propriamente contra-parte, dada a situação de recurso de indeferimento liminar a que alude o art.º 45.º do CIRE.

Dispensados os vistos, cumpre decidir, sendo questões a apreciar:

a) – Nulidade da sentença por violação do dever de fundamentação (não especificação dos factos provados);

b) – Violação do art.º 27.º, n.º 1, do CIRE;

c) – Saber se o teor da petição inicial se apresenta em termos que tornam o pedido de insolvência manifestamente improcedente ou, pelo contrário, pode fundamentar tal pedido.

Vejamos.


*

            2. Fundamentação

            2.1. De facto

O quadro factual relevante para julgamento do recurso é o que emerge do antecedente relatório, para onde se remete, o qual contém o fundamental da matéria confessada na petição inicial pelo requerente, nos termos do art.º 28.º do CIRE.


*

            2.2. De direito

            a) – A nulidade do despacho liminar por falta de especificação dos fundamentos de facto

            O dever de fundamentação das decisões judiciais que não sejam de mero expediente, v. g. a especificação dos fundamentos de facto, é não só um imperativo legal (art.º 158.º, n.º 1, do CPC) como constitucional (art.º 205.º, n.º 1, da CRP), cuja violação é cominada com a respectiva nulidade (art.º 668.º, n.º 1, alín. b), do CPC).

            De acordo com o que constitui jurisprudência praticamente uniforme, essa nulidade supõe, contudo, a falta absoluta de fundamentação, que não uma fundamentação incompleta, deficiente, medíocre ou até errada.[1]

            Ora, o despacho recorrido teve como fundamentação precisamente…a não fundamentação pelo requerente de factualidade integradora nos diversos factos-índice do art.º 20.º do CIRE que teve como aplicável, embora incorrectamente.

            E foi essa falta de alegação de matéria, que pudesse elencar-se como provada, que determinou a não caracterização de uma situação de insolvência do requerente.

            Daqui se conclui que, na lógica da decisão, o que ocorreu foi a falta de alegação de factos que pudessem concluir pela insolvência do requerente, por isso indeferindo o seu pedido por manifesta improcedência.

            Carece, assim, de sentido, a exigência de fundamentação com alinhamento dos factos provados quando a decisão se louvou, precisamente, na omissão de alegação de tais factos, relevantes.


*

            b) – A violação do art.º 27.º, n.º 1, alín. a) do CIRE

            Dispõe tal preceito que o despacho liminar deveria ter sido proferido ou no próprio dia da distribuição ou até ao 3.º dia útil subsequente.

            Contudo, tal só ocorreu cerca de 1 mês após.

            Trata-se de uma imposição programática cuja violação não tem, porém, consequências processuais (nem o recorrente, ciente disso, as indicou).

            A violação culposa de tal preceito só em sede disciplinar poderá revelar, perante o órgão próprio e na apreciação regular a que os actos dos juízes estão sujeitos.

            Assim, nada há a determinar.


*

            c) – Quanto ao mérito da decisão, é manifestamente menos correcta a sua fundamentação e decisão, que, por isso, se impõe alterar.

            A decisão recorrida foi, toda ela, gizada na comparação da matéria alegada com as diversas alíns. do art.º 20.º do CIRE.

            Só que tal normativo (bem como a jurisprudência que foi aduzida), como claramente dele se vê, não tem aplicação ao caso dos autos. Dispõe tão-somente para a insolvência a requerimento dos legitimados no n.º 1 indicados, não tendo aplicação à insolvência por apresentação do devedor.

            Quanto a este rege o art.º 28.º do CIRE quando, instituindo uma verdadeira confissão (art.º 352.º do CC), estabelece que “a apresentação à insolvência por parte do devedor implica o reconhecimento por este da sua situação de insolvência, que é declarada até ao 3.º dia útil seguinte ao da distribuição da petição inicial (…)” em conjugação com a regra geral do n.º 1 do seu art.º 3.º, que dispõe que “é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”, e do n.º 4 que equipara à situação de insolvência actual à que seja meramente iminente, no caso de apresentação pelo devedor à insolvência.

            Referem Carvalho Fernandes e João Labareda[2] que “dado o que hoje se consigna no art.º 28.º, a apresentação por parte do devedor, implicando, para ele, o reconhecimento da sua situação, determina a declaração judicial da mesma, mediante o proferimento da correspondente sentença.

            Não há, pois, nesta eventualidade, nenhum contraditório, designadamente pelo lado dos credores, que só são chamados ao processo após a insolvência ter sido declarada.

            Já se vê por isso que, se o devedor se apresenta sob a invocação da situação de insolvência iminente e uma vez que, por virtude do n.º 4 deste art.º 3.º, esta se equipara à insolvência actual, segue-se o desencadeamento do regime do art.º 28.º, em regra mesmo que não se verifique efectivamente a situação tal como ela é apresentada pelo devedor”.

            E alerta que “só assim não será se, para lá da ocorrência de excepções dilatórias insupríveis, que aqui não importa especialmente considerar, o pedido for manifestamente improcedente, ou seja, quando, em face da própria matéria alegada ou da documentação apresentada, resulte, com clareza, a inexistência do pressuposto da declaração judicial de insolvência – no caso a situação de insolvência iminente – por aí haver lugar a indeferimento liminar segundo o que decorre do estatuído no art.º 27.º, n.º 1, alín. a)”.

            E, mais à frente[3], que “se o devedor se apresenta a requerer a sua declaração de insolvência, esse procedimento não pode deixar de envolver, para ele, o reconhecimento da existência da situação de impossibilidade de cumprimento de obrigações ou, nos casos aplicáveis, de insuficiência do activo em relação ao passivo, que caracterizam a situação de insolvência nos termos do art.º 3.º

            E, como referem ainda os mesmos autores[4], se bem que a normalidade das situações conduza ao imediato proferimento da sentença declaratória, não o determina necessária e inexoravelmente, desde logo se a petição se apresentar em termos que tornem o pedido manifestamente improcedente ou ocorram excepções dilatórias insupríveis de conhecimento oficioso (art.º 27.º, n.º 1, alín. a)).

            Ora bem.

            Voltando ao caso concreto, resulta confessada toda a factualidade inserta na petição inicial, em suma, que o devedor apresentante à insolvência não tem quaisquer bens ou rendimentos, está desempregado há mais de 3 anos e não consegue obter emprego, não existe qualquer activo e tem como dívida vencida o montante correspondente ao crédito pedido ao “Finicrédito” de € 10.355,85 em fase de execução judicial, ou seja, foram alegados factos bastantes de onde se conclui a impossibilidade de o devedor cumprir a sua obrigação vencida, reconhecendo com a apresentação do processo encontrar-se em situação de insolvência.

            Não ocorre, pois, manifesta improcedência justificativa do indeferimento liminar do pedido de declaração de insolvência.

            Nesse sentido e pese embora o valor da dívida não assumir dimensão incomportável para quem disponha de rendimentos, que mais não fosse de trabalho, não é, pois, de concluir pela manifesta improcedência do pedido de insolvência porque o incumprimento da obrigação do devedor revela uma situação de incapacidade de cumprimento, encontrando-se em tal penúria que leva à conclusão fácil de que se encontra impossibilitado de cumprir tal obrigação, vencida (v. n.º 1 do art.º 3.º do CIRE, acima citado).

            Daí se impor a revogação da decisão recorrida.


*

            3. Resumindo e concluindo

            I – A apresentação à insolvência do devedor implica a confissão e reconhecimento da sua situação de insolvência;

            II – Não tem fundamento o despacho liminar de indeferimento de declaração de insolvência por manifesta improcedência relativamente ao apresentante que, não dispondo de quaisquer bens ou rendimentos, está desempregado há mais de 3 anos, embora procure trabalho e esteja inscrito no Centro de Emprego e tenha uma dívida por crédito ao consumo (compra de veículo automóvel) a uma instituição financeira, no valor de € 10.355,85, em fase de execução judicial.


*

            4. Decisão

            Face ao exposto, acordam em julgar procedente a apelação e revogar a decisão recorrida, que será substituída por outra que determine o normal prosseguimento dos autos.

            Sem custas.


***

Francisco M. Caetano (Relator)
António Magalhães
Ferreira Lopes

[1] V., por todos, o Ac. STJ de 14.11.06, Proc. 06A1986, www.dgsi.pt.
[2] “CIRE, Anot.”, 2008, pág. 73.
[3] Ibidem, pág. 165.
[4] Ibid. pág. 166.