Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1019/06.3TBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
PERMUTA
FORMA
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Data do Acordão: 05/25/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FIGUEIRA DA FOZ 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ART.ºS 334.º, 410.º, N.ºS 2 E 3 E 394.º, N.º 1, DO CÓD. CIVIL
Sumário: a) – Estando o contrato-promessa de compra e venda de fracção predial sujeito à forma escrita, também o está a posterior e verbal troca ou permuta da fracção predial (garagem) por outra, por força dos art.ºs 410.º, n.ºs 2 e 3 e 394.º, n.º 1, do Cód. Civil;

b) – Pese embora a nulidade por vício de forma daí decorrente, aceitando os promitentes-vendedores a troca ou permuta e entregando as chaves da nova garagem à promitente-compradora, que a vem usando há mais de 10 anos e de cujo preço final, então de 1 500 00$00 (€ 7.481,97), falta pagar, apenas, a importância de € 748,20, aqueles não só contribuíram para o vício de forma, como geraram confiança e expectativa na promitente-compradora de vir a ser celebrada a escritura definitiva de compra e venda, sem que jamais fosse arguida a nulidade;

c) – A conduta dos promitentes-vendedores, porque excedeu manifestamente os limites impostos pela boa fé e pelo fim económico do seu direito à arguição da nulidade, está eivada de abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, vedado lhes estando tal arguição, tendo-se o contrato-promessa como formalizado quanto ao aditamento adicional verbal da permuta do seu objecto (art.º 334.º do Cód. Civil);

d) – Incorrendo os recorrentes em litigância de má fé, deve reduzir-se o montante da condenação em multa e da indemnização fixados, de acordo com o respectivo grau de culpabilidade, a sua situação económica e a complexidade do próprio processo.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório

          A... e mulher B... e C... e mulher D..., todos residentes em ..., propuseram acção declarativa com forma de processo sumário (convertida em processo ordinário, mercê de reconvenção) contra E..., divorciada, residente..., alegando, em resumo, serem os legítimos donos de uma garagem, com o n.º 7, sita na subcave de um prédio por eles construído, na ...e do qual, em 1995, prometeram vender à Ré uma fracção autónoma, pelo preço de 2.700.000$00 (€ 13.467,54), mas, não sendo a promessa formalizada por documento, a mesma é nula e, tendo ficado acordado que a escritura seria celebrada quando a ora demandada e seu ex-marido procedessem ao pagamento do preço, no prazo de um ano, entregaram a estes as chaves da garagem, tendo, por seu turno, a Ré entregue ao A. C... a quantia de 1.350.000$00 (€ 6.733,77), não desejando, contudo, a mesma pagar a quantia restante, nem celebrar a escritura, nem entregar as chaves da garagem, mantendo-a na sua posse, apesar de várias vezes instada para a entregar

            Concluíram por pedir que a Ré fosse condenada a reconhecer que os AA. são donos em comum e partes iguais da garagem em causa, bem como à sua restituição, devoluta de quaisquer objectos.

            Citada, contestou a Ré, alegando, em síntese, ser a única dona e possuidora da garagem em questão, que comprou aos AA., tendo em 22/10/1993 celebrado um contrato-promessa com os mesmos para compra e venda de um apartamento com arrumo e garagem, ficando por pagar, relativamente a esta, a quantia de 1.500.000$00, devendo ser paga no prazo de um ano e, por conta desse preço, foi paga a quantia de 1.350.000$00, pelo que restaram 150.000$00 para ser pagos na data da respectiva escritura, a marcar pelos AA., que avisariam a Ré mediante carta registada.

Mais alegou que os AA. se desentenderam nos seus negócios e nunca a notificaram para ser realizada escritura de compra e venda por referência à garagem, mas, passados vários anos e após insistência sua para ser realizada a escritura, o A. A... disse que apenas realizaria a escritura se lhe fosse paga uma quantia igual àquela que havia sido entregue ao A. C..., o que a Ré recusou, informando que apenas pagaria a quantia de 150.000$00 na data da realização da escritura e que ficava a aguardar a marcação da escritura relativa à garagem.

Em reconvenção veio a Ré dizer que os AA. não cumpriram o contrato-promessa, devendo realizar a escritura e receber o resto do preço da garagem, pelo que, não cumprindo essa obrigação, deverão indemnizar a Ré com o dobro do sinal passado como antecipação do preço.

Mais alegou a Ré que utiliza a garagem há mais de dez anos, à vista de toda a gente e sem qualquer oposição, retirando dela todas as utilidades na convicção de ser sua proprietária exclusiva, situação conhecida dos AA., que, ao alegarem agora a nulidade do contrato, agem com abuso de direito.

Entende a Ré que, mesmo sendo declarada, por mera hipótese, a nulidade do negócio, sempre os AA. teriam de devolver à R. o valor que esta lhes entregou, hoje de € 6.733,77, com juros de mora desde a entrega até à restituição.

            Concluiu pedindo que a acção seja julgada improcedente e não provada, absolvendo-se a mesma dos pedidos e julgando-se procedente a reconvenção de modo a que os AA. sejam condenados a reconhecer que o contrato-promessa teve por objecto a garagem e cumprir o contrato, marcando, avisando da data e celebrando a escritura, sob pena de incumprimento definitivo, devolvendo nesse caso o sinal em dobro.

Subsidiariamente pediu que, em caso de nulidade do negócio, os AA. fossem condenados a restituir à Ré o valor que esta lhes entregou, com juros moratórios desde a entrega até à restituição.

Pediu ainda que os AA. fossem condenados como litigantes de má fé, em multa e indemnização a seu favor.

            Responderam os AA. que o contrato-promessa referia a garagem nº 3 e não a garagem nº 7 que ora reivindicam, tendo posteriormente o promitente-comprador dito que desistia da garagem nº 3, com 16 m2, acordando com os AA. que a garagem a alienar seria a nº 7, com 41 m2, pelo preço de 2.700.000$00, sem que tal fosse reduzido a contrato-promessa.

            Segundo os AA., a Ré acabou por pagar ao A. C... metade do preço, referindo a terceiros que faltava pagar a outra metade ao A. A..., reconhecendo ao longo dos anos que a dívida respeitava à garagem nº 7 e não à garagem nº 3, mantendo a posse daquela e não da que foi objecto do contrato-promessa, com o argumento de que quer pagar o resto do preço, recusando-se restituir a garagem mesmo contra a devolução do montante recebido pelo A. C....

            Concluíram os AA. como na petição inicial, pedindo que a reconvenção fosse julgada improcedente e absolvidos dos pedidos reconvencionais.

            Elaborado o despacho saneador e seleccionada a matéria de facto assente e organizada a base instrutória, não houve reclamação.

Efectuado o julgamento, foi respondida a matéria de facto provada e não provada, igualmente sem reclamação.

Proferida sentença, foi a acção julgada parcialmente procedente e a R. condenada a reconhecer que os AA. são donos da referida garagem n.º 7, absolvendo-a, contudo, do pedido de restituição e a reconvenção julgada procedente e, em consequência, os AA. reconvindos condenados a reconhecer a existência de um contrato-promessa de compra e venda celebrado entre as partes, tendo como objecto, além do mais, aquela garagem, mais os condenando ao cumprimento do disposto na cláusula 6.ª desse contrato e a procederem à marcação da escritura, notificando a reconvinte para esse efeito mediante carta registada com A/R, com a antecedência mínima de 30 dias, e em caso de incumprimento de tal obrigação os AA. condenados a devolver à reconvinte o sinal em dobro, no montante de € 13.467,54 e, a título de litigância de má fé, foram os AA. condenados na multa de 8 Ucs e na indemnização de € 2.000,00 à Ré reconvinte, como reembolso de despesas do processo.

Inconformados com o assim decidido recorreram os AA., em cujas alegações formularam as seguintes conclusões:

a) – A fracção autónoma identificada nas alíns. e) e f) da matéria assente pertence em comum e partes iguais aos AA. A...e mulher e C... e mulher;

b) – Apenas e só o A. C... acordou a troca da garagem n.º 3 pela garagem n.º 7;

c) – Tal troca é nula e de nenhum efeito, sendo mesmo ineficaz em relação aos demais AA., A... e mulher (art.º 1408.º, n.ºs 1 e 2 do CC);

d) – Tendo sido celebrado contrato-promessa quanto à garagem n.º 3, qualquer alteração ao mesmo teria de ser celebrado por documento (art.º 394.º, n.º1, do CC);

e) – O abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium não pode justificar como válido um contrato-promessa de compra e venda de bem imóvel, nulo por falta de forma e ineficaz (Ac. STJ de 17.1.02, CJ, I, 48);

f) – Não pode através do abuso de direito considerar-se válido um contrato-promessa de compra e venda nem qualquer alteração ou aditamento ao mesmo;

g) – O acordo celebrado entre o A. C... e F... é nulo e de nenhum efeito, sendo ineficaz em relação aos demais AA.

h) – Os AA. A... e mulher não receberam qualquer quantia a título de sinal, pelo que não podem ser condenados a restituir o que quer que seja;

i) – A ser seguida a posição expressa na sentença estava encontrada a maneira de um comproprietário obrigar o outro a vender e até restituir montante que não havia recebido, bastando para tal conluiar-se com um hipotético promitente-comprador, por preço manifestamente inferior ao real, originando um enriquecimento ilegítimo de outrem;

j) – Os AA. não fizeram do processo um uso manifestamente reprovável, pois reivindicam uma garagem que é sua pertença;

l) – Tal pretensão foi reconhecida aos AA.

m) – Como tem sido unanimemente decidido, não se pode condenar com o litigante de má fé aquele que sustenta uma tese controvertida na doutrina e mesmo na jurisprudência;

n) – Os AA. A... e mulher não trocaram qualquer garagem, nem celebraram qualquer acordo quanto à garagem n.º 7;

o) – A sustentação de posições jurídicas porventura desconforme com a correcta interpretação da lei não implica, por si só, em regra, a qualificação da litigância de má fé na espécie ou lide dolosa ou temerária, porque não há um claro limite entre o que é razoável e o que é absolutamente inverosímil ou desrazoável no que concerne à interpretação da lei e à sua aplicação aos factos (Ac. STJ de 23.4.08/NET);

p) – Os AA. não podem ser condenados como litigantes de má fé;

q) – Não podem ser condenados a celebrar qualquer escritura uma vez que os AA. A... e mulher não celebraram qualquer acordo quanto à garagem reivindicada;

r) – Não tendo recebido qualquer quantia, os AA. A... e mulher não podem ser condenados a restituir o que quer que seja, sob pena de enriquecimento ilegítimo de outrem;

t) – A sentença fez errada aplicação e interpretação do disposto nos art.ºs 410.º, n.º 2, 394.º, n.º 1, 334.º e 1408.º, do CC e 456.º, n.º 2, alín. d), do CPC, pelo que deve ser revogada, devendo a acção ser julgada procedente e a Ré condenada a reconhecer que os AA. são, em comum e partes iguais, donos da garagem identificada no art.º 1.º da petição inicial e a restituir a mesma aos AA., devendo estes ser absolvidos dos pedidos reconvencionais.

Não houve lugar a resposta por parte da Ré.

Cumpre decidir, sendo questões a apreciar:

a) – O aditamento verbal ao contrato-promessa da troca ou permuta da garagem n.º 3 pela n.º 7, a consequente nulidade formal e a oponibilidade (ou inoponibilidade) desta ao abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium;

b) – A condenação dos recorrentes a título de litigância de má fé.

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            2. Fundamentos

2.1. De facto

Sem qualquer impugnação, vêm provados, da 1.ª instância, os seguintes factos:

a) - Por escritura pública celebrada no 1º Cartório Notarial da ..., no dia 8 de Maio de 1992, os AA.  C..., casado com D..., e A... casado com B..., declararam comprar, em comum e partes iguais, a G... e mulher, H..., e a I... e mulher, J... , e estes declararam vender àqueles AA., pelo preço de 8.000.000$00, um lote de terreno destinado a construção urbana, designado pelo Lote C, com a área de 550 m2, sito na ..., concelho da ..., a confrontar no sul com arruamento e Lote D, nascente com arruamento e zona verde, poente com zona verde e norte com arruamento, inscrito na matriz urbana da freguesia de ... sob o art. ..., descrito na Conservatória do Registo Predial da ..., sob o nº ...;

b) - Na Conservatória do Registo Predial da ..., sob o nº 0 .../230689, da freguesia de ..., encontra-se descrito um prédio, actualmente urbano, composto por edifício de subcave, cave para garagens, rés-do-chão, 1º e 2º andares para habitação, formado por 24 fracções autónomas, a que foram atribuídas as letras A a AA, sito na ..., ..., a confrontar do norte com arruamento, do sul com arruamento e Lote D, do nascente com arruamento e zona verde e do poente com arruamento, actualmente inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 5124;

c) - Através da Ap. .../150592, a que coube a cota G-2, foi registralmente inscrita a aquisição do direito de propriedade sobre o prédio dito em b) a favor dos AA. C... e A..., em comum e partes iguais;

d) - Através da Ap. .../020893, a que coube a cota F2, foi registralmente inscrita, no prédio dito em b), a constituição de propriedade horizontal atribuindo-se às fracções A, B e D a permilagem de 17,3, cada; à fracção C de 15,3; à fracção E de 18,2; às fracções F, G, O e P, de 8,2, cada; à fracção H, I e J, de 7,3; à fracção L de 16,4; às fracções M, N e Q, de 9,1, cada; às fracções R e S de 120, cada, às fracções T e X, de 87,2, cada; às fracções U e Z, de 130, cada; às fracções V e AA, de 70,9 cada, especificando-se que as fracções A a Q se destinam a garagens e as restantes a habitação;

e) - Na Conservatória do Registo Predial da ..., sob o nº 0 .../230689-E, da freguesia de ..., encontra-se descrita a fracção autónoma, a que corresponde a letra E, do prédio urbano dito em b), composta por garagem na subcave, do lado nascente, a quinta à esquerda a contar da entrada;

f) - O direito de propriedade sobre aquela fracção autónoma dita em e), encontra-se registralmente inscrito a favor dos AA. C... e A..., em comum e partes iguais, através da mesma Ap.02/150592, a que coube a cota G-2;

g) - Foram os autores que construíram o edifício dito em b), para tal tendo comprado ferro, cimento, areia, tijolo, telha, carpintarias e alumínios, tintas e vernizes, do que tudo pagaram o respectivo preço; e contratando pedreiros, serventes, armadores de ferro, carpinteiros e pintores, a quem pagaram os respectivos salários;

            h) - Por documento escrito, datado de 22 de Outubro de 1993, assinado por AA. como primeiros outorgantes, por F..., como segundo outorgante, e ainda pela Ré, os autores declararam prometer vender a F... e este declarou prometeu comprar, pelo preço de 14.500.000$00, uma fracção autónoma constituída pelo 2º andar esquerdo, arrumos do sótão e uma fracção referente a uma garagem, na sub-cave, como nº 3, na ..., Lote C, freguesia de ..., concelho da ...;

            i) - É do seguinte teor a cláusula 3ª do documento escrito dito em h):

- "A título de sinal e princípio de pagamento o segundo outorgante entrega neste acto a quantia de 4.000.000$00 de que os primeiros dão quitação";

            j) - É do seguinte teor a cláusula 4ª do documento escrito dito em h):

            - "Como reforço de sinal o segundo outorgante entregará 1.000.000$00 antes da escritura em data a combinar";

            l) - É do seguinte teor a cláusula 5ª do documento escrito dito em h):

            - "O remanescente do preço ou seja, a quantia de 9.500.000$00, será paga de acordo com as seguintes condições:

            1ª - 8.000.000$00 no acto da escritura definitiva da compra e venda da fracção tipo T2;

            2ª - 1.500.000$00, referentes à garagem na sub-cave nº 3, um ano após este contrato".

m) - É do seguinte teor a cláusula 6ª do documento escrito dito em h):

            - "A escritura definitiva será realizada em Cartório Notarial, após obtenção da licença de habitabilidade, para depois de Janeiro de 1994, em data e hora a indicar pelos primeiros outorgantes, para a qual deverão avisar o segundo por carta registada com aviso de recepção com antecedência mínima de 30 dias";

            n) - Por conta da aquisição de uma garagem na dita ..., a R. entregou ao A. C..., a quantia de 1.350.000$00;

            o) - Os AA. entregaram à ré e ao seu ex-marido as chaves da garagem dita em e), a qual é utilizada pela ré, que dela retira todas as suas utilidades;      

p) - A Ré foi instada pelo autor A... a entregar as chaves da garagem ou a proceder ao pagamento ao próprio da quantia de 1.350.000$00;

q) - Os AA. desentenderam-se nos seus negócios e nunca notificaram a Ré para ser realizada escritura de compra e venda por referência à garagem;

r) - Passados vários anos, e após insistência da ré para ser realizada a escritura, o A. A... disse à Ré que apenas realizaria a escritura se lhe fosse paga uma quantia igual àquele que havia sido entregue ao A. C...;

s) - O que a Ré recusou, informando que apenas pagaria a quantia de 150.000$00, na data da realização da escritura, e que ficava a aguardar a marcação da escritura;

t) - A R. utiliza a fracção dita em e) há mais de dez anos;

u) - A fracção autónoma dita em e) corresponde à garagem sita na subcave a que foi atribuído, em planta, o nº 7;

v) - O A. C... e F... acordaram em 1995 que este desistia da compra da garagem nº 3, por troca com a garagem nº 7;

x) - Troca que os autores aceitaram;

z) - A garagem nº 3 tinha sensivelmente a área de 15 m2;

aa) - E acordaram então C... e F... que este adquiriria a garagem nº 7, com a área de cerca de 41 m2, pelo preço de 1.500.000$00.

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2.2. De direito

            Como é sabido, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o thema decidendum, não podendo ser apreciada matéria diversa nelas não contida, salvo se for de conhecimento oficioso (art.ºs 684, n.º 3 e 690.º, n.º 1, do CPC, na redacção aplicável, anterior à Reforma do DL n.º 303/07 de 24.8).

E, tal como acima enunciado, a 1.ª questão que importa analisar é a seguinte:

a) – O abuso de direito dos recorrentes

            Antes de mais, importa salientar que os recorrentes, ainda que gravada a prova, não impugnaram a decisão de facto, nem esta Relação encontra motivos que possam justificar a sua modificabilidade, ao abrigo do n.º 4 do art.º 712.º do CPC.

            Assim, fixada em definitivo a matéria de facto dada como provada pela 1.ª instância, recortando dela o essencial para apreciação da questão que nos vem submetida, temos o seguinte:

            - Pelo contrato-promessa de 22.10.93 os recorrentes prometeram vender à recorrida e ao então seu marido, além do mais, uma fracção predial referente a uma garagem, na subcave de um edifício, com o n.º 3, mediante o preço, então, de 1 500 000$00, a pagar um ano após a data do contrato, ficando a escritura definitiva de ser realizada em data e hora a indicar pelos promitentes-vendedores, para a qual deveriam avisar os promitentes-compradores mediante carta registada com A/R com antecedência mínima de 30 dias.

            Por conta da aquisição da garagem a Ré entregou ao recorrente C... (comproprietário da aludida garagem com o recorrente A...) a importância de 1 350 000$00.

            Em 1995 o ex-marido da recorrida desistiu da garagem n.º 3 por troca com a garagem n.º 7, na mesma subcave do edifício, pelo mesmo preço, troca que os recorrentes aceitaram.

            Os recorrentes entregaram à recorrida e seu ex-marido as chaves desta última garagem, que a recorrida utiliza há mais de 10 anos.

            Os recorrentes desentenderam-se nos seus negócios e nunca notificaram a recorrida para a realização da escritura de compra e venda da garagem.

            A 1.ª conclusão a retirar é que o recorrente A..., comproprietário da garagem em partes iguais com o recorrente C..., se aceitou a troca das garagens, concordou, afinal, com a promessa de alienação da garagem n.º 7, pelo mesmo preço que a do n.º 3 objecto do contrato-promessa escrito, tanto que foram ambos os AA. que, presumivelmente antes de se desentenderem nos negócios imobiliários comuns, entregaram à recorrida e ex-marido a chave respectiva.

            Daí que não tenha suporte factual a sua alegada falta de consentimento para a permuta em causa e ineficácia da alienação (rectius, promessa de alienação) daquela fracção predial.

            Quanto à entrega (liberatória) de parte do preço da garagem (1 350 000$00) ao A. C..., enquanto administrador desse bem em compropriedade (art.ºs 1407.º, n.º 1 e 985.º, do CC), é matéria respeitante às relações internas de ambos os recorrentes, a tratar (tudo assim o indica) em sede de prestação de contas de sócios de sociedade irregular e que extravasa, por completo, a relação com a recorrida enquanto promitente-compradora.

            A 2.ª conclusão tem a ver com o facto de, estando o contrato-promessa sujeito à forma escrita, também o está a posterior e verbal troca ou permuta da fracção predial por outra, nos termos dos art.ºs 410.º, n.ºs 2 e 3 e 394.º, n.º 1, do CC.

            Tem-se discutido se a nulidade por vício de forma pode obstar à invocação do abuso de direito (art.º 334.º do CC), mormente na modalidade do venire contra factum proprium, nos casos em que uma das partes ou tenha contribuído para a nulidade, ou proceda em termos de criar na outra a expectativa de que a nulidade jamais ser arguida.

            A doutrina nacional, com Manuel de Andrade à cabeça, há muito se pronunciou pela improcedência da arguição da invalidade nesses casos, considerando-se legitimado o vício de forma, tudo se passando como se o acto estivesse formalizado.[1]

            A jurisprudência maioritária, mormente a do STJ, igualmente tem caminhado nesse sentido.[2]

            Ora, a sentença recorrida, movendo-se neste quadro legal, nenhuma censura merece.

            Com efeito, aceitando a troca e o seu aditamento adicional verbal ao contrato-promessa escrito, ao entregarem as chaves da nova garagem com vista à utilização pela recorrida, o que vem fazendo há mais de 10 anos, tendo, por outro lado, a recorrida pago por conta do preço a quantia de 1 350 000$00, ou seja, quase a sua totalidade, na pessoa do recorrente C..., por pagar ficando, apenas, a importância de 150 000$00, os recorrentes, não só contribuíram, com a aceitação, para o vício de forma, como geraram confiança e expectativa na recorrida, promitente-compradora, de vir a celebrar a escritura de compra e venda definitiva da fracção predial correspondente à garagem com o n.º 7 e reivindicada na presente acção.

            O mesmo é dizer, querendo tirar proveito da nulidade formal, depois de para ela terem contribuído e terem criado a aparência à contra-parte de que o não fariam, causando-lhe essa legítima convicção, incorreram os ora recorrentes em abuso de direito, nos termos do art.º 334.º do CC, na modalidade de venire contra factum proprium, fosse excedendo manifestamente os limites impostos pela boa fé, fosse o fim económico do seu direito à arguição, como bem caracterizou a douta sentença.

            Improcedem, portanto, as conclusões recursivas atinentes à questão em apreço.

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            b) – A litigância de má fé

            A sentença recorrida condenou os recorrentes na multa de 8 Ucs e na indemnização para reembolso de despesas processuais que, em juízo de equidade, fixou em € 2.000,00, com fundamento em que fizeram do processo uso manifestamente reprovável com o fim de dolosamente almejarem um objectivo ilegal, alegadamente ao abrigo dos art.ºs 456.º, n.º 1 e 2, alín. d) e 457.º, n.º 1, ali.s a) e b), do CPC e 497.º, n.º 1, do CC.

            Sustentam os recorrentes que a defesa de uma tese controvertida na doutrina ou na jurisprudência, ou a incorrecta interpretação da lei não podem qualificar a litigância de má fé, para lá de terem visto reconhecida a propriedade da garagem reivindicada e de o A. A... e mulher serem alheios ao acordo de troca e ao recebimento de qualquer quantia respeitante ao contrato-promessa.

            Quanto a este último fundamento já acima se concluiu pelo seu naufrágio, quanto ao vencimento do pedido de reconhecimento do direito de propriedade da fracção predial em causa, o relevante na acção/reconvenção era a sua restituição e o incumprimento de um contrato-promessa de um bem que a recorrida utiliza há mais de 10 anos e, quanto às “teses controvertidas” ou deficiente interpretação legal é pacífico que, sem mais, não qualificam litigância de má fé, constituindo, aliás, a divergência de opiniões a normal dialéctica em qualquer conflito judicial.

            A reprovação moral e legal está, contudo, na alteração da verdade dos factos e omissão pura e simples da troca ou permuta das garagens em causa e toda a factualidade provada quanto ao envolvimento do A. e recorrente A..., o que, mais que má fé instrumental, integra má fé substancial, nos termos do referido art.º 456.º, n.ºs 1 e 2, alín. b), do CPC.

            Atento o grau médio de culpabilidade e a presumível situação económica dos recorrentes (construtores civis), bem como os limites do art.º 102.º, alín. a) do CCJ e no uso de um juízo de equidade quanto às despesas com o processo, cuja complexidade não é de monta, alteram-se os valores fixados, para 4 Ucs a multa e € 1.000,00 a indemnização a pagar à recorrida.

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            3. Resumindo e concluindo

            a) – Estando o contrato-promessa de compra e venda de fracção predial sujeito à forma escrita, também o está a posterior e verbal troca ou permuta da fracção predial (garagem) por outra, por força dos art.ºs 410.º, n.ºs 2 e 3 e 394.º, n.º 1, do Cód. Civil;

            b) – Pese embora a nulidade por vício de forma daí decorrente, aceitando os promitentes-vendedores a troca ou permuta e entregando as chaves da nova garagem à promitente-compradora, que a vem usando há mais de 10 anos e de cujo preço final, então de 1 500 00$00 (€ 7.481,97), falta pagar, apenas, a importância de € 748,20, aqueles não só contribuíram para o vício de forma, como geraram confiança e expectativa na promitente-compradora de vir a ser celebrada a escritura definitiva de compra e venda, sem que jamais fosse arguida a nulidade;

            c) – A conduta dos promitentes-vendedores, porque excedeu manifestamente os limites impostos pela boa fé e pelo fim económico do seu direito à arguição da nulidade, está eivada de abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, vedado lhes estando tal arguição, tendo-se o contrato-promessa como formalizado quanto ao aditamento adicional verbal da permuta do seu objecto (art.º 334.º do Cód. Civil);

            d) – Incorrendo os recorrentes em litigância de má fé, deve reduzir-se o montante da condenação em multa e da indemnização fixados, de acordo com o respectivo grau de culpabilidade, a sua situação económica e a complexidade do próprio processo.

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            4. Decisão

            Face a todo o exposto, acordam em julgar parcialmente procedente a apelação e em consequência manter a douta sentença recorrida, à excepção da condenação por litigância de má fé, cuja multa reduzem para 4 Ucs e a indemnização para € 1.000,00.

            Custas pelos apelantes.


[1] Mota Pinto, “Teoria Geral do Direito Civil”, 3.ª ed., pág. 437 e ss.
[2] Acs do STJ de 12.11.98, BMJ, 481.º-458 e CJ/STJ, 1998, 3.º-110, 11.3.99, CJ/STJ, 1999, 1.º-152, 28.11.00, BMJ, 501.º-292, 14.3.02, JSTJ 00000110/ITIJ, 15.5.07, Proc. 07B1180/ITIJ e 26.5.09, Proc. 81/04.8TBIDN.C1.S1/ITIJ e os demais aqui resenhados.