Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
87/12.3GDCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: PROCESSO SUMARÍSSIMO
REQUERIMENTO
MINISTÉRIO PÚBLICO
PENA DE SUBSTITUIÇÃO
PENA NÃO PRIVATIVA DA LIBERDADE
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Data do Acordão: 07/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE CASTELO BRANCO (2.º JUÍZO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 394.º, DO CPP; ARTIGOS 43.º, 44.º, 50.º E SS., 58.º, DO CP
Sumário: I - No âmbito do processo sumaríssimo, pode ser imposta, para além da pena de multa principal, qualquer uma das penas de substituição não privativas da liberdade, ou seja, também a prevista nos artigos 50.º e ss. do CP.

II - Às consequências da (in)execução ou incumprimento da pena fixada ao arguido é indiferente a forma processual em que a sentença respectiva foi proferida.

III - Assim, não existe incompatibilidade entre a circunstância de ser proferida condenação na dita forma de processo e o posterior cumprimento da pena privativa da liberdade no caso de desrespeito pela pena de substituição inicialmente aplicada.

Decisão Texto Integral: ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I - HISTÓRICO DO PROCESSO

            1.         Imputando ao arguido A... a prática de factos consubstanciadores de um crime de abuso de confiança, previsto e punido (de futuro, apenas p. p.) pelo art. 205º nº 1 do Código Penal (de futuro, apenas CP), e no entendimento de estarem reunidos os respectivos pressupostos, o Ministério Público (de futuro, apenas Mº Pº), requereu que em processo sumaríssimo lhe fosse aplicada uma pena de prisão de um ano e um mês, suspensa na sua execução por igual período, subordinada ao pagamento de € 2.500,00 ao ofendido, no prazo de 6 meses.

            A M.mª Juíza rejeitou o requerimento com fundamento no art. 395º nº 1 al. c) do Código de Processo Penal (de futuro, apenas CPP).

            2.         Inconformado, recorre o Mº Pº formulando as seguintes CONCLUSÕES:

            «1ª - Vem o presente recurso interposto do despacho proferido pela Meretíssima Juiz, no dia 28 de Outubro de 2013 que rejeitou, nos termos do disposto no artigo 395.°, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal e reenviar o processo para a forma de processo comum (já que entendeu não ser de fixar sanção diferente como o faculta o nº 2 do mesmo artigo), o requerimento apresentado pelo Ministério Público em que se propunha a aplicação ao arguido, em processo especial sumaríssimo, de uma pena de prisão de 1 (um) ano e 1 (um) mês, suspensa por igual período, sujeita à obrigação de proceder ao pagamento no prazo de 6 (seis) meses a contar do trânsito em julgado, da quantia de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) ao menor B....

            2ª - O despacho proferido pela Meritíssima Juiz é recorrível porque foi proferido com violação de lei expressa e nesses casos compete, especialmente, ao Ministério Público "recorrer sempre que a decisão seja efeito do conluio das partes no sentido defraudar a lei ou tenha sido proferida com violação de lei expressa", nos termos do disposto no artigo 3.°, nº 1, alínea o), do Estatuto do Ministério Público (Lei n." 60/98, de 27 de Agosto).

            3ª - O despacho proferido pela Meretíssima Juiz nada refere quanto ao facto de considerar que a sanção proposta pelo Ministério Público é manifestamente insusceptivel de realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, analisando-a apenas e tão só pela vertente das consequências que advirão para o arguido, em caso de incumprimento da mesma.

            4ª - Assim, ao rejeitar o requerimento apresentado pelo Ministério Público porque considera a sanção proposta "manifestamente insusceptivel de realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição" sem que se pronuncie sobre a concreta sanção proposta de pena de prisão de 1 (um) ano e 1 (um) mês de prisão, suspensa na sua execução por igual período (suspensão essa subordinada ao pagamento no prazo de 6 (seis) meses a contar do trânsito em julgado, de uma quantia de € 2.500,00 (dois mil quinhentos euros) ao menor B... , apresentando comprovativo da entrega desse montante nos autos até ao final desse período) a Meretíssima Juiz não especificou os motivos de facto e de direito da sua decisão.

            5ª - Não é admissível que se analise se uma sanção é ou não adequada a uma concreta situação tendo como pressuposto único de análise, as consequências que resultarão para o arguido, em caso de incumprimento daquela sanção.

            6ª - A pena de prisão suspensa na sua execução que propomos para o arguido é uma pena de substituição da pena de prisão, prevista no artigo 50.° do Código Penal, e que configura uma pena não privativa da liberdade, pelo que é admissível a acusação em processo especial sumaríssimo, na situação aqui em causa, de acordo com o previsto no artigo 392.°, nº 1, do Código de Processo Penal.

            7ª - Ao ter decidido de forma diversa, violou-se no despacho a quo o disposto nos artigos 395.°, nº 1, alínea c), 97.°, nº 5 e 392.°, nº 1, todos do Código de Processo Penal.

            8ª - Pelo que deverá o presente recurso ser julgado procedente, porque provado, devendo Vªs Exªs, revogar o despacho recorrido e ordenar à Meretíssima Juiz que nomeie defensor ao arguido (caso ainda não tenha sido nomeado), nos termos da alínea a) do disposto no artigo 396.°, nº 1, do Código de Processo Penal e ordene a sua notificação para, querendo, se opor no prazo de 15 dias à sanção proposta pelo Ministério Público, nos termos da alínea b) do nº 1 daquele mesmo artigo.

Contudo, Vªs Exas decidirão conforme for de lei e justiça.»

3.         Já neste Tribunal da Relação, a Ex.mª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, por adesão à argumentação expendida em 1ª instância.

Cumprido o art. 417º nº 2 do CPP, o arguido nada disse.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

4.         A DECISÃO RECORRIDA

            «O Digno Magistrado do Ministério Público requereu, nos termos do artigo 392.º n.º 1 do Código de Processo Penal, a aplicação de uma pena de prisão de 1 (um) ano e 1 (um) mês, suspensa por igual período, sujeita à obrigação de o arguido proceder ao pagamento no prazo de 6 (seis) meses a contar do trânsito em julgado, da quantia de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) ao menor B....

            Importa, agora, ao juiz pronunciar-se sobre a rejeição do requerimento e reenvio do processo para outra forma que lhe caiba (artigo 395.º n.º 1, do CPP) ou ordenar a notificação do arguido nos termos e para os efeitos do artigo 396.º n.º 1, alínea b), do CPP.

            Apreciemos então:

            Dispõe o artigo 392.º n.º 1 do CPP que "Em caso de crime punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou só com pena de multa, o Ministério Público, por iniciativa do arguido ou depois de o ter ouvido e quando entender que ao caso deve ser concretamente aplicada pena ou medida de segurança não privativas da liberdade, requer ao tribunal que a aplicação tenha lugar em processo sumaríssimo".

            O Digno Magistrado do Ministério Público propôs a pena de 1 ano e 1 mês de prisão suspensa por igual período.

            Não olvidamos a discussão doutrinária que vem sendo feita sobre a possibilidade de aplicação da pena de suspensão de execução da pena de prisão (que não a pena de prisão suspensa na sua execução), em que uns autores defendem que sendo a pena de suspensão da execução da pena de prisão, uma pena aplicada a título principal, esta pena é uma pena não privativa da liberdade (nomeadamente, Sónia Fidalgo em "Comunicação nas Jornadas sobre a Revisão do Código de Processo Penal organizadas pelo CEJ, em Coimbra e em Lisboa, respectivamente nos dias 8 e 9 de Novembro de 2007 e 15 e 16 de Novembro de 2007", e em http://www.cej.mj.pt/cej/forma-continua/fich-pdf/formacao2007-08/jornadas_penal_textos/ processos_esp_sum_coimbra2007sf.pdf).

            Também Rui do Carmo, em "O Ministério Público face à pequena e média criminalidade (em particular, a suspensão provisória do processo e o processo sumaríssimo", Revista do Ministério Público nº 81 (2000) páginas 147-8, defende que no processo sumaríssimo pode aplicar-se, para além da pena de multa principal, qualquer uma das penas de substituição não privativas da liberdade. E acrescenta, citando Figueiredo Dias, "É que as penas que hoje podem ser aplicadas nesta forma de processo, cuja medida concreta o Ministério Público tem de propor de forma fundamentada no seu requerimento, que constitui um verdadeiro “projecto de sentença, são todas as “não privativas da liberdade” (como determina o n.º 1 do art. 392.º CPP). Ou seja, a pena de multa (art. 47.º C. Penal) e as penas de substituição em sentido próprio: a multa de substituição (art. 44.º), a prestação de trabalho a favor da comunidade (art. 58.º), a admoestação (art.º 60.º C. Penal) e a suspensão da execução da pena de prisão (art. 50.º), que “não representa um simples incidente, ou mesmo só uma modificação, da execução da pena, mas uma pena autónoma e portanto, na sua acepção mais estrita e exigente, uma pena de substituição".

            No sentido contrário, entende Damião da Cunha, em "O Caso julgado Parcial. Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção no Processo de estrutura Acusatória", Universidade Católica, 2002, página 465, que não é possível utilizar a forma de processo sumaríssimo quando o Ministério Público propõe uma pena de suspensão da execução de uma pena de prisão, porquanto, atendendo a que "em caso de incumprimento dessa pena, o condenado ter de cumprir a pena de prisão, determinada pelo Ministério Público (...)" em que "a pena não foi submetida a um verdadeiro juízo por parte do tribunal".

            Aliás, a doutrina (mesmo aquela que defende que a pena de suspensão de execução de pena de prisão é aplicável no processo sumaríssimo) é unânime em considerar que, no caso de incumprimento dessa pena aplicada, a consequência não é o cumprimento de prisão efectiva.

            Diga-se que, neste particular, esses autores mostram coerência, já que se o processo sumaríssimo apenas pode ser aplicado quando a pena não seja uma pena privativa da liberdade, não faria sentido poder-se revogar a suspensão da pena e determinar o cumprimento efectivo de prisão.

            Quanto a nós, salvo melhor entendimento e melhor estudo, propendemos a considerar que não é possível aplicar-se a pena de suspensão de execução da pena de prisão (que, diga-se não é a proposta pelo MP, já que por este é proposta a pena de 1 ano e 1 mês de prisão, suspensa por igual período), por tal pena aplicada poder corresponder a uma pena inútil já que, em caso de violação da suspensão, a pena não poderia ser revogada e determinado o cumprimento da pena de prisão, pelas razões enunciadas por Damião da Cunha acima referidas e que seguimos de perto, embora haja jurisprudência (nomeadamente o Acórdão do TRC de 3/10/2012, em www.dgsi.pt, processo nº 492/08.0GBAND-A.C1) que entende que "em processo sumaríssimo caso a pena aplicada não seja cumprida a sua execução segue as regras gerais".

            E muito menos se mostra ajustada se seguirmos o entendimento de SÓNIA FIDALGO, no trabalho citado, quando diz que a consequência da violação da suspensão de execução da pena é a via do artigo 353.º do Código Penal.

            Na verdade, se bem percebemos a sua argumentação, esta autora refere que a consequência para o não cumprimento da suspensão da execução da pena não pode ser a de eventual revogação da suspensão da execução da pena de prisão, mas antes a aplicação do artigo 353.º n.º 1 do Código Penal.

            Assim, a admitir-se a aplicação do processo sumaríssimo quando o Ministério Público aplica a pena de suspensão da execução da pena de prisão, sempre esta não se mostraria adequada ao caso dos autos, na medida em que o incumprimento da pena não levaria a uma consequência consentânea com as exigências de prevenção geral e prevenção especial, já que não ficaria o arguido sob a ameaça de pena de prisão efectiva, que na verdade é a pena que se mostra adequada ao caso concreto.

            Posto isto, e em face do que se vem dizendo, ao abrigo do disposto no artigo 395.º n.º 1 alínea c) rejeita-se o requerimento, reenviando-se o processo para a forma de processo comum, já que não se entende não ser de fixar sanção diferente como o faculta o n.º 2 do mesmo artigo.».

            5.         O MÉRITO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art. 412º nº 1 do CPP. [[1]]

            As conclusões de recurso suscitam uma única QUESTÃO A RESOLVER: saber se no âmbito dum processo sumaríssimo pode ser aplicada a pena de suspensão da execução da prisão.

            Para encontrar a solução, consideramos de interesse apurar o que se passa no âmbito dum processo comum.

Sobre a escolha da pena num processo comum:

Dispõe o art. 40º nº 1 do CP que a aplicação de penas visa “a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.

Numa linguagem doutrinária, a pena deve ser consentânea com as exigências de prevenção geral e especial; na prevenção geral visa-se o efeito sobre a comunidade em geral —— pretende-se que, perante a pena aplicada ao arguido, a generalidade das pessoas se sinta desmotivada para adoptar idêntico comportamento (efeito intimidatório) e, por outro lado, a restauração da confiança no funcionamento e na eficácia do sistema jurídico (efeito de integração) ——; já com a prevenção especial atende-se apenas à pessoa do arguido, importando que a pena aplicada constitua não só o castigo devido, mas também a advertência suficiente para que, de futuro, adopte comportamento diverso, de respeito pelos valores jurídicos.

À escolha da pena só importam estes critérios gerais [[2]], não havendo fundamento legal para se operar com outros parâmetros, designadamente o juízo de prognose sobre se a pena vai ou não ser cumprida e quais as consequências dum possível incumprimento.

Num segundo momento, em conformidade com a pena que se entenda ser de aplicar, há que entrar em linha de conta com a abordagem das diversas penas de substituição.

Também aqui, como refere Figueiredo Dias, «A questão é a de saber se, por baixo da aparente multiplicidade e diversidade de critérios legais — co-responsável, em nossa opinião (...), pela falência prática, entre nós, do sistema de penas de substituição — se consegue ainda divisar um critério geral de escolha e de substituição da pena. Uma resposta afirmativa impõe-se. Um tal critério é, em toda a sua simplicidade, o seguinte: o tribunal deve preferir à pena privativa de liberdade uma pena alternativa ou de substituição sempre que, verificados os respectivos pressupostos de aplicação, a pena alternativa ou a de substituição se revelem adequadas e suficientes à realização das finalidades da punição. O que vale por dizer que são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição e a sua efectiva aplicação». [[3]]

            Realizada essa operação, e atenta a autonomia das penas substitutivas, há que averiguar dentro do leque de penas elencadas na lei, qual delas melhor se adequa ao caso concreto, uma vez que «(...), cada pena de substituição tem o seu próprio conteúdo político-criminal e o seu próprio campo de aplicação e possui, em consequência, um regime em larga medida individualizado (...)». [[4]]

            É hoje pacificamente aceite [[5]] que a suspensão da execução da pena de prisão tem a natureza de pena de substituição.

            De acordo com o art. 50º nº 1 do CP, a sua aplicação está dependente da verificação de dois tipos de pressupostos: um formal __ pena aplicada não seja superior a 5 anos __, e, um outro, de índole material __ de que se crie no julgador um juízo de prognose favorável, a convicção de que, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as atrás referidas finalidades da punição.

           

Passando ao processo especial sumaríssimo

Como refere Helena Leitão, «A escolha e aplicação das formas de processo especiais dependem da verificação de circunstâncias que requerem maior simplificação na tramitação processual. Assim, “a frescura, a simplicidade e a «evidência» da prova” são circunstâncias que legitimam, em regra, a opção por formas processuais mais expeditas do que o processo comum. Trata-se essencialmente de garantir, através de formas simplificadas de processo, uma resposta célere e eficaz aos casos de pequena e média criminalidade. Condição essencial destes processos é a de que o caso seja simples ou seja, que não apresente qualquer dificuldade, nem do ponto de vista dos factos nem do direito, podendo ser esclarecido facilmente.». [[6]]

Ainda que referindo-se apenas ao processo sumário e ao processo abreviado, cremos que por maioria de razão devem tais fundamentos colher para o processo sumaríssimo.

Esta forma processual foi introduzida pela primeira vez no CPP pelo Decreto-Lei nº 78/87, de 17.02. [[7]] e o seu âmbito de aplicação foi sendo sucessivamente alargado.

Nessa primeira versão do art. 392º do CPP, considerava-se ser de aplicar

· em caso de crimes puníveis com pena de prisão não superior a seis meses, ainda que com multa, ou só com pena de multa, e se o procedimento não depender de acusação particular

· quando o Mº Pº entendesse que ao caso devia ser concretamente aplicada só uma pena de multa

Posteriormente, mediante a alteração dada pela Lei n.º 59/98, de 25.08, já passou a poder ser aplicado

· em caso de crimes puníveis com pena de prisão não superior a três anos ou só com pena de multa

· e quando o Mº Pº entendesse que ao caso devia ser concretamente aplicada pena não privativa da liberdade

· passou também a admitir-se em procedimento dependente de acusação particular, desde que o assistente desse a sua concordância.

Na actual redacção do art. 392º do CPP, dada pela Lei nº 48/2007, de 29.08

· alterou-se a moldura abstracta da pena, passando o processo sumaríssimo a ser aplicável em caso de “crime punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou só pena de multa”

· manteve-se a necessidade de o Mº Pº entender que “ao caso deve ser concretamente aplicada pena (...) não privativa de liberdade”:

· subordinou-se esse entendimento do Mº Pº à audição do arguido

· estatuiu-se a possibilidade de o arguido tomar a iniciativa de requerer tal modalidade processual

Já no que toca à apreciação do requerimento pelo Juiz, verificou-se uma restrição da possibilidade de rejeição do requerimento no tocante à divergência sobre a pena proposta pelo Mº Pº.

Assim, na versão dada pela Lei nº 59/98 ao art. 395º nº 1 al. c) e nº 2 do CPP, permitia-se ao juiz rejeitar o requerimento “Quando discordar da sanção proposta, sem prejuízo do disposto no número seguinte”, ou seja, podendo “fixar sanção diferente, na sua espécie ou medida, da proposta pelo Ministério Público, com a concordância deste”.

Ainda no domínio da anterior redacção, escrevia António Henriques Gaspar: «Motivos de rejeição poderão ocorrer pela ausência de pressupostos (diferente qualificação dos factos) ou por considerações radicadas já na própria análise dos factos e da culpa: divergente interpretação dos factos no respectivo relacionamento material com a prova existente e apresentada e/ou divergência sobre a pena que num juízo de prognose deva ser adequada ou justificada: divergência sobre a natureza, a espécie e também - nada o afasta - sobre a medida concreta proposta.». [[8]]

Porém, na actual redacção do preceito (dada pela Lei nº 48/2007), essa possibilidade de rejeição passou a depender do entendimento pelo Juiz de que “a sanção proposta é manifestamente insusceptível de realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”: art. 395º nº 1 al. c) do CPP.

Ou seja, já não basta ao Juiz discordar, antes se lhe exigindo que efectue um juízo sobre se a pena proposta se mostra adequada e suficiente às finalidades da punição.

Portanto, uma actividade de ponderação idêntica à realizada em qualquer processo comum, aquando da escolha da pena.

Mas, ainda com mais uma importante nuance: agora, só será de rejeitar a pena proposta pelo Mº Pº quando o Juiz a considerar “manifestamente insusceptível, o que significa que terá de resultar de forma ostensiva que a pena proposta não realizará, quer os efeitos intimidatório e de integração (prevenção geral), quer o de proporcionar ao arguido o castigo devido e a sua reintegração social (prevenção especial).

E tal deverá resultar da análise dos factos imputados ao arguido, que o Mº Pº terá de elencar (art. 394º CPP), e da ponderação da sua culpa.

E é só isto que a lei determina para o momento da apreciação do requerimento de que o arguido seja julgado em processo sumaríssimo.

O incumprimento da pena proposta, porque um posterius, não é de ter em conta no momento da opção por determinada forma processual.

            Tal como acontece no domínio do processo comum, ao decidir-se por uma suspensão da execução da pena de prisão com subordinação a deveres e/ou regras de conduta, o julgador efectua um juízo de prognose favorável de que, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

            Contudo, como resulta da natureza das coisas, e da evidência de estarmos apenas no domínio de uma convicção, esse juízo de prognose pode não se verificar.

            Portanto, se fosse de ponderar essa possibilidade de incumprimento por parte do arguido, nunca se aplicaria a suspensão da execução da pena de prisão.

Não há que ajuizar sobre a maior ou menor possibilidade de o arguido se furtar ao cumprimento da pena, pois isso já contende com a execução da pena.

As regras processuais não podem suplantar ou desvirtuar as regras substantivas.

Independentemente da simplificação, celeridade e consensualidade dos trâmites processuais, a decisão final proferida num processo sumaríssimo tem o valor de sentença condenatória: art. 397º nº 2 do CPP.

Proferida e transitada em julgado uma sentença condenatória, entra-se na fase de execução da pena.

As consequências da (in)execução ou incumprimento da pena em que se foi condenado constituem regras substantivas, reguladas no Código Penal [[9]], sendo-lhe indiferente a forma processual em que a sentença foi proferida. [10]

Por isso que não vemos incompatibilidade em que alguém que foi julgado e condenado no âmbito dum processo sumaríssimo, não possa vir, posteriormente, a cumprir uma pena privativa de liberdade no caso de incumprimento da pena (substitutiva) que primeiramente lhe foi aplicada.

É que, a entender-se assim, o uso do processo sumaríssimo ficaria completamente desvirtuado e sem campo de aplicação.

Vejamos.

A nossa lei penal conhece como penas principais, apenas a pena de prisão e a pena de multa.

Como o próprio nome indica, uma pena de substituição substitui alguma coisa, ou seja, são as penas que vão ser cumpridas em vez de uma pena de prisão ou de uma pena de multa.

Daqui resulta que, antes de se perspectivar a opção por uma pena de substituição, há que ficar definida qual a pena principal que ao caso caberia.

Atente-se então na hipótese de a pena proposta pelo Mº Pº ser uma pena de multa.

Como se sabe, o incumprimento dessa pena de multa pode vir a acarretar prisão subsidiária nos termos do art. 49º do CP, bastando para tal que não tenha sido substituída por trabalho e não tenha sido paga voluntária ou coercivamente.

Portanto, a seguir-se o raciocínio da decisão recorrida, teríamos de concluir que também nunca podia ser proposta e aplicada uma pena de multa em processo sumaríssimo pois existe também a possibilidade de, em caso de incumprimento, ter de vir ela a redundar em pena privativa de liberdade.

Concordando com José P. Ribeiro de Albuquerque, fazemos nossas as suas palavras: «Sendo a pena a aplicar em processo sumaríssimo uma pena não privativa de liberdade, à custa da não realização do julgamento e da não prova efectiva da culpa, nem por isso se retira à decisão a sua natureza condenatória. É nesse quadro que se tem que avaliar a eventualidade do incumprimento. Vejamos: Se ao incumprimento da pena não privativa de liberdade se não seguisse nada, por ser inviável aplicar (mesmo em substituição) uma pena de prisão, isso constituiria uma burla à lei, que o arguido poderia reverter a seu favor, tanto mais que lhe é reconhecido agora o direito de iniciativa e de ser ouvido quando o MP entende ser de usar o sumaríssimo. Discordo aqui da Dr.ª Sónia Fidalgo (cf. bibliografia), pois o arguido tem tudo a ganhar com a iniciativa e depois com o incumprimento da pena não privativa de liberdade que fosse pena de multa, pena suspensa ou pena de trabalho a favor da comunidade. De facto, não é liquido que a consequência seja o cometimento do crime p.p. pelo artº 353º do C.Penal. Não vejo que a pena de multa não cumprida, a pena de suspensão ou a pena de trabalho a favor da comunidade possam ser consideradas “imposições” de modo a ter-se aqui por aplicável o crime do artº 353º do C.Penal, que na nova versão dispõe que:

«Quem violar imposições, proibições ou interdições determinadas por sentença criminal, a título de pena aplicada em processo sumaríssimo, de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.».

A referência no mesmo artigo a “penas acessórias não cumpridas ou a medidas de segurança não privativas de liberdade” não é uma referência que, literalmente, se ligue a penas aplicadas “em processo sumaríssimo”.

A redacção do artº 353º do C.Penal viabiliza pois o entendimento de que o incumprimento da pena em sumaríssimo não tem por consequência clara o cometimento do crime p.p. pelo artº 353º do C.Penal, entendimento a que se alia naturalmente o princípio da subsidiariedade do direito penal.

Por último, a ser o cometimento deste crime a única consequência do não cumprimento da sanção proposta em sumaríssimo, isso permitiria que o arguido avaliasse a conveniência em requer - mas para não cumprir - a aplicação em sumaríssimo de uma sanção por crime a que cabia pena até 5 anos, “trocando”, por via do incumprimento, a pena mais grave do crime cometido pela pena menos grave do crime p.p. pelo artº 353º do C.Penal.». [[11]]

Concluindo, não pode manter-se a rejeição do requerimento do Mº Pº para julgamento do arguido em processo sumaríssimo, nos termos e pelos fundamentos em que o foi.

            III.       DECISÃO

6.         Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção da Relação de Coimbra em julgar provido o recurso, revogando-se a decisão recorrida, devendo a M.mª Juíza apreciar e tomar posição sobre o requerimento do Mº Pº, sem que proceda à sua rejeição pelos motivos e fundamentos com que o fez.

Sem custas, atento o provimento do recurso.

Coimbra, 10 de Julho de 2014                                                        

 (Isabel Silva - relatora)

 (Alcina da Costa Ribeiro - adjunta)


      [[1]] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 12.09.2007 (processo 07P2583), disponível em http://www.dgsi.pt/, sítio a ter em conta nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem: «III - Como decorre do art. 412.º do CPP, é à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, ou seja, o cerne e o limite de todas de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso estão contidos nas conclusões, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso.
                IV - As possibilidades de cognição oficiosa por parte deste Tribunal verificam-se por duas vias: uma primeira, que ocorre por necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida previstos no art. 410.º, n.º 2 do CPP, e uma outra, que poderá verificar-se em virtude de nulidade da decisão, nos termos do art. 379.º, n.º 2, do mesmo diploma legal.».
      [[2]] Porque extravasa o âmbito da matéria deste recurso, não interessa aqui analisar o caso específico dos crimes puníveis, em alternativa, com pena privativa e não privativa da liberdade, em que há que atender ao critério do art. 70º do CP.
      [[3]] Figueiredo Dias, “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 3ª reimpressão, pág. 331, § 497.
      [[4]] Figueiredo Dias, obra citada, pág. 330, § 495.
      [[5]] Cf. Figueiredo Dias, obra citada, pág. 337 e seguintes; Maria João Antunes, “Consequências Jurídicas do Crime”, Lições Direito Penal III da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2007/2008, pág. 9 e 16 e seguintes; acórdão do STJ, de 13.02.2014 (processo 1069/01.6PCOER-B.S1).
      [[6]] Helena Leitão, “Processos Especiais: Os Processos Sumário e Abreviado no Código De Processo Penal (após a revisão operada pela Lei 48/2007 de 29 De Agosto)”, intervenção apresentada nas Jornadas sobre a Revisão do Código de Processo Penal, organizadas pelo Centro de Estudos Judiciários nos dias 8 e 9 de Novembro de 2007, em Coimbra e 15 e 16 de Novembro de 2007 em Lisboa.

[[7]] Não cuidaremos aqui da “medida de segurança”, que se manteve inalterável ao longo das alterações a que o preceito foi sujeito.
      [[8]] In “Processos Especiais”, Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Centro de Estudos Judiciários, edição Almedina, 1989, pág. 375.
      [[9]] Não há que curar aqui, por irrelevante neste âmbito, do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas de Liberdade.
      [[10]] Neste sentido, acórdão desta Relação de Coimbra, de 03.10.2012 (processo 492/08.0GBAND-A.C1): «Em processo sumaríssimo caso a pena aplicada não seja cumprida a sua execução segue as regras gerais.».

      [[11]] “A Gestão do Inquérito. Instrumentos de Consenso e Celeridade”, em workshop realizado em Évora, em 03.07.2008, com texto disponível em http://www.pgdlisboa.pt/textos/tex_mostra_doc.php?nid=42&doc=files/tex_0042.html