Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1159/14.5TBCLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
FALTA
RECONHECIMENTO DE ASSINATURAS
NULIDADE DO CONTRATO
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 05/03/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - CALDAS DA RAINHA - INST. LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 334º E 410º, Nº 3, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – A falta de reconhecimento presencial das assinaturas num contrato-promessa onde essa formalidade era imposta pelo art. 410º, nº 3, do Código Civil determina a nulidade do contrato e tal nulidade, não obstante ser atípica – porque nem sempre pode ser invocada pelo promitente que promete transmitir ou constituir o direito e porque não pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal –, pode ser sempre invocada, a todo o tempo, pelo promitente que promete adquirir o direito, salvo se a sua invocação, dadas as circunstâncias em que é exercida, corresponder a abuso de direito.

II – O abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium –que, conforme entendimento doutrinal e jurisprudencial, poderá assumir relevância como forma de paralisar os efeitos da nulidade do negócio – pressupõe um determinado comportamento anterior que é incompatível ou contraditório com essa invocação; não basta, para o efeito, um acto isolado praticado pouco tempo após a celebração do negócio, antes se exigindo um comportamento consistente e reiterado que seja bastante para criar no outro contraente uma confiança séria e legítima de que a nulidade não irá ser invocada, de tal modo que o exercício desta pretensão – que vem defraudar a expectativa e confiança adquirida com base naquele comportamento anterior – corresponda a uma clamorosa e intolerável ofensa ao princípio da boa fé e ao sentimento de justiça geralmente partilhado pela comunidade.

III – Não obstante ter assinado o contrato (sem o reconhecimento presencial das assinaturas) e não obstante ter chegado a efectuar (um mês depois) uma proposta de ir habitar a casa mediante um reforço do sinal, não actua com abuso de direito o promitente-comprador que, dois meses após a celebração do contrato, vai pedir ao outro contraente a devolução do sinal, invocando a omissão daquela formalidade e que, além do mais, não procede à marcação da escritura (o que deveria suceder uns meses depois) e não comparece à escritura marcada pelo outro contraente, vindo a intentar, um ano depois, uma acção onde pretende obter judicialmente a declaração de nulidade e a restituição do sinal; o comportamento do promitente-comprador onde poderia radicar a confiança ou expectativa criada na outra parte foi invertido quando haviam decorrido apenas dois meses sobre a celebração do contrato – sendo que, após esse momento, o comportamento adoptado, além de compatível, fazia mesmo prever o exercício do direito de invocar a nulidade – e esse comportamento inicial não assume o carácter reiterado e consistente que seria necessário para fundar uma confiança séria e legítima que seja atendível para efeitos de paralisar o exercício do direito de invocar a nulidade do negócio.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A... , residente na Rua (...) , Caldas da Rainha, instaurou a presente acção contra B..., residente na Rua (...) , Alhandra, alegando, em suma, que: no dia 26/11/2012, celebrou com a Ré um contrato-promessa de compra e venda, por via do qual prometeu comprar e a Ré prometeu vender o imóvel que identifica pelo preço de 45.000,00€, entregando, a título de sinal, a quantia de 10.000,00€ e sem que tenha sido efectuado o reconhecimento presencial das assinaturas dos promitentes; após a celebração do contrato, veio a constatar que a água da chuva entrava na habitação, caindo sobre uma caixa de electricidade, com perigo de electrocução e havia um cheiro horripilante a humidade e a veneno de ratos, sendo que estes passeavam livremente pela casa; tomou ainda conhecimento que não havia pilares de sustentação da casa e que o logradouro, que ela pensava ser da moradia que pretendia comprar, pertencia a um prédio vizinho, já que a Ré havia efectuado obras clandestinas na casa, sem projecto ou licença camarária, aumentando a área coberta e suprimindo o logradouro constante na descrição da matriz e na Conservatória do Registo Predial, indicando um outro como sua propriedade, anexo ao mesmo prédio, que não lhe pertencia; o logradouro, com a dimensão constante na matriz, era um dos motivos essenciais para a aquisição daquela moradia, já que pretendia transferir a sua residência de um andar na cidade de Caldas da Rainha para uma aldeia onde pudesse ter o seu pequeno jardim e usufruir dos raios solares; as declarações verbais da Ré e dos responsáveis da sociedade imobiliária D... , relativamente à delimitação do prédio e as dimensões das áreas coberta e descoberta na caderneta predial urbana e na certidão da Conservatória do Registo Predial de Caldas da Rainha – que contribuíram decisivamente para que quisesse negociar e assinar o contrato – não têm qualquer correspondência com a realidade.

Conclui dizendo que o contrato é nulo por falta de reconhecimento presencial das assinaturas dos promitentes comprador e vendedor, nos termos do nº 3 do artigo 410º, conjugado com o artigo 220º, ambos do Código Civil e que, além do mais, sempre seria anulável, nos termos do art. 251º do Código Civil, por haver erro que atingiu os motivos determinantes da vontade da Autora.

Com estes fundamentos, pede:

• Que seja declarada a nulidade do contrato-promessa celebrado entre a Autora e a Ré, por as assinaturas dos promitentes não terem sido reconhecidas presencialmente, violando-se assim o nº 3 do artigo 410º do C.C. e a consequente inobservância da forma legal prevista no artigo 220º do C.C.

• Que, caso assim não se entenda, o contrato seja anulado por haver erro que atingiu os motivos determinantes da declaração da Autora supra expostos, nos termos do artigo 251º do C.C.

• Que a Ré seja condenada a devolver à Autora o sinal de €10.000,00 (dez mil euros), nos termos do nº 1 do artigo 289º do C.C., acrescidos dos respectivos juros vencidos que se cifram em € 500,00 (quinhentos euros) e dos vincendos até ao pagamento do sinal.

A Ré contestou, alegando, em suma, que nunca induziu a Autora em erro acerca do estado do imóvel ou da sua área, sendo que, antes da celebração do contrato, a Autora deslocou-se ao imóvel três vezes e conhecia o estado em que o mesmo se encontrava, tal como conhecia as suas áreas exactas, não tendo existido qualquer vício da sua vontade. Mais alega que o reconhecimento das assinaturas foi dispensado, de comum acordo, pelas partes, pelo que a invocação da nulidade com esse fundamento constitui abuso de direito. Alega ainda que, em virtude de a Autora já se encontrar em mora por não ter procedido à marcação da escritura, interpelou-a para esse efeito, comunicando-lhe a data e local de realização da escritura e advertindo-a de que, caso não comparecesse, isso implicaria o incumprimento definitivo do contrato com a consequente perda do sinal, sendo certo, porém, que a Autora não compareceu.

Conclui pela improcedência da acção.

Foi proferido despacho saneador, foi fixado o objecto do litígio e foram delimitados os temas de prova.

Foi realizada a audiência de discussão e julgamento e, na sequência, foi proferida sentença que, julgando a acção improcedente, absolveu a Ré do pedido.

Inconformada, a Autora veio interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

 I. É fundamento específico de recorribilidade:

A nulidade do contrato-promessa de compra e venda de prédio urbano para habitação invocada pela Autora na presente acção, por omissão da formalidade legal de falta de reconhecimento presencial da promitente-compradora, é atípica e arguível a todo o tempo. Apesar de ter sido interpelada pela Ré para comparecer em Cartório Notarial para celebrar o contrato definitivo, não tendo estado presente, mas informando esta que considerava o mesmo contrato-promessa nulo por violação do nº 3 do artigo 410º, pedindo a restituição do sinal entregue no montante de € 10.000,00 (dez mil euros) e respectivos juros à taxa legal, embora nada tendo feito nos dez meses posteriores, não violou o princípio de boa fé, não constituindo a sua conduta in casu o venire contra factum próprio, limitando-se a exercer um direito que desconhecia antes, por ter confiado nos representantes da imobiliária intermediária no negócio, e não por haver acordo entre os promitentes de dispensa de reconhecimento presencial das assinaturas, facto aliás não provado na audiência de julgamento.

II. Pelo que, deverá ser proferido acórdão que revogue a aliás douta sentença recorrida, considerando o respectivo contrato-promessa nulo, por falta de reconhecimento presencial da assinatura da promitente-compradora, violando-se o nº 3 do artigo 410º do Código Civil, e condene a Ré B... a restituir o sinal de € 10.000,00 (dez mil euros) e respectivos juros à taxa legal, até ao integral pagamento, à Autora A... .

A Ré apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

1. A Recorrente foi interpelada para cumprir o contrato promessa.

2. A Recorrente faltou à escritura que lhe foi comunicada em 03.07.2013.

3. A resolução ocorre por mera declaração à contraparte (art.436., n.º1 do Código Civil).

4. A Recorrente faltou à escritura, ocorrendo o seu incumprimento definitivo.

5. A resolução é equiparada à nulidade ou anulabilidade (art. 433º do CC).

6. Enquanto modo de extinção do contrato, que opera através de declaração receptícia, a resolução ocorre no momento em que a declaração se torna eficaz nos termos do artigo 224.º do CC.

7. Em março de 2014 a A. pediu apoio judiciário para intentar a presente ação.

8. Em Março de 2014 o contrato já estava resolvido, já não podendo produzir quaisquer efeitos entre as partes.

9. Resolvido o contrato não pode em data posterior ser solicitado que seja reconhecida a nulidade de um contrato que já não produz efeitos, por já ter sido anulado (art. 433º do CC).

10. Porquanto, salvo o devido respeito, a presente ação sempre estaria condenada ao insucesso porque quando deu entrada em juízo o contrato já não existia e não foi pedida a imputação das razões justificativas da resolução do contrato.

11. Contrariamente ao alegado pela Recorrente o Tribunal não julgou que o exercício de um suposto direito pelas vias judicias, por si só, constitua uma abuso de direito.

12. Nesta parte a Recorrente omite de forma premeditada um conjunto de factos que foram dados como provados e cuja apreciação não é posta aqui em causa. (arts. 8º, 17º, 18º, 19º, 20º, 25º, 26º e 28º)

13. O abuso de direito (art. 334º do CC) pode ser invocado caso o promitente adquirente cria legítimas expectativas de que irá celebrar o contrato definitivo e mais tarde alega a nulidade do contrato por inobservância do reconhecimento de assinaturas.

14. O abuso de direito verifica-se quando, admitido um certo direito como válido em tese geral, todavia no caso concreto aparece exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça.

15. Pode ocorrer abuso do direito, na modalidade do "venire contra factum proprium", quando existem condutas contraditórias do seu titular a frustrar a confiança criada pela contraparte em relação à situação futura, pois o "venire contra factum proprium" configura uma violação qualificada do princípio da confiança, sendo certo que as relações entre as pessoas pressupõem um mínimo de confiança sem a qual não seriam possíveis.

16. Citando o Prof. Menezes Cordeiro “ (…) admitimos hoje que as próprias normas formais cedem perante o sistema, de tal modo que as nulidades derivadas da sua inobservância se torne verdadeiramente inalegáveis.” In Tratado de Direito Civil, Parte Geral V, 2º Ed., Almedina, pág. 342

17. A situação da confiança investida pela Recorrente justifica que a alegação do vício de forma, por si, constitua um abuso de direito

18. O pedido de reforço de sinal que a A. fez é indicador de que a invocação da nulidade constitui um abuso de direito (art. 334º do CC).

19. O valor do sinal (cerca de 20% do total), o pedido de reforço de sinal, a intenção de passar o Natal no imóvel, o pedido das chaves do imóvel, as negociações que a A. teve com os proprietários dos terrenos contíguos promovida pela Ré e o facto de na correspondência trocada com a Ré a A. ter invocado outros motivos para a não concretização do contrato e ter invocado por último a questão do vicio de forma revelam que a Recorrente criou uma situação de confiança, justificou essa confiança, investiu na confiança e pretende agora que a confiança criada por si não tenha tutela jurídica.

20. O caso em apreço é paradigmático do abuso de direito da Recorrente, que foi reconhecido em 1º instância e deve agora ser mantido.

Nestes termos e nos demais de direito, deve a sentença Recorrida ser mantida na totalidade.


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II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

• Saber se o contrato-promessa celebrado entre as partes está ferido de nulidade por ter sido omitido o reconhecimento presencial das assinaturas que é imposto por lei;

• Saber se a invocação dessa nulidade por parte da Autora corresponde a abuso de direito.


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III.

Na 1ª instância, considerou-se provada a seguinte matéria de facto:

1. No dia 26/11/2012, em Caldas da Rainha, a Autora, como promitente compradora celebrou um contrato-promessa de compra e venda com a Ré, como promitente vendedora.

2. O objecto do contrato-promessa é um prédio urbano para habitação, sito na Rua (...) , concelho de Caldas da Rainha, descrito na Conservatória do Registo Predial de Caldas da Rainha sob o nº 3657/20051028 e inscrito na matriz sob o nº 2100.

3. O preço acordado foi de € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros).

4. A título de sinal e princípio de pagamento a Ré recebeu da Autora a quantia de 10.000,00 € (dez mil euros).

5. Não foi efectuado o reconhecimento presencial das assinaturas das promitentes, Ré e Autora.

6. Na Conservatória do Registo Predial de Caldas da Rainha e na Caderneta Predial da Autoridade Tributária e Aduaneira consta uma área total de 230 m2, uma área coberta de 154 m2 e uma área descoberta de 76 m2.

7. Foi entregue à Autora, antes da celebração do contrato-promessa a fotografia aérea que se encontra nos autos a fls. 26-a em que o rectângulo vermelho nela constante correspondia ao prédio urbano atrás descrito.

8. A Autora visitou o imóvel com o Sr. C... .

9. A Autora pretendia habitar permanentemente o imóvel objecto do contrato-promessa.

10. A Autora é portadora de deficiência que lhe confere uma incapacidade permanente global de 76%.

11. O logradouro, com a dimensão constante na matriz, era um dos motivos essenciais para a aquisição daquela moradia.

12. O contrato-promessa foi elaborado pela sociedade “ D... , Lda.”

13. A Autora remeteu à Ré a carta data de 30 de Janeiro de 2013 cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 28 e 29 dando-se o seu teor por integralmente reproduzido.

14. A Ré respondeu à Autora remetendo a carta datada de 8 de Fevereiro de 2013 cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 34 e 35 dando-se o seu teor por integralmente reproduzido.

15. A Ré recebeu o imóvel, objecto da presente acção, por herança testamentária em 2009.

A Ré nunca habitou no imóvel.

16. A Ré nunca fez obras, nem acrescentou nada no imóvel.

17. Antes de ser celebrado o contrato-promessa de compra e venda a Autora deslocou-se, pelo menos, por três vezes ao imóvel, uma delas acompanhada pela filha.

18. Em data não apurada, mas antes de ser celebrado o contrato-promessa de compra e venda a Autora esteve no imóvel com o Senhor M... e na presença deste falou com o Sr. N... com vista à compra de uma propriedade dele contígua ao imóvel da Ré.

19. Em data não apurada, mas que se situa em meados do mês de Dezembro de 2012, a Autora propôs fazer um reforço do sinal de 10.000,00€ para poder passar o Natal no imóvel.

20. A Autora pediu as chaves do imóvel para poder passar o Natal tendo a proposta sido apresentada através da imobiliária D... à Ré que a recusou.

21. Em 28.11.2012 foi elaborado um relatório de peritagem referente à avaliação do desempenho energético e identificação de medidas correctivas e de melhoria em edifícios existentes para habitação, cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 56 a 73 e cujo teor se dá por integramente reproduzido.

22. O perito qualificado identificado no documento cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 74, e cujo teor se dá por integralmente reproduzido, declarou ter efectuado uma visita ao imóvel objecto do contrato-promessa no dia 26.11.2012.

23. Em data anterior à celebração do contrato-promessa de compra e venda foi fornecido à Autora pelo agente imobiliário a caderneta predial e a certidão do registo predial do imóvel.

24. Datada de 10 de Maio de 2013 a Ré remeteu à Autora a carta, e que esta recebeu em 14.05.2013.

25. A Ré enviou à Autora a carta datada de 24 de Junho de 2013, cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 94 a 96 comunicando que a escritura definitiva do contrato-promessa estava marcada para o dia 10.07.2013, pelas 11:00H no cartório notarial de Caldas da Rainha (Dra. O... ) – Rua (...) Caldas da Rainha.

26. A Autora recebeu a carta referida no artigo 24º no dia 03.07.2013.

27. A Câmara Municipal de Caldas da Rainha emitiu o documento denominado “CERTIDÃO R.G.E.U” cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 91 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido

28. A Autora não compareceu no dia, hora e local indicados pela Ré para celebrar a escritura definitiva do contrato-promessa.

29. A Ré compareceu no dia, hora e local indicado para celebrar a escritura definitiva do contrato-promessa.


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E consideraram-se não provados os seguintes factos:

1. A Ré visitou a casa posteriormente à assinatura do contrato-promessa, acompanhada do Senhor C... num dia de chuva torrencial tenho verificado que a água da chuva entrava na habitação.

2. Estando um balde a aparar a água da chuva que caía sobre uma caixa de electricidade, com perigo electrocução.

3. Havia um cheiro horripilante a humidade e a veneno de ratos.

4. Os mesmos passeavam livremente pela casa.

5. Na visita que a Autora fez à imóvel acompanhada pela filha o Senhor N... advertiu-a que o logradouro, que ela pensava ser da moradia que pretendia comprar, identificado no rectângulo vermelho do mapa Google Earth, era sua propriedade.

6. A Ré efectuou obras clandestinas na casa, sem projecto ou licença camarária, aumentando a área coberta e suprimindo o logradouro constante na descrição da matriz e na Conservatória do Registo Predial, indicando um outro como sua propriedade, anexo ao mesmo prédio, que não lhe pertencia.

7. A Autora constatou a falta de pilares de sustentação na casa.

8. As declarações verbais da Ré e dos responsáveis da sociedade Imobiliária D... sobre a delimitação do prédio urbano prometido no mapa Google Earth e as dimensões das áreas coberta e descoberta na caderneta predial urbana e na certidão da Conservatória do Registo Predial de Caldas da Rainha não têm qualquer correspondência com a realidade.

9. A Autora teve reuniões, antes de ter celebrado o contrato-promessa de compra e venda, no interior do imóvel com o Sr. C... .

10. Nessas reuniões a Autora solicitou ao Sr. C... a opinião acerca de possíveis obras e melhoramentos.

11. À data da celebração do contrato-promessa de compra e venda o real estado do imóvel é o que consta nas fotos juntas aos autos a fls. 75 a 79.

12. A Autora solicitou uma planta da casa, tendo-se deslocado ao imóvel e feito as respectivas medições.

13. O acto de reconhecimento foi dispensado pelas partes signatárias por comum acordo.


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IV.

A questão suscitada no presente recurso prende-se apenas com a eventual nulidade do contrato-promessa celebrado entre as partes, por omissão do reconhecimento presencial das assinaturas que é imposto pelo art. 410º, nº 3, do CC, e com o eventual abuso de direito na invocação dessa nulidade.

Analisemos, então, essas questões.

Dispõe a norma supra citada que, “No caso de promessa respeitante à celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício, ou fracção autónoma dele, já construído, em construção ou a construir, o documento referido no número anterior deve conter o reconhecimento presencial das assinaturas do promitente ou promitentes e a certificação, pela entidade que realiza aquele reconhecimento, da existência da respectiva licença de utilização ou de construção; contudo, o contraente que promete transmitir ou constituir o direito só pode invocar a omissão destes requisitos quando a mesma tenha sido culposamente causada pela outra parte”.

Sendo indiscutível que o contrato em causa nos autos corresponde a uma promessa respeitante à celebração de contrato oneroso de transmissão de direito real sobre edifício, é igualmente indiscutível que o documento que incorpora esse contrato não contém o reconhecimento presencial das assinaturas dos promitentes, omitindo, portanto, a formalidade legal imposta pelo citado art. 410º, nº 3.

Temos também como certo que a omissão dessa formalidade implica a nulidade do contrato, ainda que tal nulidade seja atípica, na medida em que, ao contrário do que acontece no regime típico da nulidade (art. 286º do CC), ela não é invocável a todo a tempo por qualquer interessado e não pode ser declarada oficiosamente pelo Tribunal. Com efeito e como expressamente dispõe a norma citada, a omissão daquela formalidade não poderá ser invocada pelo promitente que promete transmitir ou constituir o direito a não ser que tal omissão tenha sido causada culposamente pela outra parte. E, se a nulidade não pode ser invocada pelo promitente que promete transmitir ou constituir o direito (a não ser na situação a que se aludiu), também não fará sentido que a mesma possa ser invocada por terceiros e declarada oficiosamente pelo tribunal. Assim se considerou, aliás, nos Assentos nº 15/94 e 3/95[1] (hoje com valor de jurisprudência uniformizada e que mantêm actualidade), estabelecendo o primeiro que, no domínio do n.º 3 do artigo 410.º do Código Civil (redacção do Decreto-Lei n.º 236/80, de 18 de Julho), a omissão das formalidades previstas nesse número não pode ser invocada por terceiros e estabelecendo o segundo que, no domínio da mesma legislação, a omissão dessas formalidades não pode ser oficiosamente conhecida pelo tribunal.

Mas, não obstante as especificidades do regime a que está submetida a invocação da omissão daquela formalidade, parece não haver dúvidas de que estará em causa uma nulidade (ainda que atípica) que poderá ser sempre invocada, a todo o tempo, pelo promitente que promete adquirir o direito e que, em determinadas circunstâncias, também poderá ser invocada pelo outro contraente. Assim se considerou, entre outros, nos Acórdãos do STJ de 29/11/2011, 08/06/2010 e 22/10/2009 (proferidos, respectivamente, nos processos 2632/08.0TVLSB.L1, 3161/04.6TMSNT.L1.S1 e 445/09.0YFLSB)[2].

 Nesse sentido também se pronunciaram Pires de Lima e Antunes Varela[3] e António Menezes Cordeiro[4], dizendo este último que “a nulidade é a regra geral para os vícios de forma e, até onde não seja afastada, é de aplicar”, acrescentando que, na invalidade aqui em causa, o afastamento do regime geral da nulidade “…dá-se, apenas, no tocante à legitimidade para alegar a dita nulidade: o promitente-vendedor não o pode fazer, salvo se o promitente-comprador, lhe tiver dado directamente origem” e concluindo que “…o final do artigo 410.º, n.º 3, comina um dever, ao promitente-vendedor, de promover a realização das formalidades por ele introduzidas. Se o não fizer, há nulidade do contrato, que não pode invocar. Se o promitente-comprador obstruir a verificação das formalidades, então a sanção é a de uma comum nulidade, invocável por qualquer interessado”.

Também João Calvão da Silva[5] qualifica a situação como nulidade atípica que, como tal, poderá ser invocada, a todo o tempo, pelo promitente-comprador (já que, como se referiu, o promitente-vendedor nem sempre a poderá invocar), sem prejuízo da sua preclusão por eventual abuso de direito.

Concluímos, portanto, em face do exposto, que o contrato-promessa em causa nos autos é nulo por omissão das formalidades impostas pelo citado art. 410º, nº 3, e, como tal, a Autora (promitente-compradora) podia invocar – como invocou – essa nulidade a todo o tempo.

E, ao que nos parece, a sentença recorrida nem sequer terá negado a existência dessa nulidade, atendendo, designadamente, aos Acórdãos que citou e transcreveu parcialmente e onde se decidiu nesse sentido.

Considerou, no entanto, a sentença recorrida que a invocação dessa nulidade correspondia a um abuso de direito, argumentando nos seguintes termos:

A invocação da nulidade do contrato por pretensa omissão de formalidades legais foi feita num primeiro momento pela Autora mas, perante a recusa da Ré em aceitar tal pretensão aquela nada fez. A Ré marcou a escritura definitiva tendo notificado a Autora estar presente no acto, com a advertência para as consequências daí advenientes, maxime para a perda do sinal devido ao incumprimento definitivo, tendo esta faltado. Só 10 meses depois de consumado o seu incumprimento e operada «qua tale» a respectiva causa da resolução do contrato a Autora foi junto do ISS apresentar o pedido de apoio judiciário para propor esta acção. O contrato-promessa alegadamente inválido, já não vigorava, de facto e de direito, entre os contraentes por iniciativa da própria Ré, a promitente vendedora. A actuação da Autora viola o princípio da boa fé sendo o venire contra factum proprio uma conduta censurada pela ordem jurídica”.

Não concordamos, no entanto, com a posição perfilhada na sentença recorrida.

E, na exposição da argumentação teórica relativamente a esta questão, iremos seguir – transcrevendo em parte – o Acórdão da Relação do Porto de 24/03/2011 (relatado pela aqui Relatora)[6] e tendo presente o disposto no art. 334º do CC onde se estabelece que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

É indiscutível que a nossa jurisprudência tem vindo a admitir, em determinadas circunstâncias e por aplicação do instituto do abuso de direito, a paralisação dos efeitos da nulidade do negócio por vício formal, desde que as circunstâncias apontem para uma clamorosa ofensa ao princípio da boa fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade, situação em que o abuso do direito servirá de válvula de escape no nosso ordenamento jurídico, tornando válido o acto formalmente nulo, como sanção do acto abusivo, nomeadamente em situação de claro venire contra factum proprium, manifestamente lesivo da boa fé[7].

Mas a aplicação do abuso de direito relativamente à invocação da nulidade de um acto ou contrato terá sempre natureza excepcional e apenas se justificará em situações onde a invocação e declaração da nulidade constitua uma clamorosa ofensa do princípio da boa fé e do sentimento geralmente partilhado pela comunidade, “não podendo obviamente generalizar-se e banalizar-se o recurso à figura do abuso de direito como forma de – sindicando os motivos pessoais e subjectivos que estão na base da invocação da nulidade pelo interessado cujo interesse é por ela prosseguido - acabar por se precludir a aplicação sistemática do regime legal imperativo que comina determinada invalidade por motivos de deficiências de forma do acto jurídico[8].

A manifestação mais clara do abuso do direito e aquela que – conforme entendimento doutrinal e jurisprudencial – poderá assumir relevância como forma de paralisar os efeitos da nulidade do negócio reconduz-se ao venire contra factum proprium que corresponde ao exercício de uma pretensão ou posição jurídica que, sendo incompatível ou contraditória com o comportamento anterior de quem exerce tal pretensão, defrauda a confiança ou expectativa que a outra parte legitimamente adquiriu com base no comportamento anterior do titular do direito.

Como refere Baptista Machado[9], o venire contra factum proprium pressupõe, em primeiro lugar, uma situação objectiva de confiança, sendo que “a confiança digna de tutela tem de radicar em algo de objectivo: numa conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura (…) O ponto de partida é, pois, uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de ele também no futuro se comportará, coerentemente, de determinada maneira

E, de acordo com o mesmo autor[10], os casos excepcionais em que se justificaria submeter a invocação da nulidade à proibição do venire contra factum proprium haveriam de caracterizar-se pelos seguintes traços:

a) ter uma das partes confiado em que adquiriu pelo negócio uma posição jurídica;

b) ter essa parte, com base em tal crença, orientado a sua vida por forma a tomar disposições que agora são irreversíveis, pelo que a declaração de nulidade provocaria danos vultuosos de vária ordem que agora se revelam irremovíveis através doutros meios jurídicos, designadamente através do recurso ao art. 227º do Código Civil;

c) poder a situação criada ser imputada à contraparte, por esta ter culposamente contribuído para a inobservância da forma exigida, ou então ter o contrato sido executado e ter-se a situação prolongado por largo período de tempo, sem que hajam surgido quaisquer dificuldades”.

Em sentido semelhante, pronuncia-se Almeida Costa[11], quando refere que, para se concluir que uma conduta é abusiva, com fundamento no venire contra factum proprium, não basta concluir pela presença de uma situação objectiva de confiança, havendo ainda que averiguar a presença de outros dois aspectos: o investimento da confiança (correspondente às disposições ou mudanças na vida do destinatário que, não só evidenciam a expectativa nele criada, como revelam os danos irreversíveis que resultarão da falta de tutela eficaz) e a boa fé do sujeito que confiou (entendendo-se que a confiança apenas se mostra digna de protecção jurídica se o destinatário se encontrar de boa fé em sentido subjectivo, ou seja, se houver agido na suposição de que o autor do factum proprium estava vinculado a adoptar a conduta prevista e se, ao formar tal convicção, tiver tomado todos os cuidados e precauções usuais no tráfico jurídico).

Ora, transpondo essas considerações para o caso sub judice, parece-nos ser de concluir que não existem elementos suficientes para concluir pela verificação de uma clamorosa ofensa ao princípio da boa fé que justifique a manutenção e produção de efeitos do contrato promessa aqui em causa que, como referimos, está ferido de nulidade por inobservância de formalidades legais (o reconhecimento presencial das assinaturas).

Sabemos apenas, com eventual relevância para esta questão, que o contrato-promessa foi assinado em 26/11/2012 sem que tenha sido efectuado o reconhecimento presencial da assinatura; sabemos que, em meados do mês de Dezembro de 2012, a Autora propôs fazer um reforço do sinal de 10.000,00€ para poder passar o Natal no imóvel, proposta que a Ré recusou; sabemos que, em 30/01/2013 (apenas dois meses depois da assinatura do contrato e quando ainda não havia decorrido o prazo estipulado para a marcação da escritura), a Autora remeteu uma carta à Ré, onde, além de outras circunstâncias, invocava a omissão daquela formalidade, mais declarando pretender a resolução do contrato e a devolução do sinal; sabemos que a Ré, não aceitando a posição da Autora, procedeu à marcação da escritura logo que decorreu o prazo estabelecido no contrato para que a Autora procedesse a tal marcação e sabemos que a Autora não compareceu a essa escritura.

 O único comportamento da Autora que, após a celebração do contrato, poderia evidenciar a sua intenção de celebrar o contrato definitivo e de criar essa expectativa na Ré corresponderia à proposta que efectuou no sentido de ir habitar o imóvel mediante o reforço do sinal. Mas, salvo o devido respeito, não nos parece que esse comportamento – ocorrido um mês depois do contrato – seja muito relevante para criar na Ré uma situação objectiva de confiança que viesse a impedir, por abuso de direito, a invocação da nulidade. Importa notar que a assinatura do contrato revela, em si mesma, a intenção de o cumprir, criando na outra parte a expectativa de que tal irá acontecer. Mas, como é evidente e sob pena de inviabilizar totalmente a possibilidade que o legislador entendeu atribuir ao promitente-comprador de poder invocar a nulidade do contrato por falta de reconhecimento das assinaturas, esse comportamento e a confiança que a contraparte nele deposita são insuficientes para concluir por uma situação de abuso de direito. Com efeito, tal como se refere no Acórdão do STJ de 08/06/2010 (supra citado), “A confiança justificadamente depositada na estabilidade do negócio pelo sujeito que invoca o abuso de direito na sua anulação pela parte contrária não pode fundar-se, apenas e singelamente, na celebração do acto formalmente inválido, sendo naturalmente indispensável a invocação e demonstração de um adicional comportamento da parte que, de forma séria e consistente, haja criado a convicção de que tal vício não iria ser actuado”. E, se assim é, também não poderemos atribuir grande relevância ao comportamento isolado que, no mesmo sentido, é adoptado apenas um mês depois da celebração do contrato.

Importa notar, além do mais, que, apenas dois meses depois da celebração do contrato, a Autora invocou, perante a Ré, a omissão daquela formalidade e a sua pretensão de destruir os efeitos do negócio e obter a restituição do sinal. Ou seja, a confiança que a Ré criou com a assinatura do contrato e com a proposta de reforço do sinal e ocupação da casa durou apenas dois meses, já que, a partir desse momento, não tinha, evidentemente, qualquer razão para acreditar ou confiar que a Autora não iria invocar a nulidade e que iria cumprir o contrato. A Ré tinha, aliás, todas as razões para acreditar que a Autora iria invocar essa nulidade; em primeiro lugar, porque a Autora já havia invocado a omissão daquela formalidade e já havia pedido a restituição do sinal e, em segundo lugar, porque, cabendo à Autora a obrigação de marcar a escritura, esta não procedeu a tal marcação, reforçando a posição que já havia manifestado anteriormente.

É certo, portanto, que, a partir de 30/01/2013 e até à propositura da presente acção (onde veio pedir a declaração de nulidade do negócio), a Autora não adoptou qualquer comportamento contraditório com o exercício daquela pretensão e com base no qual a Ré pudesse ter criado a expectativa legítima de que a nulidade não viria a ser invocada. O comportamento adoptado pela Autora durante esse período foi, aliás, elucidativo no sentido de que a mesma não pretendia levar o negócio adiante, já que, além da carta enviada em 30/01/2013 (onde invocava a falta daquela formalidade e pedia a restituição do sinal), a Autora também não procedeu à marcação da escritura – o que, conforme convencionado, deveria ter feito até final de Maio de 2013 – e também não compareceu à escritura que a Ré marcou para o dia 10/07/2013. Não existiu, portanto, durante todo esse período e até à propositura da acção, um qualquer comportamento da Autora com base no qual a Ré pudesse ter criado uma confiança e expectativa legítimas de que o contrato iria ser cumprido e a nulidade não iria ser invocada.

O único comportamento da Autora que poderia ter idoneidade para fundar essa confiança correspondeu à proposta que efectuou no sentido de ir habitar a casa mediante o reforço do sinal. Mas, salvo o devido respeito, esse comportamento é insuficiente para concluir por uma situação de abuso de direito na invocação da nulidade. Em primeiro lugar, porque ele ocorreu apenas um mês após a celebração do contrato e, em segundo lugar, porque foi um comportamento isolado que não foi reiterado, sendo certo que, passado um mês, a Autora inverteu a sua posição, pretendendo a destruição do negócio e a devolução do sinal. A Autora não adoptou, portanto, um comportamento que, por ser reiterado e consistente, tivesse idoneidade para criar na Ré a convicção séria, legítima e atendível de que aquela iria cumprir o negócio e não iria invocar a nulidade.

Além do mais, nada sabemos a propósito do investimento da confiança de que falam os autores supra citados, sendo certo que nada sabemos sobre eventuais actos (disposições ou mudanças na sua vida) que a Ré tenha praticado com base na expectativa de concretizar o negócio e com fundamento nos quais se possa afirmar que a declaração de nulidade do negócio lhe irá provocar danos irreversíveis que não possam ser reparados por qualquer outra via.

A sentença recorrida faz assentar o abuso de direito na circunstância de a Autora ter faltado à escritura que a Ré havia marcado e na circunstância de ter demorado dez meses para propor a presente acção, num momento em que o contrato já não vigorava, de facto e de direito, por iniciativa da Ré.

Não vislumbramos, no entanto, qual a relevância desses factos.

É claro que a Autora faltou à escritura e faltou, naturalmente, porque, como já havia comunicado à Ré, não queria celebrar o negócio e queria a restituição do sinal que havia pago. Esse comportamento está, aliás, em perfeita consonância com a posição que a Autora já havia adoptado em momento anterior e que, não sendo contraditório com a invocação da nulidade, não tinha qualquer idoneidade para criar na Ré a convicção de que esta nulidade não iria ser invocada e o negócio iria ser cumprido. Daí que esse comportamento não assuma qualquer relevância para fundamentar uma situação de abuso de direito. E também não releva o facto de a Autora ter demorado dez meses a propor a presente acção, uma vez que, com a propositura da acção – que se terá tornado necessária com vista a obter a restituição do sinal que, sem sucesso, já havia solicitado à Ré – a Autora apenas veio reiterar a posição que já assumira anteriormente.

 De facto, reafirma-se, a Autora invocou, perante a Ré, a omissão da formalidade em causa que era determinante da nulidade do negócio e pediu a restituição do sinal. A partir desse momento, não seria legítima e atendível qualquer expectativa que a Ré pudesse ter criado de que o contrato iria ser cumprido e, portanto, é totalmente irrelevante que a Autora não tenha comparecido à escritura que foi marcada pela Ré (escritura, aliás, que, nos termos do contrato, deveria ser marcada pela Autora); a Ré marcou a escritura porque assim o entendeu, sabendo, porém, que o contrato-promessa era nulo e sem que tivesse qualquer razão objectiva que lhe permitisse acreditar ou confiar que a Autora iria comparecer nessa escritura e não iria invocar aquela nulidade.

A matéria de facto que ficou provada não aponta, pois, para uma clamorosa e intolerável ofensa ao princípio da boa fé e ao sentimento de justiça geralmente partilhado pela comunidade que possa justificar a manutenção e cumprimento do contrato-promessa que, por efeito da omissão de uma formalidade, o legislador considerou nulo, atribuindo ao promitente-comprador o direito de invocar essa nulidade a todo o tempo, sendo certo que qualquer confiança ou expectativa legítima que a Ré pudesse ter criado com base no comportamento da Autora durou apenas dois meses e essa confiança, desacompanhada de quaisquer outros factos, não é relevante, como referimos, para paralisar o direito atribuído à Ré de invocar a nulidade do contrato com fundamento na falta de reconhecimento presencial das assinaturas no contrato-promessa.

Impõe-se, portanto, em face do exposto, revogar a sentença recorrida, declarando-se a nulidade do contrato e a devolução do sinal nos termos peticionados pela Autora, acrescido de juros, à taxa legal, desde a data peticionada pela Autora (11/02/2013), tendo em conta o disposto nos arts. 1270º, nº 1, e 1271º do CC – aplicável à declaração de nulidade por força do disposto no art. 289º, nº 3, do mesmo diploma – e sendo certo que, com a comunicação efectuada pela Autora em 30/01/2013 (por via da qual solicitou a restituição do sinal entregue), cessou a boa fé em que a Ré se encontrava relativamente à posse da quantia que está obrigada a restituir à Autora.  


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – A falta de reconhecimento presencial das assinaturas num contrato-promessa onde essa formalidade era imposta pelo art. 410º, nº 3, do Código Civil determina a nulidade do contrato e tal nulidade, não obstante ser atípica – porque nem sempre pode ser invocada pelo promitente que promete transmitir ou constituir o direito e porque não pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal –, pode ser sempre invocada, a todo o tempo, pelo promitente que promete adquirir o direito, salvo se a sua invocação, dadas as circunstâncias em que é exercida, corresponder a abuso de direito.

II – O abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium –que, conforme entendimento doutrinal e jurisprudencial, poderá assumir relevância como forma de paralisar os efeitos da nulidade do negócio – pressupõe um determinado comportamento anterior que é incompatível ou contraditório com essa invocação; não basta, para o efeito, um acto isolado praticado pouco tempo após a celebração do negócio, antes se exigindo um comportamento consistente e reiterado que seja bastante para criar no outro contraente uma confiança séria e legítima de que a nulidade não irá ser invocada, de tal modo que o exercício desta pretensão – que vem defraudar a expectativa e confiança adquirida com base naquele comportamento anterior – corresponda a uma clamorosa e intolerável ofensa ao princípio da boa fé e ao sentimento de justiça geralmente partilhado pela comunidade.

III – Não obstante ter assinado o contrato (sem o reconhecimento presencial das assinaturas) e não obstante ter chegado a efectuar (um mês depois) uma proposta de ir habitar a casa mediante um reforço do sinal, não actua com abuso de direito o promitente-comprador que, dois meses após a celebração do contrato, vai pedir ao outro contraente a devolução do sinal, invocando a omissão daquela formalidade e que, além do mais, não procede à marcação da escritura (o que deveria suceder uns meses depois) e não comparece à escritura marcada pelo outro contraente, vindo a intentar, um ano depois, uma acção onde pretende obter judicialmente a declaração de nulidade e a restituição do sinal; o comportamento do promitente-comprador onde poderia radicar a confiança ou expectativa criada na outra parte foi invertido quando haviam decorrido apenas dois meses sobre a celebração do contrato – sendo que, após esse momento, o comportamento adoptado, além de compatível, fazia mesmo prever o exercício do direito de invocar a nulidade – e esse comportamento inicial não assume o carácter reiterado e consistente que seria necessário para fundar uma confiança séria e legítima que seja atendível para efeitos de paralisar o exercício do direito de invocar a nulidade do negócio.


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V.
Pelo exposto, concede-se provimento ao presente recurso e, revogando-se a sentença recorrida, julga-se a acção procedente e decide-se:
• Declarar a nulidade do contrato-promessa supra referido, celebrado entre a Autora e a Ré no dia 26/11/2012;
• Condenar a Ré a devolver à Autora a quantia de 10.000,00€ (dez mil euros) que esta lhe entregou a título de sinal, acrescida de juros, à taxa legal, desde 11/02/2013 e até pagamento. 
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Custas a cargo da Ré/Apelada.
Notifique.

Relatora: Maria Catarina Gonçalves

Adjuntos: Nunes Ribeiro

                    Helder Almeida


[1] Publicados, respectivamente, no DR., I Série, de 12/10/1994 e no DR, I Série-A, de 22/04/1995.
[2] Todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[3] Código Civil Anotado, Vol. I, 3ª ed. Revista e Actualizada, pág. 361.
[4] O Novo Regime do Contrato-Promessa (Comentário às alterações aparentemente introduzidas pelo Decreto-Lei nº 236/80, de 18 de Julho, ao Código Civil), Lisboa, 1981, pags. 13 e 14.
[5] Sinal e Contrato Promessa, 2010, 13ª ed.Revista e Aumentada, págs.78 a 80.
[6] Proferido no proc. nº 246/2000.P1 e disponível em http://www.dgsi.pt.
[7] Cfr. Acs. STJ de 30/10/2003 e 02/07/1996, processos nº 03B3125 e 96A136, respectivamente; Acs. da Relação do Porto de 03/03/2005 e 31/05/2001 com os nsº convencionais JTRP00037772 e JTRP00032233, respectivamente, disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[8] Cfr. Ac. do STJ de 08/06/2010, processo nº 3161/04.6TMSNT.L1.S1.
[9] RLJ, Ano 118º, pág. 171.
[10] RLJ Ano 118º, pág. 11.
[11] RLJ Ano 129º, pág. 62.