Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1021/16.7T8GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO DOMINGOS PIRES ROBALO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
RELAÇÃO JURIDICO-ADMINISTRATIVA
Data do Acordão: 09/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA – GUARDA – JC CÍVEL E CRIMINAL – J3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 211º, Nº 1, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP); 40º, Nº 1 DA LEI DE ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO; 64º DO CPC VIGENTE; 1º, 4º E 13º DO ETAF.
Sumário: I – Os tribunais judiciais, constituindo os tribunais regra dentro da organização judiciária, gozam de competência não discriminada, por isso sendo chamados de competência genérica, gozando os demais, tribunais especiais, de competência limitada às matérias que lhes são especialmente cometidas. Que o mesmo é dizer que a competência dos tribunais judiciais se determina por um critério residual, ou de exclusão de partes - tudo o que não estiver atribuído aos tribunais especiais.

II - Segundo o critério de atribuição positiva, pertencem à competência do tribunal comum todas as causas cujo objecto é uma situação jurídica regulada pelo direito privado, civil ou comercial.

III - Segundo o critério da competência residual, incluem-se na competência dos tribunais comuns todas as causas que, apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são legalmente atribuídas a nenhum tribunal judicial não comum ou a nenhum tribunal especial.

IV - A jurisdição administrativa é exercida por tribunais administrativos, aos quais incumbe, na administração da justiça, dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas (arts. 1º, nº 1, do ETAF e 212º, nº 3, da CRP).

V - Essencial para se determinar a competência dos tribunais administrativos é, pois, a existência de uma relação jurídica administrativa.

VI - Sabendo-se que a concretização de tal conceito constitui tarefa difícil, podemos, no entanto, definir a relação jurídica administrativa como aquela que «por via de regra confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração».

VII - Estatui o artº 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19/2) sobre a competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.

VIII - É inquestionável que o legislador do novo ETAF cometeu à jurisdição administrativa a apreciação de responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública, independentemente da questão de saber se esta responsabilidade emerge de uma actuação de gestão pública ou de uma actuação de gestão privada.

IX - Todos os litígios emergentes de actuação da Administração Pública que constituam pessoas colectivas de direito público em responsabilidade extracontratual pertencem, portanto, à competência dos tribunais administrativos.

X - O novo regime alargou o âmbito de jurisdição administrativa a todas as questões de responsabilidade civil envolvente de pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se as mesmas são regidas por um regime de direito público ou por um regime de direito privado.

XI - Assim, compete aos tribunais da ordem administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham, nomeadamente, por objecto as questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público (artigo 4º, nº 1, alínea g), do ETAF).

XII – Mas igualmente lhe compete a apreciação da responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público (artigo 4º, nº 1, alínea i), do ETAF).

XIII - É pela petição inicial deduzida – que contem a causa de pedir e o pedido - que se deve analisar qual o tribunal materialmente competente em razão da matéria.

Decisão Texto Integral:   




                                              1. Relatório

1.1.- A autora U..., residente na França, instaurou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra o Banco E..., S.A., o Banco F..., S.A., e o Fundo de Resolução (pessoa colectiva de direito público), pedindo a condenação dos RR., solidariamente, a reconhecer que constituiu um depósito a prazo, comercialmente designado por Poupança Plus 1, na quantia de € 45.000,00, devendo, em consequência, ressarci-la desta quantia acrescida de juros contratuais, juros de mora vencidos desde 22/02/2016, e vincendos até efectivo e integral pagamento; caso assim não se entenda, ser declarados nulos todos os actos praticados pelo 1.º R. na aplicação do dinheiro da A. para aquisição de ações preferenciais, bem como nula a operação de intermediação financeira realizada, condenando-se, assim, os RR., solidariamente, a ressarci-la da quantia de €45.000,00, reconstituindo-se a situação de facto à data da aplicação daquela quantia e devendo esta quantia ser depositada na conta de depósito à ordem da titularidade da A, em virtude do contrato de depósito irregular celebrado com o 1.º R. e transmitido para o 2.º R.; caso assim não se entenda considerar válida a aplicação da quantia de €45.000,00 pela A., em ações preferenciais denominadas Poupança Plus, deve o 1.º R. ser condenado a indemniza-la por violação dos deveres atinentes à actividade de intermediação financeira, nos termos do art.º 483.º e ss. do Código Civil e 304.º-A e ss. do Código dos Valores Mobiliários; devem ainda os RR. ser solidariamente condenados a pagarem-lhe o valor de €5.000,00, a título de danos não patrimoniais, pelo que devem os réus ser condenados, solidariamente, a pagar ao A. a quantia global de 352.108,98 euros, acrescida de juros de mora à taxa de 4% desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Para o efeito alega, em síntese e com relevo para conhecimento da excepção de incompetência em razão da matéria suscitada, que:

- A autora é titular da conta de depósito à ordem com o n.º ..., aberta na agência do Banco E... S.A., na Guarda e foi o banco onde a autora abriu a sua conta bancária de depósito e foi sempre cliente de perfil conservador, não investindo o seu dinheiro proveniente de poupanças pessoais, ao longo de uma árdua vida de trabalho, em produtos financeiros de risco, sendo que a conselho do seu gestor de conta, da agência do BE da Guarda, depositou a prazo o seu dinheiro numa solução de poupança que o réu Banco E... designou de Poupança Plus1 e que apresentava e vendia aos clientes como sendo verdadeiros depósitos a prazo, que gozavam de todas as garantias de depósitos dessa natureza, para além da própria garantia de isenção de risco assegurada pelo Banco E...

- Por força de uma medida de resolução aplicada pelo Banco de Portugal (doravante “BdP”) ao Banco E... (bem como empresas do Grupo E...) em 3 de agosto de 2014 a conta da A. no BE passou para o Banco F... de que é único accionista o Fundo de Resolução, a qual manteve o mesmo número (...) e foi determinada, entre outros pontos, a constituição da sociedade Banco F..., S.A. (aqui 2.º R.) e, bem assim, a transferência de activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão do BE para o 2o réu.

- Aquela deliberação implicou a transmissão dos direitos e obrigações, até então na esfera jurídica do BE, para o Banco F...

- A deliberação do BdP de 3 de agosto de 2014 (20h), na versão consolidada do Anexo 2 que consta da referida deliberação daquela entidade, de 11 de agosto (17h), determinou que se transferiam para BF, aqui 2.º Réu, todas as «responsabilidades do BE perante terceiros que constituam passivos (...)», Excluindo, apenas, dessa transmissão os litígios tendo por objecto alguma das matérias expressamente excepcionadas no próprio texto da deliberação, a qual excepciona da regra geral sobre a transmissibilidade as eventuais responsabilidades emergentes de fraude ou violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contra-ordenacionais que resultem de factos praticados antes de 31 de agosto de 2014.

- A responsabilidade que se deveria imputar ao BE transmitiu-se por esta via para a nova entidade constituída, ou seja, para o 2.º réu, Banco F..., S.A.., razão pela qual é a entidade bancária dotada de legitimidade passiva, em virtude da “cessão da 89 posição contratual” ou, segundo outros, a “sucessão” operada pela deliberação do BdP, para assumir a responsabilização decorrente de actos ilícitos praticados por um funcionário seu.

- Por força da medida de resolução adoptada pelo BdP, a relação jurídica entre a autora e o BE foi “cedida” a beneficio do BF, que é controlado pelo R. Fundo de Resolução, em que são únicos intervenientes o BdP e o Ministério das Finanças e o único acionista do BF é, por essa razão, o responsável máximo pelas relações jurídicas confiscadas e pelos prejuízos derivados dessa sub-reptícia “cessão de créditos”.

- A autora tem o direito de exigir que lhes seja pago o montante que investiu em depósitos a prazo, vendidos aos balcões do BE, bem como o direito de ser indemnizada pelos prejuízos que lhe foi causado e pelos danos morais que esta perturbação do bom cumprimento dos contratos lhe causou e tem, por isso, tanto a autora como os réus legitimidade na presente lide, a primeira porque tem interesse em demandar e os segundos porque têm interesse em contradizer.

- A relação estabelecida entre a autora e o BE, cuja transmissão o Banco de Portugal forçou que fosse feita para o Banco F..., consubstancia-se, pois, num contrato de depósito bancário.

- A conduta dos 1.º e 2.º réus viola o contrato de depósito bancário celebrado com a autora, ficando o 2.º réu responsável pelas consequências do incumprimento daquele, atenta a assunção da relação de clientela estabelecida, bem como pela sua própria conduta ao quebrar a confiança inerente à relação bancária assumida, tendo sido sob a sua alçada que os mesmos funcionários perpetuaram os efeitos da sua conduta ilícita, tentando a par e passo esconder da autora as verdadeiras consequências da sua actuação após a medida de resolução.

- São, portanto, os réus responsáveis pelas consequências contratuais emergentes do incumprimento das suas obrigações, devendo o 2.º réu (BF), por força do teor da medida de resolução, devolver o montante dos depósitos e respetivos juros ressarcir os demais danos causados.

- Se as deliberações do BdP pretendem excluir as obrigações e responsabilidades decorrentes de operações atinentes a intermediação financeira da transmissão para o BF, inequívoco será que essa intransmissibilidade não respeita às intermediações financeiras que são nulas, resultando no regresso dos valores investidos às respectivas contas de depósito bancário, e que estão na esfera das responsabilidades do réu BF..

1.2. - Citado o Fundo de Resolução contestou, excepcionando a incompetência em razão da matéria deste tribunal, por entender que o tribunal materialmente competente para o conhecimento do mérito é o tribunal administrativo - por estar em causa a sua eventual responsabilidade extracontratual por facto ilícito (e mesmo que se qualifique o seu relacionamento no quadro contratual).

Alega, para tanto, que o Fundo de Resolução é uma pessoa colectiva de direito público, que atua no exercício de funções públicas e ao abrigo de um regime especial de direito administrativo (previsto no Regime Geral das Instituições de Crédito das Sociedades Financeiras) estando sujeito às leis do contencioso administrativo (cfr. artigo 4.º, n.º 1, al. a) do ETAF e artigo 3.º, n.º 1, do Código de Processo dos Tribunais Administrativos) – não lhe sendo aplicado o regime de accionista único (do Banco F...) previsto no Código das Sociedades Comerciais.

1.3. - A autora pronunciou-se a fls. 249 pugnando pela competência material deste tribunal comum.

1.4. Foi proferida decisão a julgar procedente a exceção de incompetência do tribunal em relação da matéria e por consequência declarou a Secção Cível e Criminal da Instância Central da Comarca da Guarda incompetente em razão da matéria para a

tramitação do presente processo, por ser da jurisdição/competência dos tribunais administrativos e, em consequência, absolvem-se os réus da instância. 

1.5. Inconformada dela recorreu a A. terminando a sua motivação com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

...

N- Em conclusão, sendo a estrutura da causa, tal como vem configurada pela A., aqui recorrente, a determinar a competência material do tribunal, é irrelevante averiguar quais deviam ser os termos da pretensão - no fundo o que sucede com a competência do tribunal, sucede também com outros pressupostos processuais (legitimidade, forma do processo) -, ou seja, é a instância, no seu primeiro segmento consubstanciado no articulado inicial do  demandante, que determina a resolução desses pressupostos.

O- Alegou a A., na sua petição inicial, que o FdR, enquanto único acionista do R. BF e responsável máximo pelas relações jurídicas e pelos prejuízos da sub-reptícia cessão de créditos, deve ser condenado, a título subsidiário, no pagamento dos depósitos que aquele tinha junto do BE.

P- Sendo o FdR o seu único acionista e não podendo aquele (BF) assumir a responsabilidade pelo ressarcimento dos valores reclamados pelo recorrente, em virtude da deliberação do Banco de Portugal datada de 29/12/2015, em última ratio seria o seu único acionista (FdR) a assumir essa responsabilidade, à luz do que  sucede no Código das Sociedades Comerciais.

Q- A causa de pedir, consubstanciada em factos suscetíveis de produzirem o efeito jurídico que este pretende, i.e. que sejam admitidos e considerados como depósitos dinheiro que tinha junto do BE, não se mostra afetada pelo teor das deliberações, enquanto limitação na transmissibilidade de responsabilidades do BE para o BF, pelo que a responsabilidade do BE transmitiu-se, por esta via, para o 2.a Réu, BF, S.A., nada obstando, portanto, à legitimidade passiva tanto do BE como do BF.

R- O Tribunal a quo assenta, outrossim, a sua decisão de se julgar  materialmente incompetente no facto de o pedido dirigido ao Fundo de Resolução (doravante “FdR”) não ter sido autonomizado dos demais.

S- Ora, a competência tem de se aferir pelos termos da relação jurídico-processual tal como foi apresentada em juízo, havendo que atender ao pedido e especialmente à causa de pedir, tal como o autor (aqui recorrente) o formula.

T- O fundamento dessa responsabilidade advém do facto de o FdR, enquanto entidade de direito público, ser a detentora do capital social de um banco, pelo que atua no âmbito das suas atribuições como acionista e não enquanto atribuição de direito público, que lhe estão legalmente cometidas.

 U- Com efeito, o recorrente, ao invés do que o Tribunal a quo defende, não foi afetada nos seus direitos pelo FdR, mas sim por decisões ou atos do Banco de Portugal.

V- Não estamos no âmbito de um litígio emergente de relações jurídico-administrativas (art.º 1.º do ETAF) e decorrentes das mesmas, pelo que não tem aplicação o critério disposto no art.º 4 do mesmo corpo de normas (ETAF).

 W- O recorrente não assaca responsabilidade ao R. FdR, em primeira linha, pelas deliberações de 3 de agosto de 2014 e de 29 de  dezembro de 2015, nem lhe imputa responsabilidade pela “cessão de créditos” operada por via da resolução do BE. Imputa-lhe sim responsabilidade por devolver os investimentos da A., aqui recorrente, enquanto parte do acervo patrimonial, decorrente da cessão de créditos, do qual pode, subsidiariamente, ser responsável  (quando o R. BF não o for) pelo simples facto de ser seu único acionista.

X- A aqui recorrente apresentou, juntamente com outros credores, uma ação administrativa comum pedindo a declaração de nulidade da deliberação do Banco de Portugal proferida em 29/12/2015, processo que corre termos na 3a Unidade Orgânica do Tribunal Administrativo de Círculo, sob o no 883/16.2BELSB.

Y- Concluiu o tribunal a quo, erradamente no nosso entendimento, que a decisão aqui em análise estando a natureza da presente causa atribuída, por disposição legal, a tribunal de outra ordem jurisdicional, designadamente aos tribunais administrativos, o Tribunal a quo é materialmente incompetente para conhecer a presente ação.

Z- O tribunal a quo poderia, sem qualquer desrespeito pelo regime da solidariedade, julgar procedente a exceção de incompetência material do tribunal, o que implicaria, nos termos do art. 99.º, n.º 1,  do CPC, somente a absolvição do réu FdR da instância (no  mesmo sentido, vide o art. 577.º, al. a) e 576.º, n.º2 do CPC) .

AA- A responsabilização do FdR pelas dívidas do banco diretamente perante os credores só poderia ocorrer dentro de pressupostos  muito precisos (que salvo melhor entendimento não estão sequer  alegados .

BB- A responsabilização de acionistas ou de administradores (não sendo o FdR administrador pelos atos das sociedades de que são  acionistas ou administradores estão sujeitas a pressupostos legais  não alegados (vide, no âmbito do Código das Sociedades Comerciais, o disposto no art. 78.o - responsabilização direta dos  administradores perante os credores sociais).

CC- Ainda que se demonstrasse a factualidade alegada a respeito do FdR, a mesma não permite a condenação do aqui recorrido em causa.

DD- A causa de pedir tem natureza fundamental no âmbito de uma ação  declarativa, na medida em que a mesma delimita o objeto da causa por referência ao pedido formulado –, a iniciativa processual e a  própria conformação do processo.

EE- Para se estar perante ineptidão por falta de causa de pedir é necessário uma total ausência dos factos que servem de base de fundamento à pretensão ou uma total omissão de factos suscetíveis de preencherem a previsão do facto jurídico de que procede a pretensão do autor. In casu, e salvo devido respeito por opinião contrária, existe essa ausência de factos.

FF-Apesar da contestação do réu FdR, não estamos perante um caso que seja integrável no art.º186.º, n.º 3 do CPC, porque entendemos que a ausência de factos principais é tal que não é suprível.

GG- Assim, não tendo sido invocados factos que fundamentem o pedido tal como foi formulado, temos de concluir que a petição é, nesta parte, inepta. Ineptidão que constitui exceção dilatória que impede, nesta parte, o conhecimento do mérito da causa, conduzindo à absolvição da instância do réu em causa (arts. 1.º, n.º 1, al. a), 576.º, n.º 2 e 577.º, al. b), todos do CPC).

HH- O A., aqui recorrente - mau grado aqui ter de o reconhecer - não alegou ou aduziu factualidade suficiente e idónea a produzir os efeitos jurídicos pretendidos, i.e. que o FdR fosse, em última análise, responsabilizado pela “cessão de créditos” operada por via das deliberações de uma entidade terceira, ou seja, o Banco de Portugal, que pudesse levar o tribunal a considerar que o FdR  pudesse ser condenado (na parte que lhe competia) pelos maiores prejuízos decorrentes da resolução face àqueles em que a A. e todos  os credores poderiam ter de suportar perante um cenário de liquidação.

 II- Salvo melhor entendimento, esta conclusão que o Tribunal a quo  extraiu e na qual, outrossim, fundamentou o seu juízo para  determinar a incompetência material do Tribunal, por referência quer à causa de pedir quer ao pedido, é claramente violadora do  princípio do dispositivo, enquanto princípio basilar relativo à  prossecução processual que faz recair sobre as partes o dever de  formularem o pedido e de alegarem os factos que lhe servem de  fundamento – art.º 5.º do CPC.

JJ- Deve, por conseguinte, considerar-se que o Tribunal a quo violou, com a sua decisão, o princípio do dispositivo, consagrado no art.º 5.º  do CPC, o que aqui se invoca para os devidos e legais efeitos. 

 NESTES TERMOS, e nos melhores de direito deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão da qual se recorre  substituindo-se por uma outra que declare o Tribunal a quo materialmente competente para conhecer do pedido formulado pela A., em conformidade com o supra exposto, assim V.a Ex.a fazendo a, costumada Justiça».

1.6. Cumprido o preceituado no art.º 221 do C.P.C. o R. Fundo de Resolução apresentou resposta terminando a sua motivação com as conclusões que se transcrevem:

«a. Decidiu bem o Tribunal a quo ao considerar, primeiro, que a qualidade em que o Fundo de Resolução vem demandado na presente acção – a de “accionista único” do Banco F... – é uma qualidade que lhe advém de normas de direito administrativo, não de direito privado, não agindo ele, portanto, nesse âmbito, numa esfera de direito privado e ao decidir, consequentemente, pela procedência da excepção dilatória de incompetência dos tribunais judiciais para conhecerem do pedido formulado contra o Fundo de Resolução.

b. Sendo a responsabilidade assacada ao Fundo de Resolução uma responsabilidade extracontratual, então os tribunais competentes para o respectivo conhecimento e julgamento são os da jurisdição administrativa, nos termos da alínea f) do art.º 4.º, n.º 1, do ETAF, aplicável independentemente de se tratar de uma responsabilidade decorrente de um acto praticado ou de uma abstenção verificada no domínio da gestão pública ou no âmbito da gestão privada.

c. Em qualquer dos casos, e independente da qualificação que se desse à responsabilidade que a Recorrido imputa ao Fundo de Resolução, a sua suposta qualidade de “accionista único” do Banco F... – e é esse o único fundamento invocado pela Recorrente para demandar o ora Recorrido – é uma qualidade que sempre lhe assistiria enquanto pessoa colectiva de direito público, advindo-lhe de normas e de actos de direito administrativo, não de actos ou de normas de direito civil ou comercial.

d. Advém-lhe tal qualidade, na verdade, do art.º 145.º-G/4 do RGICSF e do art. 4.º do Anexo 1 da Medida de Resolução do BE, de 3 de Agosto de 2014, adoptada por acto administrativo da autoria do Banco de Portugal, sendo certo que a dotação de capital dos bancos de transição, como o Banco F..., pelo Fundo de Resolução é fruto exclusivo de um dever de capitalização que lhe impõem normas de direito administrativo (o referido art.º 145.º-G/4 do RGICSF).

e. Não deriva essa capitalização do Banco F... de qualquer acto voluntário de accionista praticado pelo Fundo de Resolução ao abrigo das correspondentes normas do Código das Sociedades Comerciais.

f. Por esse motivo e por todos os restantes avançados ao mesmo propósito nestas alegações, o Fundo de Resolução não é, portanto – para efeitos da responsabilidade assacada pelos arts. 491.º e 501.º do CSC às sociedades com domínio total –, accionista único do Banco F..., mas mero detentor do seu capital social.

g. Não lhe cabendo, nomeadamente, por exemplo, a decisão da criação do banco de transição, a aprovação dos respectivos estatutos, a nomeação dos membros dos seus órgãos sociais e a própria direcção da gestão do banco de transição, que é administrado segundo as “orientações e recomendações” do Banco de Portugal (nos 5 e 11 do art. 145.º-G do RGICSF).

h. Estando legalmente constituído no dever jurídico-público de apoio financeiro à adopção de medidas de resolução pelo Banco de Portugal, através da realização do capital dos bancos de transição, o Fundo de Resolução não está, porém, em parte alguma, constituído na responsabilidade de responder pelas obrigações a que tais bancos estejam vinculados.

i. Aliás, toda a sua actividade e responsabilidades se encontram extensa e exclusivamente reguladas no RGICSF, no referido art. 145.º-G e nos subsequentes arts. 153.º-B a 153.º-U, bem como, ainda, na alínea c) do no 1 e no n.º 3 do art. 145.º-B, onde se estabelece, é certo, o dever jurídico-público do Fundo de Resolução de responder pelas dívidas e obrigações dos bancos resolvidos (não dos bancos de transição) e apenas nos termos aí expressamente definidos.

j. Todas as normas, citadas nestas alegações de recurso em relação à constituição, capitalização, administração dos bancos de transição, bem como à responsabilização, nesse quadro, do Fundo de Resolução, são manifesta e tipicamente normas de direito administrativo, estabelecendo-se nelas, e nos actos jurídicos concretos praticados ao seu abrigo, a disciplina de relações jurídico -administrativas em que simples particulares não podem estar constituídos – isto é, a disciplina de relações jurídicas das quais são sujeitos únicos e obrigatórios o Fundo de Resolução (o Banco de Portugal) e os bancos de transição.

k. Subsumindo-se, por tudo, a parte do presente litígio que respeita à alegada responsabilidade do Fundo de Resolução pela satisfação do suposto direito de crédito da Autora, enquanto detentor do capital social do Banco F..., nas alíneas a) e f) do art. 4.º, n.º 1 do ETAF e, em todo o caso, sempre na respectiva alínea o) [já para não falar, também, na alínea f) do art. 2.º, n.º 2 do CPTA].

l. Decidiu bem, também, o Tribunal a quo ao entender que a incompetência material dos tribunais judiciais para conhecer do pedido formulado contra o Fundo de Resolução, nos termos e com os fundamentos antes explicitados, se estende aos demais Réus, BE e Banco F..., por aplicação da norma do art. 4.º, n.º 2 do ETAF, pois que a Recorrente formulou na respectiva petição inicial um pedido de condenação solidária de todos os Réus e, nos termos da referida norma, é a componente jurídico-pública deste litígio que se propaga à totalidade do respectivo objecto, “contaminando” a competência material dos tribunais comuns e atribuindo-a aos tribunais da jurisdição administrativa.

m. A decisão recorrida baseou-se, em primeiro lugar, no pedido de condenação solidária formulado pela própria Autora, em segundo lugar, na causa de pedir da sua demanda contra o Fundo de Resolução e, em terceiro lugar e em qualquer caso, na necessária interpretação e aplicação das Deliberações do Banco de Portugal em matéria da resolução do Banco E... e das normas de direito administrativo ao abrigo das quais elas foram adoptadas, não se verificando, portanto, qualquer violação do art. 5.º do CPC.

n. O ora Recorrido, Fundo de Resolução, não contra-alegou, por razões óbvias, em relação ao impertinente e improcedente vício de ineptidão da petição inicial, arguido pela própria Autora, ora Recorrente, como fundamento de revogação da sentença impugnada no presente recurso.

Nestes termos, sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., que respeitosamente se roga, deve o recurso interposto ser julgado improcedente».

1.7. Após cumprido o preceituado no art.º 221 do C.P.C. o R. Banco ... apresentou resposta terminando a sua motivação com as conclusões que se transcrevem:

...

                                       2. Motivação

2.1. É, em princípio, pelo teor das conclusões do recorrente que se delimitam as questões a apreciar no âmbito do recurso (cfr. art.s 608, 635, n.º 4 e 639, todos do C.P.C.).

            A única questão consiste em saber qual o tribunal materialmente competente para a causa: se o Tribunal Comum ou se o Tribunal Administrativo.

Vejamos

De conformidade com o preceituado nos arts. 211º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 40, nº 1 da Lei de Organização do Sistema Judiciário e 64º do CPC vigente, os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.

Ou seja, os tribunais judiciais, constituindo os tribunais regra dentro da organização judiciária, gozam de competência não discriminada, por isso sendo chamados de competência genérica, gozando os demais, tribunais especiais, de competência limitada às matérias que lhes são especialmente cometidas. Que o mesmo é dizer que a competência dos tribunais judiciais se determina por um critério residual, ou de exclusão de partes - tudo o que não estiver atribuído aos tribunais especiais (cfr. Profs. Palma Carlos (in “CPC Anotado”, pags. 230) e A. dos Reis (in “Comentário”, Vol. I, pags. 146 e segs) e Ac. Rel. de Coimbra de 21/10/2008, onde foi relator Gregório da Silva Jesus).

Considerando que o que está em causa é o confronto entre a competência dos tribunais da ordem judicial e a dos tribunais da ordem administrativa para conhecimento de questão de responsabilidade civil extracontratual, vejamos qual é o âmbito da competência dos tribunais desta última ordem.

O artigo 212°, n.° 1 da C.R.P. diz, relativamente à jurisdição comum:

«Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas as outras ordens judiciais».

E o seu n.°3 diz, quanto à ordem administrativa:

«Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais».

Segundo o critério de atribuição positiva, pertencem à competência do tribunal comum todas as causas cujo objecto é uma situação jurídica regulada pelo direito privado, civil ou comercial.

Segundo o critério da competência residual, incluem-se na competência dos tribunais comuns todas as causas que, apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são legalmente atribuídas a nenhum tribunal judicial não comum ou a nenhum tribunal especial.

A jurisdição administrativa é exercida por tribunais administrativos, aos quais incumbe, na administração da justiça, dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas (arts. 1º, nº 1, do ETAF e 212º, nº 3, da CRP).

Essencial para se determinar a competência dos tribunais administrativos é, pois, a existência de uma relação jurídica administrativa.

Sabendo-se que a concretização de tal conceito constitui tarefa difícil, podemos, no entanto, definir a relação jurídica administrativa como aquela que, «por via de regra, confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração» (Cfr. Freitas do Amaral, “Curso de Direito Administrativo”, Vol. II, 2001, pags. 518) (...), outro não sendo o entendimento de J. C. Vieira de Andrade, quando, depois de afirmar que à justiça administrativa só interessam «as relações jurídicas administrativas públicas, ou seja, aquelas que são reguladas por normas de direito administrativo», acentua que devem ser consideradas relações jurídicas administrativas «aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido» (in “A Justiça Administrativa” - Lições, 3ª Ed., 2000, pags. 79)”.

Como se sabe, desde 1 de Janeiro de 2004 vigora o novo ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro.

Conforme estatui o seu artº 4º  do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19/2)  «compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto:

a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares diretamente fundados em normas de direito

administrativo ou fiscal ou decorrentes de atos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;

 b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por pessoas coletivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem como a verificação da invalidade de quaisquer contratos que diretamente resulte da invalidade do ato administrativo no qual se fundou a respetiva celebração;

c) Fiscalização da legalidade de atos materialmente administrativos, praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas, ainda que não pertençam à Administração Pública;

 d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos;

e) Questões relativas à validade de atos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público;

f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objeto passível de ato administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspetos específicos do respetivo regime

substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que atue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;

g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa; h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos;

 i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público;

 j) Relações jurídicas entre pessoas coletivas de direito público ou entre órgãos públicos, no âmbito dos interesses que lhes cumpre prosseguir;

 l) Promover a prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas, e desde que não constituam ilícito penal ou contraordenacional;

m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas coletivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;

 n) Execução das sentenças proferidas pela jurisdição administrativa e fiscal».

É inquestionável que o legislador do novo ETAF cometeu à jurisdição administrativa a apreciação de responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública, independentemente da questão de saber se esta responsabilidade emerge de uma actuação de gestão pública ou de uma actuação de gestão privada.

A distinção deixa de ter interesse relevante para o efeito de determinar a jurisdição competente, que passa a ser, em qualquer caso, a jurisdição administrativa.

Todos os litígios emergentes de actuação da Administração Pública que constituam pessoas colectivas de direito público em responsabilidade extracontratual pertencem, portanto, à competência dos tribunais administrativos (cfr. Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, Professor Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, fls. 31 e 32).

Isto é, deixou de vigorar a norma constante do artigo 4º, alínea f), do ETAF de 1984, que excluía da jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das questões de direito privado, ainda que qualquer das partes fosse pessoa de direito público.

O novo regime alargou o âmbito de jurisdição administrativa a todas as questões de responsabilidade civil envolvente de pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se as mesmas são regidas por um regime de direito público ou por um regime de direito privado.

Assim, compete aos tribunais da ordem administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham, nomeadamente, por objecto as questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público (artigo 4º, nº 1, alínea g), do ETAF).

Mas igualmente lhe compete a apreciação da responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público (artigo 4º, nº 1, alínea i), do ETAF) – (cfr. neste sentido Ac. Rel. de Coimbra de 21/10/2008).

Com o novo regime do ETAF foi propósito do legislador confiar à jurisdição administrativa os litígios emergentes da responsabilidade extracontratual da Administração arredando de vez a dicotomia gestão pública – gestão privada, muitas vezes de difícil caracterização com linhas de demarcação muito ténues, e fonte de conflito (cfr. neste sentido os Ac.s do STJ de 11/10/2005, Proc. n.º 05B2294, 8/5/2007, Proc. n.º 07 A 1004, no ITIJ, Prof. Mário Aroso de Almeida, in Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 4.ª edição, fls. 99 e Prof. João Caupers, in Introdução ao Direito Administrativo, 7.ª edição, 2003, fls. 265, conforme citação feita no Ac. Rel. de Coimbra de 21/10/2008).

Este conceito de relações jurídicas administrativas do artigo 4º, nº 1, al. g) do ETAF, em harmonia com o art.º 1º, nº 1, e ponderado à luz do nº 3 do artigo 212º da Constituição da República acima transcrito, não se confunde com acto de gestão pública, sendo antes, um conceito quadro muito mais amplo.

Abrange todos os casos de responsabilidade civil extracontratual da Administração “independentemente de se tratar de danos resultantes de actos de gestão pública ou de gestão privada (neste sentido, avulta não apenas o elemento histórico de

interpretação, visto que essa possibilidade é expressamente mencionada na exposição de motivos, como o elemento literal, dado que a alínea g) do nº 1 deixou de fazer qualquer distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada.” e ainda, “as acções de responsabilidade civil extracontratual de sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime especifico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas públicas” (cfr. Gomes Canotilho, in Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, n.º 1, Junho de 1994, fls. 115, conforme citação feita no Ac. S.T.J. de 8/5/2007, Proc. n.º 07A1004).

Constitui entendimento pacífico o de que a competência do tribunal se afere de harmonia com a relação jurídica controvertida, tal como a configura o A. e aquela fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, bem como as modificações de direito, excepto se for suprimido o órgão a que a causa estava afecta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecesse para o conhecimento da causa (arts. 38 da Lei nº 62/2013, de 26.08 -L.O.S.J.. – Lei de Organização do Sistema Judiciário - e 5º, nº 1, do ETAF — Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais) – (cfr. neste sentido ac. Rel. de Coimbra de 21/10/2008, relatado por Gregório Silva Jesus e Ac. do Tribunal dos Conflitos de 25/9/2014, relatado por José Augusto Fernandes do Vale).

Ou seja, para efeito de determinação da competência do tribunal em razão da matéria não releva o conteúdo do instrumento de defesa apresentado pela ré, mas tão só os termos da causa de pedir e do pedido formulados pelo autor (cfr. Ac. Rel. de Coimbra de 21/10/2008).

Manuel de Andrade ensinava que a competência em razão da matéria é a competência das diversas espécies de tribunais, diversas ordens de tribunais dispostas horizontalmente, isto é, no mesmo plano, não havendo entre elas uma relação de supra-ordenação e subordinação, baseada a definição desta competência na matéria da causa, ou seja no seu objecto, encarado sob o ponto de vista qualitativo - o da natureza da relação substancial pleiteada e que o tribunal regra é o da comarca.

Trata-se de uma competência ratione materiae. A instituição de diversas espécies de tribunais e a demarcação da respectiva competência obedece a um princípio de especialização, com as vantagens que lhe são inerentes (cfr. Noções Elementares de Processo Civil, edição 1976, fls. 94).

Esta é igualmente a jurisprudência pacífica dos nossos tribunais superiores (v., entre outros Ac. STJ de 12/1/94, in C.J., 1994, I, pag. 38; de 9 de Maio de 1995, in C.J., 1995, II, págs. 68-70,e Ac. STJ de 3/5/00, in C.J., 2000, II, pag. 39).

            Assim sendo, é pela petição inicial deduzida – que contem a causa de pedir e o pedido - que se deve analisar qual o tribunal materialmente competente em razão da matéria.

            Como bem se refere na sentença recorrida a A. sobre tal matéria assenta a demanda do Fundo de Resolução exclusivamente na eventual responsabilidade civil extracontratual pois em termos de causa de pedir a mesma não invoca a existência de qualquer vínculo contratual com o Fundo.

            Para o efeito alega a A. que o Fundo de Resolução, pessoa colectiva pública, cuja entidade se encontra regulamentada pelo regime jurídico das instituições de crédito e sociedades financeiras, por ser o único accionista do Banco F..., é solidariamente responsável com os demais réus pelo pagamento da indemnização peticionada.

Na sentença recorrida analisou-se detalhadamente a natureza do réu Fundo de Resolução, para se concluir que se trata de uma pessoa coletiva de direito público, criada para prosseguir atribuições públicas e sujeita, por isso, ao contencioso administrativo – artigo 153.º-B, n.º 1, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras ‘RGICSF’ (DL n.º 298/92, de 31 de dezembro) – e que veio a ser criado pelo DL n.º 31-A/2012 de 10 de fevereiro, no âmbito da revisão do regime de saneamento e liquidação das instituições de crédito e sociedades financeiras, ao referir “Na verdade, tal como resulta do preceituado no artigo 153.º-B do Regime Geral das Instituições de Crédito e das Sociedades Financeiras (Decreto-Lei n.o 298/92, de 32/12, na redacção do Decreto-Lei n.o 31-A/2012), o Fundo de Resolução «é uma pessoa colectiva de direito público, dotada de autonomia administrativa e financeira e de património próprio», que «tem sede em Lisboa e funciona junto do Banco de Portugal», regendo-se «pelo presente diploma e pelos seus regulamentos».

O Fundo de Resolução, nos termos do artigo 153.º-C, «tem por objecto prestar apoio financeiro à aplicação de medidas de resolução adoptadas pelo Banco de Portugal, nos termos do disposto no artigo 145.º-AB, e desempenhar todas as demais funções que lhe sejam conferidas pela lei no âmbito da execução de tais medidas». E,

nos termos do artigo 153.º-E/1, «é gerido por uma comissão directiva composta por três membros: a) Um membro do conselho de administração do Banco de Portugal, por este designado, que preside; b) Um membro designado pelo membro do Governo responsável pela área das finanças; c) Um membro designado por acordo entre o Banco de Portugal e o membro do Governo responsável pela área das finanças».

Nos termos do artigo 153.º-U «o membro do Governo responsável pela área das finanças aprova, por portaria e sob proposta da comissão directiva, ouvido o Banco de Portugal, os regulamentos necessários à actividade do Fundo».

O Fundo de Resolução foi criado no quadro das competências de resolução do Banco de Portugal, entre elas, a da criação de um Banco de transição, cujo capital social seja detido exclusivamente pelo Fundo de Resolução – cfr. artigo 153.º-G

 Acrescentamos que o respetivo regulamento veio a ser aprovado pela Portaria n.º 420/2012, de 21 de dezembro que no artigo 2.º prevê expressamente que o Fundo é uma pessoa coletiva de direito público, dotada de autonomia administrativa e financeira, tendo por objeto prestar apoio financeiro à aplicação de medidas de resolução adotadas pelo Banco de Portugal e desempenhar todas as demais funções que lhe sejam conferidas pela lei no âmbito da execução de tais medidas, pelo que, quer se analise a ação do ponto de vista da responsabilidade extracontratual – alínea f) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF – quer se analise do ponto de vista da responsabilidade contratual – a responsabilidade que imputam ao réu decorre exclusivamente das deliberações tomadas pelo Banco de Portugal e do facto de o réu ser o único acionista do Banco F... – sempre o tribunal judicial comum seria absolutamente incompetente, mais se acrescentando que, em função da forma como foi criado, dos objectivos que visa alcançar e do modo como atua, nunca se poderia dizer que estaria a agir numa esfera de direito privado.

Considerando que inexiste uma relação contratual entre a A. e o Fundo de Resolução e que os autores invocam apenas a medida de resolução do Banco de Portugal e o facto de o Fundo ser o único acionista do Banco ..., haverá que concluir pela competência dos tribunais administrativos para apreciar tal pretensão (cfr. neste sentido Ac. Rel. de Guimarães, 26 de janeiro de 2017, Proc.º n.º 1358/16T8BRG.G1, relatado por Ana Valente  e Ac. da Rel. de Lisboa, 30 de Março de 2017, Proc n.º 146/16T8AVR-8, relatado por Isoleta Almeida Costa).

Nestes termos e face ao exposto não assiste razão à recorrente.

                                                           3. Decisão

Desta forma, por todo o exposto, acorda-se:

Em julgar improcedente o recurso e manter a decisão recorrida.

Custas a cargo da recorrente.

Coimbra, 12/9/2017

        Pires Robalo (relator)

        Sílvia Pires (adjunta)

           Maria Domingas Simões  (adjunta)