Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1603/11.3T2AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
OBRIGAÇÃO DE MEIOS
ÓNUS DA PROVA
CONTRATO DE ADESÃO
Data do Acordão: 04/08/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE GRANDE INST. CÍVEL DE AVEIRO.
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 800º, Nº 1 DO C. CIVIL.
Sumário: I – Celebrado um contrato de prestação de serviço de vigilância, tendo por objecto a segurança, controle de acesso e protecção de bens de umas instalações, durante horário nocturno, com a presença de um vigilante, havendo um furto por arrombamento nas referidas instalações, durante esse período, verifica-se incumprimento do contrato, por violação do dever de vigilância e de prevenção.

II - Mesmo nas obrigações de meios cabe ao devedor provar que cumpriu a obrigação, porque é quem está em melhores condições de demonstrar que usou da diligência devida.

III - Uma vez que a Ré (empresa de segurança) prestou o serviço através de um seu funcionário (vigilante) tem directa aplicação o regime do art.800º, nº 1 do CC sobre a responsabilidade do devedor pelos “actos dos representantes legais ou auxiliares”, postulando-se o princípio geral da responsabilidade objectiva do devedor perante o credor pelos actos das pessoas que utilize no cumprimento da obrigação, uma vez que o risco resultante da actuação dos auxiliares do cumprimento é atribuído ao próprio devedor.

IV - Os contratos de seguros, como contratos de adesão, devem ser submetidos a controlo judicial não só ao nível da tutela da vontade do segurado, tomando-se em conta os critérios interpretativos dos arts. 236º e 237º do CC, como também ao nível do conteúdo das condições gerais do contrato, relevando, para tanto, as normas de ordem pública ( art.280º do CC ) e as cláusulas gerais da boa fé ( arts.227º nº 1 e 762º, nº 2 do CC).

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

            1.1.- A Autora – M…, SA – instaurou na Comarca de do Baixo Vouga acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra as Rés:

  – S…, Lda.

            - Companhia de Seguros A…, SA (por intervenção principal provocada).

            Alegou, em resumo:

            Em 5 de Setembro de 2009 contratou com a 1ª Ré a prestação de serviços de vigilância nas suas instalações em Tábua.

            A Ré violou o contrato porque na noite de 7 para 8 de Outubro de 2009 as instalações foram assaltadas e subtraídos bens móveis (no valor global de € 27.876,00), sem que houvesse prestado a vigilância devida.

            Pediu a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 32.134,54, e juros de mora vincendos à taxa dos juros comerciais, a actualmente de 8,25%, desde a citação.

            Contestou a Ré defendendo-se, em síntese, por impugnação, negando a violação do dever de vigilância, e requereu a intervenção principal da Companhia de Seguros A…, SA.

Contestou a chamada Companhia de Seguros A…, SA, defendendo-se, por excepção, alegando que contrato de seguro não cobre os danos e que o contrato de prestação de serviços de vigilância padece de irregularidades, e por impugnação, para concluir pela improcedência da acção.

            Replicou a Autora.

            No saneador afirmou-se tabelarmente a validade e regularidade da instância

            1.2. - Realizada audiência de julgamento foi proferida sentença que decidiu:

a). Condenar a Ré S…, Lda. a pagar à Autora a quantia de € 32.134,54, a crescida de juros vincendos, à taxa legal prevista para as empresas comerciais, desde a citação e até integral pagamento;

            b) Absolver a Ré Companhia de Seguros A…, SA do pedido.

            1.3. - Inconformada, a Ré S…, Lda recorreu de apelação, com as conclusões seguintes:

            Contra-alegou a Ré A…, SA opondo-se, além do mais, à junção dos documentos.

            A Autora contra-alegou no sentido da improcedência do recurso.


II – FUNDAMENTAÇÃO

            2.1. – Junção de documentos

A Ré S… requereu na contestação a intervenção da Companhia de Seguros A…, SA, alegando ter transferido para ela a responsabilidade pelos danos reclamados pela Autora, através de contrato de seguro titulado pela apólice nº …, tendo junto o documento de fls. 45 e 46.

O doc. de fls. 45 reporta-se às “condições particulares” da apólice nº … O doc. de fls. 46 é cópia de recibo do pagamento do prémio referente à apólice nº …, emitido em 30/11/2011.

            A Seguradora alegou na contestação haver celebrado com a S… o contrato de seguro de responsabilidade civil geral Empresas, titulado pela apólice nº …, “parcialmente já apresentado nos autos pela ré, Condições Particulares, cujo teor se dão por integralmente reproduzidas, para os devidos efeitos legais, apresentando-se agora a restante parte, Condições Gerais , doc. nº1 (…) “.

            Só mais tarde, e após notificação, é que a Seguradora juntou um documento “Responsabilidade Civil Geral Empresas” , “condições contratuais “.

            Nos factos assentes consta o seguro titulado pela apólice nº … (alínea D), e na sentença deu-se como provado as condições gerais.

            A Apelante, com as alegações de recurso, requereu a junção do documento de fls. 316, datado de 3 de Julho de 2008, intitulado “Informação”, no qual se menciona que a Seguradora efectuou um contrato de seguro com a Ré S… (tomadora) do ramo “responsabilidade civil”, sem referência ao número da apólice, com início em 3/7/2008, e ainda cópia de documento intitulado “Responsabilidade civil Exploração Condições Especiais”.

            Alegou, em síntese que em anexo às condições particulares da apólice deveria constar o documento agora junto ( nº1 )  e o documento (nº2) deveria ter sido feito constar pela Ré Seguradora.

             A Ré Seguradora respondeu pela rejeição dos documentos, em virtude da apresentação extemporânea, deduzindo expressa impugnação, ao afirmar não ter subscrito as condições especiais agora juntas como fazendo parte da apólice referida em D)

A junção de documentos, na fase de recurso, reveste natureza excepcional, só devendo ser admitida nos casos especiais previsto na lei, sendo regulada nos termos dos art.693-B e 524 nº1 e 2 do CPC, de cuja conjugação resulta que as partes só podem juntar documentos com as alegações nas seguintes situações: (1) se a apresentação não tiver sido possível até esse momento; (2) se os documentos se destinarem a provar factos posteriores aos articulados ou cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior; (3) e se a junção só se tornar necessária devido ao julgamento proferido em 1ª instância.

E o documento torna-se necessário em virtude do julgamento “quando a decisão se tenha baseado em meio probatório inesperadamente junto por iniciativa do tribunal ou em preceito jurídico com cuja aplicação as partes justificadamente não tivessem contado “( cf. ANTUNES VARELA, RLJ ano 115, pág. 95 ). Ou, numa formulação mais ampla, quando a fundamentação da sentença ou o objecto da decisão (de direito ou de facto) fazem surgir a necessidade de provar factos (ou infirmá-los) com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes dela.

Mesmo admitindo-se um conceito mais amplo de necessidade, no sentido de que a junção de documentos na fase de recurso tem razão de ser quando a fundamentação da sentença ou o objecto da decisão (de direito ou de facto) fazem surgir a necessidade de provar factos (ou infirmá-los) com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes dela, mas não quando a parte, já sabedora da necessidade de produzir prova (ou contraprova) sobre certos factos, obtém decisão que lhe é desfavorável e pretende, mais tarde, infirmar o juízo proferido (cf., por ex., Ac do STJ de 13/3/2003, www dgsi.pt/jstj ).

            Na situação dos autos, verifica-se que a Apelante já os poderia ter juntos e não o fez, não sendo objectiva ou subjectivamente supervenientes. Além disso, foram expressamente impugnados, sendo que o documento de fls. 316 é omisso em relação à apólice e o de fls. 319 ( mera cópia , sem qualquer assinatura ) não menciona a que apólice se reporta.

            Os documentos são rejeitados.

2.2. - O objecto do recurso

As questões submetidas a recurso, delimitado pelas respectivas conclusões, são as seguintes:

(1ª) Impugnação de facto (quesitos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º e 7º);

(2ª) A responsabilidade da Ré S… (incumprimento do contrato de prestação de serviços de vigilância);

(3ª) A responsabilidade da Seguradora.

            2.2. – A Impugnação de facto (quesitos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º e 7º)

2.3  -  Os factos provados

2.4. – A responsabilidade da Ré S…

A pretensão da Autora situa-se no âmbito da responsabilidade contratual, por incumprimento do contrato de prestação de serviços de vigilância, celebrado com a Ré S...

Na verdade, Autora e Ré S… outorgaram, em 5 de Setembro de 2009, o contrato de prestação de serviços ( cf. fls. 16 a 20 ), tendo por objecto a “prestação de serviços de vigilância através de Vigilância Estática, por si, ou por quem indicar para o efeito, desde que entidade devidamente licenciada, nas instalações situadas no Estaleiro em Tábua, tendo como objectivo a Segurança, controle de acessos  e protecção de bens” ( cf. cláusula 1ª ).

Convencionaram, além do mais, que este serviço de vigilância “ será realizado nas instalações do segundo outorgante, por 1 vigilante de acordo com o pedido previamente pelo segundo outorgante, no horário compreendido entre as 18.00 h e as 08.00h do dia seguinte, todos os dias, respeitando sempre as disposições legais em vigor “ (cf. cláusula 3º).

Os pressupostos da acção de indemnização assente em responsabilidade contratual são: o não cumprimento dos deveres integrados na relação obrigacional (deveres primários, secundários e laterais), a culpa do devedor, a existência de danos e o nexo de causalidade entre o facto e os danos.

Sobre o credor recai o ónus da prova destes pressupostos, com excepção da culpa, que se presume ( art.799 CC ), logo é sobre o devedor que terá de demonstrar a ausência de culpa. E mesmo nas obrigações de meios, como é o caso, cabe ao devedor provar que cumpriu a obrigação, porque é quem está em melhores condições de demonstrar que usou da diligência devida (cf., por ex., RICARDO RIBEIRO, Obrigações de Meios e Obrigações de Resultado, pág. 110 e segs; Ac RL de 28/6/2012 ( proc. nº 2859/09), em www dgsi.pt).

Perante a factualidade apurada, conclui-se pelo cumprimento defeituoso da prestação. Com efeito, fazendo parte da obrigação o serviço de vigilância (segurança, controle de acessos e protecção de bens) e por conseguinte de prevenção do dano, constata-se, na verdade, que a Ré, através do seu vigilante não cumpriu cabalmente o dever de vigilância.

Note-se que segundo o manual de procedimentos (fls. 212 e segs.) era necessário efectuar rondas, sendo a Ré S… responsável em caso de arrombamento, como expressamente acordado.

Pode, então, afirmar-se a verificação de um deficiente cumprimento das obrigações emergentes do contrato de prestação de serviços de segurança privada, presumindo-se a culpa da Ré, nos termos do art. 799 do CC.

            Uma vez que a Ré prestou o serviço através de um seu funcionário (vigilante) tem directa aplicação o regime do art. 800 nº1 do CC sobre a responsabilidade do devedor pelos “actos dos representantes legais ou auxiliares” ( “1. O devedor é responsável perante o credor pelos actos dos seus representantes legais ou das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais actos fossem praticados pelo próprio devedor.”).

Esta norma, inserida no âmbito da responsabilidade obrigacional, postula o princípio geral da responsabilidade objectiva do devedor perante o credor pelos actos das pessoas que utilize no cumprimento da obrigação, uma vez que o risco resultante da actuação dos auxiliares do cumprimento é atribuído ao próprio devedor.

Fora dos contratos cuja tipicidade implica a entrega temporária de bens ( por ex., locação, comodato, depósito ), há situações em que a execução do contrato envolve a transmissão temporária do domínio de facto sobre a coisa, a implicar os deveres laterais de conduta, como os de custódia e protecção, visando preservar a integridade dos bens.

Por isso, se o devedor tiver a obrigação de guardar e preservar a coisa também responderá pelo facto dos auxiliares a quem ela foi entregue, já que o “cumprimento” referido no art.800 nº1 do CC, vai para além da mera execução da prestação a que o devedor se vinculou, abrangendo os deveres laterais de conduta que integram a relação obrigacional complexa, onde se incluem os deveres de protecção ( cf., CARNEIRO DA FRADA, Contrato e Deveres de Protecção, pág.209 e segs.).

            Pois bem, a partir do momento em que a Ré assumiu a obrigação de vigilância, sobre ela impendia os deveres de guarda e de preservação da integridade do bem, como, aliás, resulta da cláusula 1ª nº2 , cláusula 7ª nº1 c) do contrato, e há até quem defenda que o lesado terá apenas que fazer prova da violação do dever de protecção que impendia sobre o devedor, não tendo sequer que invocar qualquer facto do auxiliar ( cf. CARNEIRO DA FRADA, loc.cit., pág.213).

            Discute-se se a responsabilidade (objectiva) do devedor pressupõe ou não a imputação do facto danoso ao auxiliar, ou seja, a culpa deste.

            Segundo determinado entendimento, o devedor só responde, nos termos do art.800 nº1 do CC, se o houver culpa do auxiliar, pois que a responsabilidade (objectiva) requer uma imputação do facto ao auxiliar, tal como na responsabilidade do comitente ( cf., por ex., ANTUNES VARELA, Das Obrigações, II, pág.101 ).

Noutra perspectiva, a responsabilidade do devedor não depende de prévia imputação do facto ao auxiliar, porquanto “ projecta-se o comportamento do auxiliar na pessoa do devedor, isto é, este será responsável logo que a actuação dos auxiliares, pensada na pessoa do devedor, preencha uma previsão de responsabilidade “ ( cf. CARNEIRO DA FRADA, , Contrato e Deveres de Protecção, pág.210 ). É que a parte final do art.800 nº1 ( “ como se tais actos fossem praticados pelo devedor “) ficciona a  substituição do autor do facto pela pessoa do devedor, possibilitando “ um alargamento da zona de responsabilidade e da tutela do lesado”.

            Como quer que seja, a admitir-se a tese da culpa dos auxiliares, ela está presumida ( art.799 do CC), por incumbir ao devedor a prova da falta da culpa dos auxiliares ( cf. VAZ SERRA, A responsabilidade do devedor pelos factos dos auxiliares, dos representantes ou dos substitutos”, BMJ 72, pág.282 ), mas que a Ré não logrou demonstrar.

2.5. - A responsabilidade da Ré Seguradora

            A sentença recorrida absolveu a Ré Seguradora com o argumento de que o contrato de seguro não cobre os danos, em face da cláusula 3ª nº2 a) das condições gerais da apólice. A Apelante considera que a apólice tem cobertura pelas condições particulares ( cf. alínea D)).

O contrato de seguro é formal, devendo ser reduzido a escrito (art.426 do Código Comercial), num documento designado por apólice. A Apólice é o documento que titula o contrato celebrado entre o tomador do seguro e a seguradora, de onde constam as respectivas condições gerais, especiais, se as houver, e particulares acordadas ( art.32 a 38 do DL nº 72/2008 de 16/4 ).

O contrato de seguro celebrado entre as partes é o de seguro de responsabilidade civil, em que, na definição do art.137 do DL nº72/2008 de 16/4, “ O segurador cobre o risco de constituição no património do segurado de uma obrigação de indemnizar terceiros”. Refira-se que o seguro de responsabilidade civil é obrigatório para as empresas de segurança privada, em conformidade com o imposto pelo DL nº 35/2004 de 21/2 (art. 26 nº2 e), e expressamente referido nas condições particulares do seguro.

Nas condições gerais da apólice consta ( cláusula 3º nº2 a) ) o seguinte

“ Salvo convenção expressa em contrário nas Condições Especiais e Particulares, e sem prejuízo de outras exclusões nelas constantes, o presente contrato não garante
a) danos causados a bens ou objectos de terceiros que esteja confiados ao Segurado para guarda, utilização trabalho ou outro fim”

Importa interpretar esta cláusula no contexto do contrato de seguro, da sua finalidade e da natureza do risco assumido.

            Os contratos de seguros, como contratos de adesão, devem ser submetidos a controlo judicial não só ao nível da tutela da vontade do segurado, tomando-se em conta os critérios interpretativos dos arts.236 e 237 do CC, como também ao nível do conteúdo das condições gerais do contrato, relevando, para tanto, as normas de ordem pública ( art.280 do CC ) e as cláusulas gerais da boa fé ( arts.227 nº1 e 762 nº2 do CC ).

            O DL 446/85 de 25/10, com as alterações introduzidas pelo DL 220/95 de 31/8, estabelece, como princípio geral, que “ as cláusulas gerais são interpretadas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular, em que se incluam “ ( art.10º ). Adoptando-se uma metodologia semelhante à do Código Civil (art.236 e segs.), dá-se, no entanto, prevalência a uma justiça individualizadora, ao remeter-se para o contexto de cada contrato singular.

Assim, na interpretação das cláusulas do contrato de seguro deve apurar-se o sentido normal da declaração, ou seja, o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, segundo a teoria da impressão do destinatário ( art.236 nº1 do CC ). Mas nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso ( art.238 do CC ). Isto significa que a letra do negócio ( o texto do documento ) surge como limite à validade de sentido com que o negócio deve valer, nos termos gerais da interpretação.

            Porém, constituindo um claro afloramento do princípio geral da justiça contratual, o art.11 nº1 determina que “ as cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contraente indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real “, prevalecendo, na dúvida, o sentido mais favorável ao aderente ( nº2 ) ( cf., sobre as regras de interpretação do contrato de seguro, J.C. MOITINHO DE ALMEIDA, Contrato de Seguro, 2009, pág.116 e segs.).

            No contrato de seguro, as condições particulares prevalecem sobre as condições gerais, e na cláusula 3ª nº2 a) ( exclusões) ressalva-se convenção expressa nas condições especiais e particulares.

            O documento de fls. 45 ( cf. alínea D) ) reporta-se às “condições particulares” da apólice nº …, abrangendo a “responsabilidade civil, prevenção e segurança”, de acordo com o DL nº35/2004 de 21/2 ( ao tempo, em vigor ).

            Por conseguinte, a interpretação que se colhe é no sentido de que as partes quiseram cobrir a cobertura dos danos resultantes do exercício da actividade de vigilância, prevenção e segurança, com os limites e franquia plasmados, actividade essa que pela sua própria natureza ( e imposição legal ) envolve a guarda e protecção de bens de terceiros, sendo que na dúvida, deve ser este o sentido prevalecente.

Por outro lado, uma vez que o DL nº35/2004 de 21/2 ( art. 26 nº2 e ) impõe o seguro obrigatório ( seguro de responsabilidade civil no valor mínimo de € 250.000) mas não havendo sido objecto de regulamentação, tem directa aplicação a norma imperativa do art. 146 nº5 do DL nº 72/2008, da qual se extrai a possibilidade das partes poderem convencionar o âmbito da cobertura, “desde que o contrato seguro cumpra a obrigação legal e não contenha exclusões contrárias à natureza dessa obrigação “.

Ora, a cláusula interpretada fora do seu contexto neutralizaria o objectivo e imperatividade do seguro obrigatório, o que implicaria, por esta via, a consequente invalidade e a prevalência, inserção automática ou eficácia mediata do conteúdo do regime obrigatório ( cf., por ex, o Ac RC de 8/9/2009 ( proc. nº 165/06) relatado pelo aqui adjunto, Des. Teles Pereira), disponível em www dgsi.pt ).

            Conclui-se, assim, pela responsabilização da Seguradora.

            O montante global dos danos importa em € 32.034,54 (dada a recuperação do carro de mão, no valor de € 100,00), por cujo pagamento são responsáveis solidariamente as demandadas, havendo que deduzir o valor da franquia (€ 1.250,00) quanto à Seguradora A...

            2.6. – Síntese conclusiva

1. Celebrado um contrato de prestação de serviço de vigilância, tendo por objecto a segurança, controle de acesso e protecção de bens de umas instalações, durante horário nocturno, com a presença de um vigilante, havendo um furto por arrombamento nas referidas instalações, durante esse período, verifica-se incumprimento do contrato, por violação do dever de vigilância e de prevenção.

2. Mesmo nas obrigações de meios cabe ao devedor provar que cumpriu a obrigação, porque é quem está em melhores condições de demonstrar que usou da diligência devida.

3. Uma vez que a Ré (empresa de segurança) prestou o serviço através de um seu funcionário (vigilante) tem directa aplicação o regime do art. 800 nº1 do CC sobre a responsabilidade do devedor pelos “ actos dos representantes legais ou auxiliares”, postulando-se o princípio geral da responsabilidade objectiva do devedor perante o credor pelos actos das pessoas que utilize no cumprimento da obrigação, uma vez que o risco resultante da actuação dos auxiliares do cumprimento é atribuído ao próprio devedor.

4. Os contratos de seguros, como contratos de adesão, devem ser submetidos a controlo judicial não só ao nível da tutela da vontade do segurado, tomando-se em conta os critérios interpretativos dos arts.236 e 237 do CC, como também ao nível do conteúdo das condições gerais do contrato, relevando, para tanto, as normas de ordem pública (art.280 do CC) e as cláusulas gerais da boa fé ( arts.227 nº1 e 762 nº2 do CC ).


III - DECISÃO

            Pelo exposto, decidem

1)

            Indeferir a junção de documentos requerida pela Apelante.

2)

            Julgar parcialmente procedente a apelação e revogar, em parte, a sentença.

3)

            Julgar a acção parcialmente procedente e condenar as Rés a pagar à Autora a quantia de € 32.034,54, acrescida de juros de mora vincendos, a taxa de prevista para as empresas comerciais, desde a citação e até integral pagamento, sendo a responsabilidade da Ré A… solidária até ao valor de € 31.784,54.

4)

            Condenar as Rés nas custas da acção, na proporção do decaimento.

5)

            Condenar Apelante e Apelada nas custas da Apelação na proporção do decaimento.

            Coimbra, 8 de Abril de 2014.


( Jorge Arcanjo - Relator)

( Teles Pereira )

( Manuel Capelo )