Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
651/10.5TMCBR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: INVENTÁRIO
COMPETÊNCIA MATERIAL
Data do Acordão: 02/23/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.101, 105, 288, 1326 CPC, LEI Nº 29/2009 DE 29/6, LEI Nº 1/2010 DE 15/1, LEI Nº 44/2010 DE 3/9
Sumário: Por força do retardamento da entrada em vigor da Lei nº29/2009 de 29 de Junho, operado pelas Leis nº01/2010 de 15.01 e nº44/2010 de 03.09, a qual assim não produziu ainda os seus efeitos, o processo de inventário não deve ser instaurado nos serviços registrais ou notariais, como previsto naquele diploma, mas antes no tribunal territorialmente competente que, para o efeito, continua (ainda) a cobrar competência material.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

A (…) instaurou, em 06.12.2010, por apenso à acção de divórcio relativa a AA (…), processo especial de inventário para partilha dos bens comuns do casal.

 2.

Liminarmente foi proferido despacho que declarou a incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria nos termos doa artºs 101º, 105º, 288º nº1 al.a) e 494º al.a) do CPC.

Para tanto foi aduzido que estando já em vigência, desde o dia 18.07.2010, o novíssimo regime jurídico do processo de inventário, instituído pela Lei 29/2009 de 29 de Junho - ex vi do artº 87º da Lei 1/2010 de 15 de Janeiro -  entrou em vigor em 18 de Julho de 2010,  competentes para apreciar e decidir são as Conservatórias de Registo e os Cartórios Notariais.

Até porque face ao novo regime, este processo deixa de correr por apenso aos autos de divórcio, devendo ele ser instaurado com processo independente naquelas conservatórias e cartórios.

3.

Inconformado recorreu o inventariante.

Rematando as suas alegações com as seguintes nucleares conclusões:

 A lei 29/2009 de 29 de Junho foi já objecto de duas alterações legislativas.

 A última das quais introduzida pela Lei 44/2010 de 03 de Setembro, a qual, retroagindo os seus efeitos a 18.07.2010, determinou que aquela lei só entrará em vigor 90 dias após a publicação de Portaria que a regulamente.

Ora tal Portaria não foi, até ao presente, publicada, pelo o novo regime de inventário não está, nem nunca esteve, em vigor, o que tem legitimado a recusa dos Notários e Conservatórias em receber e tramitar os processos.

O despacho sindicado raciocinou como se aquela Lei tivesse sido alterada apenas uma vez, pelo que fez errada interpretação das disposições legais aplicáveis, pois que se encontram ainda em vigor os artºs 1326 a 1405º do CPC, que atribui a competência aos tribunais

Devendo, pois, o processo seguir os seus legais termos no tribunal, sob pena de denegação de justiça, um non liquet.

4.

Os factos a considerar são os dimanantes do relatório supra, sendo de atentar ainda que a acção deu entrada em 02.11.2010 e o despacho ora posto sub sursis, foi prolactado em 05.11.2010.

5.

Apreciando.

A questão é simples.

Efectivamente e nos termos do artº 3º da Lei 29/2009 de 29 de Junho a competência para tramitar e decidir no inventário passa a caber aos serviços de registos.

Tal competência não é prejudicada pelo facto de o juiz, nos termos do artº 4º, ter o controlo geral do processo, podendo, a todo o tempo, decidir e praticar os actos que entenda deverem ser decididos ou praticados pelo tribunal.

Na verdade trata-se de uma mera faculdade conferida ao juiz que dela fará uso segundo o seu prudente arbítrio.

Ora importa distinguir entre a publicação da lei e a sua vigência.

Efectivamente «com a publicação a lei passa a ser obrigatória, mas isso não quer dizer que seja desde logo aplicável. A vigência da lei pode começar com a sua publicação, ou pode começar só em momento posterior … se há forma de publicação que condiciona a entrada em vigor o principio geral é o de que se deve observar uma vacatio legis, ou seja, um intervalo entre a publicação e a  vigência da lei… e podendo ainda a entrada em vigor ficar dependente de um evento futuro, p. ex. a publicação de outra lei... isso quer dizer que durante esse tempo a lei antiga mantém a sua vigência»  - Oliveira Ascensão in O Direito, 2ª ed. p. 254.

No caso vertente verifica-se que o artº 87º da Lei 29/2009 estatuiu que ela entraria em vigor no dia 18.01.2010.

Porém – e porventura porque não estavam ainda reunidos os pressupostos fáctico-materiais para a aplicação, situação infelizmente muito frequente nos tempos que correm, o que, na sabedoria popular pode eventualmente significar ter-se «posto o carro à frente dos bois» – a sua entrada em vigor foi protelada, pela Lei 1/2010 de 15.01, para o dia 18 de Julho de 2010.

Mas não entrou em vigor nesta data.

É que, mais uma vez, através da Lei 44/2010 de 03.09, foi retardada a entrada em vigor da lei 29/2009, alterando, com efeitos a retroagirem a 18.07.2010, o seu artigo artº 87º nº1, nos seguintes termos: «a presente lei produz efeitos 90 dias após a publicação da portaria referida no nº3 do artigo 2º».

Isto é, novamente se protelou a entrada em vigor da lei da 29/2009 -  agora com a irrelevante nuance do acento tónico ser posto na produção de efeitos -, e fazendo-a depender de um futuro acto regulamentador do governo e, assim, eventualmente, remetendo a sua aplicação para as calendas gregas.

Ora, à data da apresentação em juízo do requerimento inicial, data da fixação da competência: artº 24º da LOFTJ, ainda não tinha sido publicada a aludida portaria e decorrido os 90 dias subsequentes, e, tanto quanto nos apercebemos, ainda não foi.

Nesta conformidade, e como meridianamente ressumbra dos princípios gerais muito sumariamente supra expostos, a lei antiga que regula a atribuição da competência para o processo de inventário continua validamente vigente e eficaz.

O Sr. Juiz deu-se conta da publicação e teor da Lei 44/2010 – o que, noutro caso deste jaez que já nos surgiu, se indiciou não acontecer.

E parecendo distinguir – se bem entendemos a sua argumentação – entre competência material, que desde já considera excluída dos tribunais e atribuída às conservatórias, e regulamentação processual que permita a efectivação pratica daquela competência. Concluindo que esta inexistência não prejudica aquela competência.

Mas se bem que, em tese académica, tal raciocínio possa ser defensável – ainda que, como supra se referiu tal não se alcance como o mais curial, ou, pelo menos, adequado - o certo é que, numa perspectiva mais prático-jurídica, a competência e as condições para a sua plena e efectiva assumpção são indissociáveis.

Caso contrário - e como parece estar já acontecer nesta matéria, por decorrência da exclusão da competência tanto por parte dos tribunais como por banda dos serviços previstos na nova lei -, tal implicaria, como bem alerta o recorrente,  situações de impasse decisório, o qual, e apesar de todas estas evitáveis e indesejáveis vicissitudes criadas pelo legislador, certamente que por este não foi desejado.

Devendo pois os tribunais, com base na lei pretérita ainda aplicável, maxime porque, versus a nova, prevê iter procedimental já conhecido e firmado, continuar a tramitar e decidir nesta matéria.

 Pois que, se mais não houvesse -, que há, como se viu -, tal seria a solução que melhor se compaginaria com a efectiva e mais célere apreciação, composição e defesa dos direitos e interesses do cidadão utente da justiça, um dos fitos fulcrais a ter-se primordialmente em consideração numa determinada postura exegética legal ou opção jurisdicional.

Ou seja, o processo ainda devia ter sido instaurado – como o foi – no tribunal.

Procede o recurso.

6.

Sumariando.

Por força do retardamento da entrada em vigor da Lei 29/2009 de 29 de Junho, operado pelas Leis 01/2010 de 15.01 e 44/2010 de 03.09, a qual assim não produziu ainda os seus efeitos, o processo de inventário não deve ser instaurado nos serviços registrais ou notariais, como previsto naquele diploma, mas antes no tribunal territorialmente competente que, para o efeito, continua (ainda) a cobrar competência material.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda conceder provimento ao recurso e, na declaração da competência do tribunal recorrido, ordenar o prosseguimento dos autos.

Sem custas.


Carlos Moreira ( Relator )
Moreira do Carmo
Alberto Ruço