Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1707/20.1T8CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
REQUISITOS
EXTINÇÃO
POSTERIOR
DA CAUSA PARA A PRESTAÇÃO
Data do Acordão: 02/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 342.º, 1, 473.º E 482.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – A obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa pressupõe a verificação cumulativa de vários requisitos enunciados no art. 473º do C.Civil, entre os quais figura o de que o enriquecimento, contra o qual se reage, careça de causa justificativa – ou porque nunca a tenha tido ou porque, tendo-a inicialmente, entretanto a haja perdido.

II – É que se verifica quando, como no caso ajuizado, a ação de enriquecimento sem causa se funda na circunstância de ter havido uma causa para a prestação efetuada que deixou de existir [foi atribuída a totalidade da propriedade denominada por “H...” a AA, assumindo esta a obrigação de restituir ao seu pai a parcela sul dessa propriedade, o que não veio a suceder], sendo assim, porque correspondente ao empobrecimento verificado, procedente o pedido de condenação no pagamento do valor equivalente ao da parcela de terreno que deveria ter sido transmitida.

Decisão Texto Integral:
Proc. nº1707/20.1T8CTB.C1[1]

Apelações em processo comum e especial (2013)

                                                                       *

            Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[2]

                                                                       *

            1 – RELATÓRIO

BB, residente no Beco ..., Quinta ..., instaurou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra CC e DD, ambos residentes na Rua ..., ..., ..., EE, FF e GG, os três residentes na Rua ..., ..., pedindo que se reconheça a celebração de um negócio fiduciário e, em consequência, que se ordene o registo da compropriedade de 19/50 sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...80, da Freguesia ..., a favor da herança aberta por óbito de HH.

A título subsidiário, solicita o Autor que a herança aberta por óbito de AA, representada pelos Réus EE, FF e GG, seja condenada a indemnizar a herança aberta por óbito de HH, representada pelo Autor, «a título de enriquecimento sem causa, no valor de 24.000,00 €, acrescido dos juros legalmente aplicáveis desde a citação».

Para além disso, solicita ainda o Autor que «seja constituída servidão de utilização da água por destinação do pai de família do furo existente no prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...80, da Freguesia ..., a favor do prédio omisso na Conservatória com os artigos matriciais ...15..., ...16... e ...69º da União das Freguesias ..., ... e ..., mais sendo os RR. condenados a repor a infraestrutura de passagem da água, ou a pagar os respetivos custos caso o trabalho seja executado a pedido do A., acrescido de juros legalmente aplicáveis».

Para tanto, alega, em síntese, o Autor que o prédio rústico situado em ..., com a área de 20.556 m2 e que se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...80 pertenceu aos seus pais HH e II, ambos já falecidos.

Para além do Autor, HH e II tiveram uma outra filha, AA, já falecida, a qual deixou como herdeiros o seu marido, o Réu EE, e os dois filhos, os Réus FF e GG.

Sucede que, no ano de 2007, quando foram realizadas partilhas por óbito de II, o Autor, o seu pai e a sua irmã acordaram que uma parcela do prédio rústico atrás identificado seria adjudicada a AA, a título de dação em pagamento de uma dívida que o Autor tinha contraído perante a mesma, enquanto a segunda parcela do referido prédio seria adjudicada ao pai do Autor, HH.

Contudo, não tendo sido possível efetuar o destaque da parcela em causa, na data agendada para a outorga da partilha o Autor, o seu pai e a sua irmã acordaram que esta «ficaria titular do prédio todo até ao falecimento de HH, altura em que a titularidade da parcela B (…) deveria ser restituída à sua herança para efeitos de partilha”, sem prejuízo de tal parcela ser transmitida “para o nome de HH ainda em vida deste», caso fosse possível regularizar a documentação necessária.

Apesar disso, os herdeiros de AA não aceitam integrar a referida parcela na relação de bens apresentada para efeito de realização da partilha da herança aberta por óbito de HH, tendo, inclusivamente, vendido a totalidade do terreno aos Réus CC e DD pelo preço de € 63.000,00.

Acresce ainda que «desde há cerca de 40 anos que o terreno vizinho, denominado C..., se serve da água proveniente do furo existente no prédio objeto destes autos», sendo certo que também o prédio denominado C... integra a herança aberta por óbito do pai do Autor.

Efetivamente, «HH e JJ compraram o prédio denominado C... pouco depois de 1975” e, depois de adquirirem o prédio rústico atrás identificado, “fizeram ali um furo, colocando um motor para extrair a água e levá-la por tubos de água que colocaram até ao prédio denominado C..., passando por baixo da estrada».

Acontece que, depois de terem comprado o prédio rústico atrás identificado, o que sucedeu no mês de junho de 2020, os Réus CC e DD cortaram os referidos tubos de água, «deixando o prédio denominado C... de ter acesso à água do furo», o que o Autor, na qualidade de cabeça-de-casal da herança da qual faz parte o prédio denominado C..., não aceita.

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Devidamente citados para os termos da presente ação declarativa, os Réus vieram aos autos apresentar contestação.

Com efeito, os Réus EE, FF e GG alegam que a partilha outorgada no dia 10 de janeiro de 2007 espelha o que as partes dela quiseram fazer constar, não padecendo de qualquer vício que possa fundamentar a respetiva nulidade.

Assim, não tendo sido aposta na referida escritura pública qualquer cláusula fiduciária ou qualquer condição de validade, concluem os Réus que os pedidos formulados pelo Autor deverão ser julgados improcedentes.

De qualquer forma, por mera cautela, acrescentam os Réus que, «havendo título de aquisição (escritura de partilha), sempre a posse do terreno durante 10 anos daria lugar à usucapião (artigo 1294º do Código Civil)».

Quanto ao mais, os Réus alegam desconhecer a existência de qualquer servidão que onere o prédio por si vendido, sendo certo ainda que entre os dois prédios em causa existe uma estrada municipal, razão pela qual sempre seria necessária a obtenção de autorização administrativa para que os tubos indicados pelo Autor a pudessem atravessar, o que não foi pelo mesmo alegado.

De todo o modo, acrescentam ainda os Réus que o prédio dominante beneficia de um poço com água e eletrificado e tem acesso a água canalizada.

Por último, alegam os Réus que «o Autor litiga com manifesta má fé ao alegar factos que bem sabe não serem verdade e omitir outros com interesse para a boa decisão da causa, como é o facto de dever à sua irmã AA um valor de 50.000 €», motivo pelo qual solicitam que seja condenado, como litigante de má fé, no pagamento de multa e de indemnização no valor de € 10.000,00.

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Também os Réus CC e DD juntaram aos autos o seu articulado de contestação, nos termos do qual alegam que desconheciam a existência de «qualquer vício que pudesse perigar a sua aquisição» do prédio rústico a que se reportam os presentes autos, motivo pelo qual deverão ser considerados terceiros de boa fé.

De igual forma, os Réus desconheciam também «a existência de qualquer serventia de água proveniente de furo existente no prédio» que compraram aos restantes Réus, tendo a mesma chegado ao seu conhecimento apenas após a outorga do documento particular autenticado que formalizou o contrato de compra e venda.

Por outro lado, tendo verificado que, junto do furo, se encontrava uma derivação de torneiras e que estas estavam todas fechadas, os Réus supuseram que as mesmas «seriam para diversos pontos da propriedade que então tinham adquirido», sendo certo ainda que «as canalizações existentes aparentavam não ser usadas há largos anos».

De todo o modo, caso venha a ser reconhecida a existência de negócio fiduciário e ordenado o registo da compropriedade de 19/50 a favor da herança aberta por óbito de HH, os Réus não têm interesse em manter a propriedade de apenas uma parte do imóvel, já que o adquiriram com o propósito de nele construir a sua casa de habitação.

Assim, uma vez que, para além do preço de € 63.000,00, os Réus suportaram ainda o pagamento da quantia de € 30.000,00 com as obras de reconstrução da edificação existente no local, da quantia de € 2.500,00 com a realização de limpezas e melhoramentos, da quantia de € 4.200,00 com o pagamento de Imposto do Selo, IMT e despesas relacionadas com o registo da propriedade e com a formalização do contrato, bem como da quantia de € 1.600,00 a título de «despesas inerentes à sua defesa, por terem sido chamados à presente ação», solicitam os Réus, em sede reconvencional, que o Autor e os restantes Réus sejam condenados no pagamento da quantia global de € 101.300,00, acrescida de juros contados desde a data da respetiva notificação até integral pagamento.

                                                           *

O Autor juntou aos autos o articulado de réplica a que corresponde a referência n.º 2564733, sustentando que, por não ter celebrado qualquer negócio com os Réus CC e DD, não é responsável pelo pagamento de “eventuais indemnizações que os Reconvintes possam vir a ter se o Tribunal reconhecer que parte da propriedade pertence à herança de HH”.

Assim, requer o Autor que o pedido reconvencional formulado pelos Réus seja julgado improcedente.

Para além disso, o Autor respondeu ao pedido de condenação como litigante de má fé, através da junção aos autos do requerimento a que corresponde a referência n.º 2575906, nos termos do qual alega que se limitou a apresentar a sua versão dos factos e que, caso a mesma venha a ser demonstrada, a sua pretensão é juridicamente defensável.

Deste modo, uma vez que não instaurou a presente ação «com o objetivo doloso de obter uma vantagem ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar o trânsito em julgado de uma decisão», requer o Autor que o pedido de condenação a título de litigância de má fé seja julgado improcedente.

                                                           *

O pedido reconvencional formulado pelos Réus foi admitido, parcialmente, por despacho a que corresponde a referência n.º 33682865, tendo sido rejeitado na parte em que foi solicitado o pagamento da quantia de € 1.600,00.

Após o envio dos autos ao Juízo Central Cível ..., o Autor foi convidado, ao abrigo do disposto no artigo 590º, n.º 2, alínea b), n.º 3 e 4, do CPC, a suprir as insuficiências na exposição da matéria de facto apontadas no despacho a que corresponde a referência n.º 33936730, especificando os factos que fundamentam o pedido formulado a propósito da servidão de águas por si invocada.

Em consequência, o Autor juntou aos autos o articulado aperfeiçoado a que corresponde a referência n.º 2743241, tendo os Réus EE, FF e GG reformulado também a sua contestação, nos termos constantes do requerimento com a referência n.º 2749048.

A audiência prévia foi dispensada, tendo sido proferido despacho saneador, bem como despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova (cfr. referência n.º 34147646).

Nessa sede foi proferida decisão de absolvição dos Réus EE, FF e GG da instância relativamente ao pedido reconvencional anteriormente admitido, tendo os autos prosseguido os respetivos termos apenas para conhecimento dos pedidos formulados pelo Autor na sua petição inicial e do pedido reconvencional formulado contra o Autor, exceto no que diz respeito ao montante de € 1.600,00.

Procedeu-se à realização da audiência final, com observância de todas as formalidades legais aplicáveis, conforme resulta das atas respetivas.

Na sentença, considerou-se, em suma, que face à factualidade apurada, importava concluir no sentido de que improcedia o pedido formulado pelo Autor relativamente ao «registo da compropriedade de 19/50 avos sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...80 da Freguesia ... a favor da massa da herança de HH», mas já se considerava procedente o pedido subsidiário de condenação da herança aberta por óbito de AA, representada pelos Réus EE, FF e GG, a indemnizar a herança aberta por óbito de HH, «a título de enriquecimento sem causa, no valor de 24.000,00 €, acrescido dos juros legalmente aplicáveis desde a citação», sendo ainda devido o pagamento dos correspondentes juros de mora, calculados à taxa legal de 4%, desde o dia 29 de janeiro de 2021 até integral pagamento, acrescendo que igualmente se considerava procedente o pedido de reconhecimento da constituição de uma «servidão de utilização da água por destinação do pai de família do furo existente no prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...80, da Freguesia ..., a favor do prédio» denominado C..., com a consequente condenação dos Réus a repor a infraestrutura de passagem da água em causa, sendo certo que se encontrava prejudicada a apreciação do pedido reconvencional formulado pelos Réus CC e DD, impondo-se declarar a extinção da instância reconvencional, e que era de absolver o A. do pedido de condenação a título de litigância de má fé, o que tudo se concretizou no seguinte concreto “dispositivo”:

«VI. Decisão

Em face do exposto, nos termos e com os fundamentos já indicados, decido julgar a presente ação parcialmente improcedente e, em consequência, não determinar o registo da compropriedade de uma quota de19/50 do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...80 (... e oitenta) a favor da herança aberta por óbito de HH.

Mais decido julgar a presente ação parcialmente procedente e, em consequência, condenar os Réus EE, FF e GG, na qualidade de herdeiros na herança aberta por óbito de AA, a reconhecer a existência de um crédito, no valor de € 24.000,00 (vinte e quatro mil euros), acrescidos de juros de mora, calculados à taxa legal de 4%, desde o dia 29 de janeiro de 2021 até integral pagamento, a favor da herança aberta por óbito de HH, bem como a responsabilidade da herança por si representada pelo pagamento do mesmo.

Decido ainda reconhecer a constituição, por destinação do pai de família, de uma servidão de captação de água do furo existente no prédio denominado H..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...80 (... e oitenta) e de transporte da mesma em proveito do prédio urbano denominado C..., inscrito na matriz sob os artigos ...15º (... e quinze) e ...16º (... e dezasseis) da União das Freguesias ..., ... e ... e omisso na Conservatória do Registo Predial, condenando os Réus CC e DD a repor a infraestrutura que se encontrava implantada no local para assegurar essa finalidade.

Mais decido considerar prejudicada a apreciação do pedido reconvencional formulado pelos Réus CC e DD e, em consequência, declarar extinta a instância reconvencional instaurada contra o Autor BB.

Por último, decido também absolver o Autor do pedido de condenação a título de litigância de má fé formulado pelos Réus EE, FF e GG.

As custas da ação ficam a cargo dos cinco Réus e as da reconvenção a cargo dos Réus CC e DD (cfr. artigo 527º, n.º 1 e 2, do CPC), tendo em conta o que foi também consignado no despacho a que corresponde a referência n.º 34147646.

As custas do incidente de litigância de má fé ficam a cargo dos Réus EE, FF e GG, fixando-se a taxa de justiça devida em uma unidade de conta (cfr. artigo 7º, n.º 4, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela II anexa ao mesmo diploma).

Registe (como “decisão de mérito – com julgamento”) e notifique.

*

Após trânsito, comunique o teor desta sentença à Conservatória do Registo Predial ... (cfr. artigo 3º, n.º 1, alínea c), do Código do Registo Predial).»

                                                           *

Inconformados com essa sentença, apresentaram os RR. EE, FF e GG recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

«A- São elementos constitutivos do enriquecimento sem causa por força do artigo 473º do Código Civil o enriquecimento, o empobrecimento, o nexo causal entre um e outro e que a lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser restituído.

B- O artigo 482º do Código Civil estabelece o prazo de 3 anos a partir do momento em que o credor teve conhecimento do seu direito tendo o Autor outorgado a escritura no dia 10 de janeiro de 2007

C- Ninguém deu instruções à Dr.ª KK para avançar com o destaque, como a própria afirmou no seu depoimento, “ Ainda assim, na parte final do seu depoimento a mesma testemunha esclareceu que concluiu a prestação de serviço que lhe foi solicitada, o que significa que não ficou por executar qualquer atividade relacionada, nomeadamente, com o destaque de alguma parcela de terreno. Como se pode ler a fls 5 da ata de julgamento de 28 de março de 2022 aquando do pedido de levantamento do sigilo profissional.

D- O documento autêntico faz prova plena dos factos referidos como praticados pelo documentador: tudo o que o documento referir como tendo sido praticado pela entidade documentadora, tudo o que, segundo o documento, seja obra do seu autor, tem de ser aceite como exacto (art. 371º, nº 1, 1ª parte, do CC)

NORMAS JURÍDICAS VIOLADAS:

Artigo 437º do Código Civil

Artigo 482º do Código Civil

Artigo 371º do Código Civil

Termos em que deverá ser anulada a douta sentença e os Réus absolvidos de todos os pedidos formulados pelo Autora, assim se fazendo

JUSTIÇA»

                                                                       *

Contra-alegou o Autor, extraindo do respetivo articulado as seguintes “conclusões”:

«A. Quanto ao objeto do recurso, requer seja considerado limitado a matéria de direito, uma vez que a matéria de facto não foi impugnada em cumprimento do artigo 640.º do CPC.

B. Se se considerar a sentença suficientemente fundamentada, sem necessidade de reenviar o processo para reapreciação da prova, requer seja a matéria de facto provada e não provada considerada aceite, por não vir admissivelmente impugnada nas alegações de recurso.

C. No entanto, à cautela e para o caso o Douto Tribunal ter entendimento diferente, passa a impugnar as alegações sobre matéria de facto, dentro dos concretos argumentos apresentados pelos Recorrentes.

D. Nas suas alegações, os Recorrentes começam por referir que, no requerimento dirigido à Câmara, teria ficado a constar que o prédio tem 20.556 m2, conforme doc. 8 junto à contestação, pelo que a falecida AA entenderia ser dona de toda esta área.

E. O doc. 8 junto à contestação não é o requerimento submetido à Câmara pela falecida AA é outrossim, o parecer da Câmara em reposta ao requerimento que a falecida AA terá submetido à Câmara, requerimento este que não está junto aos autos.

F. E em tal parecer, os técnicos da Câmara apenas se limitam a escrever a identificação matricial e registal do prédio, especificando a respetiva área constante nesta documentação é de 20.566 m2.

G. Salvo melhor entendimento, parece-nos que nada se consegue concluir com base neste documento quanto à perspetiva da falecida AA sobre o negócio fiduciário em causa.

H. De outro modo, o topógrafo contratado pela falecida AA, cujo levantamento topográfico submeteu à Câmara, apenas fez o desenhou a parte Norte do prédio, tendo parado precisamente na linha de água objeto do acordo fiduciário celebrado entre o Recorrido e os falecidos BB e AA.

I. O que indica que a falecida AA apenas considerava sua a parte a Norte da propriedade, porque só esta é que foi objetos de projetos e só esta foi submetida à Câmara.

J. Facto este que, conjugado com os demais referidos na sentença, formou a convicção do Tribunal em como o alegado negócio fiduciário terá acontecido.

K. Mais alegam os Recorrentes que o negócio fiduciário nunca seria concretizável porque o destaque seria impossível à luz do artigo 1376.º do Cód. Civil, tendo em conta as unidades de cultura.

L. Sem prejuízo de existirem outras alternativas ao destaque, como a criação de uma compropriedade, ou indemnização na proporção da área perdida, parece-nos que o destaque seria sim legalmente admissível neste caso, posição esta que também foi adotada pela douta sentença recorrida.

M. O doc. 8 junto à contestação dos recorrentes, emitido pelos técnicos da Câmara, refere que: “(…) verifica-se que o objeto da pretensão está inserido num espaço predominantemente urbano, classificado como espaço urbanizável (…) Não está inserido em áreas delimitadas da R.E.N. (…) Não está inserido em áreas delimitadas da R.A.N. (…) nestes espaços podem ser autorizadas a construção de edifícios destinados a equipamentos públicos conforme pretendido (…)”, indicando de seguida que no terreno objeto destes autos é possível construir 40 fogos por hectare, entre outros parâmetros urbanísticos concretos, acabando por concluir que “É viável a construção de edificação ao uso pretendido, designadamente estabelecimento de apoio a pessoas idosas (…)”.

N. O que significa que até está preenchida a exceção da aliena a) ou, eventualmente, alínea c) do artigo 1377º do Código Civil, pelo que não se verificam as alegadas objeções ao destaque.

O. De seguida os Recorrentes alegam que a testemunha KK não ficou de fazer nenhum destaque depois da partilha, pelo que ninguém terá na altura falado em fazer o tal destaque.

P. Ora, o depoimento desta testemunha não deverá ser considerado relevante, por não ter sido possível desenvolver os temas em causa nem colocar as perguntas que seriam pertinentes à compreensão da sua perspetiva, ao ter sido invocado o sigilo profissional.

Q. Em todo o caso, a testemunha KK não é a única solicitadora que existe em Portugal, e os destaques até costumam ser solicitados a Arquitetos.

R. E o destaque nem teria de ser executado no imediato, porque o falecido BB já estava e manteve-se até à morte na posse da sua parcela a Sul da propriedade.

S. E nenhum dos intervenientes no negócio fiduciário esperava que a AA adoecesse e falecesse repentinamente.

T. Nos parágrafos 5º e 17º das suas alegações, os Recorrentes referem que a partilha por óbito de II teria servido para pagar uma dívida do Recorrido à falecida AA.

U. Esta dívida ficou a constar na matéria de facto provada na sentença.

V. Para que a dívida do Recorrido à irmã AA ficasse paga, ficou decidido que a parte Norte do prédio objeto destes autos ficaria para a falecida AA, que ali pretendia fazer um lar de idosos.

W. O que nada tem a ver com a parte Sul do prédio, sobre a qual incide o litígio.

X. Ou seja, a referida dívida em nada põe em causa o negócio fiduciário celebrado entre as partes.

Y. Nos parágrafos 9.º e 12.º das suas alegações, os Recorrentes argumentam que, como o negócio fiduciário não ficou a constar na escritura pública de partilha, então é porque não existiu.

Z. O que não se pode aceitar, uma vez que não existe nenhum normativo legal que exija que os negócios fiduciários tenham de ser celebrados por escritura pública.

AA. E a partilha celebrada por escritura pública em nada conflitua com o negócio fiduciário, isto porque, à data da partilha, o prédio era (e ainda é) um só, pelo que naquele momento as partes sabiam e aceitaram que não conseguiam no imediato que a parte Norte ficasse para a AA e a parte Sul para o BB.

BB. Assim, aceitando que naquele momento a AA ficasse titular da totalidade do prédio, as partes fizeram-no com o propósito de a habilitar a proceder ao destaque da parcela a Sul da linha de água, para depois a transmitir para o BB.

CC. O que a falecida AA não chegou a fazer, não porque não quisesse, mas porque infelizmente adoeceu logo de seguida com cancro.

DD. E os Recorrentes, na qualidade de herdeiros da falecida AA, incumpriram o negócio fiduciário, ao terem vendido a totalidade do prédio a terceiros, pelo que são civilmente responsáveis pelos prejuízos causados ao Recorrido.

EE. Ao contrário do que alegam os Recorrentes, a condenação não foi sustentada no instituto do enriquecimento sem causa, mas outrossim no regime da responsabilidade civil contratual / obrigacional.

FF. A responsabilidade civil contratual decorre do incumprimento da obrigação pessoal de conservação e retransmissão da parcela a Sul do prédio adjudicado em partilha.

GG. Por último, os Recorrentes vêm ainda alegar que o prazo de prescrição para anular a partilha já terá caducado.

HH. Argumentação esta que não nos parece atendível, desde logo porque o Recorrido nunca quis nem pediu a anulação da partilha.

II. O Recorrido concordou e aceita a partilha, que também serviu para habilitar a falecida AA a dar cumprimento ao negócio fiduciário.

JJ. O negócio fiduciário pôde ser cumprimento pela AA ou pelos seus herdeiros até ao momento em que o prédio foi vendido na totalidade a terceiros.

KK. Ou seja, só a junho de 2020 é que o negócio fiduciário foi definitivamente incumprido, com a venda a terceiros.

LL. E só a partir de junho de 2020 é que começou a contagem do prazo de prescrição de 20 anos para o Recorrido peticionar uma indemnização pelo incumprimento do contrato.

Face ao exposto, requer seja o Recurso julgado improcedente, mantendo-se a Douta Decisão recorrida.

ASSIM DECIDINDO FARÃO V. EXAS. VENERANDOS JUIZES DO VENERANDO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA A ACOSTUMADA JUSTIÇA»

                                                           *

            A Exma. Juíza a quo proferiu despacho a admitir o recurso interposto, providenciando pela sua subida devidamente instruído.

            Nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2QUESTÕES A DECIDIR: o âmbito do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – arts. 635º, nº4 e 639º do n.C.P.Civil – e, por via disso, por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, as questões são:

- falta de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto [art. 662º, nº 2 do n.C.P.Civil]?;

 - desacerto da decisão de procedência da ação [nomeadamente porque da escritura pública de partilhas celebrada não constava qualquer intenção/vontade de destaque que tivesse sido incumprida; não verificação dos pressupostos para a procedência do pedido de enriquecimento sem causa; prescrição do direito (art. 482º do C.Civil)]?

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A factualidade que interessa ao conhecimento do presente recurso, é a que foi alinhada na decisão recorrida (e que não foi expressamente alvo de impugnação nas alegações recursivas), a saber:

«Factos provados

Tendo-se procedido à realização da audiência final, e após apreciação de toda a prova produzida nos autos, resultaram provados os seguintes factos:  

1. O prédio rústico situado em H..., ..., com a área de 20.556 m2, composto de terra de cultura com videiras em cordão, árvores de fruto,

oliveiras, pomar e pastagem com oliveiras, que confronta a norte com estrada, a sul com LL, a nascente com MM e a poente com NN, está descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...80 e inscrito na matriz sob o artigo ...79º, da União das Freguesias ..., ... e ..., que teve origem nos anteriores artigos ... e ....

2. O prédio rústico identificado em 1. pertenceu aos pais do Autor, HH e II.

3. Pela apresentação n.º ..., de 6 de junho de 2008, encontra-se registada a aquisição do prédio rústico identificado em 1. a favor de AA, casada com o Réu EE sob o regime da comunhão de bens adquiridos, por dissolução da comunhão conjugal e partilha da herança de II.

4. Pela apresentação n.º 2072, de 25 de junho de 2020, encontra-se registada a aquisição do prédio rústico identificado em 1. a favor dos Réus CC e DD, por compra aos Réus EE, FF e GG, que intervieram na qualidade de únicos herdeiros habilitados por óbito de AA.

5. No dia 23 de julho de 1982 OO e mulher, PP, na qualidade de primeiros outorgantes, e HH, na qualidade de segundo outorgante, declararam, perante Notário, o seguinte:

“Que pelo preço de novecentos mil escudos, vendem ao segundo outorgante: «Metade de uma terra de cultura com oliveiras e casa para despejos, sita no Ribeiro ..., freguesia já referida de ..., denominada H..., que parte do nascente e poente com estrada pública, norte com herdeiros de MM e sul com QQ, inscrito na matriz sob o artigo quatrocentos e sessenta e três, com o valor matricial correspondente à fração de catorze mil, oitocentos e oitenta escudos. E que tendo recebido do segundo outorgante o referido preço dão como efetuada a venda. Declarou em seguida o segundo outorgante que aceita o presente contrato.”.

6. No dia 21 de outubro de 1983 RR, na qualidade de primeira outorgante, e HH, na qualidade de segundo outorgante, declararam, perante Notário, o seguinte:

“Que, pelo preço de duzentos e vinte mil escudos, vende ao segundo outorgante, o seguinte prédio: «Metade de uma terra de cultura com oliveiras no sítio do Ribeiro ..., Freguesia ..., que confronta do nascente e poente com a estrada, norte com SS e sul com TT», inscrita na matriz sob o artigo rústico quatrocentos e sessenta e dois, com o valor matricial e correspondente à fração de catorze mil, oitocentos e oitenta escudos; E que tendo do segundo outorgante recebido o referido preço, dá como efetuada a venda; Declarou depois o segundo outorgante que aceita o presente contrato.”.

7. O prédio rústico identificado em 1. foi inscrito na matriz no ano de 1984, constando da respetiva caderneta predial que tem a área de 20.556 m2.

8. No dia 10 de janeiro de 2007 HH declarou, perante Notário, o seguinte:

“Que é o cabeça de casal da herança aberta por óbito de sua mulher II, que também usava o nome II, falecida no dia .../..../2003, na freguesia ..., concelho ..., natural da freguesia ..., concelho ..., e teve a sua última residência habitual em ..., ..., ..., no estado de casada em primeiras núpcias de ambos e em comunhão geral de bens com ele outorgante.

Que a falecida não deixou testamento nem qualquer outra disposição de última vontade.

E deixou como únicos herdeiros:

A) O cônjuge: HH, acima referido.

B) Os filhos:

1 – BB, casado com UU em comunhão de adquiridos, natural de ..., residente na Estrada ..., ..., ....

2 – AA, casada com EE em comunhão de adquiridos, natural da freguesia ..., concelho ..., residente na Rua ..., ....

Que não há outras pessoas que segundo a lei prefiram aos indicados herdeiros ou com eles possam concorrer à sucessão.”.

9. Ainda no dia 10 de janeiro de 2007 HH, na qualidade de primeiro outorgante, o Autor BB e a sua esposa UU, na qualidade de segundos outorgantes, e a irmã do Autor, AA, e o marido desta, o Réu EE, na qualidade de terceiros outorgantes, declararam, perante Notário, o seguinte:

“Que são os únicos interessados dos bens que ficaram por óbito de II, falecida no dia .../..../2003, na freguesia ..., concelho ..., natural da freguesia ..., concelho ..., e teve a sua última residência habitual em ..., ..., ..., no estado de casada em primeiras núpcias de ambos e em comunhão geral de bens com o primeiro outorgante, como tais habilitados por escritura outorgada hoje neste Cartório que antecede esta.

Que os bens a partilhar, aos quais atribuem valores iguais aos patrimoniais somam o valor global de cinquenta mil, cento e noventa e sete euros e noventa e seis cêntimos são os seguintes:

Prédios sitos na freguesia ..., concelho ...

Número Um

Fração autónoma destinada a habitação, identificada pela letra ..., correspondente ao ... andar, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, conforme inscrição F apresentação quarenta e quatro de dezoito de junho de mil, novecentos e setenta e quatro, sito na Praceta ..., com traseiras para a Avenida ..., ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial ..., sob o número .../..., com inscrição G apresentação dezassete de oito de maio de mil, novecentos e setenta e cinco de aquisição a favor da autora da herança, inscrito na matriz predial urbana da freguesia ... sob o artigo ...09, com o valor patrimonial de 9.651,38 Euros.

Número Dois

Fração autónoma destinada a habitação, identificada pela letra ..., correspondente ao ... andar, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, conforme inscrição F apresentação quarenta e quatro de dezoito de junho de mil, novecentos e setenta e quatro, sito na Praceta ..., com traseiras para a Avenida ..., ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial ..., sob o número .../..., com inscrição G apresentação dezassete de oito de maio de mil, novecentos e setenta e cinco de aquisição a favor da autora da herança, inscrito na matriz predial urbana da freguesia ... sob o artigo ...09, com o valor patrimonial de 9.651,38 €.

Número Três

Fração autónoma destinada a habitação, identificada pela letra ..., correspondente ao ... andar, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, conforme inscrição F apresentação quarenta e quatro de dezoito de junho de mil, novecentos e setenta e quatro, sito na Praceta ..., com traseiras para a Avenida ..., ...,freguesia ..., concelho ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial ..., sob o número .../..., com inscrição G apresentação de catorze de oito de maio de mil, novecentos e setenta e cinco de aquisição a favor da autora da herança, inscrito na matriz predial urbana da freguesia ... sob o artigo ...09, com o valor patrimonial de 9.651,38 €.

Sito na Freguesia ..., concelho ...

Número Quatro

Metade da fração autónoma destinada a comércio, identificada pela letra ..., correspondente ao ... para comércio, uma divisão ampla e duas casas de banho com acesso direto à via pública, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Estrada ..., ..., Freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial urbana da Freguesia ... sob o artigo ...03, com o valor patrimonial correspondente à fração de 19.878,09 €, descrito na ... Conservatória do Registo Predial ..., sob o número ..., setecentos e quarenta e seis/..., com inscrições G apresentação trinta e quatro de vinte e oito de dezembro de dois mil e seis de aquisição a favor de HH e mulher II, F apresentação cinco de onze de outubro de mil, novecentos e trinta e quatro; F apresentação dois de vinte e três de agosto de mil, novecentos e quarenta e oito; F apresentação cinco de quinze de agosto de mil novecentos e quarenta e nove; F apresentação três de trinta de março de mil, novecentos e cinquenta e um; F apresentação três de um de agosto de mil, novecentos e cinquenta e um e F apresentação dois de vinte e quatro de julho de mil, novecentos e cinquenta e dois de servidão; F apresentação vinte e cinco de dezanove de setembro de mil novecentos e noventa e cinco da propriedade horizontal e F apresentação dezoito de vinte e oito de maio mil novecentos e noventa e sete de alteração de propriedade horizontal; F apresentação doze de treze de abril de mil, novecentos e noventa e dois de autorização de loteamento e C apresentação vinte de trinta de setembro de mil, novecentos e noventa e seis de metade de uma hipoteca a favor da Caixa Económica Montepio Geral, cujo cancelamento está assegurado, conforme declaração, emitida pela dita Caixa em quinze de dezembro de mil, novecentos e noventa e sete, que exibiram.

Sitos na Freguesia ..., concelho ...

Número Cinco

Prédio urbano sito ..., composto de casa de habitação, com a superfície coberta de trinta e seis metros quadrados, casa de forno com a área de vinte e oito metros quadrados e pátio descoberto com a área de dez metros quadrados, confrontando a norte com estrada, a sul com o próprio, a nascente com VV e a poente com WW, omisso na Conservatória do Registo Predial ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...61 com o valor patrimonial de 238,29 €.

Número Seis

Prédio urbano sito ..., composto de casa de despejos, com a área de trinta e seis metros quadrados, confrontando a norte com estrada, a sul e nascente com o próprio e a poente com XX, omisso na Conservatória do Registo Predial ..., inscrito na matriz predial urbana da dita freguesia sob artigo ...62, com o valor patrimonial de 191,87 €.

Número Sete

Prédio rústico composto de terra de cultura com videiras em cordão, árvores de fruto, oliveiras, pomar e pastagem com oliveiras, sito em H..., com a área de vinte mil, quinhentos e cinquenta e seis metros quadrados, confrontando a norte com Estrada, a sul com LL, a nascente com MM e a poente com NN, omisso na Conservatória do Registo Predial ..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...00, com o valor patrimonial IMT de 721,77 €.

Número Oito

Sete oitavos de um prédio rústico composto de terra de cultura com videiras em cordão, oliveiras, árvore de fruto e vinha, sita em ..., com a área de cinco mil, seiscentos e sessenta e sete metros quadrados, confrontando a norte com YY, a sul com Estrada, a nascente com ZZ e a poente com AAA, omisso na Conservatória do Registo Predial ..., inscrita na matriz predial rústica sob o artigo ...16, com o valor patrimonial IMT correspondente à fração de 202,92 €.

Sito na Freguesia ..., concelho ...

Número Nove

Prédio rústico composto de terra de cultura com oliveiras, sito em ..., com a área de trezentos e sessenta metros quadrados, confrontando a norte com BBB, a sul com ..., a nascente com caminho e a poente com ..., omisso na Conservatória do Registo Predial ..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...73, com o valor patrimonial IMT de 10,88 €.

Que naquele valor de cinquenta mil, cento e noventa e sete euros e noventa e seis cêntimos cabe ao primeiro outorgante como herdeiro e meeiro a importância de trinta e três mil, quatrocentos e sessenta e cinco euros e trinta e um cêntimos, e a cada um dos filhos a importância de oito mil, trezentos e sessenta e seis euros e trinta e três cêntimos, tudo por arredondamento.

Que procedem à partilha da seguinte forma:

A)

Ao primeiro outorgante são-lhe adjudicadas as verbas Um, Três, Quatro, Cinco, Seis, Oito e Nove, no valor global de trinta e nove mil, oitocentos e vinte e quatro euros e oitenta e um cêntimos, pelo que repõe o excesso de seis mil, trezentos e cinquenta e nove euros e cinquenta cêntimos em tornas que já pagou ao herdeiro delas credor.

B)

O quinhão do segundo outorgante (BB) é composto em dinheiro no valor de oito mil, trezentos e sessenta e seis euros e trinta e três cêntimos, que já recebeu de tornas dos herdeiros delas devedores.

C)

À terceira outorgante (AA) são-lhe adjudicadas as verbas Dois e Sete, no valor global de dez mil, trezentos e setenta e três euros e quinze cêntimos, com o excesso de dois mil e seis euros e oitenta e dois cêntimos, em tornas que já pagou ao herdeiro delas credor.

As outorgas de UU e de EE valem apenas como consentimento conjugal.

Adverti os outorgantes de que não poderão voltar a transmitir, nem a onerar os imóveis aqui adquiridos, enquanto não forem inscritos no registo predial a seu favor.”.

10. II faleceu no dia .../.../ 2003, no estado de casada com HH.

11. AA faleceu no dia .../.../2010, no estado de casada com o Autor EE, e era filha de HH e de II.

12. HH faleceu no dia .../.../2018, no estado de viúvo de II.

13. No dia .../.../ 2019 o Autor BB declarou o seguinte na Conservatória do Registo Predial ..., no âmbito do Procedimento Simplificado de Habilitação de Herdeiros e ... referente à herança aberta por óbito de HH:

“O autor da herança faleceu no dia três de setembro de dois mil e dezoito, na freguesia ... e ..., concelho ....

O autor da herança não deixou testamento ou qualquer disposição de última vontade.

Declarados herdeiros do falecido: Seu filho, BB e seus netos, FF e GG, em representação da sua mãe, AA, filha pré-falecida do autor da herança.

Que não há quem lhes prefira ou com eles possa concorrer na sucessão.

O cabeça-de-casal declarou que não pretende registar.”.

14. AA deixou como herdeiros o seu marido EE e os seus filhos FF e GG.

15. O Autor contraiu uma dívida perante a sua irmã AA.

16. Quando foi outorgada a partilha a que se alude em 9. o Autor acordou com a sua irmã e com o pai de ambos que, em pagamento da dívida mencionada em 15., a parcela norte da H..., até à linha de água existente na propriedade, com a área de 12.359,75 m2, seria adjudicada a AA, enquanto a parcela sul da H..., a partir da referida linha de água, com a área de 7.767,59 m2, seria adjudicada a HH.

17. Nessa altura, em virtude de não ter sido efetuado o destaque da parcela sul a que se aludiu, o Autor, o seu pai e a sua irmã acordaram que a propriedade denominada H... seria adjudicada, na totalidade, a AA, comprometendo-se esta a providenciar pela regularização da documentação necessária para transferir a parcela sul identificada em 16. para o nome do seu pai HH.

18. Mediante escrito intitulado Contrato de Compra e Venda, datado de 17 de junho de 2020, e autenticado, na mesma data, pela Ex.ma Senhora Solicitadora Dr.ª CCC, os Réus EE, FF e GG, na qualidade de primeiros contraentes, e os Réus CC e DD, na qualidade de segundos contraentes, acordaram o seguinte:

“Cláusula Primeira

Pelo presente contrato, os primeiros contraentes vendem aos segundos, livre de quaisquer ónus ou encargos, pelo preço de sessenta e três mil euros, que declaram já ter recebido, o prédio rústico, sito em ..., da freguesia União das Freguesias ..., ... e ..., concelho ..., descrito na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóveis ... sob o número ..., da Freguesia ..., encontrando-se registada a aquisição a favor de AA, atualmente falecida, pela Apresentação ... de .../.../2008, inscrito na matriz predial rústica da referida União de freguesias sob o artigo ...79 que provém do artigo ...00 da Freguesia ... (extinta), com o valor patrimonial de seiscentos e cinquenta e cinco euros e setenta e nove cêntimos.

Cláusula Segunda

Os primeiros contraentes possuem o referido prédio por fazer parte da herança de sua esposa e mãe, AA, sendo únicos herdeiros da mesma, conforme foi declarado por Procedimento Simplificado de Habilitação de Herdeiros, com o número ... lavrado na Conservatória do Registo Civil ..., no dia dois de novembro de dois mil e dez.

Cláusula Terceira

Os segundos contraentes aceitam a presente venda nos termos exarados.

Cláusula Quarta

Os contraentes declaram que o negócio titulado por este contrato foi objeto de intervenção de sociedade de mediação imobiliária pela empresa denominada «D..., L.da» com o número de identificação de pessoa coletiva ..., com sede na Rua ..., freguesia e concelho ..., detentora da licença AMI n.º ...51.”.

19. No dia 20 de outubro de 2008 AA apresentou na Câmara Municipal ... um pedido de informação prévia sobre obras de construção de um lar para idosos.

20. O prédio identificado nesse pedido de informação prévia é o prédio denominado H..., que se encontra inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...00º, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...80 e que tem a área de 20.556 m2.

21. No ano de 2009 AA apresentou na Câmara Municipal ... um pedido de “Licenciamento à Construção de Edificação destinada a Equipamento – Lar de Idosos, do prédio sito em ... – H...”.

22. As plantas juntas ao processo camarário por AA contêm apenas o desenho da parcela norte a que se alude em 16., omitindo o desenho da parcela sul aí indicada.

23. AA sabia que tinha a obrigação de restituir ao seu pai a parcela sul a que se alude em 16..

24. O prédio denominado C... pertence à herança aberta por óbito de HH.

25. O prédio denominado C... é composto por:

 Prédio urbano com a área de 240 m2, com casa de habitação, casa de forno e pátio descoberto, que confronta a norte com estrada, a sul com o próprio, a nascente com DDD e a poente com WW, correspondente ao artigo matricial ...15º, da União das Freguesias ..., ... e ..., que teve origem no anterior artigo ...61º da Freguesia ...;

 Prédio urbano com a área de 109,30 m2, com casa de despejos, destinado a estacionamento coberto, que confronta a norte com estrada, a sul e nascente com o próprio e a poente com XX, correspondente ao artigo matricial ...16º, da União das Freguesias ..., ... e ..., que teve origem no anterior artigo ...62º da Freguesia ....

26. Logo depois de comprarem o prédio denominado H..., HH e II fizeram um furo na parcela sul do mesmo, colocando um motor para extrair a água e conduzi-la por tubos que colocaram até ao prédio denominado C..., os quais passam por baixo da estrada existente entre as duas propriedades.

27. Os referidos tubos foram colocados desde o furo a que se aludiu, passando por baixo da estrada, até ao tanque existente no prédio denominado C....

28. A partir deste tanque, a água extraída do furo era conduzida até às plantações da horta e árvores de fruto existentes no prédio denominado C....

29. HH abriu o referido furo e criou a infraestrutura mencionada para regar uma horta de batatas e milho, assim como as árvores de fruto que tinha no prédio denominado C....

30. O prédio denominado C... beneficia de abastecimento de água da rede pública, a qual nunca foi utilizada para regar a horta e as árvores de fruto aí existentes.

31. HH manteve a horta e as árvores de fruto existentes no prédio denominado C... até cerca de um ano antes de ter falecido.

32. Depois disso, o próprio Autor e a testemunha EEE continuaram a utilizar a água do furo para regar a horta e as árvores de fruto.

33. No ano de 2020 os Réus CC e DD cortaram os tubos de água, deixando o prédio denominado C... de ter acesso à água proveniente do furo.

34. Os Réus CC e DD compraram o prédio rústico identificado em 18. para aí edificarem a sua casa de habitação.»

                                                                       ¨¨

«Factos não provados

Após a realização da audiência final não ficaram demonstrados quaisquer outros factos relevantes para a decisão a proferir, não se tendo provado, designadamente:

1. Originalmente o prédio rustifico identificado em 1. dos factos considerados provados era composto por duas propriedades diferentes denominadas H... e ....

2. A H... tem cerca de 17.355,13 m2 e a ... tem cerca de 2.772,22 m2.

3. O Autor, o pai e a irmã solicitaram os serviços da Ex.ma Senhora Dr.ª KK para concretizar a adjudicação da parcela norte a que se alude em 16. dos factos considerados provados a AA e a parcela sul aí indicada a HH.

4. Na data em que foi outorgada a escritura de partilha a que se alude em 9. dos factos considerados provados a Ex.ma Senhora Dr.ª KK disse que ainda não tinha providenciado pelo destaque da H... de forma a separar as duas parcelas indicadas em 16. dos factos considerados provados.

5. O prédio denominado C... é composto também por terreno rústico com a área de 360 m2, situado no lugar de ..., correspondente ao artigo matricial ...69º da União das Freguesias ..., ... e ....

6. HH e II compraram o prédio denominado C... pouco depois de 1975 aos herdeiros da madrinha do Autor, FFF, que era casada com GGG, por meio do Tribunal ....

7. A dívida a que se alude em 15. dos factos considerados provados ascendia ao montante de € 50.000,00.

8. A irmã do Autor sempre considerou seu o terreno que se encontra identificado no contrato indicado em 18. dos factos considerados provados.

9. O atravessamento da estrada pelos tubos indicados em 26. dos factos considerados provados foi autorizado pela Câmara Municipal.

10. Ao lado da Casa dos Despejos existe um poço com água e eletrificado e, cerca de cinco metros ao lado deste poço, existe uma torneira de água canalizada.

11. Os Réus CC e DD desconhecem a existência de qualquer serventia de água proveniente do furo existente no prédio por si adquirido.

12. Os Réus CC e DD só tiveram conhecimento da existência de um furo no dia da outorga do contrato de compra e venda e já após a assinatura do documento particular autenticado.

13. Os Réus CC e DD já se preparavam para abandonar o escritório da Ex.ma Senhora Solicitadora quando o Réu EE afirmou o seguinte: “deve haver um furo lá debaixo de um calhau”, não precisando o local exato nem prestando qualquer esclarecimento adicional sobre o mesmo.

14. Os Réus CC e DD verificaram que todas as torneiras existentes junto do furo estavam fechadas.

15. Por essa razão, os Réus CC e DD pensaram que as torneiras e ligações aí existentes seriam para diversos pontos da propriedade que adquiriram.

16. Quando os Réus CC e DD compraram o prédio denominado H..., as canalizações aí existentes aparentavam não ser usadas há largos anos.

17. Os Réus CC e DD despenderam cerca de € 30.000,00 com a realização das obras de reconstrução da edificação existente no prédio a que se alude em 18. dos factos considerados provados.

18. Desde que tomaram posse do prédio a que se alude em 18. dos factos considerados provados os Réus CC e DD realizaram limpezas e melhoramentos no valor estimado de € 2.500,00.

19. Os Réus CC e DD suportaram o pagamento do Imposto do Selo, do IMT e das despesas relativas ao registo predial e à celebração do contrato de compra e venda no valor de € 4.200,00.»

                                                              *

4 – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1– Falta de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto [art. 662º, nº 2 do n.C.P.Civil]?

Neste particular, os RR./recorrentes limitam-se à seguinte alegação sintética e telegráfica:

«A decisão da matéria de facto deste tribunal não está adequadamente fundamentada, pelo que a Relação deve – no uso de uma forma mitigada de poderes de cassação – reenviar o processo para a 1ª instância para que a fundamente (artº 662º, nº 2 do CPC).»

Que dizer?

Salvo o devido respeito, que esta alegação só se compreende como fruto de um qualquer lapso ou deficiente compreensão da dogmática respeitante a esta temática.

Na verdade, os RR./recorrentes é que não fundamentam, concretizam ou especificam, por mínimo que seja, onde e porque é que a decisão sobre a matéria de facto não está ”adequadamente fundamentada”.

Sucede que a “motivação” da sentença recorrida se encontra particularmente elaborada de forma extensa e pormenorizada, distribuindo-se ao longo de 14 páginas, com uma análise crítica da prova produzida (testemunhal e documental) relativamente a cada facto (ou conjunto de factos), quer os “provados”, quer os “não provados”.

Não se alcança ou vislumbra, assim, qualquer falta de fundamentação da decisão de facto, que fosse motivo/determinante de remessa para fundamentação pelo Tribunal de 1ª instância, nos termos previstos pelo al.d) do nº2 do art. 662º do n.C.P.Civil.

Nestes termos, e sem necessidade de maiores considerações improcedendo esta questão recursiva.

*

            4.2– Cumpre para finalizar proceder à apreciação da segunda das questões igualmente supra enunciada, a da invocação do desacerto da decisão de procedência da ação [nomeadamente porque da tivesse escritura pública de partilhas celebrada não constava qualquer intenção/vontade de destaque que sido incumprida; não verificação dos pressupostos para a procedência do pedido de enriquecimento sem causa; prescrição do direito (art. 482º do C.Civil)]?

            Vejamos.

            Quanto ao primeiro aspeto invocado, é certo que da escritura pública de partilhas celebrada não constava qualquer intenção/vontade de destaque.

            Sucede que a causa de pedir dos autos não era o direito decorrente do que constava da escritura de partilhas, nem a procedência que foi decretada na sentença recorrida em tal assentou.

            Recorde-se que, em termos singelos, o que estava em causa nos autos – tendo sido positivamente apurado! – foi que o Autor BB contraiu uma dívida perante a sua irmã AA; por essa razão, quando foi outorgada a partilha por óbito da mãe de ambos, o Autor acordou com a sua irmã e também com o pai de ambos que, em pagamento da referida dívida, a parcela norte do prédio denominado “H...” [até à linha de água existente na propriedade, com a área de 12.359,75 m2], seria adjudicada a AA, enquanto a parcela sul da “H...” [a partir da referida linha de água, com a área de 7.767,59 m2], seria adjudicada a HH; sucede, porém, que, nessa altura, em virtude de não ter sido efetuado o destaque da parcela sul a que se aludiu, o Autor, o seu pai e a sua irmã acordaram que a propriedade denominada “H...” seria adjudicada, na totalidade, a AA, comprometendo-se esta a providenciar pela regularização da documentação necessária para transferir a parcela sul da referida propriedade para o nome do seu pai HH.

            Isto é,  estava em causa [e resultou apurada] a celebração, entre as partes que outorgaram o contrato de partilha datado de 10 de janeiro de 2007, de um pacto fiduciário, através do qual as partes outorgantes acordaram que a adquirente do prédio rústico denominado “H...” [a AA] providenciaria pela realização das diligências necessárias com vista a proceder ao destaque da parcela sul do dito prédio, para posterior transmissão ao pai do Autor [HH].

Pacto fiduciário este que não foi reduzido a escrito.

Sendo por isso que na sentença recorrida – e em nosso entender bem! – se considerou que «(…) o pacto fiduciário foi “informalmente acordado” entre as partes, razão pela qual é insuscetível de fundamentar o direito invocado pelo Autor quanto à aquisição do direito de propriedade sobre a parcela de terreno a que se reporta ou, eventualmente, à quota de 19/50 correspondente à mesma», ou seja, radicou nessa falta de redução a escrito [a que acresceu a subsequente transmissão a terceiros de boa fé da totalidade do prédio denominado por  “H...”] a improcedência do pedido principal formulado na ação.

Acontece que na sentença recorrida se deu procedência ao pedido subsidiário, fundado no enriquecimento sem causa, precisamente porque tal não invalidava «(…) os efeitos obrigacionais decorrentes de tal acordo, nomeadamente no que respeita ao ressarcimento dos danos causados em consequência do respetivo incumprimento.»

Na verdade – como doutamente sublinhado na decisão recorrida! – «(…) não tendo a adquirente do prédio rústico denominado H... providenciado pela realização das diligências necessárias com vista a formalizar o destaque de uma parcela do mesmo e a respetiva transmissão ao seu pai HH, é patente que não cumpriu a prestação a que se vinculou através da celebração do acordo firmado com o seu pai e com o Autor. Deste modo, importa agora verificar se o efeito correspondente à apontada falta de cumprimento deverá ser o pretendido pelo Autor, ou seja, o pagamento de uma indemnização no valor de € 24.000,00, acrescidos dos respetivos juros de mora calculados desde a data da citação», sendo que a resposta veio a ser afirmativa.

Mas será que não estavam verificados os pressupostos para a procedência do pedido de enriquecimento sem causa?

E com isto já entramos na apreciação da subsequente linha de argumentação das alegações recursivas.

De referir que o RR./recorrentes não fundamentam minimamente em temos jurídicos esta invocação que fazem, limitando-se a aludir aos pressupostos gerais desse instituto jurídico, sem especificar ou concretizar qual deles é que não estava verificado na circunstância, isto sem embargo de aludirem vagamente a que «a escritura de partilha não pode ser tomada com um enriquecimento da falecida mulher e mãe dos Réus».

Que dizer?

Salvo o devido respeito, o que resulta da factualidade apurada é precisamente o inverso.

Atente-se que nos parece inequívoco não poder deixar de se considerar o incumprimento imputado a AA como culposo, na medida em que lhe era exigível que adotasse um comportamento conforme com os deveres a que se vinculara, providenciando pelo destaque e subsequente transmissão da parcela de terreno que foi objeto do acordo das partes.

Acrescendo que no ano de 2009 AA apresentou na Câmara Municipal ... um pedido de “Licenciamento à Construção de Edificação destinada a Equipamento – Lar de Idosos, do prédio sito em ... – H...” e, de facto, as plantas juntas ao processo camarário contêm apenas o desenho da parcela norte a que atrás se aludiu, omitindo o desenho da parcela sul [cf. factos “provados” sob  “19.” a “22.”].

Por outro lado, resultou efetivamente “provado” que AA sabia que tinha a obrigação de restituir ao seu pai a referida parcela sul [cf. facto “23.”], o que acabou por não suceder.

Sendo certo que – como evidenciado na sentença recorrida! – «Já no que respeita aos prejuízos sofridos por HH e ao nexo de causalidade entre o facto e esses prejuízos é inequívoco que, em consequência do incumprimento a que se tem vindo a aludir, o património do lesado ficou diminuído em valor equivalente ao da parcela de terreno que lhe deveria ter sido transmitida», e bem assim que «Ora, se não existissem os danos decorrentes do incumprimento da obrigação assumida por AA, o património do seu pai HH e, consequentemente, a herança aberta por óbito do mesmo teriam registado um aumento de valor equivalente ao da parcela de terreno que lhe deveria ter sido transmitida.»

Neste quadro, não pode deixar de se concluir positivamente sobre a inexistência de causa justificativa para o enriquecimento dos RR. [e contraposto empobrecimento da herança aberta por óbito de HH].

Senão vejamos.

O art. 473º do C.Civil consagra o princípio geral deste instituto dispondo:

«1. Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.

2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.»

Neste último número estão indicados exemplificativamente três tipos de situações de casos especiais de enriquecimento sem causa, que são:

- o recebimento indevido;

- o recebimento por uma causa que deixou de existir; e

- o recebimento em vista de um efeito que não se verificou.

Qualquer uma destas situações pressupõe uma prestação, pois ninguém pode receber se outrem não pagar.

Parece-nos ser manifesto que a situação ajuizada não se enquadra em nenhuma das situações previstas no aludido nº 2, não sendo, por isso, esse o normativo aplicável ao caso destes autos.

Vejamos então se o é o nº1.

Procedendo a uma análise mais cuidada do referido nº 1, constatamos que dele resulta que, para que haja uma obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa, é necessária a verificação cumulativa de três requisitos, a saber:

- a existência de um enriquecimento;

- que esse enriquecimento tenha sido obtido à custa de outrem;

- e que careça de causa justificativa.

Relativamente a esta situação já foi doutamente ensinado que: «A obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa ou locupletamento à custa alheia pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos:

a) É necessário, em primeiro lugar, que haja um enriquecimento. […]

b) A obrigação de restituir pressupõe, em segundo lugar, que o enriquecimento, contra o qual se reage, careça de causa justificativa – ou porque nunca a tenha tido ou porque, tendo-a inicialmente, entretanto a haja perdido. […]

c) A obrigação de restituir pressupõe, finalmente, que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição».[3]

De referir que estes três requisitos aludidos são elementos constitutivos do direito de que o empobrecido se arroga, pelo que, sobre ele recai o ónus da competente prova, nos termos do art. 342º, nº 1, do mesmo C. Civil.

Concretizando: a falta originária ou subsequente da causa justificativa do enriquecimento assume a natureza de elemento constitutivo do direito, pelo que, a simples prova da obtenção de uma vantagem patrimonial não pode servir de fundamento para pedir a sua restituição, cabendo antes ao autor do pedido de restituição, por enriquecimento sem causa, o ónus da prova dos respetivos factos integradores ou constitutivos, incluindo a falta de causa justificativa desse enriquecimento, mesmo em caso de dúvida, cujo incumprimento se resolve em seu desfavor.

Assim, quando a ação de enriquecimento sem causa se funda na circunstância de ter havido uma causa para a prestação efetuada que deixou de existir [foi atribuída a totalidade da propriedade denominada por “H...” a AA, assumindo esta a obrigação de restituir ao seu pai a parcela sul dessa propriedade, o que não veio a suceder], o demandante (empobrecido) precisava de demonstrar que foi incumprida a obrigação assumida, daí decorrendo passar a inexistir causa para a prestação efetuada.

Ora, salvo o devido respeito, o A. logrou provar o que lhe era exigível na circunstância!

Nesta linha o constante do seguinte douto aresto:

«III - O enriquecimento tanto pode traduzir-se num aumento do activo patrimonial, como numa diminuição do passivo, como, inclusive, na poupança de despesas.

IV – Enriquecimento (injusto) esse que igualmente tanto poderá ter a sua origem ou provir de um negócio jurídico, como de um acto jurídico não negocial ou mesmo de um simples acto material.

V – O enriquecimento carecerá de causa justificativa sempre que o direito não o aprove ou consinta, dado não existir uma relação ou um facto que, de acordo com as regras ou os princípios do nosso sistema jurídico, justifique a deslocação patrimonial ocorrida, isto é, que legitime o enriquecimento.»[4]

Donde, revertendo estes ensinamentos ao caso vertente, temos que deixou de existir na circunstância uma qualquer causa para a deslocação patrimonial ocorrida…

Nada havendo assim a objetar face ao que constitui doutrina e jurisprudência absolutamente pacífica, a saber, a afirmação de que na ação fundada em enriquecimento sem causa, é ao demandante que pede a restituição que incumbe o ónus da alegação e prova da falta de causa para a prestação efetuada, não bastando para esse efeito que não se prove a existência da causa de atribuição alegada pelo demandado: in casu, o A. logrou convencer o tribunal da falta de causa, postergando que “in dubio” se considerasse que a deslocação patrimonial teve justa causa.[5]

Finalmente, também não assiste razão aos RR./recorrentes quando aludem a que a sentença assenta num “erro de cálculo evidente” quanto ao montante atribuído de € 24.000, na medida em que «19/50 de 63.000 € é 23.940 € e não 24.000 €».

Sucede que, ao invés, nos merece acolhimento o constante da sentença recorrida quanto a este concreto particular, a saber:

«(…)

Conforme alega o Autor a este propósito, tendo o prédio denominado H... sido vendido pelo preço de € 63.000,00, e tendo o mesmo uma área total de 20.127,34 m2 (correspondente à soma da área das parcelas de 12.359,75 m2 e de 7.767,59 m2 delimitadas pelas partes), impõe-se concluir que a parcela que deveria ter sido transmitida ao pai do Autor, com a área de 7.767,59 m2, corresponde a 38,59% da totalidade da área do referido prédio rústico.

Assim, tendo o mesmo sido vendido pelo preço de € 63.000,00, dúvidas não restam de que o valor correspondente à parcela em causa, calculado proporcionalmente, ascende ao montante de € 24.311,70.

Nestes termos, tendo o Autor peticionado o pagamento, à herança aberta por óbito do seu pai GG, da quantia de € 24.000,00, não poderá deixar de proceder o pedido pelo mesmo formulado.»

De referir que embora estivesse autorizado o A. a pedir um valor superior [os ditos € 24.311,70], tendo este formulado um pedido de € 24.000,00, o princípio do dispositivo impõe a procedência restrita a este limite, como foi operado no dispositivo da sentença recorrida.

Improcede assim, sem necessidade de maiores considerações, este argumento recursivo.

E que dizer do argumento da “prescrição do direito” (art. 482º do C.Civil)?

Este fundamento fáctico-substantivo, agora apresentado pelos RR./recorrentes, não foi invocado no seu articulado de contestação, e como tal não foi objeto de contraditório pelo A/recorrido, e, por conseguinte, também não podia ser objeto de conhecimento e apreciação por parte do tribunal a quo[6].

Trata-se, por isso, de questão nova posta em recurso que nunca poderia ser conhecida neste tribunal de apelação.

Consabidamente, e como enfaticamente sublinhado quer pela doutrina quer pela jurisprudência, os recursos ordinários são, entre nós, recursos de reponderação e não de reexame, visto que o tribunal superior não é chamado a apreciar de novo a ação e a julgá-la, como se fosse pela primeira vez, indo antes controlar a correção da decisão, proferida pelo tribunal recorrido, face aos elementos averiguados por este último.

Donde, não cabe aos tribunais de recurso conhecer de questões novas (o chamado ius novarum), mas apenas reapreciar a decisão do tribunal a quo, com vista a confirmá-la ou revogá-la.[7]

Tratando-se, portanto, de uma questão fáctico-substantiva nova, não pode, agora, ser conhecida em fase de recurso.

Assim sendo e sem necessidade de maiores considerações, naufraga inapelavelmente este argumento recursivo.

                                                           *

(…)

*

6 – DISPOSITIVO

            Pelo exposto, decide-se a final, pela improcedência da apelação, mantendo a sentença recorrida nos seus precisos termos.

            Custas do recurso pelos RR./recorrentes.

Coimbra, 7 de Fevereiro de 2023   

Luís Filipe Cravo

Fernando Monteiro

Carlos Moreira



[1] Tribunal de origem: Juízo Central Cível ... – Juiz ... – do T.J ...
[2] Relator: Des. Luís Cravo
   1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
   2º Adjunto: Des. Carlos Moreira

[3] Citámos PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, no “Código Civil Anotado”, Vol. I, 3ª ed., a págs. 427-429.
[4] Citámos agora alguns pontos do sumário do acórdão do T. Rel. de Coimbra de 02.11.2010, no proc. nº 1867/08.0TBVIS.C1, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
[5] Cfr., na doutrina, ANTUNES VARELA, in” Das Obrigações em Geral”, vol. I, a págs. 467, e MENEZES LEITÃO, in “Direito das Obrigações”, vol. I, a págs. 381 e seguintes; e na jurisprudência, inter alia, os Acs. STJ de 04-07-2002, Revista n.º 1924/02 – 7.ª Secção; de08-10-2002, Revista n.º 2376/02 – 1.ª Secção; de 09-10-2003, Revista n.º 2535/03 – 7.ª Secção; de 22-01-2004, Revista n.º 1815/03 – 2.ª Secção; de 17-10-2006, Revista n.º 2741/06 – 6.ª secção; de 05-02-2006, Revista n.º 3902/06 – 6.ª secção; de 18-01-2007, Revista n.º 4633/06 – 7.ª secção; de 29-05-2007, Revista n.º 1302/07 – 6.ª secção; de 16-09-2008, Revista n.º 1644/08 – 2.ª secção; de 16-10-2008, Revista n.º 2709/08 – 1.ª Secção; de 18-06-2009, Revista n.º 1120/03.5TBALQ – 2.ª secção; de 14-10-2010, Revista n.º 5938/04.3TCLRS.L1.S1 – 7.ª Secção; de 08-02-2011, Revista n.º 1272/09.0TVLSB.S1 – 6.ª Secção; de 14-04-2011, Revista n.º 3840/06.3TBVCD.P1.S1 – 2.ª Secção; de 28-06-2011, Revista n.º 3189/08.7TVLSB.L1.S1 – 1.ª secção; de 23-11-2011, Revista n.º 750/08.3TBALM.L1.S1 – 1.ª Secção, todos disponíveis em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.
[6] Cf. art. 303º do C.Civil.
[7] Vide LEBRE DE FREITAS / RIBEIRO MENDES / ISABEL ALEXANDRE, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 3º, 3ª Ed., Livª Almedina, 2022, nota 5 ao art. 627º, a págs. 15, e jurisprudência aí mencionada; idem por ABRANTES GERALDES, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Livª Almedina, 2013, a págs. 87-88.