Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
498-C/2002.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
INÍCIO
CONTAGEM DOS PRAZOS
PROFISSÃO LIBERAL
PRINCÍPIO DA AQUISIÇÃO PROCESSUAL
Data do Acordão: 12/19/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA – 4º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 317º, AL. C) DO C. CIVIL; 515º DO CPC.
Sumário: I – O prazo (2 anos) da prescrição (presuntiva), previsto no art. 317º, c) do CC, inicia-se, em regra, com o momento da cessação dos serviços prestados pelo profissional liberal.

II - Cabe ao réu o ónus de alegação dos factos constitutivos da excepção peremptória, designadamente do momento em que se inicia o prazo de prescrição.

III - Uma vez invocada pelo réu (a quem aproveita) a excepção da prescrição (presuntiva), o tribunal pode servir-se de factos alegados pela parte contrária quanto ao início do prazo.

IV - Não é legítimo presumir-se judicialmente, sem mais elementos, que a última data registada na nota de honorários e despesas corresponde ao momento da cessação do mandato forense.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

1.1.- O Autor – J… – instaurou (03/09/2009) na Comarca de Leiria acção declarativa, com forma de processo sumário, contra os Réus – M… e mulher I...

Alegando, em resumo, que na sua qualidade de advogado prestou serviços aos Réus em quatro processos, os quais se recusam a pagar os honorários e despesas, pediu a condenação dos Réus a pagar-lhe a quantia de € 4.985,00, acrescida da quantia de € 204,94 a título de juros vencidos, à taxa legal, desde 30/08/08 e dos juros vincendos até integral pagamento.

Contestaram os Réus, defendendo-se com a excepção da prescrição presuntiva (art.317 c) CC), alegando, para o efeito, que pagaram os honorários reclamados na acção e que na data (30/8/2008) em que os interpelou por escrito, há muito que já se tinha verificado a prescrição presuntiva.

Respondeu o Autor, dizendo ser falso que tenham pago.

No saneador afirmou-se a validade e regularidade da instância, relegando-se para final o conhecimento da excepção da prescrição.

1.2. - Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença a julgar a acção procedente e condenar os Réus a pagar ao Autor a quantia de € 4.985,00, acrescida de juros de mora vencidos desde 30/08/08, à taxa legal de 4% de acordo com a Portaria nº 291/2003 de 8/4 e até efectivo e integral pagamento.

1.3. – Inconformados, os Réus recorreram de apelação, com as seguintes conclusões:

...

O Autor não contra-alegou.


II - FUNDAMENTAÇÃO

            2.1. – O objecto do recurso

            A questão submetida a recurso, delimitado pelas conclusões, consiste em saber se está comprovada a excepção peremptória da prescrição presuntiva (art.317 c) CC).

            2.2. – Os factos provados (descritos na sentença)

            2.3. – O mérito do recurso

            A sentença recorrida, julgando a acção procedente, condenou os Réus a pagar ao Autor os honorários e despesas reclamadas.

            Relegada para final, foi julgada improcedente a excepção peremptória da prescrição presuntiva, invocada pelos Réus na contestação, argumentando-se que não demonstraram os factos constitutivos da excepção, visto não ter sido sequer alegada a data da cessação do mandato, a partir da qual se inicia o prazo prescricional.

            Diz a sentença:

            “Porém, analisando a matéria de facto dada como provada, facilmente se conclui que se encontra provada a constituição do mandato, mas não o momento da sua cessação, o que já não se encontrava sequer alegado.

            “E, tal facto impede, desde logo, que se determine o início da contagem do prazo de prescrição previsto na al. c) do art.317 do Código Civil e, consequentemente, que se apure se os RR foram ou não citados antes de decorrido o prazo ali previsto, e cujo ónus da prova cabia aos réus (nº2 do artigo 342 do Código Civil).

            Na verdade, só se conhecendo essa data é que se conseguia apurar se decorreram mais de dois anos sobre a mesma”.

Em contrapartida, sustentam os Réus/Apelantes que não tinham de alegar as datas em que cessaram os mandatos, por haverem sido alegadas pelo Autor, já que as datas mencionadas nas notas de honorários e despesas elaboradas pelo Autor, como correspondendo ao último serviço praticado, são, consequentemente, aquelas em que cessaram os respectivos mandatos, pelo que os serviços prestados ficaram concluídos entre 23 de Janeiro de 2002 e 5 de Dezembro de 2005.

            Dispõe o art.317 c) do CC: “Prescrevem no prazo de dois anos os créditos pelos serviços prestados no exercício de profissões liberais e pelo reembolso das despesas correspondentes”.

            Ao comentarem esta norma, escrevem P.LIMA/A.VARELA – “De harmonia com o critério fixado no artigo 306 nº1, o prazo de dois anos quanto aos créditos pelos serviços prestados no exercício de profissões liberais só começará normalmente a correr no momento em que cessa a relação estabelecida entre credor e devedor (patrocínio judiciário de certa causa; tratamento de certa doença, etc.). Mas começará a correr antes, se o credor usualmente exigir a satisfação do seu direito antes desse momento e não tiver havido estipulação em contrário com o devedor “ (Código Civil Anotado, vol.I, 2ª ed., pág.284).

            A prescrição (presuntiva), traduzindo-se num facto extintivo do direito do autor, é uma excepção peremptória (art.493 nº3 CPC), impendendo sobre o réu o ónus de alegar e provar (art.342 nº2 CC) os factos constitutivos da excepção, pois “assim como o autor tem de provar os factos constitutivos do direito alegado, também o demandado tem de convencer o juiz da existência da causa excipiendi, ou seja, dos factos constitutivos da excepção“ - (MIGUEL MESQUITA, Reconvenção e Excepção no Processo Civil, pág. 49).

            Nesta medida, teriam os Réus, ao invocarem a excepção e para se aferir do início do prazo prescricional de 2 anos, de alegar a data da cessação do mandato ou a existência de acordo, no sentido da exigência do crédito.

            Conforme resulta da contestação, os Réus não o fizeram, limitando-se a alegar, para além do pagamento (art.1º), que “na data em que este lhes enviou a carta junta como documento nº 1 com a petição, à qual anexou as notas discriminativas e serviços prestados, há muito que se tinha verificado, em relação a cada uma delas, a prescrição presuntiva a que alude o art.317 al. c) do Código Civil” (art.2º).

            Muito embora reconheçam que não alegaram na contestação as datas da cessação dos mandatos, sustentam no recurso que essas datas foram alegadas pelo Autor, porque correspondem aos últimos actos dos serviços praticados, mencionados nas notas de despesas e alegadas no artigo16º da petição inicial.

            Coloca-se, por isso, a questão de saber se, em relação às chamadas excepções próprias, como a da prescrição, funciona o princípio da aquisição processual.

            Este princípio, reflectido positivamente no art.515 do CPC, impõe que os materiais (alegações e provas) aduzidos por uma das partes ficam adquiridos no processo, são atendidos mesmo que favoráveis à parte contrária, passando a pertencer à “comunidade dos sujeitos processuais”.

            Mas a norma do art.515 (2ª parte) CPC contém uma restrição “sem prejuízo das disposições que declarem irrelevante a alegação de um facto, quando não seja feita por certo interessado” que, segundo determinado entendimento, mais não é do que uma excepção ao princípio da aquisição processual, não no âmbito da prova, mas à sua aplicação no campo da alegação dos factos (deveria até inserir-se antes no art.264 CPC), sendo exemplos da irrelevância da alegação dos respectivos factos constitutivos por quem não o possa fazer, as disposições dos art. 287 CC (anulabilidade do negócio jurídico), 303 CC (prescrição), 428 CC (excepção de não cumprimento), por estar em causa o exercício de direito potestativo ou de excepção em sentido próprio (cf. LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, vol.2º, pág. 401).

            Como a prescrição, para ser eficaz, tem de ser invocada “por aquele a quem aproveita“ (art.303 CC), não podendo ser conhecida oficiosamente, por ficar dependente da vontade do interessado, dir-se-ia, numa concepção mais restrita, que os factos constitutivos da excepção terão que ser (todos) alegados pelo réu, não funcionando aqui o princípio da aquisição processual.

            Há, no entanto, quem, numa interpretação mais abrangente, defenda que uma vez invocada a prescrição, o juiz não está limitado aos factos alegados pelo réu (a quem aproveita), sendo legítimo servir-se dos factos adquiridos no processo por ambas as partes, face ao disposto no art.664 do CPC (cf., por ex., Ac STJ de 19/11/2001, proc. nº 01B3456; Ac RC de 26/4/2007, proc. nº 273/06.5TBAVR; Ac RL de 4/10/2011, proc. nº 320-C/2001, disponíveis em www dgsi.pt).

            Esta posição parece ter subjacente uma interpretação restritiva da 2ª parte do art.515 do CPC, devendo conjugar-se com o regime de arguição das excepções (art.496 CPC), no sentido de que a excepção da prescrição não pode ser conhecida oficiosamente, porque se impõe a suscitação (ónus subjectivo) da parte a quem aproveita, significando que a excepção ao princípio da aquisição processual situa-se ao nível da invocação, enquanto manifestação de vontade do interessado, mas não quanto à completude dos factos.

            Já vimos que os Réus não alegaram na contestação a data da cessação do mandato (ou mandatos) conferido ao Autor, e ainda que se acolha esta interpretação mais ampla, fazendo intervir aqui o princípio da aquisição processual, ela também não foi alegada pelo Autor, contrariamente ao afirmado pelos Apelantes.

            Na verdade, o que o Autor alegou (cf. art.16 da petição) foi ter enviado aos Réus, por carta de 28/8/2008, as notas de honorários e despesas, que discriminou (em conta-corrente), reportadas a cada um dos quatro processos, sem que nelas se refira expressamente a data da extinção do contrato de prestação de serviços.

            Ora, a última data, mencionada em cada uma das notas, em que se encontra o registo de determinado acto (1/6/2004, 5/12/2005, 23/1/2002 e 11/7/2002) não pode significar como sendo a data da cessação.

E nem sequer é legítimo, face à carência de elementos, presumir judicialmente que assim seja, ou que a partir dessas datas o Autor não praticou mais nenhum acto, porque se o tivesse feito, não deixaria de o mencionar, como pretendem os Apelantes.

Pode muito bem o mandato ter continuado sem a prática de actos registados na conta-corrente, porque uma coisa é o exercício e amplitude do mandato, outra a do registo dos “serviços efectivamente prestados” (art.100 nº1 do EOA - Lei nº 15/2005 de 26/1), para efeitos de honorários e despesas.

Por conseguinte, “a falta de prova do momento da cessação dos serviços prestados pelo mandatário impede que se saiba quando começaria a contar o prazo da prescrição (presuntiva) prevista na alínea c) do art.317 do CC“ (Ac STJ de 13/3/2009, proc. nº 08B3421, em www dgsi.pt), logo, não se comprovando os factos constitutivos da excepção peremptória, cujo ónus da prova impendia sobre os Réus (art.342 nº2 CC), impunha-se a procedência da acção e a consequente condenação dos Réus, conforme decidiu a sentença, que se mantém.

            2.4. – Síntese Conclusiva:

            a). O prazo (2 anos) da prescrição (presuntiva), previsto no art.317 c) CC, inicia-se, em regra, com o momento da cessação dos serviços prestados pelo profissional liberal.

            b). Cabe ao réu o ónus de alegação dos factos constitutivos da excepção peremptória, designadamente do momento em que se inicia o prazo de prescrição.

            c). Uma vez invocada pelo réu (a quem aproveita) a excepção da prescrição (presuntiva), o tribunal pode servir-se de factos alegados pela parte contrária quanto ao início do prazo.

            d). Não é legítimo presumir-se judicialmente, sem mais elementos, que a última data registada na nota de honorários e despesas corresponde ao momento da cessação do mandato forense.


III – DECISÃO

            Pelo exposto, decidem:

            Julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

            Condenar os Apelantes nas custas.

           


Jorge Arcanjo (Relator )

 Teles Pereira

Manuel Capelo