Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
166/17.0T8PNI.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
COMPRA E VENDA
DISTRATE
Data do Acordão: 09/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - PENICHE - JUÍZO C. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.1380 E 1410 CC
Sumário: Nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 1380.º e n.º 2 do artigo 1410.º, ambos do Código Civil, o distrate não impede o exercício do direito de preferência que nasceu com o negócio distratado.
Decisão Texto Integral:






I. Relatório

a) Os autos respeitam a uma ação declarativa que os Autores, agora recorridos, interpuseram contra os Réus, ora recorrentes, com o fim de exercerem um direito de preferência relativamente a um prédio rústico que os Réus I (…) e marido venderam aos Réus F(…) e esposa, baseando-se o direito de preferência no facto de ambos os prédios confinarem um com o outro.

Mais tarde, os Autores ampliaram o pedido, argumentando que os Réus após se terem apercebido do interesse dos Autores em exercer a preferência na venda celebrada, e com o propósito de ocultarem e impedirem o exercício do direito de preferência, celebraram contrato de distrate da compra e venda tratando-se de um contrato simulado e, por isso, nulo.

Os Réus contestaram alegando que a venda do prédio foi publicitada pelos proprietários confinantes e nenhum se mostrou interessado e quanto ao distrate do negócio é do conhecimento público desde 30/06/2017, não sendo factos novos, e, por isso, não podem ser objeto de ampliação do pedido, tendo tal distrate ficado a dever-se ao facto dos filhos se terem oposto e convencido a Ré I (...) a cancelar o negócio, acusando-a de dar descaminho dos bens da família, e para convencer e compensar os adquirentes celebrou com eles um contrato de arrendamento ao cultivador autónomo pela renda anual de € 500,00, por 10 anos.

Procedeu-se a julgamento e no final foi proferida a seguinte sentença:

«Nos termos e fundamentos expostos.

a) Declara-se a ineficácia do distrate de compra e venda outorgado em 27 de Junho de 2017, entre os RR. I (…) e marido J (…) e F (…) e mulher L (…), no Cartório Notarial de (…), exarado de fls. 139 a 140 verso do livro de notas número 120-E para escrituras diversas.

b) Ordena-se o cancelamento da inscrição de aquisição lavrada pela Ap. nº 2273, de 2017/06/30, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o nº 12168, freguesia de (...) , a favor dos RR. I (…) e marido J (..) (causa: distrate de compra e venda).

c) Reconhece-se o direito dos AA. R (…) e mulher S (…) de preferirem aos RR. F (…) e mulher L (…) na compra do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o nº 12168, freguesia de (...) , e inscrito na matriz sob o artigo 33, secção AJ, freguesia da (...) , e a haver para si esse prédio, em substituição daqueles como compradores, e pelo preço da venda de €9.990,00 (nove mil novecentos e noventa euros), já depositado à ordem dos autos.

d) Ordena-se o cancelamento da inscrição de aquisição do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o nº 12168, freguesia de (...) , a favor dos RR. F (…) e mulher L (…) (Ap. 407 de 2017/05/25), indeferindo-se o pedido de cancelamento de outras inscrições a favor dos RR. ou de terceiros.

d) Custas a cargo dos RR.

Após trânsito, comunique ao Cartório Notarial da Notária (…) indeferindo-se o pedido de comunicação à autoridade tributária».

Considerou-se, em síntese, que, nos termos do artigo 1410º, nº 2 do Código Civil, aplicável por força do disposto no n.º 4 do artigo 1380.º do mesmo código, o direito de preferência não é prejudicado pelo distrate da alienação.

B) É desta decisão que vem interposto o recurso por parte dos réus I (...) e marido, cujas conclusões são as seguintes:

«Conclusões:

(…)

c) Os recorridos contra-alegaram, pugnando pela manutenção da decisão sob recurso, argumentando que os Recorrentes não formulam conclusões, não indicam os fundamentos nem as normas jurídicas que servem de base ao pedido de revogação da sentença, pelo que o recurso deve ser indeferido, sendo certo, em todo o caso, que contrariamente ao defendido pelos recorrentes ao longo do processo não estamos perante nova causa de pedir, mas sim perante um desenvolvimento do pedido primitivo.

II. Objeto do recurso

De acordo com a sequência lógica das matérias, cumpre começar pelas questões processuais, se as houver, prosseguindo depois com as questões relativas à matéria de facto e eventual repercussão destas na análise de exceções processuais e, por fim, com as atinentes ao mérito da causa.

Tendo em consideração que o âmbito objetivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as questões que este recurso coloca são as seguintes:

1. A primeira questão que o recurso coloca consiste em verificar se ocorre fundamento para indeferir o recurso por omissão da formulação de conclusões, enumeração de fundamentos e indicação das normas jurídicas violadas.

2. Caso o conhecimento do recurso deva prosseguir, cumpre verificar se é tempestivo o recurso relativo ao articulado superveniente.

Nesta parte os recorrentes argumentam que não estão preenchidos os requisitos para a ampliação do pedido formulado pelos autores e que consistiu em terem formulado um pedido adicional, ou seja, a declaração de nulidade da transmissão operada através de escritura de distrate de compra e venda, celebrada no dia 27.06.2017, ainda antes da instauração da ação em 06/07/2017.

Os Recorrentes sustentam, por um lado, que não há ampliação do pedido, mas sim novos pedidos, com causa de pedir diversa e que se opuseram à sua admissão e, por outro, que os Autores não podiam alegar desconhecimento quanto ao distrate porque tal facto foi levado ao registo predial em data anterior à data da instauração da ação.

3. Em terceiro lugar, coloca-se a questão de saber se sendo o contrato de distrate um negócio válido, como o é no caso dos autos, o princípio da autonomia privada, manifestado em tal contrato, impede o exercício do direito de preferência.

III. Fundamentação

a) Indeferimento do recurso

Os Recorridos sustentam que o recurso deve ser rejeitado com fundamento em omissão de conclusões, enumeração de fundamentos e indicação das normas jurídicas violadas.

Não assiste razão aos recorridos, porquanto o recurso contém pelo menos o mínimo exigível em sede de conclusões, sendo percetível a argumentação e aquilo que se pretende obter com o recurso.

Conhecer-se-á, por isso, do recurso.

b) Tempestividade do recurso na parte relativa à admissão do articulado superveniente.

O recurso do despacho que admitiu o articulado superveniente devia ter sido interposto de imediato, no prazo de 15 dias, em separado, como resulta da al. d), do n.º 2 e n.º 3 do artigo 644.º, do Código de Processo Civil ([1]), conjugado com o n.º 1 do artigo 638.º e n.º 2 do artigo 645.º, ambos do mesmo Código.

Não tendo sido interposto tal recurso naquele momento processual, ficou precludida, devido ao decurso do prazo – artigo 139.º, n.º 3, do Código de Processo Civil – a possibilidade de o fazer, ou seja, com o recurso interposto da sentença.

Não se admite, pelo exposto, o recurso na parte relativa ao articulado superveniente.

c) 1. Matéria de facto – Factos provados

1. O prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o n.º 2847, freguesia de (...) , inscrito na matriz sob o artigo 34, da secção AJ, da freguesia de (...) , composto por cultura arvense, com a área de 1.800 m2, que confronta do norte com (…), do sul com (…) do nascente com regueira-madre e do poente com estrada, encontra-se registado a favor da A. S (…), casada no regime de comunhão geral de bens com R (…), pela apresentação nº 537 de 28/11/2012.

2. Por contrato de compra e venda celebrado no dia 25/05/2017, na Conservatória do Registo Predial, Comercial, Automóvel da (...) , no processo Casa Pronta nº 28404/2017, a ré I (…), com autorização do marido, o réu J (…), vendeu aos réus F(…) e mulher L (…), o prédio denominado “ x (...) ”, composto de cultura arvense, descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o nº 12168, freguesia de (...) , que confronta do norte com caminho e outros, do sul com (…), do nascente com ribeiro e do poente com estrada e inscrito na matriz sob o artigo 33, secção AJ, freguesia da (...) , pelo preço de € 9.990,00.

3. O prédio referido em 2 tem a área de 11.760 m2.

4. Os segundos réus F (…) e mulher L (…), não eram na data da celebração do contrato referido em 2 titulares de qualquer direito sobre o aludido prédio, nem eram proprietários de qualquer prédio que fosse confinante com o prédio por si adquirido.

5. Os réus I (…) e marido J (…) não deram conhecimento aos AA. da sua intenção da venda do prédio identificado em 2 aos réus F (…) e L (…)pelas condições que constam do contrato celebrado e referido em 2.

6. Os AA. procederam ao depósito do montante de € 9.990.00 (nove mil e novecentos e noventa euros), referente ao valor pago pelos réus F (…) e L (…) à R. I (…) aquando da celebração do contrato referido em 2, e do montante de € 499,50 (quatrocentos e noventa e nove euros e cinquenta cêntimos) relativo ao IMT, pago pelos segundos réus, e ainda ao depósito do montante de € 79,92 (setenta e nove euros e noventa e dois cêntimos), relativo ao Imposto de Selo, em 26/06/2017.

7. Em 27 de Junho de 2017, no Cartório Notarial de (...) , os réus I (…) e marido J (…) e F (…) e mulher L (…) outorgaram escritura de distrate de compra e venda onde declararam que distratavam a compra e venda constante do processo “Casa Pronta”, revertendo o prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o nº 12168 ao património da ré I (…)

8. Na sequência da escritura referida em 7 foi requerido o registo da aquisição do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o nº 12168 a favor da R. I (…), (causa: distrate de compra e venda), pela Ap. 2273 de 2017/06/30.

2. Matéria de facto – Factos não provados

1. Ao outorgarem a escritura referida em 7. dos factos provados os réus, por acordo, declararam vontade contrária à sua vontade real, com o propósito de impedirem o exercício do direito de preferência pelos AA..

2. Os réus I (…) e marido J (…) não restituíram o preço pago pelos RR. F (…) e mulher L (…) no âmbito da compra e venda celebrada na Conservatória do Registo Predial da (...) em 25/05/2017, apenas procederam ao pagamento das obrigações fiscais respetivas.

c) Apreciação da restante questão objeto do recurso

Vejamos se se sendo o contrato de distrate um negócio válido, como o é no caso dos autos, o princípio da autonomia privada manifestado em tal contrato impede o exercício do direito de preferência.

A resposta é negativa.

Como se referiu na sentença, o n.º 2 do artigo 1410.º do Código Civil, refere expressamente a inocuidade do contrato de distrate, apesar da existência e validade de tal contrato, face ao direito de preferência que nasceu em virtude do negócio distratado.

Efetivamente o n.º 2, do artigo 1410.º do Código Civil, estabelece que «O direito de preferência e a respetiva ação não são prejudicados pela modificação ou distrate da alienação, ainda que estes efeitos resultem de confissão ou transação judicial».

Ou seja, o distrate não impede o exercício do direito de preferência que nasceu com o negócio distratado.

O disposto no artigo 1410.º, n.º 2, do Código Civil, é aplicável ao caso dos autos por força do disposto no n.º 4 do artigo 1380.º do mesmo código.

O exercício da autonomia privada, como referiu Antunes Varela consiste ou manifesta-se no «…poder que os particulares têm de fixar, por si próprios (auto…), a disciplina (nomos….) jurídica dos seus interesses» ([2]).

Porém, como o direito regula todos os interesses que se estabelecem entre todos os membros da comunidade jurídica, os atos jurídicos levados a cabo por uns podem afetar os interesses de outros e é função do direito disciplinar todos os interesses de modo a que os mesmos sejam conformados por princípios de justiça.

A norma em causa, como referiram Pires de Lima/Antunes Varela foi introduzida no Código Civil (de 1886) pela Reforma de 1930, «…como reacção contra um expediente de que o comprador e vendedor se serviam para afastar o direito do preferente, quando viam a situação perdida» ([3]).

A norma em questão visa, pois, corrigir os eventuais desvios a que o exercício da autonomia privada possa dar lugar quando considerado o estado de coisas idealizado pelo legislador como sendo aquele que melhor conjuga os interesses, carecidos de tutela jurídica, de todos os cidadãos.

Cumpre concluir, por conseguinte, julgando o recurso improcedente.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e mantém-se a decisão sob recurso.

Custas pelos recorrentes.


*

Coimbra, 17 de setembro de 2019

Alberto Ruço ( Relator)

Vítor Amaral

Luís Cravo


[1] «Cabe ainda recurso de apelação das seguintes decisões do tribunal de 1.ª instância:

a) (…); b) (…); c) (…); d) Do despacho de admissão ou rejeição de algum articulado ou …» - n.º 2 do artigo 644.º do CPC.



[2] Das Obrigações em Geral, Vol. I, 3.ª edição. Coimbra, Almedina,1980, pág. 211.
[3] Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª edição, reimpressão. Coimbra Editora, 1987, pág. 381.