Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
136/21.4GCACB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: ELEMENTO SUBJECTIVO DO CRIME
ACUSAÇÃO NULA
INQUÉRITO
DEVOLUÇÃO DO PROCESSO AO MINISTÉRIO PÚBLICO
Data do Acordão: 03/22/2023
Votação: S
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE LEIRIA – JUIZ 3
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Legislação Nacional: ARTIGOS 122.º, 279.º, N.º 1, E 283.º, N.º 3, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I - Apenas em caso de arquivamento é possível a reabertura do inquérito.

II - Se após a remessa dos autos para julgamento a acusação vier a ser rejeitada, a única possibilidade de reacção contra o correspondente despacho será através de recurso.

III - Sendo o processo penal constituído por uma sucessão de actos processuais lógica e cronologicamente imbricados, legalmente regulamentados e organizados em fases sequenciais, cada uma delas com a sua função específica, depois de o processo ter sido remetido para julgamento o Ministério Público não pode alterar a acusação.

IV - No caso em que a acusação é parcialmente rejeitada em decisão instrutória, prosseguindo noutra parte para julgamento, não há razões que justifiquem a devolução dos autos ao Ministério Público, devendo o processo prosseguir para julgamento de modo a que os arguidos sejam julgados pelo crime relativamente ao qual a acusação se revelou apta e suficientemente fundada.

Decisão Texto Integral:
I – RELATÓRIO:

… foi proferida decisão instrutória que declarou nula a acusação deduzida pelo Ministério Público contra os arguidos AA, BB e CC quanto ao crime de Tráfico de estupefacientes p. p. pelo art. 21º do DL nº 15/93, de 22 de Janeiro, e pronunciou os arguidos AA e BB pela prática de um crime de detenção de arma e munições proibidas, nos termos descritos na mesma acusação pública, determinando ainda a remessa dos autos à distribuição para julgamento.

Inconformado, recorre o Ministério Público, retirando da motivação do recurso as seguintes conclusões:

2. … em face da declaração de nulidade (parcial) da acusação deduzida … por referência ao crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art. 21.º do DL 15/93, de 22 de Janeiro, impunha-se a remissão dos autos ao Ministério Público, ao abrigo do disposto no artigo 122º, nº 2 e 3 do Código de Processo Penal.

3. A nulidade da acusação cominada no artigo 283º, nº 3, do Código de Processo Penal, é uma nulidade sanável (só assim se entende, a cominação prevista no preceito, prevendo que a acusação deve incluir os elementos indicados “sob pena de nulidade”.

4. Tal nulidade não se encontra prevista no artigo 119º do Código de Processo Penal, nem é cominada noutro artigo do Código de Processo Penal, não podendo, assim, ser considerada como nulidade insanável.

5. Tal questão foi já apreciada, âmbito do Ac do Tribunal Constitucional nº 246/2017 de 17.05.2017, onde se decidiu “não julgar inconstitucional a norma extraída da conjugação dos artigos 311.º, n.ºs 1, 2, alínea a), e 3, alínea d), e 283.º, todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, tendo sido deduzida acusação contra um arguido, imputando-lhe a prática de um crime, e tendo esta acusação sido liminarmente rejeitada por insuficiente descrição de um elemento típico, poder vir a ser validamente deduzida nova acusação pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, suprindo a omissão da descrição do sobredito elemento típico, sujeitando-se a julgamento e condenando-se o arguido pelos factos e qualificação jurídica dela constantes (sublinhado nosso).

6. Na mesma esteira, decidiu-se no Ac. do Tribunal da Relação de Évora, entendendo-se o processo deve regressar à fase de inquérito, em face da nulidade da acusação, uma vez que não existe caso julgado material.

7. Na verdade, “o Juiz não está a convidar o MP ao que quer que seja, mas sim a rejeitar aquela determinada acusação, nada impedindo, como já se referiu, que naquele ou noutro processo (para quem defenda que o resultado necessário da rejeição é o arquivamento do processo) seja deduzida nova (diferente) acusação, não cabendo ao Juiz determinar quando é que pode, ou não, haver inquérito”.

Respondeu o arguido CC…

Nesta instância, o Exmº. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer pronunciando-se pela procedência do recurso.

II – FUNDAMENTAÇÃO:

A decisão recorrida, na parte que agora releva, tem o seguinte teor:

(…)

A instrução foi requerida apenas pelo arguido CC. No entanto, e conforme dispõe o artigo 307º, nº 4, do CPP, a circunstância de a instrução ter sido requerida apenas por um dos arguidos não prejudica o dever de o juiz retirar da instrução as consequências legalmente impostas a todos os arguidos. Neste caso, encontra-se a questão da nulidade da acusação invocada pelo arguido, por omissão da mesma na descrição de factos de natureza objectiva e subjectiva necessários ao preenchimento do crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21º, do DL 15/93, de 22.01 imputado a todos os arguidos. Da leitura da acusação extrai-se que a mesma padece de imprecisão/omissão na descrição de factos integradores do elemento de natureza subjectiva. A este respeito cita-se aqui o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23.08.2018, proferido no processo nº. 373/15.0JACBR.C1…

Ora, no caso concreto apenas se alega na acusação:Os arguidos pretendiam ceder o produto estupefaciente supra descrito a individuo/s não identificado/s. (…) Ao praticar os factos descritos, os arguidos actuaram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era e é proibida e punível por lei.” Da análise da acusação, e tendo presente o crime de tráfico de estupefacientes imputado aos arguidos, desde logo se verifica que não consta da mesma a descrição de todos os elementos de natureza subjectiva que permitam imputar aos arguidos o referido crime. Assim, a acusação é nula uma vez que não observa o disposto no artº 283º, nº 3, alínea b), do CPP, não indicando elementos fundamentais do tipo subjectivo de crime, relevantes para a determinação da motivação subjacente à prática do crime, o grau de participação do agente nos mesmos e circunstâncias relevantes para a determinação de eventual sanção a ser aplicada, sendo que em julgamento tal omissão determinaria, necessariamente, a absolvição dos arguidos pela prática do crime de tráfico de estupefacientes de que estão acusados.

O arguido AA encontra-se ainda acusado da prática, como autor material, de um crime de detenção de arma e munições proibidas … O arguido BB encontra-se também acusado pela prática, de um crime de detenção de arma e munições proibidas … Ora, tais arguidos não requereram a abertura de instrução não se colocando a este tribunal a questão de apreciar a existência de indícios relativamente a tais crimes. Assim sendo, nesta parte, será proferido despacho de pronúncia em relação aos dois arguidos.

Decisão:

Face ao exposto:

1- declara-se nula a acusação deduzida pelo Ministério Público contra os arguidos AA, BB e CC por referência ao crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art. 21.º do DL 15/93, de 22 de Janeiro;

2- pronunciam-se os arguidos AA e BB pela prática de um crime de detenção de arma e munições proibidas, nos termos descritos na acusação deduzida pelo Ministério Publico.

Apreciando:

Importa essencialmente decidir se o despacho recorrido, declarando a nulidade parcial da acusação, deveria ter ordenado a devolução dos autos ao Ministério Público, facultando-lhe assim a possibilidade de corrigir a acusação na parte em que veio a ser considerada nula [1].

Requisito essencial para que assim pudesse suceder seria que daí não resultasse afronta ao princípio ne bis in idem, condição que tem como referência o disposto no nº 5 do art. 29º da Constituição da República, em cujos termos ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.

Hipótese similar foi tratada pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 246/2017[2], aliás, citado pelo recorrente, tratando-se aí de averiguar da constitucionalidade de situação em que, deduzida acusação contra o arguido pela prática de um crime e sendo esta rejeitada liminarmente por insuficiente descrição de um elemento típico, é deduzida nova acusação pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, suprindo a omissão verificada.

Acompanhando a metodologia expositiva seguida naquele aresto e transcrevendo (texto em itálico) alguns segmentos, apontar-se-á, num primeiro momento, que o núcleo essencial da protecção conferida pelo princípio ne bis in idem se reporta à apreciação do mérito da causa penal, sendo o seu alcance (…) o da proibição de um duplo julgamento de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido e o da proibição da dupla punição pela prática do mesmo crime [3].

O tribunal constitucional vem acentuando, por referência ao art. 29º, nº 5, da CRP, a diferença entre a dimensão material e a dimensão processual do ne bis in idem que, entre outros reflexos, impõe ao legislador a conformação com o caso julgado material de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto e, simultaneamente, confere ao visado o direito de se defender da violação desse direito fundamental.

No desenvolvimento do aresto referido no penúltimo parágrafo afirma-se, a dado passo, que (…) não será isenta de dificuldade uma solução que, perante qualquer erro  (designadamente, a insuficiente descrição de um elemento típico) que torne a acusação “não-apta” para conformar o objeto do julgamento, conduza sempre e inexoravelmente à falência do processo penal e à impossibilidade da perseguição criminal, sob pena de se frustrarem os objetivos do próprio sistema processual penal, sem com isso (só com isso) se salvaguardar qualquer interesse importante do arguido. No limite, a justiça penal poderia ficar, assim, por realizar em virtude de meras imprecisões e erros superáveis, desfecho que, certamente, o legislador ordinário não pretenderia e, acima de tudo, a Constituição não parece impor.

Afigura-se, pois, razoável que, no processo penal, o legislador encontre soluções que permitam a correção de lapsos e omissões, até certo ponto, ultrapassando a “não-aptidão” da acusação, desde que sejam respeitados certos limites (adiante assinalados) e se continue a assegurar ao arguido um julgamento justo e com as devidas garantias de defesa.

Pouco mais adiante, por apelo ao caso concreto submetido à apreciação do TC, vem referido que (…) perante as circunstâncias do caso concreto, entende-se que a tutela da posição do arguido, ora recorrente, através da dimensão processual do princípio ne bis in idem, não reclama – de forma alguma (e independentemente da melhor interpretação da lei infraconstitucional, que não cumpre apreciar no presente recurso) – que a pretensão punitiva do Estado se deva considerar consumida com o primeiro despacho de rejeição da acusação, considerando que os respetivos fundamentos se dirigiram a uma insuficiência (em última análise formal) da acusação, sendo que a rejeição desta ocorreu logo no primeiro ato da fase de julgamento, não chegando o arguido a sujeitar-se à pendência do processo na referida fase. Tudo se passou, pois, em termos sequencialmente muito aproximados do que ocorreria com a normal dedução de uma acusação em processo comum.

Em suma, o recorrente não viu afastado, de forma alguma, o seu fair trial, nem a sua fair chance at trial pela possibilidade, reconhecida na decisão recorrida, de apresentação de uma segunda acusação válida, suprindo a insuficiência da descrição dos factos da primeira.

Não se prefiguram, pois, motivos para afastar a construção normativa sob apreciação por violação do princípio ne bis in idem ou afronta a qualquer outro princípio ou norma constitucional (que, de resto, não veio concretizada).

No contexto em que este acórdão de fiscalização concreta de constitucionalidade foi proferido a solução alcançada permitiu suplantar um erro de procedimento (acusação incompleta), abrindo portas à submissão do arguido a julgamento e à sua subsequente condenação.

Independentemente da solução que veio a ser alcançada naquela situação, não descortinamos no texto do acórdão do Tribunal Constitucional argumento a favor da devolução dos autos ao M.P., questão que, aliás, nem sequer ali foi tratada por não constituir objecto do recurso de constitucionalidade.

No que especificamente concerne à devolução dos autos ao Ministério Público, tomámos posição no recurso nº 80/18.2PZLSB.C1 [4], sustentando que encerrando o M.P. o inquérito deduzindo acusação, conforme prevê o art. 276º, nº 1, do CPP, se após a remessa dos autos para julgamento a acusação vier a ser rejeitada, a única possibilidade de reacção contra o correspondente despacho será através de recurso procurando convencer do bem fundado da acusação deduzida, porquanto sendo o processo penal constituído por uma sucessão de actos processuais lógica e cronologicamente imbricados, legalmente regulamentados e organizados em fases sequenciais, cada uma delas com a sua função específica, e não prevendo a lei a possibilidade da reabertura do inquérito senão nos casos em que tenha havido arquivamento (art. 279º, nº 1, do CPP), não pode o M.P. sanar os vícios de que a acusação padeça, praticar novos actos de inquérito ou alterar a acusação. Assim, não ocorrendo razão que justifique a remessa dos autos a título devolutivo ao Ministério Público, a consequência necessária será o seu arquivamento.

No caso vertente, em que a acusação foi parcialmente rejeitada em decisão instrutória, prosseguindo noutra parte para julgamento, tudo se passa da mesma forma relativamente à parte da acusação que sucumbiu, não havendo razões que justifiquem a devolução dos autos ao Ministério Público, antes devendo o processo prosseguir para julgamento de modo a que os arguidos sejam julgados pelo crime relativamente ao qual a acusação se revelou apta e suficientemente fundada.

Não significa isto que, aceitando o M.P. o entendimento do Tribunal Constitucional relativo à relevância e limites do ne bis in idem, esteja impedido de renovar a acusação na parte em que não foi recebida, completando-a de modo a conferir-lhe viabilidade.  Simplesmente, não o poderá fazer no mesmo processo, ficando salva a possibilidade de o fazer com base em certidão que para o efeito deverá requerer [5].

III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, acordam nesta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso.

Sem taxa de justiça, por dela estar isento o recorrente.

*

Coimbra, 22 de Março de 2023

 (texto processado pelo relator, revisto por ambos os signatários e assinado electronicamente)

(Jorge Miranda Jacob - relator)

(Maria Pilar Oliveira - 1ª adjunta)

(José Eduardo Martins - 2º adjunto)



[1] A questão suscitada neste recurso foi já objecto de diversas decisões jurisprudenciais, aí incluídas as proferidas nos recursos nºs 601/19.3T9CBR.C1 e 80/18.2PZLSB.C1, ambas do ora relator, ainda que com diverso enquadramento, pelo que na ausência de novos argumentos nos limitaremos a seguir de perto, ou mesmo a transcrever o que então decidimos.
[2] Publicado no DR, Série II, de 25/07/2017. O dispositivo tem o seguinte teor: Em face do exposto, na
improcedência do recurso, decide-se não julgar inconstitucional a norma extraída da conjugação dos artigos 311.º, n.ºs 1, 2, alínea a), e 3, alínea d), e 283.º, todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, tendo sido deduzida acusação contra um arguido, imputando-lhe a prática de um crime, e tendo esta acusação sido liminarmente rejeitada por insuficiente descrição de um elemento típico, poder vir a ser validamente deduzida nova acusação pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, suprindo a omissão da descrição do sobredito elemento típico, sujeitando-se a julgamento e condenando-se o arguido pelos factos e qualificação jurídica dela constantes.
[3] - Este segmento constitui referência à Constituição Portuguesa Anotada, Jorge Miranda e Rui Medeiros (org.), tomo I, 2ª Ed., pág. 676
[4] Acórdão de 10/03/2021, desta mesma Relação, disponível para consulta em www.dgsi.pt/jtrc.
[5] Aliás, no processo subjacente ao recurso para o Tribunal Constitucional a que nos reportámos supra, a nova acusação veio a ser deduzida em inquérito tramitado com número diverso, daí decorrendo que o próprio M.P. entendeu que o processo inicial não comportava a dedução de nova acusação por impedimento legal.