Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
48/09.0TAVGS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: VIOLAÇÃO DE IMPOSIÇÕES
PROIBIÇÕES OU INTERDIÇÕES
CARTA DE CONDUÇÃO
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
DESPACHO DE RECEBIMENTO DA ACUSAÇÃO
Data do Acordão: 07/14/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – VAGOS -JUÍZO DE MEDIA INSTÂNCIA CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 69º ,348.º, N.º 1, ALÍNEA B),353º CP, 358º,500º,2 CPP
Sumário: 1-A incriminação agora prevista no artigo 353.º do CP foi alargada com o objectivo de incluir os casos de incumprimento de imposições determinadas por sentença criminal a título de pena acessória, nos quais se integra a situação traduzida na omissão de entrega, por arguido a quem está imposta pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor nos termos do artigo 69.º do CP, no prazo legalmente previsto (cfr. artigos 69.º, n.º 3, do Código Penal, e 500.º, n.º 2, do Código de Processo Penal) e determinado na sentença, de carta/licença de condução.
2-Não pode ser considerada manifestamente infundada a acusação a qual se atribuem factos que constituem crime, embora diverso daquele que, na mesma peça processual, imputa ao arguido.
3- Estando em causa uma simples alteração não substancial da acusação, mais propriamente uma alteração de qualificação jurídica, em momento oportuno, haverá que cumprir o disposto no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:
1. No âmbito dos presentes autos, registados sob o n.º 48/09.0TAVGS, que correm termos na Comarca do Baixo Vouga (Vagos – Juízo de Média Instância Criminal), através de despacho judicial proferido em 12 de Março de 2010, foi rejeitada a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido J..., por ter sido considerada manifestamente infundada, à luz do disposto no artigo 311.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea d), do Código de Processo Penal.
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2. Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, extraindo da respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:
1.ª – O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido J..., imputando-lhe a prática do crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.
2.ª – Por douto despacho de fls. 78 a 83, a Mma. Juiz a quo rejeitou a acusação público deduzida pelo Ministério Público por manifestamente infundada.
3.ª – Decorre dos elementos carreados para os presentes autos que, na sentença proferida nos autos de Processo Especial Abreviado n.º 86/07.7GAOBR, foi cominada com o crime de desobediência a falta da entrega da carta de condução pelo arguido, no prazo de dez dias após o trânsito, trânsito esse que ocorreu.
4.ª – Com o trânsito em julgado da sentença dos autos de Processo Especial Abreviado n.º 86/07.7GAOBR, consolidaram-se na ordem jurídica todos os efeitos penais dali decorrentes, nos termos do artigo 467.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
5.ª – Não devia o Tribunal considerar não ser legítima nem emanar de autoridade competente aquela cominação com a prática de um crime de desobediência, nos termos do art. 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, pela falta de entrega da carta de condução no prazo de dez dias após o trânsito.
6.ª – Não será de efectuar uma interpretação minimalista do artigo 348.º, n.º 1, aliena b), do Código Penal, pois, caso contrário, estar-se-ia a esvaziar a norma nos casos em que a advertência é feita, como o foi na sentença condenatória proferida no Processo Especial Abreviado n.º 86/07.7GAOBR, a fim de garantir o cumprimento da pena acessória por parte do arguido e, nessa medida, proteger a autonomia intencional do Estado de Direito.
7.ª – O crime de desobediência consumou-se com a omissão do acto determinado, consubstanciada, in casu, com a falta de entrega da carta de condução pelo arguido no prazo de dez dias após o trânsito.
8.ª – Se se entender que não é legítimo cominar a falta de entrega da carta de condução com a prática do crime de desobediência e se o arguido recusasse a entrega da carta perante a autoridade policial, nos termos do artigo 500.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, não haveria quaisquer consequências para o incumprimento.
9.ª – Com efeito, se o Tribunal não puder, desde logo, no acórdão condenatório, cominar com a prática de crime a falta de entrega da carta de condução, também a autoridade policial, num segundo momento que viesse a ocorrer e na sequência do artigo 500.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, não poderia cominar com tal crime a eventual e reiterada falta de entrega daquele documento por parte do arguido perante as autoridades policiais.
10.ª – A conduta do arguido de não entrega voluntária da carta e não se logrando proceder à apreensão daquele documento nos termos do artigo 500.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, cominaria na ausência de quaisquer consequências para a recusa do arguido em cumprir a pena acessória a que está obrigado.
11.ª – A eventual recusa de o arguido cumprir com a pena acessória, traduzida na falta da entrega da carta de condução, parece-nos ser merecedora de suficiente dignidade a valorar em termos penais, pois, a assim não ser, equivaleria a admitir-se a possibilidade de deixar à consideração do arguido a decisão de cumprir ou não com tal pena acessória, ou de cumpri-la apenas quando entendesse.
12.ª – A cominação com o crime de desobediência obsta à pretensão do arguido que pretenda subtrair-se ao cumprimento da pena acessória em que foi condenado por acórdão e reforça a confiança da comunidade na validade da norma penal violada.
13.ª – Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o douto despacho recorrido, por violar o disposto nos artigos 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, e 311.º, n.ºs 1, 2, alínea a), e 3, alínea b), do Código de Processo Penal, e ordenando-se a sua substituição por outro a determinar o recebimento da acusação e a designação de data para a audiência.
Pelo que, dando provimento ao recurso interposto, revogando o despacho recorrido e ordenando a sua substituição por outro a determinar o recebimento da acusação pública proferida e designação de data para a audiência, Vossas Excelências farão, como sempre, a costumada justiça!
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3. O arguido não respondeu ao recurso.
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4. Nesta Relação, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer nos termos infra transcritos:
«(…).
Eis a nossa posição.
O que, em suma, defende o M. P.º é que os factos acusados integram o aludido crime.
Porém, desde que a questão foi posta neste Tribunal de recurso, temos seguido a interpretação que é vertida na sentença impugnada, de acordo com a qual a nossa lei penal, ao regular a execução de uma pena complementar ou acessória de proibição de conduzir, não prevê nem sanciona como crime de desobediência a não entrega, pelo condenado, no prazo de 10 dias que lhe é concedido para tal, do título respectivo.
(…).
O preceito que regula a execução da proibição de conduzir em casos como o dos autos não sanciona com o crime de desobediência a falta de entrega da carta de condução: estabelecendo-se no art. 500.º do CPP, aliás em consonância com o estatuído no art. 69.º do CP, que, no prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado procede à entrega na secretaria do tribunal ou em qualquer posto policial, que a remete àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendida no processo (n.º 2 do preceito), no seu n.º 3 o que se determina é que se o condenado na proibição de conduzir veículos motorizados não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da licença de condução.
(…).
Porém, será que os factos acusados não integram o crime de violação de imposições a que se refere o art. 353.º do CP?
À data da prolação da sentença que deu origem ao inquérito em causa (11-12-2007), já se encontrava em vigor a nova redacção deste preceito do CP.
Ora, este art. 353.º do CP viu alargado o seu âmbito com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 59/07, de 04-09.
O agente do crime era inicialmente “quem violar proibições e interdições” impostas por sentença e passou a ser também quem violar “imposições”.
É fora de questão que o arguido foi notificado para apresentar a sua carta de condução no prazo de dez dias após o trânsito em julgado da sentença que o condenou e que a lei impõe esta obrigação em todos os casos menos na hipótese de o título já se encontrar aprendido – art. 69.º, n.º 3, do CP.
Parece-nos claro que esta imposição legal, seguida de uma determinação judicial (na sequência de uma condenação penal) não poderá deixar de ser sancionada na lei.
Se o não fosse, haveria condenados em proibição de conduzir que, por se furtarem à apreensão policial do título, não mais cumpririam essa pena, que, como na lei se refere, só começa a contar desde a efectiva entrega ou apreensão. E haveria outros condenados – precisamente os mais timoratos –, que obedecendo à ordem legalmente dado pelo Tribunal, sofreriam efectivamente a condenação. Ou seja: os condenados mais afoitos a furtarem-se à proibição de conduzir e os condenados mais cordatos a sofrerem a pena.
Como esta não poderia ser uma situação desejada pelo Direito, eis que a nova redacção do art. 353.º do CP, ao aludir a quem viole imposições, dá a resposta adequada à questão.
Concluindo: a omissão de entrega da carta de condução no prazo fixado não constitui crime de desobediência mas sim o crime de violação de imposições, previsto no artigo353.º do CP.
Pelo exposto se emite parecer no sentido de ser julgado procedente o recurso do M.º P.º, embora por razões diferentes».
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5. Notificado, nos termos e para os efeitos do artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o arguido não exerceu o seu direito de resposta.
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6. Colhidos os vistos, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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II. Fundamentação:
1. Poderes cognitivos do tribunal ad quem e objecto do recurso:
Como flui do disposto no n.º 1 do art. 412.º do CPP, e de acordo com jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do STJ), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação.
As conclusões da motivação apresentada pelo Ministério Público circunscrevem o recurso à questão de determinar se o acervo fáctico descrito na acusação pública consubstancia (ou não) a prática, pelo arguido J..., de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal.
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2. Importa considerar os seguintes elementos relevantes:

A) No decurso de inquérito efectuado nos presentes autos, a final, o Magistrado do Ministério Público deduziu acusação contra o arguido J..., a quem imputou a prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, com base nos seguintes factos (transcrição):

«O arguido foi julgado no Processo Abreviado n.º 86/07.7GAOBR, do Tribunal Judicial de Vagos, tendo sido condenado pela prática de um crime de desobediência simples, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, por referência ao artigo 152.º, n.º 3, do Código da Estrada, na pena de 70 (setenta) dias de multa à taxa diária de € 5 (cinco euros), perfazendo o total de € 350 (trezentos e cinquenta euros), bem como na pena acessória de proibição de conduzir qualquer veículo a motor pelo período de 5 (cinco) meses – artigo 69.º, n.º 1, aliena c), do Código Penal, constando da douta sentença que o mesmo terá de proceder à entrega da sua licença de condução na Secretaria do Tribunal Judicial de Vagos ou em qualquer posto policial da sua área de residência no prazo de 10 (dez) dias após o trânsito em julgado da sentença, sob pena de incorrer na prática do crime de desobediência.

Encontrando-se o arguido presente na diligência de leitura da sentença, foi aquele devidamente notificado que tinha de proceder à entrega da sua carta de condução nos termos ordenados na sentença, tendo a sentença sido lida na sua presença.

Apesar da advertência que lhe foi efectuada e de o arguido saber que tinha de acatar a ordem imposta pelo Tribunal e que se não o fizesse incorria na prática do crime de desobediência, o arguido não entregou a sua carta de condução no Tribunal nem em qualquer posto policial, dentro ou fora do prazo que lhe foi indicado, de dez dias após o trânsito em julgado da sentença, tendo a sua carta de condução sido apreendida, em 25/02/2009, pelos elementos do Posto Territorial de Vagos da Guarda Nacional Republicana, por ordem do Tribunal Judicial de Vagos.

O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que estava a desrespeitar uma ordem legítima, emanada da autoridade competente e que lhe havia sido regularmente comunicada juntamente com a cominação para o seu incumprimento, encontrando-se ciente que estava obrigado a proceder à entrega da aludida carta e que se não o fizesse incorria na prática de um crime de desobediência.

Acresce que o arguido sabia que a sua conduta era proibida por lei e punida criminalmente».


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B) A sentença condenatória proferida no referido Processo Abreviado n.º 86/07.7GAOBR foi lida em 11 de Dezembro de 2007 e transitou em julgado no ano de 2008 (cfr. certidão a fls. 2/20 dos autos).

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C) Após distribuição, o Sr. Juiz proferiu o despacho recorrido, que se passa a transcrever, nas partes mais significativas:

«II. II. Pois bem, atentemos na factualidade indiciada e nos elementos do tipo legal de crime imputado ao arguido.

Preceitua o art. 348.°, n.° 1 do Código Penal que “Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados da autoridade competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se: a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação”.

(…).

Por sua vez e incidindo, agora, no preceito que regula a execução da pena acessória de proibição de conduzir, pena em que o arguido foi condenado por sentença transitada em julgado, constata-se que o mesmo não sanciona com o crime de desobediência a falta de entrega da carta de condução.

Com efeito, estabelece o art. 500.° do Código de Processo Penal que “2. No prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que a remete àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendida no processo. 3. Se o condenado na proibição de conduzir veículos motorizados não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da licença de condução”.

Também sobre a questão da entrega do título de condução preceitua o n.° 3 do art. 69.° do Código Penal que “No prazo de 10 dias contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que remete àquela, o título de condução, se o mesmo não se encontrar já apreendido no processo”.

Da leitura e análise dos dois normativos vindos de referir em último lugar resulta não existir, por conseguinte, qualquer cominação legal da punição da não entrega como crime de desobediência - um dos elementos do tipo objectivo do ilícito da desobediência.

Por sua vez, no que concerne ao preenchimento do tipo através da simples “cominação funcional” (assim designada por contraposição à “cominação legal”), importará ponderar se as condutas arguidas de desobediência merecem ou não tutela penal, tendo em vista o carácter fragmentário e de última ratio da intervenção penal.

Como é assinalado por Cristina Líbano Monteiro, que aqui seguimos de perto, “(…) a al. b) existe tão-só para os casos em que nenhuma norma jurídica, seja qual for a sua natureza (i. é, mesmo um preceito não criminal) prevê aquele comportamento desobediente. Só então será justificável que o legislador se tenha preocupado com um vazio de punibilidade, decidindo-se embora por uma solução, como já foi dito, incorrecta e desrespeitadora do princípio da legalidade criminal” (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra, Tomo III, pág. 354).

Para a não entrega voluntária da carta de condução - entrega essa que decorre da lei e não pressupõe qualquer ordem específica para esse efeito - o legislador prevê como consequência a determinação da sua apreensão, e tão só!

Desta feita, entendemos que a cominação da prática de um crime de desobediência para a conduta da sua não entrega contraria o sentido da norma da aplicação e execução da pena acessória de proibição de veículos com motor.

No sentido do vindo de sustentar, pode ver-se o Acórdão da Relação de Coimbra, de 22 de Outubro de 2008, Processo 43/08.6TAALB.C1, disponível in www.dgsi.pt, onde se lê que “Digamos que a notificação que é feita ao arguido para no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, entregar o título de condução, tem apenas um carácter informativo, ou se se quiser, não integra uma ordem, já que da sua não entrega decorre, como vimos, apenas a apreensão da mesma por parte das autoridades policiais. Não há pois qualquer cominação da prática de crime de desobediência. Por outro lado como é sabido, o intérprete deve presumir na determinação do sentido e alcance da lei, que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados e consagrou as soluções mais acertadas, (artigo 9.° Código Civil). Significa isto claramente que no caso em análise se fosse intenção do legislador, cominar o crime de desobediência para a não entrega da carta de condução, tê-lo-ia dito expressamente".

No mesmo sentido, e com desenvolvida argumentação, veja-se o Acórdão da Relação de Lisboa, de 18 de Dezembro de 2008, processo 1932/2008-9, acessível também in www.dgsi.pt, em que se salienta, além do mais: “(…) criando a lei mecanismos para quando, ultrapassada a fase “declarativa” da decisão sem que o agente cumpra voluntariamente, se passe a uma fase executiva da mesma, reagindo-se ao comportamento omissivo (no caso a não entrega da carta) com emprego de meios coercivos (determinando-se a concretização oficiosa da sua apreensão, fase para a qual se mostra indiferente a adopção de um comportamento colaborante por parte do arguido), e considerando que, entregue ou não a carta, se este conduzir no período de proibição comete o crime do artigo 353.° do CP (o que reduz, repete-se, a entrega da carta a um mero meio de permitir um mais fácil e melhor controlo da execução da pena de proibição de conduzir), a cominação da prática de crime de desobediência para a não entrega no momento em que surge nos caso dos autos carece de legitimidade”.

Concluímos, portanto e no seguimento do que se vem de expor, não haver lugar, no caso, à cominação do crime de desobediência, pelo que tendo existido a mesma, apenas podemos tê-la como não legítima e, por via disso, não poderemos tê-la em consideração para efeitos de ver como verificados, pelo menos, indiciariamente, todos os elementos (objectivos) necessários à prossecução penal do arguido pela eventual prática de um crime de desobediência.

Destarte, impõe-se então extrair as necessárias consequências, que, claro está, passam por rejeitar a acusação pública deduzida, por manifestamente infundada e à luz do disposto pelo art. 311.°, n.° 2, al. a), e n.° 3, al. d) do Código de Processo Penal.

(…)».


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3. Do mérito do recurso:

De harmonia com o disposto no artigo 311.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Penal, o juiz pode rejeitar a acusação, quando esta é manifestamente infundada. Este conceito jurídico encontra-se definido nas alíneas a) a d) do n.º 3 da referida norma.

Em conformidade, o juiz dever rejeitar a acusação quando os factos nela descritos não constituam crime.

Contudo, a al. d) do n.º 3 do artigo 311.º apenas consente a rejeição da acusação se os factos que dela constam não constituírem crime, ou seja, se no estrito quadro dos termos em que foi deduzida a acusação, se verificar, pela leitura dos factos, que os mesmos não conformam a prática de qualquer ilícito penal.


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Hodiernamente, e após a revisão do Código Penal levada a efeito pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, a situação concreta definida na acusação pública (falta de entrega, no prazo legalmente fixado, da carta/licença de condução por parte de arguido a quem foi imposta, através de sentença transitada em julgada, pena acessória de inibição de conduzir) consubstancia, a nosso ver, crime de violação de imposições, proibições ou interdições, não fazendo agora sentido a manutenção do ainda recente dissídio jurisprudencial em redor da verificação, no referido quadro, do crime de desobediência do artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal A título meramente exemplificativo, no sentido da existência de crime, vide o Ac. da Relação de Coimbra de 14-10-2009, proferido no proc. n.º 103/07.0TACDN.C1; em sentido contrário, podem consultar-se, também no sítio www.dgsi.pt, o Acórdão da Relação de Lisboa de 18-12-2008 (proc. n.º 1932/2008-9) e o Acórdão da Relação de Coimbra de 14-10-2009 (proc. n.º 513/05.8TAOBR.C1)..

É o que decorre, segundo se nos afigura, da leitura do novo texto do artigo 353.º, introduzido pela referida Lei n.º 59/2007.

Dele consta:

(Violação de imposições, proibições ou interdições):

«Quem violar imposições, proibições ou interdições determinadas por sentença criminal, a título de pena aplicada em processo sumaríssimo, de pena acessória ou medida de segurança não privativa da liberdade, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias».

Confrontando o texto ora transcrito com a redacção anterior do mesmo tipo-norma, sobressai impressivamente o aditamento ao artigo do inciso inicial «Quem violar imposições».

A descrição típica do crime, anteriormente apenas epigrafado de “Violação de proibições ou interdições”, foi substantivamente ampliada, prevendo agora, não só o sancionamento por violação das proibições impostas por sentença criminal a título de pena acessória, mas também a criminalização dos casos consubtanciadores de violação de imposições determinadas a igual título.

A incriminação que, na lei antiga, apenas tratava de garantir o cumprimento de sanções impostas por sentença criminal que não possuíssem qualquer outro meio de assegurar a sua eficácia, foi alargada com a nova lei, de modo a contemplar também a violação de imposições onde se integra, inter alia, o não cumprimento de obrigação determinada na sentença, consubstanciada no dever de entrega, pelo arguido, da carta/licença de condução.

Como observa Cristina Líbano Monteiro, a propósito dos artigos 349.º-354.º do Código Penal, tais preceitos emprestam a certas decisões do foro criminal a força coactiva prática de que careciam. Quando o tribunal condena, constitui o condenado numa situação de sujeição, que se traduz na maioria dos casos em deveres a observar In Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora 2001, tomo III, pág. 360.. Na situação concreta, com a amplitude normativa supra assinalada, concedida pela Lei n.º 59/2007 ao artigo 353.º, quis o legislador estabelecer consequências jurídico-penais para a violação da imposição, determinada na sentença, de entrega da carta/licença de condução.

Afigura-se-nos, pois, que a incriminação agora prevista no artigo 353.º foi obviamente alargada com o objectivo de incluir os casos de incumprimento de imposições determinadas por sentença criminal a título de pena acessória, nos quais se integra a situação traduzida na omissão de entrega, por arguido a quem está imposta pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor nos termos do artigo 69.º do CP, no prazo legalmente previsto (cfr. artigos 69.º, n.º 3, do Código Penal, e 500.º, n.º 2, do Código de Processo Penal) e determinado na sentença, de carta/licença de condução.

Os artigos supra referidos não contêm, é certo, qualquer cominação punitiva para a não entrega da carta/licença de condução.

Mas não teriam que conter, pois apenas regulam os moldes pelos quais o ordenamento jurídico procura efectivar e garantir o estrito cumprimento da pena acessória imposta, cabendo à lei substantiva penal a definição do quadro criminalizador.

Os factos descritos na acusação preenchem, assim, os requisitos objectivos e subjectivos do crime de violação de imposições, proibições ou interdições previsto no artigo 353.º do Código Penal.

E, deste modo, nunca a acusação poderia ser considerada manifestamente infundada: os factos nela descritos constituem crime, embora diverso daquele que, na mesma peça processual, está imputado ao arguido. Ou seja, em vez de um crime do artigo 348.º, n.º 1.º, al. b) do Código Penal, os factos da acusação configuram um crime do artigo 353.º do mesmo diploma, estando em causa uma simples alteração não substancial da acusação, mais propriamente uma alteração de qualificação jurídica, relativamente à qual o tribunal a quo, em momento oportuno, haverá que cumprir o disposto no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal.

Deste modo, ainda que por razões diversas, o recurso merece provimento.


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III. Dispositivo:

Posto o que precede, os Juízes da 5.ª Secção Criminal desta Relação de Coimbra julgam procedente, embora com diversos fundamentos, o recurso do Ministério Público, e, em consequência, revogam o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que designe dia para julgamento, devendo, em momento oportuno, ser cumprido o disposto no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal.

Não são devidas custas.


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(Processado e integralmente revisto pelo relator, o primeiro signatário)

Coimbra, 14 de Julho de 2010

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(Alberto Mira)

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(Elisa Sales)