Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
166553/10.9YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: EMPREITADA
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
Data do Acordão: 02/29/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1.º JUÍZO CÍVEL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 428.º DO CC
Sumário: No âmbito do contrato de empreitada, sem incumprimento defeituoso não há lugar à reparação/eliminação do defeito e, em consequência, o dono de obra não pode fazer uso da suspensão/dilação do cumprimento da sua prestação principal – pagamento do preço – utilizando a faculdade da excepção de não cumprimento.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

A..., S.A., com sede na Rua ..., Leiria, intentou injunção contra B..., Lda., com sede na ..., Castelo Branco, pedindo que fosse conferida força executiva a requerimento destinado a exigir o pagamento da quantia de € 5.061,81 (sendo € 4.475,00 de capital, € 535,81 de juros de mora, à taxa legal comercial, e os restantes 51,00 € de taxa de justiça) e dos juros vincendos, à taxa comercial, até integral pagamento.

Alegou que, no exercício da sua actividade, acordou com a R. e a solicitação desta, em 14/07/2008, a realização de um pavimento industrial nas novas instalações desta, sitas em Castelo Branco; combinaram o preço de € 29.475,00 e, após ter executada a obra e esta aceite pela R., emitiu a respectiva factura, em 28/10/2008, com vencimento para 27/12/2008; factura de que a R. apenas pagou, em 20/01/2009 a quantia de € 20.000,00 e, em 30/04/2009 a quantia de € 5.000,00 (estando assim em dívida o montante residual de € 4.475,00).

Notificada a R., veio deduzir oposição, em que, quanto à obra solicitada/acordada e quanto à sua execução e aceitação, admitiu o invocado pela A.; sustentando/invocando, para não ter pago o montante residual de € 4.475,00, que a obra apresenta defeitos – o pavimento apresenta rachadelas e fissuras, resultantes de “técnicas de construção inapropriadas”, que continuam a aumentar – de que, mal se revelaram, reclamou, tendo a A. procedido, no Verão de 2009, a trabalhos de reparação insuficientes e com impacto visual negativo/prejudicial para a imagem da R.. Ademais, em linha com tal alegação, deduziu reconvenção pedindo que a A. seja condenada a efectuar, a suas expensas, as obras necessárias à eliminação dos defeitos do pavimento do pavilhão, por forma a que resulte uma superfície lisa, uniforme na cor e compacta; e pedindo a condenação da A. numa sanção pecuniária compulsória, no valor de € 35,00 por cada dia de atraso na realização das obras, após o trânsito em julgado da sentença.

A A. respondeu, reconhecendo que apareceram algumas fissuras alguns meses (já após a data de vencimento da factura respectiva) após a conclusão dos trabalhos/obra; sustentou/acrescentou, porém, que não se tratam de defeitos, que “é normal tal acontecer num pavimento industrial devido a diversos factores, nomeadamente a secagem e/ou retracção diferencial do betão, que não devido à má execução dos trabalhos”, situação de que a R. foi previamente informada/advertida e que consta da cláusula 4.4.2 al. a) e b) das condições gerais do contrato; que as fissuras que apareceram não prejudicam a boa utilização do pavimento industrial por parte da R.; e que propôs à R. uma solução adequada de “conserto” – consistente no enchimento das fissuras com resina para evitar a introdução de substâncias nas mesmas, que a danificam mais, e a sua propagação – que a R. não a aceitou por, a seu ver, a mesma colocar em causa a estética do pavimento (pretendendo antes um novo pavimento em resina por cima do já existente, cujo características e valores são completamente diferentes, o que levou a A. a não aceitar a contra proposta da requerida).

Com fundamento em o meio processual a não prever, não se admitiu a reconvenção; decisão com que a R. se conformou.

Foi designado dia para a audiência, que decorreu com observância do legal formalismo; após o que foi proferida sentença – em que se declarou a instância totalmente regular, estado em que se mantém; e em que se decidiu a matéria de facto – que julgou a acção totalmente procedente.

Inconformada, interpôs a R. recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que julgue a acção improcedente. Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

A. Num contrato de empreitada, é ao dono da obra que compete provar que a obra apresenta defeitos, cabendo ao empreiteiro o ónus da prova do cumprimento;

B. Está provado que tendo essa obra padecido de defeitos que foram aceites pela autora, reconheceu ainda que apareceram outras fissuras alguns meses após a conclusão dos trabalhos (já após a data de vencimento da factura respectiva), que ocorreu em 5 de Novembro de 2008, conforme consta da “recepção de obra”;

C. A excepção de não cumprimento é a faculdade que, nos contratos bilaterais, tem por objectivo sancionar o dever de cumprimento simultâneo das obrigações compreendidas no sinalagma funcional, limitando-se um dos contraentes a retardar a sua prestação até que a outra seja cumprida;

D. A sentença do Tribunal a quo desrespeitou o estatuído nos artigos 653º, n.º 2 e 712º, nº 1, b), na medida em que a prova carreada para os autos, impunha valoração contrária;

E. Consequentemente, a excepção invocada devia ter sido julgada procedente.

Não foi apresentada qualquer contra-alegação.

Colhidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*

*


II – Fundamentação de Facto

Os factos provados, cronologicamente alinhados, são os seguintes:

1. A requerente celebrou em 14 de Julho de 2008 um contrato com a requerida para execução de um pavimento industrial nas novas instalações desta, sitas em Castelo Branco, conforme documento junto a fls. 109-113;

2. Por força daquele contrato a requerente obrigou-se a fornecer e executar o pavimento com espessura de 18 cm e respectivo acabamento no pavilhão da requerida, devendo a requerente, para o efeito:

a) Espalhar, nivelar e compactar a base em tout-venant com 15 cm de espessura;

b) Verificar a altimetria da base;

c) Fornecer e colocar fita mousse Ethafoam nos periféricos existentes do pavimento;

d) Fornecimento e colocação de um filme polietileno de 120 microns para dessolidarizar a lâmina de betão de base;

e) Fornecimento e colocação de malha sol 10x10x5;

f) Fornecimento, espalhamento e nivelamento de betão, formula especial pavimento;

g) Fornecimento e colocação nas juntas de construção, de varões de transmissão de carga constituídos por aço de diâmetro 16, com 0,60 de comprimento, espaçados de 0,25cm;

h) O acabamento do pavimento consistiu em efectuar:

- Talochagem do betão fresco;

- Fornecimento e incorporação na superfície do betão de 4 kg/M2 do sistema qualitop (ISO 9001);

- Acabamento com talocha mecânica até à obtenção de uma superfície compacta e lisa;

- Fornecimento e aplicação de um produto de cura Rinoloroc Cure;

- Serragem de juntas para produzir e orientar a fissuração num esquartelato conforme estereotomia a definir em obra (max. 5m x 5m);

- Enchimento de juntas serradas depois de cura do betão (28 dias) com cordão Rinol Ethafoam para criar fundo de junta e mástique PU 925 para selagem da mesma;

3. Após a realização da obra e aceitação da mesma pela requerida foi emitida pela requerente a factura nº 5124/2008, em 28/10/2008, no montante de 29.475,00€ e com data de vencimento em 27/12/2008;

4. A requerida pagou à requerente, em 20/01/2009, a quantia de 20.000,00€ e em 30/04/2009 a quantia de 5.000,00€;

5. Alguns meses depois da conclusão e aceitação da obra, já após a data de vencimento da factura respectiva, apareceram fissuras no pavimento e quando chovia entrava água pelo portão lateral para o interior, do que a requerida deu conhecimento à requerente;

6. A requerente procedeu à reparação de algumas dessas anomalias, no Verão de 2009;

7. Relativamente às fissuras existentes a requerente procedeu à reparação duma delas, com uma extensão não concretamente apurada, sendo que da colocação de um produto com resina sobre a fissura acabou por se notar a parte corrigida ficando com uma coloração diferente em relação à restante área;

8. As fissuras manifestam-se em várias zonas do piso do pavilhão, o qual tem área de cerca de 1.310m2;

9. À medida que o tempo passou o número de fissuras aumentou, bem como aumentou a extensão das já existentes;

10. A existência de fissuras facilita a infiltração de substâncias provenientes da actividade da requerida no piso, acumulando lixo, o que obriga à remoção dessas partículas, para além do impacto visual negativo;

11. É normal acontecer o aparecimento de fissuras num pavimento industrial devido a diversos factores, nomeadamente a secagem e/ou retracção diferencial do betão que não são devidos à má execução dos trabalhos por parte da requerente;

12. As fissuras que apareceram nas instalações da requerida não são fissuras que venham a prejudicar a boa utilização do pavimento industrial por parte da requerida;

13. Aquando dos factos referidos em 6. e 7. a requerente propôs à requerida uma solução de reparação, cuja técnica está melhor descrita no documento junto a fls. 118-119, que se dá aqui por integralmente reproduzido, solução que consiste no enchimento das fissuras com resina para evitar a introdução de substâncias nas mesmas, que a danificam mais, e a sua propagação, sendo esta a solução a mais adequada e mais universal para o efeito;

14. A requerida não aceitou aquela proposta pelo facto de que punha em causa a estética do pavimento e requereu um novo pavimento em resina por cima do que já existe, cujo características e valores são completamente diferentes, facto que levou a requerente a não aceitar esta solução;

15. A requerida foi previamente informada de que o pavimento industrial não é um pavimento estético e que o aparecimento de fissuras é sempre possível, não podendo estas ser consideradas defeitos se não puserem em causa o bom funcionamento da área industrial ou se forem de natureza meramente estética, tendo rubricado e aceite a cláusula 4.4.2 al. a) e b) das condições gerais do contrato celebrado entre a requerente e requerida;

16. A requerida vem usando a sua área industrial, do pavilhão, desde a recepção da obra;

17. A requerida aceita estar em divida, do preço, a quantia de 4.475,00€, como alegado pela requerente.

18. A requerida é uma sociedade comercial por quotas que se dedica à fabricação e comércio de peças técnicas soldadas ou não, em chapa ou perfil de metais e outros equipamentos industriais como sejam peças para máquinas, fabrico de contentores e manutenção industrial mecânica e de equipamentos;


*

III – Fundamentação de Direito

Não se discute – nunca se discutiu – que as partes hajam celebrado um contrato de empreitada; que, por definição legal (art. 1207º C. Civil), é o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço.

E quando alguém se obriga a realizar uma obra, mediante um preço – como aconteceu entre A. e R. – fica obrigado, não só a efectuar os trabalhos e a fornecer os materiais necessários à execução da obra, como também e fundamentalmente a que o resultado final – obra – fique concluído em conformidade com o convencionado e sem vícios; é o que claramente resulta do art. 1208.º do CC.

Daí o dizer-se que é obrigação do empreiteiro executar a obra sem defeitos; que, no contrato de empreitada, o cumprimento do empreiteiro ter-se-á por defeituoso quando a obra tenha sido realizada com deformidades ou vícios (1208.º CC), configurando “deformidades” as discordâncias relativamente ao plano convencionado e constituindo “vícios” as imperfeições que excluem ou reduzem o valor da obra ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato.

Deformidades e vícios que representam pois os vulgarmente designados “defeitos”, podendo ser aparentes ou ocultos; e revelando quer os existentes à data da entrega da obra quer os subsequentes a tal entrega.

Significa isto que a resposta à questão – que, como resulta do relatório, está em discussão nos autos e no recurso – passa por saber se o aparecimento de fissuras no pavimento industrial que constitui a obra compromete o “resultado prometido”.

Vejamos:

Uma fissura é uma anomalia objectiva duma obra, independentemente das características convencionadas; pelo que a “primeira impressão” é a de dizer que estamos perante uma deficiência, um “vício”, um “defeito”.

“Primeira impressão” que será via de regra a “última impressão” [1]; o que, porém, não acontece no caso sob recurso.

Como já se referiu, para um “vício” relevar como “defeito” tem que representar uma exclusão ou redução do valor da obra ou da sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato.

Sendo que a “exclusão ou redução do valor se afere não pelas expectativas do dono da obra, mas sim pelo seu valor normal de mercado”; sendo que a exclusão ou redução de valor tem “como referência um padrão de normalidade, atento o valor corrente das coisas da mesma categoria ou género existentes no comércio”; sendo que “a exclusão ou redução da aptidão da obra, relativamente ao fim ou uso a que se destina, reporta-se a uma utilização satisfatória, num padrão de normalidade ou a uma especial finalidade visada pelo dono da obra, caso esta esteja explícita ou implicitamente contida nos termos contratuais”; sendo que, se do contrato não resultar qualquer finalidade específica, vale a sua função habitual, sendo “irrelevante a inadequação da obra a uma finalidade subjectiva do dono da obra que não foi incluída, expressa ou tacitamente, na previsão contratual”; sendo que, “quer o valor normal, quer o uso ordinário da obra, devem ser encontrados através do funcionamento de juízos de experiência”, que “o valor normal é o valor comum das coisas indicado pelas regras do mercado e o uso ordinário é o seu fim típico, definido pela função que, no ambiente económico-social, é reconhecido ao bem[2].

É justamente por tudo isto – por ser esta a “espessura” do significado da premissa maior – que as provadas fissuras do pavimento não podem ser consideradas “defeitos”; ou, se se preferir, não devem ser consideradas como “defeitos juridicamente relevantes”.

Provou-se, é certo, que meses depois da conclusão e aceitação da obra, apareceram, o que continua a acontecer, fissuras no pavimento; que a R. as denunciou e que a A. as procurou reparar[3], colocando um produto com resina na zona da fissura (que ficou com uma coloração diferente em relação à restante área); e que a existência de fissuras facilita a infiltração de substâncias, acumulando lixo e dando um impacto visual negativo.

Mas, também se provou, que é normal aparecerem fissuras num pavimento industrial devido a diversos factores – diferentes da má execução dos trabalhos – nomeadamente à secagem e/ou retracção diferencial do betão; que as fissuras existentes no pavimento não prejudicam a boa utilização do mesmo pela R. desde a recepção da obra; e que a A. propôs à R. o enchimento das fissuras com resina para evitar a introdução de substâncias nas mesmas e a sua propagação, “sendo esta a solução a mais adequada e mais universal para o efeito”, o que R não aceitou por razões estéticas, pretendendo um novo pavimento em resina por cima do existente.

Além de tudo isto[4], provou-se – com reporte à fase estipulativa do contrato, como consta das “condições gerais”(cláusula 4.4.2 al. a) e b)) da forma escrita que voluntariamente as partes deram ao contrato – que ficou clausulado que “o pavimento industrial não é um pavimento estético e que o aparecimento de fissuras é sempre possível, não podendo estas ser consideradas defeitos se não puserem em causa o bom funcionamento da área industrial ou se forem de natureza meramente estética”.

Em face de tudo isto – em face de tal “premissa menor” – não podemos dizer, com o devido respeito pela posição da R/recorrente, que o pavimento, tal como se encontra, com as fissuras, tem para a R/recorrente, num plano de normalidade, menos valor, menos utilidade, que não está apto à sua função habitual, ao seu uso ordinário, segundo a experiência da vida.

É verdade (como refere a R/apelante) que, no âmbito dum contrato de empreitada, para se pedir a eliminação dum defeito – e lançar mão da execeptio non rite adimpleti contractus enquanto o defeito não for eliminado – basta provar (342.º, n.º 1, do CC) a existência do defeito e que o mesmo, pela sua gravidade, é de molde a afectar o uso ou a acarretar uma desvalorização da coisa; uma vez que, provado o defeito e a sua gravidade, presume-se – uma vez que é contratual a responsabilidade do empreiteiro – que os mesmos são imputáveis ao empreiteiro (art. 799.º, n.º 1, do CC), isto é, presume-se que o cumprimento defeituoso é imputável ao empreiteiro.

É igualmente verdade que, para afastar tal presunção, o empreiteiro tem de demonstrar que os defeitos não procederam de culpa sua.

Ónus este (a cargo do empreiteiro), ainda se acrescenta, que não fica satisfeito com a mera demonstração de haver agido diligentemente na realização da obra; que não fica satisfeito quando o tribunal fica na ignorância sobre a causa da verificação dos defeitos; que exige que o empreiteiro prove (positivamente) a causa do defeito, que lhe deve ser completamente estranha, o que bem se compreende pela posição de domínio que o empreiteiro tem sobre todo o processo executivo (da obra)[5].

Só que – é este o ponto – o “nó gordio ” dos autos e do recurso está em momento anterior; está em saber se o factualmente provado configura “defeitos” da obra.

Ora, como acima se disse, ou as fissuras do pavimento não podem/devem ser consideradas como “defeitos”; ou, então, não revestem gravidade suficiente para ser consideradas como “defeitos juridicamente relevantes”[6].

Mais, o que consta das cláusulas 4.4.2 al. a) e b)) das “condições gerais do contrato”, interpela-nos e remete-nos para a boa fé (762.º/2, do CC), que deve conformar todo o comportamento dos contraentes quer nas negociações, quer na execução e exercício dos direitos emergentes dos contratos.

A tal propósito, vale a pena lembrar que a responsabilidade do empreiteiro pode ser afastada caso os vícios que da obra constam apareçam normalmente noutras da mesma natureza, em razão da técnica (com que se possa contar) não permitir uma execução mais perfeita; que a responsabilidade do empreiteiro pode ser afastada quando o “defeito” não pode ser evitado perante o grau de perícia exigível.

Tendo isto presente, o conteúdo das cláusulas 4.4.2 al. a) e b)) – em que a R/recorrente dá o seu assentimento a uma “concreta normalidade”, segundo a qual um “pavimento industrial não é um pavimento estético e que o aparecimento de fissuras é sempre possível, não podendo estas ser consideradas defeitos se não puserem em causa o bom funcionamento da área industrial ou se forem de natureza meramente estética” – representa, à luz da boa fé (762.º/2, do CC), o aviso da A/empreiteira sobre a possibilidade de ocorrência de tais “incorrecções”/fissuras e o assentimento, por parte da R/dona da obra, de que, caso ocorram, não podem por ela ser reputadas como “defeitos”; ou, noutra perspectiva, uma renúncia antecipada à sua reparação, renúncia válida[7], uma vez que não é exactamente uma renúncia ao direito à reparação, mas sim uma delimitação/restrição factual do âmbito/conceito de “defeito” (para mais, a favor da validade, com a concreta indicação da causa/fundamento atendível para tal delimitação/restrição)[8].

Enfim, como quer que seja, a conclusão será sempre a de que não se provou o cumprimento defeituoso da A/apelada; será sempre a de que não se provou tal tipo de não cumprimento das obrigações, ao qual se aplica o regime geral deste último, designadamente, o princípio da excepção de não cumprimento dos contratos (art. 428.º do CC) que, no domínio do cumprimento defeituoso, se assume como execeptio non rite adimpleti contractus.

Efectivamente, é indiscutível – em tese – que o dono da obra pode excepcionar o cumprimento defeituoso do empreiteiro para suspender o cumprimento da sua prestação principal – pagamento do preço – utilizando a faculdade que lhe é proporcionada pelo art. 428.º do CC; desde que a obrigação de pagamento do preço não seja de vencimento anterior ao da entrega da obra e que a parte do preço, cujo pagamento se recusa, seja proporcional à desvalorização da obra provocada pelo defeito[9].

Ademais, a exceptio só pode ser oposta após o dono da obra ter denunciado os defeitos e manifestado a opção pelo direito que pretende exercer; mais exactamente, após ter manifestado determinada e concreta opção e enquanto a mantiver. Por outras palavras, a exceptio não é compatível com todos os direitos – que, é sabido, são o direito de recusa da obra, o direito à eliminação dos defeitos, o direito à realização de nova obra, o direito à redução do preço, o direito à resolução e o direito à indemnização[10] – que em abstracto a lei confere ao dono da obra para reagir à entrega pelo empreiteiro de obra defeituosa.

Se o dono da obra resolver o contrato, os imediatos efeitos extintivos das obrigações contratuais – com eficácia retroactiva – não são compatíveis com o meio de dilação/suspensão do pagamento de obrigações contratuais[11] que a exceptio constitui. Se o dono da obra reduzir o preço[12] – sendo o montante não pago do preço inicial igual ao montante da pretensão correspondente à redução – a parte do preço que se retém passará a não ser devida e, por conseguinte, também em tal hipótese, a exceptio é incompatível com a redução (mais exactamente, visa-se com a redução, mais do que o ressarcimento dum prejuízo, o restabelecimento do equilíbrio contratual através do reajustamento/redução da prestação do preço; pelo que, sendo o montante não pago do preço igual ao montante da pretensão correspondente à redução, declarada a redução, mais do que haver fundamento para suspender o pagamento, que é o que sucede na exceptio, passa tal pagamento a deixar de ser devido).

Em síntese, em regra e em tese, a exceptio será exercida pelo dono da obra para, após ter denunciado os defeitos e exigido a sua eliminação, suspender o cumprimento do preço enquanto aguarda a eliminação dos defeitos (ou a construção de nova obra).

Era/seria justamente este o caso; não fora o facto de não se haver provado o cumprimento defeituoso não haveria, a nosso ver, qualquer obstáculo ao funcionamento da exceptio; isto é – único ponto de não concordância com a fundamentação jurídica da sentença recorrida, embora sem qualquer relevo prático para a solução final – a circunstância da factura estar já vencida quando as fissuras se manifestaram e foram denunciadas, não impediria, a nosso ver e à luz da boa fé, o uso da exceptio (as fissuras, se fossem “defeitos”, seriam “defeitos” ocultos no momento da entrega e/ou subsequentes à entrega; e estes, ocultos e /ou subsequentes devem merecer a mesma tutela dos defeitos aparentes, que, no caso, não sendo a obrigação de pagamento do preço de vencimento anterior à entrega, permitiriam o uso da exceptio).

Em todo o caso, tudo o que se acaba de dizer sobre a exceptio é mais ou menos ocioso, uma vez que bastará dizer – é o que conta e já se referiu acima – que, sem incumprimento defeituoso, não há direito à reparação/eliminação do defeito e, em consequência, não pode a R/apelante fazer uso da suspensão/dilação do cumprimento da sua prestação principal – pagamento do preço – utilizando a faculdade prevista no art. 428.º do CC.

Improcede, assim, tudo o que em contrário a R/apelante invocou e concluiu na sua alegação recursiva[13], o que determina o naufrágio do recurso e a confirmação do sentenciado na 1ª instância, que não merece os reparos que se lhe apontam, nem viola qualquer uma das disposições indicadas.


*

*

*


IV – Decisão

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e consequentemente confirma-se a sentença recorrida[14].

Custas pela R/apelante.


*

Barateiro Martins (Relator)

Arlindo Oliveira

Emídio Santos


[1] Pense-se, por ex., em fissuras em paredes duma casa de habitação acabada de construir – situação recorrente em litígios de empreitadas – “deficiência” que inquestionavelmente reduz o seu valor e que, inclusivamente, pode dar origem a humidade e a bolores, podendo mesmo colocar limitações e restrições ao uso corrente da habitação.
[2] Cura Mariano, in Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra, 4.ª ed., pág. 58
[3] Não colocamos datas, como é normal e usual, uma vez que não foi suscitada qualquer questão de caducidade; nem na denúncia dos “defeitos”, nem no exercício dos consequentes direitos.

[4] Para além, ainda, de se ter dito que não se provou – pese embora o reduzido relevo que deve ser conferido ao que se dá como não provado – que “a obra foi mal executada”, que o “resultado da reparação não foi eficaz”, que as fissuras “têm um impacto prejudicial à imagem da requerida” e que “se configuram como imperfeições redutoras do seu valor ou aptidão para a sua utilização normal ou contratualmente prevista”.

[5] Daí, como já se referiu, o pouco relevo que tem o que for dado como não provado; além da não prova a um quesito não significar – nunca é demais lembrá-lo – a prova do seu contrário, a causa dos defeitos é algo cuja prova é do ónus do empreiteiro.

[6] Quando muito, de acordo com a boa fé – modo de proceder sempre presente na fase dinâmica do contrato – dariam lugar ao seu enchimento com resina, trabalho em que a A/empreiteira não teve nem tem a colaboração da R/dona da obra, que não lhe dá oportunidade de executar tal trabalho – incorrendo assim, a seu propósito, em mora (de credor).
[7] Observamos que é “válida”, uma vez que é aplicável – colocando-se sempre um problema de validade – aos contratos de empreitada a restrição imposta pelo art. 809.º do CC.
[8] A circunstância de, quanto às “condições gerais do contrato” (fls. 40/1 e 111/2), estarmos certamente perante CCG não traz sequer para o caso qualquer alteração ao nível da solução jurídica; quer por não ter sido suscitado qualquer obstáculo (ex vi art. 4.º a 9.º do DL 446/85) à sua inclusão no contrato singular, quer por não se colocar um qualquer concreto problema sobre a sua interpretação (ex vi art. 10.º a 11.º do DL 446/85), quer, fundamentalmente, por as questões que, em termos de validade/nulidade, se podem colocar serem as mesmas nos termos gerais (nos termos do referido art. 809.º do CC) e nos termos especiais dos art. 12.º a 19.º do DL 446/85.
[9] É o que é imposto pelo art. 428.º do CC e que resulta dos ditames da boa-fé no cumprimento das obrigações (art. 762.º, n.º 2, do CC).
[10] Colecção de direitos de exercício complexo, subsidiários e sucessivos nuns casos, cumulativos noutros e alternativos ainda noutros.
[11] Embora, evidentemente, a exceptio possa ser usada nos efeitos restitutivos da resolução, isto é, nas devoluções (das prestações) decorrentes e emergentes da resolução contratual – cfr. Pedro Martinez, cumprimento defeituoso, pág. 328.

[12] E a redução, a nosso ver, opera-se por mera declaração do dono da obra; apenas se revelando necessário o recurso a uma acção judicial se o preço já tiver sido pago e o empreiteiro se recusar a restituir o valor da redução.

[13] Deve-se seguramente a lapso o que se diz na conclusão D – em que se refere que o tribunal a quo desrespeitou o estatuído nos artigos 653º, n.º 2 e 712º, nº 1, b), na medida em que a prova carreada para os autos impunha valoração contrária – uma vez que não foi impugnada ou sequer manifestada qualquer divergência com a decisão de facto.

[14] Consignando-se que as taxas de juros (comerciais) são as que constam dos seguintes Avisos: 19.995/2008 – de 02/07/2008 – 11,07% (2.º Semestre de 2008); 1.261/2009 – de 14/01/2009 – – 9,5% (1.º Semestre de 2009); 12.184/2009 e Desp. n.º 597/2010, de 04/01 e Aviso n.º 13.746/2010 n.º 2284/2011 – 8% (2.º Semestre de 2009 e 1.º e 2º Semestre de 2010 e 1.º Semestre de 2011); 14.190/2011 – de 25/07/2011 – 8,25% (2.º Semestre de 2011); e 692/2012 – de 02/01/2012 – 8,00% (1.º Semestre 2012).