Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
444/06.4TBCNT-AC.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: INSOLVÊNCIA
VENDA
AUDIÇÃO
CREDOR COM GARANTIA REAL
CONSENTIMENTO
COMISSÃO DE CREDORES
Data do Acordão: 12/19/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.69, 161, 164 CIRE, 195 CPC
Sumário: 1.- Na venda em insolvência, a audição do credor com garantia real, nos termos do art.164 nº2 CIRE, destina-se apenas a assegurar o exercício do direito que lhe é facultado no nº 3 do art.164 CIRE no sentido de propor a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projectada ou ao valor base fixado.

2.- A proposta do credor com garantia real não é vinculativa para o administrador de insolvência, mas este fica obrigado a colocar o credor na situação que decorreria da alienação pelo preço proposto pelo credor, caso não aceite a proposta e proceda à venda por preço inferior.

3.- O consentimento da comissão de credores, exigido para a prática de actos de especial relevo ( art.161 nº1 CIRE) deve ser prestado por via de uma deliberação, nos termos previstos no art.69 CIRE.

4.- A falta de consentimento da comissão de credores não configura uma nulidade processual, nos termos do art.195 CPC, interferindo antes com a validade do próprio negócio.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

Nos autos de insolvência referentes a F (…) S.A., o Sr. Administrador da Insolvência veio aos autos – em 18/10/2017 – informar ter procedido à venda do estabelecimento da Insolvente, juntando escritura pública celebrada em 17/06/2017, por via da qual vendeu à N (…) – S.A. nove imóveis, bem como o estabelecimento industrial sito (…), x (...) , em actividade e composto pela universalidade do seu acervo imobilizado corpóreo e incorpóreo, bem como pelos trabalhadores. Tal venda foi efectuada pelo preço global de 660.042,00€, ficando estabelecido que a adquirente pagaria, em prestações, o valor de 100.000,00€, sendo que a parte restante do preço seria compensada pela assunção por parte da adquirente de todas as responsabilidade e direitos dos trabalhadores.

Mediante requerimento apresentado em 20/04/2018, a credora P (…)  S.A., alegando ter tomado conhecimento do teor do contrato de compra e venda pela notificação das contas apresentadas pelo Sr. Administrador que lhe foi efectuada em 09/04/2018, veio arguir a nulidade da venda dos bens imóveis por violação do disposto nos arts. 164.º, n.ºs 2 e 3, e 161.º, n.º s 1 e 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, e consequente nulidade de todos os actos subsequentemente relacionados com a liquidação dos imóveis.

Alegou para tanto, e em resumo: que é credora da Insolvente pelo valor de 1.217.520,20€, estando o seu crédito garantido por hipoteca constituída sobre os imóveis que identifica e que foram vendidos e relativamente aos quais o seu crédito veio a ser graduado para ser pago após os créditos dos trabalhadores; que, não obstante ser sido ouvida sobre propostas de venda anteriormente apresentadas – designadamente pela N (…) – às quais se opôs, não mais teve conhecimento de qualquer outra diligência, tendo vindo a tomar conhecimento, em momento posterior, da venda efectuada; que, em momento anterior, havia aceitado a venda pelo preço de €550.035,00 no pressuposto de que existia a situação de potencial conflito com a Massa Insolvente de M (…) relativamente à propriedade dos bens imóveis com as descrições 01(...) e 11(...) , do concelho da x (...) e caso aquele preço fosse depositado na sua totalidade a favor da massa insolvente; que, sem que a Requerente tivesse sido informada, a venda veio a ser efectuada em condições diferentes daquelas que havia aceitado e com condições de pagamento relativamente às quais havia manifestado expressamente a sua oposição, o que configura omissão de formalidade imposta por lei com relevância para a decisão e que determina nulidade; que, além do mais, a alienação do estabelecimento comercial da sociedade insolvente, onde se incluem os bens imóveis hipotecados, constitui um acto jurídico de especial relevo para o ora processo de insolvência que, como tal, carecia de consentimento prévio da comissão de credores e não resulta dos autos que tal consentimento tenha sido prestado.

A N (…) S.A, respondeu, dizendo, em resumo, que as condições negociadas e acordadas foram comunicadas à P (…), na sua dupla qualidade de credora e de membro da comissão de credores; que a P (…) sempre teve conhecimento das circunstâncias do negócio e nunca declarou ser sua intenção accionar o mecanismo previsto no nº 3 do artigo 164º do CIRE; que sempre esteve de boa-fé, gozando de uma legítima expectativa de que os seus direitos se encontram legalmente protegidos e que, além do mais, está precludido o prazo para arguição de qualquer (eventual) nulidade.

O I (…) veio informar que, apesar de ter sido notificado pelo Sr. Administrador sobre o consentimento a prestar, enquanto membro da comissão de credores, relativamente à venda do bem imóvel, respondeu nos termos do documento que anexa; que essa resposta pressupunha um esclarecimento prévio que nunca foi dado e que, por essa razão, não deu o seu consentimento prévio à proposta de aquisição do estabelecimento.

O Sr. Administrador veio pronunciar-se, dizendo: que a venda foi concretizada, respeitando o disposto no artigo 164º e sem que a P (…)tenha manifestado qualquer vontade no cumprimento do n.º 3 do art. 164.º e que deu cumprimento ao disposto no art. 161.º do mesmo diploma, tendo a comissão de credores concordado com o apresentado, por silêncio ou concordância.

Na sequência desses factos, foi proferida decisão que, julgando procedente a invocada nulidade, declarou nula a venda em questão.

Inconformada com essa decisão, a Massa Insolvente de F (…) S.A. veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…)

A P (…), S.A. apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

A N (…)  S.A. veio também interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…)

A P (…), S.A. apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

(…)


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II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações das Apelantes – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

• Saber se é (ou não) tempestiva a arguição de nulidade;

• Saber se foram omitidas as formalidades impostas pelos artigos 161º e 164º do CIRE – o que se reconduz a saber se a venda foi realizada sem o consentimento da comissão de credores e sem que a credora com garantia real tivesse sido informada da venda projectada – e se essa omissão corresponde a nulidade processual que deva determinar a anulação da venda;

• Analisar, se tal se revelar necessário, a circunstância de a venda efectuada ter sido negociada e concretizada em estreita ligação com a venda de um outro imóvel integrado numa outra massa insolvente, bem como a circunstância de a adquirente (N (…)) ter actuado de boa-fé e ter efectuado investimentos com base na expectativa criada com a concretização do negócio cuja anulação lhe causará prejuízos, apurando a eventual relevância dessas circunstâncias para efeitos de verificação da irregularidade processual e consequente anulação da venda.


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III.

Na 1ª instância, foram considerados os seguintes factos, aditando-se a negrito outros factos que resultam dos documentos juntos aos autos:

1. F (…), S.A. foi declarada insolvente a 31 de Março de 2006.

2. O Banco (…), S.A. apresentou a sua reclamação de créditos pelo montante global de €1.217.520,30.

3. Para garantia do bom pagamento e liquidação de todas e quaisquer obrigações e/ou responsabilidades assumidas e/ou a assumir pela sociedade F (…)  perante o Banco, até ao limite de €1.080.000,00, acrescido dos respectivos juros e despesas, até ao montante máximo de €1.439.100,00, foi constituída uma hipoteca voluntária sobre os seguintes bens imóveis:

- Sete prédios rústicos, situados em y(...) , freguesia e concelho de x (...) , inscritos na respectiva matriz sob os artigos 412.º, 411.º, 415.º, 420.º, 416.º, 417.º e 419.º e descrito na Conservatória de Registo Predial da x (...) sob os n.ºs 2001, 793, 795,866, 1864, 1967 e 2000, respectivamente;

- Prédio urbano, composto de terreno destinado a aparcamento situado em Estrada Nacional Número 1, em y(...) , da freguesia e concelho de x (...) , inscrito na matriz sob o artigo 00(...) .º e descrito na Conservatória de Registo Predial da x (...) sob o n.º 11(...) .

4. Os referidos bens imóveis foram apreendidos para a massa insolvente.

5. O crédito reclamado pelo Banco (…), S.A. foi reconhecido pelo administrador da insolvência nos termos reclamados e garantido por hipoteca sobre os referidos bens imóveis.

6. A 15 de Dezembro de 2006, os credores da insolvência deliberaram a aprovação do plano de insolvência elaborado e apresentado pelo Administrador de Insolvência.

7. A 15 de Março de 2007 foi proferida sentença de homologação do plano de insolvência, a qual foi objecto de recurso de apelação pelas Credoras (…)

8. A 6 de Novembro de 2012, foi proferido acórdão que revogou a sentença de homologação do plano de insolvência.

9. A 9 de Julho de 2013, foi determinado o prosseguimento do processo para liquidação do activo, com eventual alienação do estabelecimento comercial da insolvente.

10. A 28 de Outubro de 2013, a P (…), S.A. requereu a sua habilitação como cessionária, em substituição do Banco (…), S.A., tendo sido proferida sentença de habilitação em 29 de Novembro de 2013.

11. No dia 20 de Dezembro de 2013, a P (…)  S.A., enquanto credora hipotecária, bem como os membros da comissão de credores, foram notificados pelo Exmo. Senhor Administrador de Insolvência de uma proposta de aquisição do todo o activo da insolvente pela sociedade L (…)t, Lda. pelo montante de €840.000,00.

12. A 15 de Janeiro de 2014 a P (…) opôs-se à aceitação desta proposta.

13. A 20 de Maio de 2014, a credora P (…), S.A., bem como os membros da comissão de credores, tiveram conhecimento pelo Sr. Administrador da insolvência da existência de uma potencial situação conflituante relativamente à propriedade de um bem imóvel descrito na CRP da x (...) sob o n.º 01(...) , registado em nome de (…), o qual confronta o bem imóvel descrito na CRP da x (...) sob o n.º 11(...) .

14. Em resposta datada de 9 de Junho de 2014, a P (…)S.A. informou o Sr. Administrador que era contra a transmissão da propriedade do imóvel descrito na CRP da x (...) sob o n.º 01(...) para a massa insolvente da F (…) Lda.

15. A 24 de Novembro de 2015, a Credora P (…), S.A. foi notificada de uma proposta de aquisição do estabelecimento comercial da sociedade insolvente, bem assim como do bem imóvel pertencente a (…), pelo montante global de €550.000,00.

16. A 4 de Dezembro de 2015, a credora P (…), S.A. informou o Senhor Administrador de Insolvência que aceitava a proposta de €550.000,00 apresentada pela sociedade comercial N (…) S.A., desde que o montante de €250.000,00 fosse entregue no processo de insolvência de (…)

17. A 4 de Fevereiro de 2016, a credora P (…) S.A., bem como os membros da comissão de credores, foram notificados do anúncio com o valor mínimo de venda do estabelecimento industrial da F (…) .A., pelo valor base de €647.100,00, onde se inclui os bens imóveis apreendidos nos presentes autos, bem assim como o bem imóvel descrito na CRP da x (...) sob o n.º 01(...) .

18. No dia 19 de Fevereiro de 2016, na diligência de abertura de proposta em carta fechada, foi apresentada uma proposta pela sociedade N (…) S.A. para aquisição do estabelecimento comercial pelo montante de €550.035,00, a ser paga da seguinte forma:

- €300.000,0 em pecúnia, em duas prestações, a primeira na data da celebração do contrato promessa e a segunda na celebração do contrato definitivo;

- €250.035,00 para provisão dos valores de indemnização pela assunção dos trabalhadores vinculados à sociedade insolvente.

19. A 2 de Março de 2016, a Credora P(…), S.A. informou o Administrador de Insolvência que aceitava o valor da proposta de aquisição de €550.035,00, mas que se opunha à imposição do proponente quanto à aplicação do produto da venda, defendendo que a proponente N (…) S.A. deveria depositar a totalidade do valor da proposta de €550.035,00 para se proceder aos pagamentos em conformidade com a sentença de verificação e graduação de créditos, e sempre com o condicionalismo de ser entregue a quantia de €250.000,00 à insolvência de M (…)

20. A 1 de Março de 2016 foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos, tendo, relativamente aos bens imóveis hipotecados à P (…) S.A., sido graduados em primeiro lugar os créditos dos trabalhadores e, em segundo lugar, o crédito de P (…)

21. A 1 de Abril de 2016, o Administrador de Insolvência remeteu à P (…) S.A., bem como os membros da comissão de credores, cópia da minuta do contrato promessa de compra e venda celebrado entre a Massa Insolvente de F (…), S.A., Massa Insolvente de M (…) e a proponente N (…) S.A., nos termos do qual ficou contemplado a venda do estabelecimento industrial com a denominação de F (…), S.A, que havia sido adjudicado, na sequência de proposta em carta fechada, à terceira outorgante (N (…), S.A.) pelo preço de €550.035,00, venda que contemplava a universalidade do acervo imobilizado do estabelecimento constituído pelos imóveis ali identificados e ainda um imóvel pertencente à Massa Insolvente de M (…) escrito na CRP sob o artigo 01(...) , mais se estabelecendo que:

- Ponto 4: Como compensação do valor do prédio acedido, a proponente N (…) S.A. pagaria directamente à Massa Insolvente de M (…)  a quantia de €200.000,00;

- Ponto 5: A proponente assumia a manutenção dos vínculos laborais, constituindo uma provisão de €250.035,00, a ser considerado no preço da aquisição do estabelecimento comercial;

- Ponto 6: pagamento de sinal no valor de €30.000,00;

- Ponto 7: pagamento do remanescente de €70.000,00 na outorga do contrato definitivo.

22. Em resposta datada de 11 de Abril de 2016, a P (…), S.A. informou o Administrador de Insolvência que não concordava com o teor do contrato promessa, uma vez que, por um lado, o preço a pagar à Massa Insolvente de M (…) deveria ser de €250.000,00 e, por outro, o preço da aquisição devia ser depositado na sua totalidade, pelo que o remanescente a pagar à massa insolvente da F (…) SA era de €270.035,00 e não de €70.000,00.

23. A P (…), S.A. solicitou então uma alteração ao referido contrato promessa de compra e venda, nomeadamente dos referidos pontos 4, 5 e 7, nos termos referidos.

24. A 1 de Março de 2017, a P (…), S.A., bem como os membros da comissão de credores, foram informados pelo Administrador de Insolvência de que a proponente N (…), S.A. propunha uma adenda ao contrato promessa de compra e venda nos termos da qual procederia ao pagamento da quantia de €270.000,00 em 19 prestações mensais a ser proporcionalmente distribuído pelos dois processos de insolvência, ali se referindo expressamente que a comissão de credores ficava notificada para se pronunciar até 10/03/2017 sobre a aludida proposta “sendo que finda a data fixada e não havendo parecer maioritário expresso pela comissão de credores, considera-se aceite a proposta apresentada”.

25. A 2 de Março de 2017, a P (…), S.A. pronunciou-se contra a proposta apresentada e manteve a posição anteriormente assumida, nomeadamente quanto às alterações do contrato promessa de compra e venda.

26. A P (…), S.A. não foi notificada de qualquer outra diligência efectuada no presente processo de insolvência, nomeadamente quanto à liquidação do activo.

27. A 22 de Dezembro de 2017, a credora solicitou informação ao Administrador quanto ao estado da liquidação do activo, bem assim como solicitou o envio das escrituras, caso já tivesse sido realizada a escritura definitiva, o que reiterou em 20 de Fevereiro de 2018, não tendo obtido resposta.

28. A 9 de Abril de 2018, a P (…), S.A. foi notificada das contas apresentadas pelo Administrador de Insolvência, tendo tido conhecimento do teor do contrato de compra e venda celebrado em 17 de Junho de 2017 entre a Massa Insolvente de F (…) SA e a proponente N (…) S.A.

29. Nos termos do referido contrato, o Administrador de Insolvência procedeu à venda de todos os bens imóveis apreendidos nos presentes autos, com exclusão do bem imóvel descrito na CRP da x (...) sob o n.º 01(...) , registado em nome de M (…), à sociedade comercial N (…) S.A. pelo valor de €660.042,00, tendo ficado estipulado que o pagamento do preço seria efectuado da seguinte forma:

- O pagamento da quantia de €100.000,00, dos quais na data do contrato seria paga a quantia de €30.000,00 e os restantes €70.000,00 pagos em 18 prestações mensais;

- O restante valor de €560.042,00 seria compensado pela assunção pela N (…) S.A. de todas as responsabilidades e direitos dos trabalhadores, designadamente prestações vencidas e direitos decorrentes da sua antiguidade.

30. Dos autos não resulta que a comissão de credores tenha prestado o seu consentimento para a venda do estabelecimento comercial pelo valor de €660.042,00, sendo paga a quantia de €70.000,00 em prestações mensais e a quantia de €560.042,00 tida em compensação dos créditos laborais.


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IV.

A decisão recorrida declarou nula a venda dos bens integrantes da massa insolvente que havia sido realizada através de contrato celebrado a 17/06/2017 com base nos seguintes pressupostos:

- Considerou que a venda do activo da insolvente consubstanciava um acto de especial relevo – na medida em que representava a transmissão do seu estabelecimento e incluía a totalidade das suas existências – e foi efectuada sem o consentimento da comissão de credores que era exigido pelo art. 161.º, n.ºs 1 e 3, al. a), do CIRE;

- Considerou que a credora hipotecária não foi informada do preço concreto da alienação projectada que veio a ser concretizada, de modo a poder exercer a faculdade que lhe era conferida pelo art. 164.º, n.º 3, do mesmo diploma, como era imposto pelo nº 2 da norma em questão;

- Considerou que tais irregularidades tinham influência na rendabilidade da venda, razão pela qual determinavam a respectiva nulidade nos termos do disposto no art. 195.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi art. 17.º, n.º 1, do CIRE;

- Considerou que, ao contrário do sustentado pela adquirente, nada permitia concluir que a arguição de nulidade fosse intempestiva, na medida em que não era expectável que a credora consultasse o registo predial com regularidade para conhecer o destino dos prédios, antes devendo ser informada da venda pelo administrador da insolvência.

Discordando dessa decisão, sustentam as Apelantes, no essencial, que as formalidades em causa foram cumpridas, não se configurando, por isso, qualquer irregularidade.

A Apelante N (…) S.A. sustenta ainda que a nulidade foi arguida de forma intempestiva, aludindo ainda à circunstância de a venda efectuada ter sido negociada e concretizada em estreita ligação com a venda de um outro imóvel integrado numa outra massa insolvente e à circunstância de ter actuado de boa-fé e ter efectuado investimentos com base na expectativa criada com a concretização do negócio cuja anulação lhe causará prejuízos.

Analisemos, portanto, as questões suscitadas.

Tempestividade da arguição de nulidade

Discordando da decisão recorrida, a Apelante N (…) começa por sustentar que a arguição da nulidade foi intempestiva. Argumenta, para o efeito, que, conforme resulta dos mails de Dezembro de 2017 e de Fevereiro de 2018, a P (...) tomou conhecimento de que as escrituras já teriam sido outorgadas e, uma vez que a publicidade registral do acto de transmissão dos imóveis havia ocorrido há tempo considerável, a credora P (…), perante o silêncio do administrador da insolvência, tinha a obrigação de obter esses elementos junto dos serviços que publicitam esses actos com vista a conhecer o conteúdo daquelas escrituras.

Salvo o devido respeito, não tem razão.

Em primeiro lugar, cabe dizer que não resulta do aludido e-mail de Dezembro de 2017 que a P (…) tivesse conhecimento – nessa data – que a escritura já havia sido celebrada. Na verdade, em tal e-mail, a P (…) limita-se a pedir ao Sr. Administrador o envio das escrituras, caso estas já tivessem sido efectuadas, sem que daí se possa extrair a conclusão de que a aludida credora já tinha conhecimento da efectiva celebração das escrituras. E o e-mail de Fevereiro de 2018 também não nos dá qualquer garantia de que a aludida credora já soubesse, nessa data, que alguma escritura havia sido celebrada.

Por outro lado, ao contrário do que sustenta a Apelante, não poderá concluir-se pela intempestividade da arguição da nulidade pelo facto de o acto de transmissão ter sido levado ao registo, uma vez que, na qualidade de credora, a P (...) tinha a expectativa legítima de que a venda lhe fosse comunicada pelo Administrador da Insolvência e que a respectiva escritura lhe fosse enviada conforme havia solicitado, sem que lhe fosse exigível proceder a averiguações junto de entidades externas ao processo e, mais concretamente, junto da Conservatória de Registo Comercial.

De acordo com o disposto no artigo 199º do CPC – aplicável aos presentes autos por força do disposto no artigo 17º do CIRE – o prazo para arguição da nulidade “…conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência”.

Ora, o que sabemos – cfr. ponto 28 da matéria de facto – é que, em 9 de Abril de 2018, a P (…) S.A. foi notificada das contas apresentadas pelo Administrador de Insolvência, tendo tido conhecimento do teor do contrato de compra e venda e não há notícia de que, em momento anterior, a aludida credora tenha tido intervenção em qualquer acto do processo ou que tivesse recebido uma qualquer notificação em função da qual pudesse ter tomado conhecimento do teor da escritura se tivesse actuado com a devida diligência.

Assim sendo, nada nos permite afirmar que a nulidade tenha sido arguida num momento em que já se encontrava excedido o prazo que a lei estabelece para o efeito.

Improcede, portanto, esta questão.

A violação do artigo 164º, nº 2, do CIRE

Dispõe a norma citada que “O credor com garantia real sobre o bem a alienar é sempre ouvido sobre a modalidade da alienação, e informado do valor base fixado ou do preço da alienação projectada a entidade determinada”.

Dispõe, por outro lado, o nº3 que “Se, no prazo de uma semana, ou posteriormente mas em tempo útil, o credor garantido propuser a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projectada ou ao valor base fixado, o administrador da insolvência, se não aceitar a proposta, fica obrigado a colocar o credor na situação que decorreria da alienação a esse preço, caso ela venha a ocorrer por preço inferior”.

É certo, portanto, que o credor com garantia real tem que ser ouvido sobre a modalidade da alienação e tem que ser informado do valor base fixado ou do preço da alienação projectada a entidade determinada; mas, como parece ser indiscutível em face da redacção do nº 3, a eventual oposição do credor na sequência dessa notificação não é vinculativa e não impede que a venda seja efectivamente realizada nos termos indicados pelo administrador da insolvência. Na verdade, a audição do credor com garantia real destina-se apenas a assegurar o exercício do direito que lhe é facultado no nº 3 no sentido de propor a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projectada ou ao valor base fixado, importando notar que a apresentação desta proposta – ainda que não seja vinculativa para o administrador da insolvência – implica, nos termos da citada disposição legal, que o administrador fique obrigado a colocar o credor na situação que decorreria da alienação pelo preço que este propôs, caso entenda não aceitar essa proposta e venha a proceder à venda por preço inferior.

Sustentam as Apelantes – em desacordo com a decisão recorrida – que o dever em questão foi cumprido, sem que tivesse sido manifestada qualquer intenção de pretender accionar o nº 3 da citada disposição legal, inexistindo, por isso, qualquer irregularidade.

Também pensamos assim.

Na verdade, conforme resulta dos autos e da matéria de facto supra enunciada, o Sr. Administrador informou a P (…) das diversas propostas que estavam em causa e que iam merecendo sempre a oposição desta, sem que alguma vez tivesse exercido a faculdade em função da qual essa notificação era efectuada.

Importa notar que o Administrador da Insolvência não estava obrigado a obter o consentimento da P (…) para realizar a venda; o Administrador apenas estava obrigado a informá-la, enquanto credora com garantia real, do valor base fixado ou do preço da alienação projectada a entidade determinada para que ela pudesse exercer – se assim o pretendesse – a faculdade de apresentar uma proposta de valor superior nos termos do nº 3 da disposição legal supra citada.

E, na nossa perspectiva, essa informação foi prestada.

Atentemos, para o efeito, nas comunicações efectuadas pelo Sr. Administrador à P (…) .

No dia 19 de Fevereiro de 2016, na diligência de abertura de proposta em carta fechada, foi apresentada uma proposta pela sociedade N (…), S.A. para aquisição do estabelecimento comercial pelo montante de €550.035,00, a ser paga da seguinte forma: €300.000,0 em pecúnia, em duas prestações, a primeira na data da celebração do contrato promessa e a segunda na celebração do contrato definitivo e €250.035,00 para provisão dos valores de indemnização pela assunção dos trabalhadores vinculados à sociedade insolvente, importando notar que a P (…) aceitou expressamente o valor dessa proposta, não obstante ter manifestado a sua oposição às condições de pagamento por entender que deveria ser depositada a totalidade do preço (uma parte nesta insolvência e outra parte na insolvência de M (..)  uma vez que a venda projectada incluía um imóvel integrante na massa insolvente da referida M (…) ).

Em 01/04/2016, o Sr. Administrador remeteu à P (…)  uma minuta do contrato promessa de compra e venda entre a Massa Insolvente de F (…), S.A., Massa Insolvente de M (…)  e a proponente N (…) S.A., onde se estabeleceu o preço global de 550.035,00€; tal contrato abrangia o património da Insolvente bem como o prédio descrito na CRP sob o nº 01(...) e registado em nome de M (…)e o preço seria pago nos seguintes termos: 200.000,00€ seriam pagos à Massa Insolvente de M (…), 250.035,00€ constituíram uma provisão destinada à manutenção dos vínculos laborais que a adquirente assumia e os restantes 100.000,00€ seriam pagos em duas parcelas (30.000,00€ como sinal e 70.000,00€ na outorga do contrato definitivo). Importa notar que o preço em questão correspondia ao preço que constava da proposta apresentada pela N (…)aquando da abertura de propostas (em 19/02/2016) e a P (…) já havia aceitado expressamente esse valor (a oposição que vinha manifestando à concretização da venda prendia-se apenas com a forma de pagamento desse preço).

Posteriormente – em 1 de Março de 2017 – a P (…), S.A. foi informada pelo Administrador de Insolvência de que a proponente N (…) S.A. propunha uma adenda ao contrato promessa de compra e venda nos termos da qual procederia ao pagamento da quantia de €270.000,00 em 19 prestações mensais a ser proporcionalmente distribuído pelos dois processos de insolvência (importa notar que estes 270.000,00€ correspondiam aos 200.000,00€ que, nos termos do contrato promessa seriam pagos à Massa Insolvente de M (…) e aos 70.000,00€ que, nos termos do contrato promessa, ainda faltava pagar à Massa Insolvente dos presentes autos, sendo certo que já teriam sido pagos 30.000,00€).

Perante essas comunicações e porque a P (…) não apresentou qualquer proposta de aquisição por valor superior, o Sr. Administrador, não obstante a oposição manifestada pela referida credora, estava legitimado a proceder à venda nos termos que lhe havia comunicado sem que se configurasse qualquer irregularidade, uma vez que, nos termos da lei, a venda não dependia de consentimento dessa credora e apenas tinha que lhe ser comunicada para que ela exercesse, querendo, a faculdade prevista no nº 3 da citada disposição legal (apresentação de proposta de valor superior).

É certo, no entanto, que a venda não foi concretizada nos exactos termos que haviam sido comunicados à P (…)e a questão que se coloca consiste em saber se essa circunstância exigia (ou não) nova comunicação à aludida credora nos termos previstos no artigo 164º, nº 1, e para que ela apresentasse, querendo, uma proposta de valor superior.

E, salvo o devido respeito, entendemos que não.

Tal dever apenas se impunha se a venda que viesse a ser concretizada não correspondesse àquela que já estava projectada e que já havia sido comunicada ao credor, seja porque era outra a entidade a quem a venda ia ser efectuada, seja porque o preço da venda era inferior ao que estava projectado inicialmente.

Ora, conforme resulta dos autos, a venda foi efectuada preço global de 660.042,00€ e, portanto, foi efectuada por valor superior àquele que já havia sido comunicado à P (…)  como correspondendo ao preço da alienação que se projectava efectuar à N (…)  por outro lado, aquilo que ficou estabelecido no que toca à forma de pagamento do preço coincidia, no essencial, com aquilo que já havia sido comunicado à aludida credora, já que, conforme estava previsto, a adquirente pagaria a quantia de 100.000,00€ (30.000,00€ na data do contrato e os restantes 70.000,00€ em prestações) e o restante valor (agora superior por força do aumento do preço global) seria compensado pela assunção, por parte da N (…) S.A. de todas as responsabilidades e direitos dos trabalhadores, designadamente prestações vencidas e direitos decorrentes da sua antiguidade.

É certo que a venda que estava projectada e foi comunicada à P (…)incluía o imóvel descrito na CRP sob o nº 01(...) e registado em nome de M (…)e a venda que veio a ser concretizada não abrangia esse imóvel. Mas essa circunstância apenas significa que a venda veio, afinal, a ser concretizada em condições bem mais favoráveis, na medida em que veio a ser realizada por valor superior do que o valor que estava previsto para a venda dos bens da Insolvente em conjunto com esse imóvel.

Pretendendo atribuir uma especial relevância a esse facto, diz a P (…), S.A. que apenas aceitou o preço de € 550.035,00 face à alegada situação de conflito entre a Massa Insolvente da sociedade insolvente e a Massa Insolvente de M (…), quando é certo que, dados os termos em que a venda veio a ser efectuada, não existirá qualquer conflito.

Mas, salvo o devido respeito, não vislumbramos a relevância desse facto. Com efeito, o eventual conflito que existisse resolvia-se com a venda conjunta dos bens à mesma adquirente conforme estava projectado sem que tal implicasse uma qualquer redução do valor dos bens e, consequentemente, do preço contratado. Assim, se a aludida credora aceitou um determinado preço pela venda conjunta desses bens (os bens da aqui Insolvente e um bem integrado numa outra massa insolvente) – situação que implicaria, naturalmente, que apenas uma parte desse preço revertesse para a massa insolvente dos presente autos – nenhumas razões existiriam para não aceitar um valor igual ou superior que reverteria totalmente para a massa insolvente por não incluir o imóvel que dela não faz parte, não se justificando, por isso, que, em face dessa situação, o Sr. Administrador tivesse que proceder a nova notificação em cumprimento do disposto no citado artigo 164º, nº2, para que a referida credora tivesse oportunidade de apresentar proposta de valor superior (quando é certo que já havia aceitado expressamente um valor inferior).

Na verdade, a P (..) nem sequer questiona propriamente o valor da venda; aquilo que sempre questionou foram as condições de pagamento por entender que o preço devia ser depositado na totalidade ao invés de uma parte do preço ser compensado pela assunção – por parte da adquirente – de todas as responsabilidade e direitos com os trabalhadores.

Mas ainda que se entenda que essas condições de pagamento estão incluídas no dever de informação previsto no citado artigo 164º (o que é discutível), a verdade é que a venda à N (…) sempre esteve projectada nesses termos e a venda assim projectada foi oportunamente comunicada à P (…)  O Sr. Administrador comunicou à P(…)  que projectava vender o activo da Insolvente à N (…) S.A. por determinado preço (preço que foi aceite pela P (…)  e que até era inferior àquele pelo qual veio a concretizar a venda, não só porque era, em termos objectivos, de menor valor, mas também porque incluía um outro imóvel que não pertencia à aqui Massa Insolvente e que não foi incluído na venda que veio a ser realizada) e o Sr. Administrador também comunicou oportunamente à P (…) que – conforme veio a ficar consignado no contrato de compra e venda – apenas o valor de 100.000,00€ seria efectivamente pago ou depositado a favor da massa e em prestações, uma vez que o valor restante seria compensado com a assunção, por parte da adquirente, das responsabilidades com os trabalhadores.

Perante tais comunicações, a referida credora poderia ter apresentado – se assim o entendesse – uma proposta mais favorável e não o fez. A referida P (...) limitou-se a manifestar a sua oposição – por diversas vezes – às condições de pagamento que lhe foram comunicadas e que vieram a ficar vertidas no contrato, por pretender que o preço fosse integralmente pago à massa, mas essa oposição é irrelevante para o efeito de concluir pela existência de qualquer irregularidade. Tal como se disse, o Sr. Administrador não estava vinculado a tal oposição e não estava obrigado a obter a concordância da referida credora para concretizar a venda; o Sr. Administrador apenas estava obrigado a comunicar o preço da alienação projectada para que a credora usasse, querendo, da faculdade prevista no nº 3 e procedeu, efectivamente, a tal comunicação que abrangeu, não só o valor da venda, mas também as demais condições de pagamento, incluindo o facto de uma parte do preço ser compensada com a assunção de responsabilidades referentes aos trabalhadores. A oposição deduzida pela credora não implicava que o Sr. Administrador tivesse que proceder a qualquer outra notificação antes de concretizar a venda; uma nova comunicação/notificação apenas se tornaria necessária caso a venda viesse a ser concretizada em termos mais desvantajosos do que aqueles que haviam sido comunicados aos credores, o que não aconteceu.

Tal oposição é, portanto, irrelevante para efeitos de verificação de qualquer irregularidade, já que – reafirma-se – a formalidade exigida pela lei não se reconduz à necessidade de obter o consentimento do credor relativamente à venda e respectivas condições; tal formalidade corresponde apenas à necessidade de comunicar ao credor com garantia real o valor base fixado para a venda do bem (ou bens) ou o preço da alienação projectada a entidade determinada e essa formalidade foi aqui observada.

Nestas circunstâncias, impõe-se concluir que foi efectivamente cumprida a formalidade exigida pelo disposto no artigo 164º, nº 2, dando oportunidade ao credor de exercer a faculdade prevista no nº 3 da citada disposição legal

Entendemos, por isso, que não se configura a irregularidade invocada.

A violação do artigo 161º, nº1, do CIRE

Dispõe a norma citada que “Depende do consentimento da comissão de credores, ou, se esta não existir, da assembleia de credores, a prática de actos jurídicos que assumam especial relevo para o processo de insolvência”.

Fazendo constar do nº 2 da citada disposição legal o critério geral que há-de presidir à qualificação de um acto como de especial relevo, o legislador enunciou, no nº 3, alguns actos que se consideram de especial relevo e entre os quais se encontra a venda da empresa, de estabelecimentos ou da totalidade das existências – cfr. alínea a).

É certo, portanto, que a venda em causa nos autos correspondia a um acto de especial relevo – por se enquadrar na referida alínea a) – que, como tal, dependia de consentimento da comissão de credores.

Sustentam as Apelantes – ao contrário do que se considerou na decisão recorrida – que foi cumprido o disposto no artigo 161º e apenas a P (…)  (que também é membro da comissão de credores) se opôs, sendo certo que a esmagadora maioria (80%) nunca se opôs às diligências do recorrente, já que, numa análise de todo o seu fluxo lógico, nunca houve qualquer intervenção que se mostrasse contrária.

Antes de mais, cabe dizer que, conforme resulta dos documentos juntos aos autos pela P (...) e conforme fizemos consignar na matéria de facto, as comunicações aí mencionadas, além de terem sido enviadas à P (...) em cumprimento do disposto no artigo 164º, também foram enviadas aos membros da comissão de credores para cumprimento do artigo 161º, sendo certo, no entanto, que, ao que tudo indica, não existiu qualquer deliberação da comissão de credores no sentido de consentir ou não consentir na venda que o Sr. Administrador lhe comunicava, ainda que tais comunicações – referentes à venda que se projectava realizar à N (…)  – tivessem perdurado durante mais de um ano.

É certo que, ao contrário do que acontece na situação prevista no artigo 164º, nº 2 – onde o cumprimento da formalidade legal se basta com a informação ali prevista aos credores com garantia real – o cumprimento do disposto artigo 162º não se bastava com a comunicação aos membros da comissão de credores da venda que estava projectada, porquanto aquilo que aqui se exige é o consentimento da comissão de credores.

Também nos parece, por outro lado, que tal consentimento teria que ser prestado por via de uma deliberação da comissão de credores nos termos previstos no artigo 69º do CIRE, já que, estando em causa um órgão colegial, é por via da deliberação que se forma a sua vontade.

Mas, não obstante esse facto, pensamos que a venda não deve ser anulada, na medida em que, ainda que não tenha dado o seu consentimento expresso, a comissão de credores sempre soube – por força das comunicações que lhe foram efectuadas pelo Sr. Administrador – da venda do estabelecimento e de todo o património da Insolvente que estava projectada sem que alguma vez tivesse tido a preocupação de reunir com vista à tomada de uma qualquer deliberação sobre a matéria não obstante tal lhe ter sido solicitado pelo Sr. Administrador (veja-se, por exemplo, a comunicação enviada pelo Sr. Administrador em 01/03/2017 dando conta da proposta de um aditamento ao contrato-promessa – doc. 12 junto pela P (...) com o requerimento de arguição de nulidade – onde refere que a comissão de credores fica notificada para se pronunciar sobre a proposta até 10/03/2017, “…sendo que finda a data fixada e não havendo parecer maioritário expresso pela comissão de credores, considera-se aceite a proposta apresentada”) e sem que tivesse tido qualquer preocupação em assinalar – seja ao Sr. Administrador, seja ao juiz – o facto de não ter dado o consentimento para a venda sobre a qual incidiam as diversas diligências que estavam a ser efectuadas pelo Administrador.

Veja-se que a proposta da N (…)  S.A. foi apresentada na diligência de abertura de propostas em carta fechada que esteve designada para o dia 19/02/2016 e essa proposta já se reportava à venda de todo o património da Insolvente e coincidia, no essencial, com os termos da venda que veio a ser efectuada (ainda que essa proposta incluísse um imóvel que pertencia a outra massa insolvente situação que não aconteceu na venda que veio a ser realizada, o preço era até inferior e já previa que uma parte do preço não seria paga por se destinar a compensar as responsabilidades com os trabalhadores que a adquirente iria assumir), tendo sido comunicada aos membros da comissão de credores.

Em 01/04/2016 e na sequência da apresentação daquela proposta – que, aliás, havia sido a única – o Sr. Administrador remeteu aos membros da comissão de credores a minuta do contrato promessa de compra e venda cujos termos eram, no essencial, similares aos que constavam da proposta inicial e, em 01/03/2017 é-lhes comunicada uma adenda ao contrato promessa.

Ou seja, a comissão de credores, não obstante ter tomado conhecimento da proposta – no início de 2016 –, não deliberou sobre a matéria e não comunicou ao Sr. Administrador a sua eventual concordância ou oposição à realização da venda; não obstante lhes ter sido remetida a minuta do contrato promessa – facto que evidenciava claramente a intenção de concretizar a venda projectada – a comissão de credores continuou a não deliberar sobre a matéria, nada disse e deixou que a situação prosseguisse para a concretização da venda – como era suposto acontecer quando já existia um contrato promessa – sem deliberar sobre a matéria, sem transmitir o seu consentimento ou a sua oposição e sem sequer chamar a atenção – ao Sr. Administrador ou ao Tribunal – de que, por falta de consentimento da sua parte, a venda não poderia ser concretizada; e persistiu na mesma conduta quando algum tempo depois lhe foi comunicada uma adenda ao contrato promessa.

É certo que a P (…)  sempre manifestou a sua oposição às condições da venda que estava projectada por entender que deveria ser paga a totalidade do preço ao contrário do que estava projectado. Sucede que a P (…)  não é a comissão de credores; a P (…)  é apenas um dos membros da comissão que nem sequer representava a sua maioria e, portanto, a sua oposição não vale e não pode ser entendida como oposição ou falta de consentimento da comissão de credores cuja vontade – como dissemos – se forma por via de deliberação que, nos termos do artigo 69º, é tomada por maioria dos votos presentes em reunião onde estejam presentes a maioria dos seus membros.

Nestas circunstâncias, afigura-se-nos que a anulação da venda – com todos os prejuízos que tal anulação poderia implicar, quer para a adquirente, quer para os próprios credores, uma vez que poderá não ser fácil proceder a nova venda em tempo razoável e por melhores ou idênticas condições – será uma solução claramente excessiva. É certo que o consentimento da comissão de credores deveria ser prestado por via de deliberação tomada nos termos do artigo 69º e é certo que, em bom rigor, o Sr. Administrador não deveria ter procedido à venda sem que existisse tal deliberação (podendo, em caso de omissão dessa deliberação, requerer ao juiz a convocação da assembleia de credores que, nos termos do artigo 80º, poderia autorizar o acto em questão). Mas a verdade é que a venda não foi efectuada à revelia e sem o conhecimento da comissão de credores; os membros da comissão de credores sempre tiveram conhecimento da proposta efectuada e da actuação do Sr. Administrador que, ao longo de mais de um ano, veio a culminar na celebração do contrato – tendo tomado conhecimento, designadamente, do contrato promessa e respectivo aditamento – e nunca tiveram qualquer preocupação em reunir e deliberar sobre a matéria e tão pouco existiu a preocupação de chamar a atenção do Sr. Administrador para o facto de não estar legitimado a efectuar a venda por não ter sido prestado consentimento da comissão de credores. A maioria dos membros da comissão actuou, portanto, como se nada tivesse a opor à venda, dando a entender ao Sr. Administrador que consentiam na sua realização.

Entendemos, portanto, em face do exposto, que não se justifica a anulação da venda.

Além do mais, a anulação da venda sempre esbarraria no disposto no artigo 163º do CIRE – onde se determina que “A violação do disposto nos dois artigos anteriores não prejudica a eficácia dos actos do administrador da insolvência, excepto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte” – ainda que a aplicação dessa norma já tenha sido recusada com fundamento na sua inconstitucionalidade por violação do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa; foi essa a posição adoptada pela decisão recorrida, pelo Acórdão do STJ de 04/04/2017 (proferido no processo nº 1182/14.0T2AVR-H.P1)[1] e pelo Acórdão da Relação de Évora de 08/02/2018 (processo nº 6426/12.0TBSTB-F.E1)[2] que veio a ser confirmado pelo Acórdão do Tribunal Constitucional nº 616/2018, de 21/11/2018[3], onde se decidiu “julgar inconstitucional, por violação do artigo 20.º, n.º 4, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, a norma contida nos artigos 163.º e 164.º, n.os 2 e 3, do CIRE, na interpretação segundo a qual o credor com garantia real sobre o bem a alienar não tem a faculdade de arguir, perante o juiz do processo, a nulidade da alienação efetuada pelo administrador com violação dos deveres de informação do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada”.

Mas ainda que a norma citada não fosse aplicada (por força da sua eventual inconstitucionalidade), sempre se poderia questionar se a falta de consentimento da comissão de credores corresponde a uma irregularidade processual que possa ser arguida e declarada por via da arguição de uma nulidade processual nos termos do artigo 195º e segs. do CPC. Poder-se-á dizer, de facto, que não está em causa a mera omissão de uma formalidade legal de cariz processual, mas sim a falta de um consentimento que interfere com a validade do negócio e que, como tal, não poderia ser apreciada e decidida pela via (simplista) de arguição de uma irregularidade/nulidade processual. Além do mais, nem sequer se vislumbram razões válidas para não admitir a convalidação do negócio por via da sua ratificação ou confirmação por parte de quem tinha que prestar o seu consentimento[4], à semelhança do que acontece em diversos casos previstos na lei civil (além de a confirmação do negócio ser estabelecida na lei como regra para o efeito de sanar a anulabilidade do negócio – artigo 288º do CC – a possibilidade de confirmação ou ratificação do negócio como forma de sanar a invalidade, está também prevista, designadamente, para os actos praticados em nome de incapaz que dependem de autorização do tribunal – artigos 1894º e 1941º CC - e para os actos praticados em nome de outrem sem poderes de representação – artigo 268º do CC), o que poderia determinar a impossibilidade ou inconveniência de anular o negócio – com todos os prejuízos inerentes – sem dar à comissão de credores a possibilidade de confirmar o negócio celebrado sem o seu consentimento.  

De qualquer forma e independentemente da solução a dar a essas questões, entendemos que não está configurada qualquer irregularidade relevante que seja susceptível de determinar a anulação da venda, uma vez que, conforme se referiu, a inexistência de consentimento da comissão de credores é imputável à própria comissão que, tendo conhecimento da venda projectada por via das várias comunicações que lhe foram efectuadas ao longo de mais de um ano, nunca deliberou no sentido de dar ou negar o seu consentimento, actuando de forma a criar no Sr. Administrador a convicção de que consentia na realização da venda.

Conforme se referiu supra, a venda efectuada não divergiu em termos substanciais dos moldes que estavam projectados e que haviam sido comunicados à comissão de credores e à P (…)  enquanto credora com garantia real (sendo certo que, conforme dissemos supra, a venda não foi efectuada em condições mais desfavoráveis para a Massa do que aquelas que estavam projectadas).

Nessas circunstâncias, impõe-se concluir que o Sr. Administrador efectuou a comunicação à comissão de credores que está prevista no artigo 161º, nº 4, e efectuou a comunicação à P(…) nos termos previstos no artigo 164º, nº 2; na sequência dessas comunicações, a comissão de credores não deliberou, não manifestou qualquer oposição à concretização da venda e ninguém se apresentou a exercer a faculdade prevista no nº 5 do citado artigo 161º, requerendo ao juiz a convocação da assembleia de credores para prestar o seu consentimento à operação por ser plausível que a alienação a outro interessado fosse mais vantajosa para a massa insolvente. Na verdade, apenas a P (…)  se manifestou, de forma reiterada, contra a concretização da venda projectada por pretender que, ao contrário do que estava projectado, fosse depositada a totalidade do preço, sendo certo, porém, que, essa oposição não valia como oposição da comissão de credores porque a aludida credora era apenas um membro da comissão de credores que não representava a respectiva maioria. Por outro lado, enquanto credora com garantia real, não tinha que autorizar ou consentir na venda, razão pela qual a sua oposição não releva para efeitos de verificação de qualquer irregularidade; aquilo que lhe era permitido fazer perante aquela comunicação era apresentar uma proposta mais favorável nos termos do nº 3 do citado artigo 164º, o que não fez.

Assim e em face do exposto, revoga-se a decisão recorrida, indeferindo-se a arguição de nulidade, ficando prejudicada a apreciação das demais questões.


/////

V.
Pelo exposto, concedendo-se provimento ao presente recurso, revoga-se a decisão recorrida e indefere-se a arguição de nulidade por parte da P (…)  S.A.
Custas a cargo da Apelada P(…) , S.A..
Notifique.

Coimbra, 19/12/2018

Maria Catarina Gonçalves ( Relatora )

António Magalhães

Ferreira Lopes


[1] Disponível em http://www.dgsi.pt.
[2] Também disponível em http://www.dgsi.pt.
[3] Disponível em www.tribunalconstitucional.pt.
[4] Neste sentido, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 2008, pág. 544