Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
899/16.9T9CLD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: ARQUIVAMENTO DE INQUÉRITO
PERDA A FAVOR DO ESTADO
Data do Acordão: 12/16/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE LEIRIA – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 186.º, N.º 3, 268.º, N.º 1, AL. E), 277.º, 280.º E 282.º, DO CPP
Sumário: Da interpretação integrada dos arts. 186.º, n.º 3, e 268.º, n.º 1, al. e), do CPP, decorre que, em caso de arquivamento do inquérito nos termos dos arts. 277.º, 280.º e 282.º, do mesmo diploma, a perda a favor do Estado de animais, coisas e objectos apreendidos não opera ope legis; antes exige prévia declaração do juiz de instrução.
Decisão Texto Integral:





Acordam os juízes, em conferência, na 5ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

1  – Nos presentes autos de Inquérito, com o nº 233/10.1PALGS, dos Serviços do Ministério Público de Caldas da Rainha, recorre a Ilustre Magistrada do Ministério Público do despacho proferido em 16-06-2020 , pelo Mmº Juiz de Instrução Criminal, - do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria - Juízo de Instrução Criminal de Leiria - Juiz 2 - que considerou que a perda de objectos a favor do Estado, nos termos do disposto no artigo 186º, do Código de Processo Penal, decorre ope legis, por não exigir apreciação e decisão pelo Juiz de Instrução criminal, pelo que ordenou a devolução dos autos ao Ministério Público, sem a prolação de despacho judicial a determinar o requerido perdimento a favor do Estado.


*

2. Inconformado com o assim decidido recorre o MP, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

“1.     A perda de objectos a favor do Estado nos termos do artigo 186.°, n.° 3, do C.P.P., não ocorre automaticamente com o decurso do prazo aí fixado.

2. Por conseguinte, carece de despacho judicial, uma vez que cabe na previsão da alínea e) do n° 1 do artigo 268.° do C.P.P..

3. Na verdade, o artigo 268.°, n.° 1, alínea e), do C.P.P., não compreende qualquer restrição relativamente às decisões de perda que prevê, tendo-se mantido intacto na reforma operada no C.P.P. pela Lei 48/2007, de 29 de Agosto.

4. Tal preceito aplica-se a toda e qualquer decisão que recaia sobre perda de objectos a favor do Estado e não, como parece resultar da fundamentação da decisão recorrida, somente às decisões de perda que tenham por fundamento o disposto no artigo 109.° do C.P..

5. O que sucede é que no caso do artigo 186.°, n.° 3, do C.P.P., o Juiz de Instrução Criminal não tem de aferir dos pressupostos enunciados no artigo 109.° do C.P. para proferir a referida decisão de perda, sendo bastante que se verifiquem os pressupostos do citado artigo 186.°, n.° 3, do C.P.P., isto é, o decurso do tempo aí consignado e a inércia do interessado, desde que regularmente notificado e com as legais cominações.

6. É consabido que o legislador incumbiu o Juiz de Instrução Criminal da tarefa de intervir nos actos que durante a fase de inquérito possam colidir com os direitos dos intervenientes processuais.

7. Ora, a decisão de perda de objectos a favor do Estado belisca o direito de propriedade e, nessa medida, qualquer decisão que provoque restrições ou coloque em causa este direito análogo aos direitos fundamentais, tem de ser tomada pela autoridade judiciária a quem incumbe a fiscalização dos actos de inquérito que possam ferir ou destruir esse direito.

8. Assim, a interpretação acolhida na decisão recorrida colide com o direito de propriedade privada, com dignidade constitucional no artigo 62.°, da Constituição da República Portuguesa, e compromete o princípio da legalidade, colocando em crise o fundamento do Juiz de Instrução Criminal enquanto garante dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

9. Ainda como argumento ao que se vem defendendo cita-se o artigo 185.° do C.P.P., segundo o qual durante o inquérito o Ministério Público tem competência para decidir sobre o destino dos objectos sem valor, perecíveis, perigosos, deterioráveis ou cuja utilização implique perda de valor ou qualidades.

10. Conclui-se, assim, que a perda de objectos a favor do Estado consignada no artigo 186.°, n.° 3, do C.P.P., não ocorre automaticamente com o decurso do prazo aí fixado, carecendo de despacho judicial, concretamente do Juiz de Instrução Criminal quando o Ministério Público arquiva o inquérito, porquanto cabe na previsão da alínea e) do n° 1 do artigo 268.° do citado C.P.P. (neste sentido vide o Código de Processo Penal, Comentários e Notas Práticas, elaborado pelos Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, p.476, e o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, datado de 25/02/2014 e publicado no site www.dgsi.pt).

11. Face a tudo quanto ficou exposto, entende-se que ao decidir de modo inverso, a decisão em causa violou o disposto nos artigos 186.°, n.° 3, e 268.°, n.°1, alínea e), ambos do C.P.P..

12. Consequentemente deve improceder a argumentação expendida na decisão recorrida, devendo, por isso, ser a mesma revogada e ser substituída por outra que ordene a declaração de perda do veículo apreendido nos autos por parte do Mmo. Juiz de Instrução Criminal.

Termos em que, e nos mais de direito, deve ser julgado procedente o recurso interposto e, consequentemente, revogar o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que ordene a declaração de perda do veículo apreendido nos autos, assim se fazendo JUSTIÇA!”


*

3. O Exmo. Juiz de Instrução Criminal sustentou o despacho proferido, por entender em suma, que a declaração judicial de perda a favor do Estado só se justifica quando está em causa modificação de titular de direito de propriedade sobre um bem contra a vontade expressa ou presumida deste. … “No que toca a objectos não reclamados, nos termos do nº 3 do art 186º do CP, a lei não refere qualquer declaração de perda, dizendo que, decorrido o prazo previsto sem que as pessoas a quem os objectos devem ser restituídos procedam ao seu levantamento, tais bens consideram-se perdidos a favor do Estado. … O litígio é inexistente, na medida em que o próprio titular do bem, pela inércia informada, abdica da propriedade do mesmo a favor do Estado. Daí que, nestes casos não seja necessária a declaração judicial, já que nada há a ponderar ou apreciar.”

*

4. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso interposto pelo Ministério Público,

porque “se mostra devidamente fundamentada a posição assumida pelo recorrente sustentada nos elementos de facto em apreço e, na ausência de reclamação de entrega, no prazo legalmente fixado haverá que ser proferido despacho judicial a declarar o perdimento do veículo, suportando a sua posição no disposto nos art.º 186º, n.º 3 e 268º, n.º 1, al. a), ambos do CPP, bem assim apoiada em jurisprudência dos tribunais superiores que cita a propósito.

Com efeito, a citada disposição legal do art.º 268º na sua interpretação conjugada com art.º 186º, n.º 3 não deixa, a nosso ver margem para grandes dúvidas.

Na verdade, apresenta-se clara e exaustiva a exposição da motivação de recurso no sentido propugnado, que por isso aqui damos por reproduzida, apenas se destacando, em reforço do que vem dito, na mesma linha de entendimento, que já o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 30-11-2010, em anotação ao art.º 268º do CPP, publicado no sítio da PGD Lisboa onde se considera a propósito, de forma expressa, que a disposição do citado art.º 186º, n.º 3, não opera “ope legis”.”


*

5. Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

*

II – FUNDAMENTAÇÃO

A questão que importa decidir é, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, a de saber se em processo de inquérito, arquivado, compete ao Juiz de Instrução a declaração de perdimento de viatura a favor do Estado, no âmbito da legal disposição do art.º 186º, n.º 3 do CPP ou se, pelo contrário, a perda ocorre automaticamente com o decurso do prazo aí fixado, competindo ao MP a verificação da regularidade das notificações e cominações feitas.

Refere o despacho recorrido simplesmente que o art.º 186º, n.º 3 opera “ope legis” não carecendo de despacho judicial, com a devolução dos autos ao Ministério Público.

Dispõe o artigo 186.º do CPP

Restituição de animais, coisas e objetos apreendidos

1 - Logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeito de prova, os animais, as coisas ou os objetos apreendidos são restituídos a quem de direito ou, no caso dos animais, a quem tenha sido nomeado seu fiel depositário.

3 - As pessoas a quem devam ser restituídos os animais, as coisas ou os objetos são notificadas para procederem ao seu levantamento no prazo máximo de 60 dias, findo o qual, se não o fizerem, se consideram perdidos a favor do Estado.

4 - Se se revelar comprovadamente impossível determinar a identidade ou o paradeiro das pessoas referidas no número anterior, procede-se, mediante despacho fundamentado do juiz, à notificação edital, sendo, nesse caso, de 90 dias o prazo máximo para levantamento dos animais, das coisas ou dos objetos.

Decorre desta disposição legal que se as pessoas a quem devam ser restituídos os objectos apreendidos, não procederem ao seu levantamento no prazo de 60 dias a contar da notificação efectuada para tal efeito, os objectos consideram-se perdidos a favor do Estado.

Como vem assinalado no Ac RÉvora, de 25-02-2014, relator Des Fernando Paiva Gomes M. Pina “Embora a literalidade do preceito legal pareça indicar que este perdimento poderá ocorrer de facto ope legis, isto é verificado que seja o formalismo legalmente previsto, como seja a notificação regular das pessoas a quem os objectos apreendidos devam ser restituídos, para procederem ao seu levantamento no prazo de um ano, “os objectos consideram-se perdidos a favor do Estado”, parecendo pois dispensar a prolacção de qualquer despacho…” afigura-se-nos insuficiente a interpretação literal/gramatical da norma, impondo-se atentar no elemento sistemático (que indica que as leis se interpretam umas pelas outras porque a ordem jurídica forma um sistema e a norma deve ser tomada como parte de um todo), assim como no elemento racional ou teleológico que leva a atender-se ao fim ou objectivo que a norma visa realizar, qual foi a sua razão de ser (ratio legis).

Importa então considerar o disposto no artigo 268º, nº 1, alínea e), do Código de Processo Penal, que estatui:

“Actos a praticar pelo juiz de instrução

1 - Durante o inquérito compete exclusivamente ao juiz de instrução:

a) …

e) Declarar a perda a favor do Estado de bens apreendidos, com expressa menção das disposições legais aplicadas, quando o Ministério Público proceder ao arquivamento do inquérito nos termos dos artigos 277.º, 280.º e 282.º;” (sublinhado nosso).

É assim inequívoco que da interpretação integrada dos artigos 186, nº 3 e 268º, nº 1, al. e) do CPP resulta que em caso de arquivamento do inquérito pelo Ministério Público nos termos dos artºs 277º, 280º e 282º do CPP, compete exclusivamente ao juiz de instrução a declaração de perda dos bens apreendidos a favor do Estado - neste sentido Ac. TRL de 30-11-2010.

No mesmo sentido, Ac. TRL de 27-05-2010: I. A perda para o Estado de bens, objectos ou valores apreendidos, nos termos e dentro do condicionalismo específico do artº 186º, nºs 3 e 4 do CPP não opera ope legis, exigindo-se a intervenção do juiz a decretá-la, sob pena da sua violação bem como dos artº 286º, n.1, alínea e) do mesmo código e 62º da Constituição (CRP). No caso, havendo arquivamento do inquérito, tal competência recai sobre o juiz de instrução.

O que se justifica pela simples razão de que só em casos excepcionais previstos na lei e que se prendem com a defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, haverá lugar à intervenção de um juiz na fase de inquérito. Trata-se das situações previstas, além do mais, nos artºs. 268º e 269º do C.P.P.

Ora, estando em causa o direito de propriedade relativamente aos objectos apreendidos na fase de inquérito, percebe-se que a lei atribua competência específica e excepcional ao juiz de instrução criminal para determinar a perda desses bens a favor do Estado, na medida em que o trânsito de tal declaração de perdimento provoca a extinção do direito de propriedade do respectivo dono sobre os mesmos - cfr Ac Rel Porto, de 16 de Março de 2011.

Por conseguinte, a verificação do condicionalismo a que se reporta o artº 186º, nºs 3 e 4 do CPP, nomeadamente a verificação da regularidade das notificações e cominações feitas, não é automática, razão pela qual não pode operar “ope legis” - deve ser feita pelo juiz de instrução em declaração a proferir nos termos do artº 268º, nº1, al. e) do CPP- cit Ac RÉvora, de 25-02-2014.

Também no mesmo sentido Ac. TRG de 25-02-2014: “No decurso do inquérito, desde que não exista urgência na declaração de perdimento a favor do Estado, resultante das características próprias dos bens apreendidos, sem valor, perecíveis, perigosas ou deterioráveis e, se verifique a desnecessidade da manutenção da apreensão dos bens para efeito de prova, resultante do arquivamento ou suspensão dos autos, é sempre da competência exclusiva do juiz de instrução, a declaração de perdimento dos bens apreendidos a favor do Estado, quer pela sua natureza quer por não terem sido reclamados.

III – DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que determine o perdimento a favor do Estado dos bens apreendidos e não reclamados, nos termos do disposto no artigo 186º, nº 3, do Código de Processo Penal.

Sem tributação.

Coimbra, 16 de Dezembro de 2020

Processado em computador e revisto pela relatora

Isabel Valongo (relatora)

Jorge França (adjunto)