Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1024/12.0T2AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO
FACTOS PROVADOS
PROPRIEDADE HORIZONTAL
ELEVADOR
CONDOMÍNIO
ADMINISTRADOR PROVISÓRIO
REPRESENTAÇÃO SEM PODERES
RATIFICAÇÃO
Data do Acordão: 05/27/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - AVEIRO - JUÍZO DE MÉDIA E PEQ. INSTÂNCIA CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 217, 268, 406, 799, 1156, 1414, 1417, 1421, 1424, 1435-A CC, 607, 636, 640, 663 CPC
Sumário: 1. Na elaboração do acórdão, a Relação, nos termos do art. 607º, nº 4, 2ª parte, do NCPC, ex vi do art. 663º, nº 2, do mesmo diploma, deve tomar em consideração os factos provados por acordo ou por documentos.

2. Não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o (s) facto (s) concreto (s) objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente;

3. Quando o recorrido requer a ampliação do âmbito do recurso, no que respeita à matéria de facto, também tem de respeitar os requisitos legais atinentes à impugnação da matéria de facto, nos termos combinados dos arts. 636º, nº 2, e 640º, nº 3, do NCPC, nomeadamente especificando os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados ou indevidamente desconsiderados e qual a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre tais pontos de facto, sob pena de rejeição;

4. Constituída a propriedade horizontal por negócio jurídico – declaração unilateral do construtor do edifício -, nos termos do art. 1417º, nº 1, do CC, fica efectuada a divisão do mesmo, com a virtualidade de constituir desde logo tal edifício em fracções jurídicas próprias e independentes, deixando o proprietário de ter um direito único sobre todo o edifício e passando a ter tantos direitos quantas as fracções autónomas; neste aspecto, o título constitutivo da propriedade horizontal tem eficácia imediata, ao proceder à autonomização das fracções do edifício.

5. Mas a declaração negocial unilateral do proprietário do edifício, embora qualificada pela lei como título constitutivo do condomínio, não pode originar, só por si, uma situação plena e acabada de propriedade horizontal, pois esta figura pressupõe uma pluralidade de condóminos diversos, nos termos do art. 1414º do CC.

6. Assim, quanto a tudo o mais que de uma situação de propriedade horizontal decorre – sujeição de determinadas partes do edifício ao regime de compropriedade, eleição do administrador destas partes comuns, limitações ao uso das fracções autónomas, etc. -, a eficácia do título fica dependente da alienação de, pelo menos, uma das fracções autónomas, já que só nessa altura surgirá a pluralidade de condóminos, pressuposto essencial do regime da propriedade horizontal (citado art. 1414º).

7. A declaração em que o proprietário exprime a vontade de sujeitar o edifício ao regime da propriedade horizontal tem de considerar-se, portanto, nesta medida e para o efeito, um negócio necessariamente sujeito à condição (condicio iuris) da alienação de uma das fracções autónomas do edifício, significando isto que o condomínio só nasce após a primeira alienação de uma das fracções autónomas do prédio constituído em propriedade horizontal.

8. Tendo o construtor/vendedor celebrado nessa qualidade o contrato para a prestação de serviços relacionados com a conservação do elevador de edifício, previamente constituído em propriedade horizontal, mas antes do nascimento do condomínio, que entretanto se constituiu, o mesmo agiu como representante sem poderes (art. 268º, nº 1, do CC), podendo, todavia o condomínio ratificar tal negócio jurídico.

9. Deve considerar-se haver ratificação, sendo o condomínio responsável pelo pagamento das dívidas resultantes da conservação dos elevadores, por os ascensores serem parte presumidamente comum do prédio, e os elevadores beneficiarem os condóminos que os usam.

Decisão Texto Integral: I – Relatório

 

1. S (…), Lda., com sede em S. Mamede Infesta, intentou acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos contra Condomínio do Prédio sito na Rua X..., (...) sito em Aveiro, pedindo a condenação deste a pagar - lhe 5.800,32 €, acrescidos dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa supletiva para as dividas comerciais, sobre o capital em divida - 4.723,27 €- , desde a presente data até efectivo e integral pagamento.

Para tanto, alegou que com data de 28 de Fevereiro de 2008, o réu, representado pela administradora provisória, celebrou consigo um contrato de conservação de elevadores, denominado “Contrato de manutenção simples n.º DSC004018”, nos termos do qual, e com a duração inicial de 6 anos, com início a 1 de Março de 2008, a autora se obrigava a prestar os serviços de manutenção dos elevadores. Tendo prestado tais serviços no período compreendido entre 1 de Outubro de 2008 a 31 de Março de 2010, é o réu responsável pelo pagamento das facturas que identifica, que até ao momento não foram integralmente liquidadas, apesar de ter sido interpelado para tanto.

O réu contestou, alegando, no essencial, que não celebrou com a autora qualquer contrato e, nessa medida, não é responsável pela liquidação das facturas. Até 28.2.2008 o construtor era proprietário exclusivo do prédio em regime de propriedade horizontal, pois a 1ª fracção só foi vendida em 29.5.2008, inexistindo, por isso, qualquer condomínio. Foi a Caixa K(...), financiadora da construção, que até à eleição da primeira administração de condomínio, a 5 de Agosto de 2010, suportou o pagamento das despesas comuns do Edifício. Nunca a autora interpelou a administradora do condomínio para pagamento das referidas facturas, desconhecendo se o valor reclamado foi pago.

*

A final foi proferida sentença que julgou totalmente improcedente a acção e absolveu o réu do pedido formulado pela autora.

*

2. A A. interpôs recurso, tendo apresentado as seguintes conclusões:

(…)

 

II - Factos Provados

 

1. A autora é uma sociedade comercial, que tem como actividades principais, o fornecimento, a montagem e a conservação dos elevadores.

2. Com data de 28 de Fevereiro de 2008, a autora celebrou com R (…), na qualidade de construtor, um contrato de conservação de elevadores, denominado “ Contrato de manutenção simples “, junto a folhas 10-17, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

3. Nos termos desse contrato, com a duração inicial de 6 anos, renovável por iguais períodos, a autora obrigava-se a conservar os elevadores instalados no edifício ali identificado.

4. Durante a vigência do contrato, a autora emitiu, no período compreendido entre 1 de Outubro de 2008 a 2 de Janeiro de 2010, a favor do réu as facturas juntas de folhas 18-20, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

5. R (…), na qualidade de construtor, ou alguém em seu lugar, procedeu à liquidação parcial da factura junta a folhas 18, tendo ficado por pagar o montante de €480,00.

6. R (…), na qualidade de construtor, ou alguém em seu lugar, procedeu à liquidação parcial da factura junta a folhas 19, tendo ficado por pagar o montante de €629,77.

7. O réu reuniu-se pela primeira vez a 5 de Agosto de 2010, tendo nessa altura elegido para sua administradora a sociedade P (…)Unipessoal, Lda, conforme acta de folhas 76, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

 

III - Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas (arts. 639º, nº 1, e 635º, nº 4, do NCPC).

Nesta conformidade as questões a resolver são as seguintes.

- Alteração da matéria de facto.

- Ampliação do âmbito do recurso.

- Deve o R. à A. o valor das facturas reclamadas e respectivos juros.

2.1.

 (…)

Não há motivo, assim, para deferir a pretensão da apelante.

2.3. Defende, igualmente, a apelante que se deve dar como provado que o contrato em causa nos autos foi celebrado entre ela A. e o construtor na qualidade de administrador provisório do R. Foi o que a mesma alegou no art. 2º da p.i., tendo todavia a julgadora de facto dado como provado apenas que o contrato foi celebrado entre a A. e R (…), este na qualidade de construtor.

O julgador de facto, na parte da sentença alusiva à convicção do tribunal para responder à matéria de facto, referiu que embora as testemunhas (…) empregado de escritório e responsável pela área de serviços pós-venda da A., respectivamente, tivessem afirmado que o R (…) actuou na qualidade de administrador provisório do condomínio, o tribunal entendeu que o mesmo agiu na qualidade de construtor, pois na altura não havia condomínio constituído. Concordamos com tal conclusão. Vejamos porquê.

Nos termos do art. 1417º, nº 1, do CC, quando o título constitutivo da propriedade horizontal é um negócio jurídico unilateral – declaração do proprietário do edifício – a divisão do mesmo em fracções tem a virtualidade de constituir desde logo tal edifício em fracções jurídicas próprias e independentes, deixando o proprietário de ter um direito único sobre todo o edifício e passando a ter tantos direitos quantas as fracções autónomas (podendo por isso constituir garantias reais, hipoteca, por exemplo, sobre uma ou várias fracções). Neste aspecto, o título constitutivo da propriedade horizontal tem eficácia imediata, ao proceder á autonomização das fracções do edifício.

Mas, como ensina A. Varela (CC Anotado, Vol. III, 2ª Ed., nota 5. ao art. 1417º, pág. 406/407) a declaração negocial unilateral do proprietário do edifício, embora qualificada pela lei como título constitutivo do condomínio, não pode originar, só por si, uma situação plena e acabada de propriedade horizontal, pois esta figura pressupõe uma pluralidade de condóminos diversos, nos termos precisos do art. 1414º do CC, que no caso não existe. Enquanto as várias fracções autónomas pertencerem a uma só pessoa, o regime da propriedade horizontal é obviamente inaplicável, já que não faria qualquer sentido sujeitar o único proprietário às restrições que, segundo a lei ou o título agora em apreciação, limitam o uso das fracções autónomas; e muito menos se poderiam aplicar aqui as regras sobre o uso e administração das partes comuns, pois o regime da comunhão pressupõe necessariamente uma pluralidade de contitulares. Pelo facto, portanto, de ter declarado querer instituir o regime da propriedade horizontal o respectivo dono do edifício não perde a qualidade de proprietário pleno. Ele pode continuar a comportar-se, no uso e fruição do prédio, como verdadeiro dominus, sem ter que respeitar outras restrições.

Assim, quanto a tudo o mais que de uma situação de propriedade horizontal decorre – sujeição de determinadas partes do edifício ao regime de compropriedade, eleição do administrador destas partes comuns, limitações ao uso das fracções autónomas, etc. -, a eficácia do título fica dependente da alienação de, pelo menos, uma das fracções autónomas, já que só nessa altura surgirá a pluralidade de condóminos, pressuposto essencial do regime da propriedade horizontal (citado art. 1414º). A declaração em que o proprietário exprime a vontade de sujeitar o edifício ao regime da p. horizontal tem de considerar-se, pois, nesta medida e para o efeito, um negócio necessariamente sujeito à condição (condicio iuris) da alienação de uma das fracções autónomas do edifício (no mesmo sentido a esmagadora maioria da nossa doutrina, podendo ver-se, por ex., Henrique Mesquita na RDES, ano XXIII, 1976, págs. 97 e segs., L. Carvalho Fernandes, D. Reais, 5ª Ed., pág. 373, Rui Vieira Miller, A Propriedade Horizontal no C. Civil, 3ª Ed., pág. 116/117, e Sandra Passinhas, A assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, 1ª Ed., pág. 290, nota 705).

Significa esta exposição argumentativa que o condomínio só nasce após a primeira alienação de uma das fracções autónomas do prédio constituído em propriedade horizontal.            

Descendo ao nosso caso, verificamos que a p. horizontal foi constituída em Abril de 2007, antes da celebração com a A. do contrato de manutenção dos elevadores, contrato celebrado, em Fevereiro de 2008, pelo referido R (…) na qualidade de construtor do edifício. Mas como a venda da 1ª fracção ocorreu depois, em Maio de 2008, verifica-se que o condomínio efectivamente só se constituiu nessa data e depois daquela data de Fevereiro de 2008, ou seja em data posterior à celebração do dito contrato de prestação de serviços. O que quer dizer, que em Fevereiro de 2008, inexistindo condomínio o mencionado R (…) não podia ser o administrador provisório do condomínio, tal como ele é concebido no art. 1435º-A, nº 1, do CC.

Aliás, esta realidade é confirmada pelas testemunhas referidas (…)  que declaram, no seu depoimento gravado em CD, que à data em que o contrato foi celebrado o R(…) disse que já havia pessoas, mas poucas, a viver nas fracções, mas que não tinha celebrado escrituras ainda com ninguém, não estando constituído o condomínio.

Desta sorte, o referido facto provado 2. tem uma resposta rigorosa por parte da julgadora de facto, inexistindo fundamento para acrescentar ao mesmo, como a recorrente defende, a qualidade de administrador provisório do R., como contratante dos serviços de manutenção de elevadores com a mesma recorrente.

Improcede, assim, a impugnação da matéria de facto nesta parte.       

2.4. Pretende, também, a recorrente que se dê por provado que ela prestou os contratados serviços de manutenção de elevadores, e titulados pelas facturas que juntou com a p.i., conforme alegou e o R. não impugnou.

A recorrente alegou isso mesmo na p.i., no seu art. 10º. A julgadora de facto deu como provado a emissão das facturas (facto 4.), mas estranha e anormalmente nada disse sobre a prestação de serviços de manutenção dos elevadores, se aconteceu ou não, se estava provado ou não provado tal facto.

Na realidade, como diz a apelante, o R. na contestação não impugnou a prestação de serviço de manutenção de elevadores, dizendo apenas que tais serviços foram prestados deficientemente, por os elevadores estarem avariados e com falhas na manutenção (vide arts. 36º a 39º). Assim, a prestação de serviços pela A., segundo o contratado, tem que ser dada como provada, como resulta do art. 490º, nº 1 e 2, do CPC, de onde decorre que se consideram admitidos por acordo os factos que não forem impugnados. A questão da deficiência dos serviços é já outra, que mais abaixo, no ponto 4., será analisada.

Em consequência, adita-se aos factos já acima elencados o inerente facto provado, com a seguinte redacção (a negrito):

10. A A. prestou ao R. os serviços de manutenção de elevadores contratados com R (…), e que deram origem à emissão das facturas referida em 4.    

2.5. Na sentença recorrida deu-se como não provado que a autora tenha instado o réu a pagar as facturas, o que por esta tinha sido alegado no art. 15º da p.i.

Explicitou a julgadora de facto, na respectiva motivação, que tal se deveu à ausência de prova que a esse propósito foi efectuada, pois decorreu do depoimento das testemunhas indicadas pela A. que quem terá sido avisado eventualmente foi o R(…) e não qualquer um dos condóminos. 

Quanto ao ponto em discussão, e com relevo para os autos, resulta do depoimento das testemunhas (…) ambos condóminos, gravados em CD, o que segue (as testemunhas (…) nada de relevo transmitiram sobre este ponto).

A testemunha (…) declarou que as facturas foram para a caixa do condomínio, nunca vieram devolvidas, para além das facturas também foram os avisos de cobrança que é um procedimento normal da empresa, foi até cartas de advogado. Penso até que a nossa advogada terá falado com o Administrador. Lembro-me perfeitamente de ter havido reuniões antes de instaurar o processo e houve mais que um contacto telefónico. Inicialmente ainda houve ali a expectativa de se fazer um acordo, mas depois não sei, o Administrador consultou os condóminos e não sei o que é que se passou ali.

O A (…) referiu que era o R (…)que tinha acesso à correspondência depositada no condomínio.

O (…) disse que a PNP administradora do prédio lhes falou que a S(...)estavam sempre a exigir que se pagasse uma conta qualquer. Têm caixa do correio no condomínio. Chegou a saber que a S(...)estava a interpelar e a chatear para pagar.

Dos depoimentos das aludidas testemunhas, designadamente do (…) resulta que o condomínio foi interpelado para pagar as facturas, já que o condomínio nasceu em Maio de 2008, como atrás vimos, e as facturas foram emitidas no período compreendido entre 1 de Outubro de 2008 a 2 de Janeiro de 2010, respeitantes a serviços do período de 1.10.2008 a 31.3.2010, sendo irrelevante que apenas tivesse elegido o seu primeiro administrador em Agosto de 2010. O que não se apurou foi a altura ou data exacta em que ocorreu a interpelação. Mas como o administrador do condomínio, a PNP, disse que a A. reclamava o pagamento das facturas, é seguro que, pelo menos à data de entrada em juízo da acção (o que aconteceu em 16.5.2012), a interpelação estava efectivada.      

Consequentemente, altera-se a decisão da matéria de facto quanto ao ponto dado por não provado, aditando-se (a negrito) um novo facto provado com a seguinte redacção:

11. A A. interpelou o R. a pagar as facturas, pelo menos em 16.5.2012.

3. No corpo das alegações, pugna o recorrido pela ampliação do objecto do recurso, nos termos do art. 636º, nº 2, do NCPC, para o caso da Relação entender revogar a sentença proferida. Isto, porque a juiz a quo na sua sentença não se pronunciou quanto à qualidade dos serviços prestados, nem ao facto de ter resultado pela prova testemunhal que apenas existiam dois elevadores, quando a recorrente facturou serviços de manutenção relativos a três elevadores, certo que tais factos não foram impugnados pela recorrente. Requereu, por isso, a apreciação da matéria factual respeitante ao cumprimento dos serviços de manutenção dos elevadores do edifício e consequente redução dos valores exigidos.

Efectivamente o citado art. 636º, nº 2, permite que o recorrido impugne a decisão proferida sobre determinados pontos da matéria de facto, não impugnados pelo recorrente, prevenindo a hipótese de procedência das questões por este suscitadas. No nosso caso estaria, assim, em jogo a matéria atinente ao cumprimento defeituoso da prestação de serviços de manutenção dos elevadores, que o R. alegou ter existido na contestação, sobre que não recaiu impugnação da recorrente. Bem como a matéria referente à existência de dois elevadores, quando a recorrente alegou e facturou serviços de manutenção relativos a três elevadores.

Isso não pode acontecer por três razões.

Desde logo quanto ao número de elevadores, vê-se que o recorrido na sua contestação aceitou a existência de 3 elevadores (cfr. art. 36º), tal como alegado pela A./recorrente, pelo que sendo facto assente, por acordo entre as partes, não pode, agora, a recorrida dar o dito por não dito, com base em prova testemunhal, e impugnar um facto que aceitou.

Em segundo lugar, e no que respeita à deficiência dos serviços prestados, cumpre relembrar o que dispõe o art. 640º, nº 3, do NCPC, e o ónus a cargo da parte que impugne a decisão relativa à matéria de facto. Dispõe esse nº 3 que os requisitos legais da impugnação da matéria de facto, estabelecidos nos nºs 1 e 2, têm de ser observados, quando se requer a ampliação do recurso, no que respeita à matéria de facto. Um desses requisitos, logo o primeiro, é que o impugnante tem obrigatoriamente de especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (nº 1, a), do citado 640º). Outro, é a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (nº 1, c), do mesmo artigo). Ora, em lado algum do corpo das alegações, na parte III) dedicada à ampliação do objecto do recurso respeitante à matéria de facto, nem nas conclusões, o recorrido indica quais são os pontos de facto em concreto que quer que sejam apreciados, e qual a decisão que devia ser proferida.

O que se tornava absolutamente necessário, designadamente quanto aos pontos concretos impugnados. Efectivamente, se um dos fundamentos do recurso é o erro de julgamento da matéria de facto, compreende-se que os concretos pontos de facto sobre que recaiu o alegado erro de julgamento tenham de ser devidamente especificados nas alegações do recurso. Importa, pois, que os pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados ou indevidamente desconsiderados sejam devidamente concretizados nas alegações de recurso, pois se aí não forem indicados o tribunal de recurso não poderá tomar conhecimento deles (cfr. Acds. do STJ, de 1.3.2007, Proc.06S3405, de 13.7.2006, Proc.06S1079, e de 8.3.2006, Proc.05S3823, e da Rel. Coimbra, de 13.3.2007, Proc.1877/03.3TBCBR, no indicado sítio).

Por conseguinte, nesta parte a impugnação da matéria de facto tem de ser rejeitada.
Ainda que assim não se entendesse, e em terceiro lugar, diga-se que a impugnação da matéria de facto consagrada no indicado artigo não é uma pura actividade gratuita ou diletante.
Se ela visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorrectamente julgados, ela, sobretudo, tem em última instância um objectivo bem marcado. Possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada ou não provada, ou desconsiderou, para, face à eventual nova realidade a que se chegar, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu. Isto é, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados ou não provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada.  
Se, por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for irrelevante para a solução da questão de direito e para a decisão a proferir, então torna-se inútil a actividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente destituído de qualquer eficácia, por não interferir com a solução de direito encontrada e com a decisão tomada.
Por isso, nestes casos de irrelevância jurídica, a impugnação da matéria de facto não deve ser conhecida sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente (vide A. Geraldes, Recursos em P. Civil, 2ª Ed., pág. 298, e Ac. desta Relação de 12.6.2012, Proc.4541/08.3TBLRA, em www.dgsi.pt).

No caso dos autos, a apreciação da matéria relativa a eventual deficiência dos serviços de manutenção dos elevadores pela recorrente, poderia conduzir à conclusão que houve cumprimento defeituoso do aludido contrato de prestação de serviços pela apelante. O cumprimento defeituoso, previsto genericamente, no art. 799º, nº 1, do CC. Os efeitos específicos do cumprimento defeituoso não vêm definidos nas obrigações em geral. É no capítulo dos contratos em especial que a lei insere algumas disposições especificadamente referidas ao cumprimento defeituoso. De qualquer maneira, a consequência mais importante é a obrigação de ressarcimento dos danos causados ao credor, a seguir, o que pode encontrar-se de mais característico, é, por ex., o direito conferido ao credor, em certos termos, de exigir a reparação ou substituição da coisa (arts. 914º e 1221º, nº 1, do CC); e ainda o direito de redução da contraprestação (arts. 911º, nº 1, e 1222º, nº 1, do CC); disposições que correspondendo a princípios legais podem ser aplicadas analogicamente a outros casos, que não os da compra e venda ou empreitada. Ou ainda a possibilidade de o credor excepcionar o não cumprimento do contrato, nos termos do art. 428º do CC, suspendendo totalmente o cumprimento da sua obrigação ou parcialmente, com redução proporcional da sua contraprestação (vide neste sentido A. Varela, D. Obrigações, Vol. I, 7ª Ed. e II, 2ª Ed., respectivamente págs. 381/382 e 123, e CC Anotado, Vol. I, 3ª Ed., nota 3. ao artigo 428º, pág. 381, A. Costa, D. Obrigações, 6ª Ed., págs. 301/302 e 929/930, e José João Abrantes, a Excepção de Não Cumprimento do Contrato, 1ª Ed., págs. 92/98, 110/118 em especial, e 127/130).    

Ora, a recorrida na sua contestação não deduziu a excepção de não cumprimento do contrato, nem formulou qualquer pedido de redução das quantias a pagar (só agora, mas tardiamente o faz nas contra-alegações de recurso). Assim, quedaria completamente irrelevante a apreciação da referida matéria, já que nenhuma influência pode ter no recurso e na sorte do mérito da causa.

Por tudo o exposto, improcede a pretensão de ampliação do objecto do recurso.        

4. Está provado que a A. celebrou com R (…), na qualidade de construtor, em 28.2.2008, um contrato de conservação de elevadores, obrigando-se a mesma a conservar os elevadores instalados no edifício do R. E que a recorrente prestou tais serviços, tendo emitido, no período compreendido entre 1.10.2008 a 2.1.2010, as correspondentes facturas, que apenas foram pagas parcialmente pelo R. Moreira, tendo ficado por pagar o montante de 4.723,27 €.

À data da celebração do referido contrato, Fevereiro de 2008, a propriedade horizontal já estava constituída, mas o condomínio ainda não, pois como atrás vimos só nasceu em Maio de 2008, sendo irrelevante que só em Agosto de 2010, tivesse eleito administrador. 

Ou seja, quando o contrato foi celebrado com a A. não havia condomínio, pelo que o R(…), embora proprietário de todas as fracções autónomas do edifício, não era o administrador provisório do R. - nos termos em que a lei o prevê no art. 1435º - A, nº 1, do CC, “Se a assembleia de condóminos não eleger administrador e este não houver sido nomeado judicialmente, as correspondentes funções são obrigatoriamente desempenhadas, a título provisório, pelo condómino cuja fracção ou fracções representem a maior percentagem do capital investido, salvo se outro condómino houver manifestado vontade de exercer o cargo e houver comunicado tal propósito aos demais condóminos”, justamente porque não havia ainda condomínio.

O R. Moreira na altura era, por conseguinte, um representante sem poderes (art. 268º, nº 1, do CC), tendo celebrado um contrato ineficaz em relação ao R.

Acontece que as facturas titulando os respectivos serviços de manutenção dos elevadores são posteriores ao nascimento do condomínio, podendo, por isso, o mesmo tê-lo ratificado (com eficácia retroactiva, nos termos do nº 2 do mesmo preceito), ratificação que pode ser tácita, ao abrigo do art. 217º, nº 1, 2ª parte do CC.

Não hesitamos em considerar que existe ratificação, porquanto numa situação deste género impõe-se a existência de elevadores devidamente licenciados, ligados e em funcionamento. Pela mesma ordem de motivos, surge naturalmente necessária a sua manutenção e conservação, elevadores que nos termos do art. 1421º, nº 2, b), do CC, se presumem partes comuns do prédio (cfr. ainda os arts. 1424, nº1 e 4, e 1430º, nº1, do CC).

É, consequentemente, óbvio que o condomínio se encontra vinculado à obrigação de providenciar pela responsabilidade da manutenção e conservação dos elevadores, sendo por demais evidente que é este o beneficiário de tais serviços. Pode ver-se em situação aproximada o Ac. Rel. Coimbra de 17.5.2011, Proc.85960/09.0YIPRT (na situação a construtora/vendedora era já administrador provisório do prédio à data da celebração do contrato de manutenção de ascensores), e numa situação mais radical o Ac. do STJ de 14.9.2010, Proc.4955/07.6TVLSB (que revogou o Ac. Rel. Lisboa citado pelo recorrido nas contra-alegações) com o seguinte sumário “III -Assim, tendo os contratos para a prestação de serviços relacionados com a conservação dos elevadores sido celebrados pela sociedade construtora/vendedora antes da constituição da propriedade horizontal e da venda das fracções, na qualidade de “Administradora Provisória do Edifício”, é o condomínio, que, entretanto se constituiu, responsável pelo pagamento das dívidas resultantes dessa conservação, pois para ele, como representante dos condóminos – que beneficiaram da realização desses serviços – se transmitiram as obrigações decorrentes desses contratos”, pois condenou o condomínio a pagar os montantes de prestação de serviços de ascensores de contrato celebrado ainda antes da constituição da propriedade horizontal, ambas as referidas decisões em www.dgsi.pt.

Desta sorte, tendo a A. prestado os aludidos serviços tem direito a receber a quantia reclamada de 4.723,27 €, a coberto do contratado e dos arts. 1154º, 1156º, 1158º, nº1 e 2, do CC, e o R. de pagar tal quantia face aos arts. 1167º, b), 406º, nº 1, 798º e 799º, nº 1, do CC.

Quanto aos juros vencidos é que não pode ser concedido o pagamento reclamado pela A. de 1.077,05 €, à taxa legal comercial sucessivamente em vigor para as dívidas comerciais, calculados desde a data indicada em cada uma das facturas, pois não se tendo provado que o prazo de pagamento era certo os juros só são devidos desde a interpelação extrajudicial que no caso pelo menos ocorreu em 16.5.2012 (facto 11.) conforme decorre das disposições combinadas dos arts. 804º, 805º, nº 1 e 2, a), 806º e 559º do CC e 102º § 3 do C. Comercial.       

5. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) Na elaboração do acórdão, a Relação, nos termos do art. 607º, nº 4, 2ª parte, do NCPC, ex vi do art. 663º, nº 2, do mesmo diploma, deve tomar em consideração os factos provados por acordo ou por documentos;

ii ) Não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o (s) facto (s) concreto (s) objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente;

iii) Quando o recorrido requer a ampliação do âmbito do recurso, no que respeita à matéria de facto, também tem de respeitar os requisitos legais atinentes à impugnação da matéria de facto, nos termos combinados dos arts. 636º, nº 2, e 640º, nº 3, do NCPC, nomeadamente especificando os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados ou indevidamente desconsiderados e qual a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre tais pontos de facto, sob pena de rejeição;

iv) Constituída a propriedade horizontal por negócio jurídico – declaração unilateral do construtor do edifício -, nos termos do art. 1417º, nº 1, do CC, fica efectuada a divisão do mesmo, com a virtualidade de constituir desde logo tal edifício em fracções jurídicas próprias e independentes, deixando o proprietário de ter um direito único sobre todo o edifício e passando a ter tantos direitos quantas as fracções autónomas; neste aspecto, o título constitutivo da propriedade horizontal tem eficácia imediata, ao proceder à autonomização das fracções do edifício;

v) Mas a declaração negocial unilateral do proprietário do edifício, embora qualificada pela lei como título constitutivo do condomínio, não pode originar, só por si, uma situação plena e acabada de propriedade horizontal, pois esta figura pressupõe uma pluralidade de condóminos diversos, nos termos do art. 1414º do CC;

vi) Assim, quanto a tudo o mais que de uma situação de propriedade horizontal decorre – sujeição de determinadas partes do edifício ao regime de compropriedade, eleição do administrador destas partes comuns, limitações ao uso das fracções autónomas, etc. -, a eficácia do título fica dependente da alienação de, pelo menos, uma das fracções autónomas, já que só nessa altura surgirá a pluralidade de condóminos, pressuposto essencial do regime da propriedade horizontal (citado art. 1414º);

vii) A declaração em que o proprietário exprime a vontade de sujeitar o edifício ao regime da p. horizontal tem de considerar-se, portanto, nesta medida e para o efeito, um negócio necessariamente sujeito à condição (condicio iuris) da alienação de uma das fracções autónomas do edifício, significando isto que o condomínio só nasce após a primeira alienação de uma das fracções autónomas do prédio constituído em propriedade horizontal;            

viii) Tendo o construtor/vendedor celebrado nessa qualidade o contrato para a prestação de serviços relacionados com a conservação do elevador de edifício, previamente constituído em propriedade horizontal, mas antes do nascimento do condomínio, que entretanto se constituiu, o mesmo agiu como representante sem poderes (art. 268º, nº 1, do CC), podendo, todavia o condomínio ratificar tal negócio jurídico;

ix) Deve considerar-se haver ratificação, sendo o condomínio responsável pelo pagamento das dívidas resultantes da conservação dos elevadores, por os ascensores serem parte presumidamente comum do prédio, e os elevadores beneficiarem os condóminos que os usam.

IV – Decisão

 

Pelo exposto, julga-se, parcialmente, procedente o recurso da A., assim se revogando a decisão recorrida, e, consequentemente, condena-se o R. a pagar-lhe a quantia de 4.723,27 €, acrescida de juros de mora calculados sobre tal quantia, à taxa supletiva para as dívidas comerciais, desde 16.5.2012 até integral pagamento.  

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Custas pela recorrente e recorrida na proporção do vencimento/decaimento. 

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Coimbra, 27.5.2014

Moreira do Carmo ( Relator )

Fonte Ramos

Inês Moura