Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
75/13.2GTCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: OMISSÃO DE AUXÍLIO
Data do Acordão: 04/05/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (J L CRIMINAL – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 200.º DO CP
Sumário: I - Trata-se, na sua forma simples [crime de omissão de auxílio], de um crime comum – pois pode ter por agente qualquer pessoa – e de um crime específico impróprio, na sua forma qualificada – pois só pode ter por agente o causador do perigo, de um crime de perigo concreto – pois a verificação do perigo é elemento constitutivo do tipo –, um crime de omissão pura – pois traduz-se na omissão de uma conduta exigida pela lei, esgotando-se na própria inobservância da norma – e de um crime de mera actividade – pois é irrelevante para o preenchimento do tipo a verificação de um resultado lesivo – que, tendo como fundamento da incriminação a solidariedade social, tutela os bens jurídicos vida, integridade física e liberdade.

II - O condutor de veículo automóvel ligeiro que atropela um peão o qual, por força do embate, é projectado contra outro peão, fazendo com que ambos caiam no chão e sofrendo ambos traumatismos exigindo socorro médico imediato, criou, de imediato, perigo para a saúde, integridade física e mesmo, vida, dos dois.

III - Mostrando-se verificado o perigo concreto para a vida das ofendidas decorrente da situação causada pela condução do arguido, e tendo este prosseguido de imediato a marcha, apesar de consciente do que acabava de acontecer e da situação em que aquelas ficavam, sem que, dolosamente, tenha promovido o socorro que se impunha, quanto mais não fosse, chamar ou diligenciar pela chamada de socorro medido urgente, resta concluir que, face aos factos provados que constam da sentença recorrida, cometeu também o arguido, em concurso efectivo, dois crimes de omissão de auxílio, p. e p. pelo art. 200.º, n.ºs 1 e 2 do C. Penal.

Decisão Texto Integral:







Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

 

I. RELATÓRIO

No Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra – Coimbra – Instância Local – Secção Criminal – J2, mediante despacho de pronúncia, foi submetido a julgamento, em processo comum com intervenção do tribunal singular, o arguido A...., com os demais sinais nos autos, a quem era imputada a prática, em autoria material e concurso efectivo, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos arts. 137º, nº 1 e 69º, nº 1, a), do C. Penal, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art. 148º, nº 1 e 69º, nº 1, a), do C. Penal, de dois crimes de omissão de auxílio, p. e p. pelo art. 200º, nº 2 do C. Penal, e das contra-ordenações p. e p. pelos arts. 13º, nºs 1 e 3 e 25º, nºs 1, d) e 2, do C. da Estrada.

  O assistente B... , C... e D... deduziram pedido de indemnização civil contra a companhia de seguros G... , SA, com vista à sua condenação no pagamento da quantia de € 360.568,30.

  O Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, EPE, deduziu pedido de indemnização contra a companhia de seguros G... , SA, com vista à sua condenação no pagamento da quantia de € 112,07, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos.

  Em consequência de acordo extrajudicial, por despacho então proferido, foi declarada extinta a instância, relativamente aos pedidos de indemnização civil formulados.

  Por sentença de 31 de Março de 2016, foi o arguido absolvido da prática dos imputados crimes de omissão de auxílio e da prática das imputadas contra-ordenações e condenado, pela prática do imputado crime de homicídio por negligência, na pena de dois anos e dois meses de prisão e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de um ano e seis meses, pela prática do imputado crime de ofensa à integridade física por negligência, na pena de um ano de prisão e na pena acessória de conduzir veículos com motor pelo período de um ano, e em cúmulo, na pena única de três anos de prisão, suspensa na respectiva execução pelo mesmo período, com regime de prova, e ainda nas decretadas penas acessórias, a cumprir sucessivamente, no período total de dois anos e seis meses.


*

  Inconformada com a decisão, recorreu a Digna Magistrada do Ministério Público, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

  1. No âmbito dos presentes autos, o arguido A... foi acusado, além do mais, da prática de dois crimes de omissão de auxílio, ilícito penal previsto e punido pelo artigo 200.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.

2. Proferiu o Tribunal a quo douta sentença condenatória e absolutória, na qual, além do mais, absolveu o arguido da prática dos aludidos crimes.

3. Considera-se, porém, que a conduta do arguido configura, efectivamente, e no que para aqui releva, a prática de dois crime de omissão de auxílio, pelo que deveria ter sido este condenado em conformidade.

4. O Meritíssimo Juiz logrou apreciar sem mácula o acervo probatório produzido, dando como provado, e bem, que o arguido se havia apercebido de que tinha embatido em uma ou mais pessoas que seguiam na berma e que estas teriam sofrido traumatismos e necessitavam de socorro médico imediato, mas que, não obstante, prosseguiu a sua marcha, procurando afastar-se do local para assim se eximir às responsabilidades advenientes dos seus actos.

5. Sendo estes os factos provados, dúvidas não restam a respeito da consumação do crime, pelo arguido, relativamente a ambas as vítimas.

6. Exige o tipo legal consagrado no artigo 200.º, do Código Penal, a necessidade do auxílio, aferida por meio de um concreto juízo de prognose póstuma ex ante, em que o decisor se coloca na posição do agente no momento da prática dos factos e avalia se tal auxílio, para o observador agente, se afigurava como útil ou não à vítima.

8. Pelo que, em conformidade, não pode deixar de considerar-se que o arguido deve também ser condenado pela prática, em concurso efectivo real, de dois crimes de omissão de auxílio, em autoria material e forma consumada, ilícito criminal previsto e punido pelos artigos 14.º, 26.º, 30.º, n.º 1, 2.ª parte, e 200.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código Penal.

9. Ao ter decido de forma diversa, violou a sentença a quo o disposto no artigo 200.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.

10. Razão pela qual deverá ser substituída por outra condene o arguido, para além dos ilícitos criminais pelos quais já foi condenado no âmbito dos presentes autos, pela prática, em concurso efectivo real, de dois crimes de omissão de auxílio, em autoria material e forma consumada, ilícito criminal previsto e punido pelos artigos 14.º, 26.º, 30.º, n.º 1, 2.ª parte, e 200.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código Penal, em pena julgada adequada, necessária à gravidade dos mesmos e necessária à salvaguarda das exigências cautelares de prevenção geral e especial que no caso se impõem.

TERMOS EM QUE DEVE SER DADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO, ASSIM SE FAZENDO COMO É DE JUSTIÇA.


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  Igualmente inconformado com a decisão, recorreu o assistente B... , formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

  I. – No âmbito dos presentes autos, o arguido A... foi acusado, além do mais, da prática de dois crimes de omissão de auxílio, ilícito previsto e punido pelos n.ºs 1 e 2 do art.º 200.º do Código Penal.

II. – Proferiu o Tribunal "a quo" douta sentença condenatória e absolutória, na qual, para além das condenações aplicadas no que à prática de um crime de homicídio negligente e de outro de ofensa à integridade física negligente, absolveu o arguido da prática daqueles dois crimes de omissão de auxílio.

III. – Reputa-se, no entanto, que aquela conduta do arguido, para além da prática dos crimes do qual vem condenado, efectivamente, e para o que importa no Recurso em apreço, traduz também a prática de dois crimes de omissão de auxílio, pelo que aquele arguido do mesmo modo deveria ter sido condenado em conformidade.

IV. – O Tribunal "a quo" apreciou, sem qualquer mancha, a prova produzida, dando como provado que o arguido se havia apercebido de que tinha embatido numa ou mais pessoas que seguiam na berma e que estas sofreram traumatismos e necessitavam de um socorro médico imediato, mas que,

  V. – Apesar disto, prosseguiu a sua marcha, procurando afastar-se irremediavelmente do local para assim se eximir às responsabilidades resultantes da sua conduta.

VI. – Tendo sido provados tais factos, nada mais se logra necessário provar e demonstrar a consumação "ipso facto" dos dois crimes, relativamente às vítimas indefesas E... e F... .

VII. – Exige o tipo legal do crime de omissão de auxílio, consagrado no art.º 200.º do C. P., a necessidade do auxílio, aferida por meio de um concreto juízo de prognose póstuma ex ante, em que o julgador se coloca na posição do agente no momento da prática dos factos e avalia se tal auxílio, para o observador agente, se afigurava útil ou não à vitima.

VIII – Daqui resultando que, em conformidade, não pode deixar de se considerar que o arguido deve também ser condenado pela prática, em concurso efectivo real, de dois crimes de omissão de auxílio, em autoria material e de forma consumada, ilícito típico previsto e punido pelas normas dos art.ºs 14.º, 26.º, 30.º, n.º 1 II.ª parte e 200.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código Penal.

IX. – Ao não ter considerado o arguido como condenado pela prática dos dois crimes de omissão de auxílio, violou a sentença ora recorrida o disposto no art.° 200.º, n.ºs 1 e 2 do C.P.

X. – Daqui que entenda o ora assistente e Recorrente que aquela sentença recorrida deverá ser substituída por outra que condene o arguido também por estes dois crimes de omissão de auxílio, para além dos ilícitos criminais e contra-ordenacional em que já foi condenado no âmbito dos presentes autos, pela prática em concurso efectivo real, de dois crimes de omissão de auxílio, em autoria material e de forma consumada, ilícito típico previsto e punido pelas normas dos art.ºs 14.º, 26.º, 30.º, n.º 1 II.ª parte e 200.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código Penal,

XI. – Em pena adequada e necessária à gravidade dos mesmos, bem como à salvaguarda das exigências cautelares de prevenção geral e especial que no caso se impõem,

XII. – A qual só se poderá traduzir numa PENA EFECTIVA DE PRISÃO.

Termos em que, recebidas as presentes alegações de Recurso, se requer aos Venerandos Desembargadores,

A Procedência do presente Recurso, revogando-se a douta sentença recorrida.


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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, acompanhando a argumentação da motivação do Ministério Público e da motivação do assistente, esta, na parte em que respeita à pretendida condenação pela prática dos crimes de omissão de auxílio, e concluiu pela procedência dos recurso quanto á pretensão da condenação do arguido pelo cometimento de dois crimes de omissão de auxílio.

 

  Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

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Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

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  II. FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pela Digna Magistrada do Ministério Público e pelo assistente, a questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, é a de saber se está ou não preenchido o tipo do crime de omissão de auxílio imputado ao arguido e, na afirmativa, as respectivas consequências jurídicas.


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  Para a resolução destas questões importa ter presente o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim:

  A) Nela foram considerados provados os seguintes factos:

  “ (…).

  1 – No dia 06 de Agosto de 2013, pelas 06h20, no IC2, junto ao Km 180,6, em Cernache, Coimbra, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula GE... ;

2 – Seguindo no sentido Sul – Norte;

3 – E ocupando a hemi-faixa de rodagem relativa a este sentido de marcha;

4 – Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, E... e F... seguiam a pé;

5 – No sentido Norte – Sul;

6 – E integradas num grupo de pessoas que seguiam a pé, em peregrinação, em direcção a Fátima;

  7 – Todos os elementos deste grupo caminhavam pela berma esquerda da via, atento o sentido Norte – Sul [visto o sentido seguido pelo arguido, pela berma que se apresentava à direita do arguido];

8 – Os peregrinos faziam uso de colete reflector;

9 – A via, no local, tem visibilidade e não apresenta obstáculos, atento o sentido de marcha seguido pelo arguido;

10 – Na referida época do ano, são frequentes os grupos de peregrinos seguirem a pé, com destino a Fátima, e pela berma daquela faixa de rodagem;

11 – Naquele local, existe, nas proximidades, um entroncamento, do lado direito da via, atento o sentido de marcha tomado pelo arguido;

12 – O arguido seguia desatento ao que o rodeava;

13 – O arguido tinha-se levantado, pelo menos, até às 10H00 do dia anterior;

14 – E ainda não tinha dormido, mantendo-se acordado e sem qualquer período de descanso desde então;

15 – Ao passar o referido entroncamento, o arguido deixou-se dormir ao volante, mantendo a marcha do veículo;

16 – O veículo seguiu, por isso, sem governo;

17 – O veículo começou a derivar para a sua direita;

18 – Saindo da via de trânsito;

19 – Invadindo a via de aceleração existente à respectiva direita;

20 – E, depois, a berma situada à sua direita;

21 – Por onde, na ocasião, seguia a pé e em sentido contrário, o referido grupo de peregrinos;

22 – O veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula GE... veio a embater em E... ;

23 – A qual foi projectada contra F... ;

24 – Caindo ambas para o solo;

25 – Não conseguindo aquelas fugir à trajectória do veículo e ao subsequente embate;

26 – O embate ocorreu na berma direita da via, atento o sentido seguido pelo arguido;

27 – Com o estrondo do embate, o arguido acordou;

28 – Apercebeu-se de que se encontrava na berma e não na via de trânsito;

29 – E que, na berma, seguiam várias pessoas;

30 – E que tinha embatido em uma ou em mais de uma delas;

31 – As quais teriam sofrido traumatismos que necessitavam de socorro médico imediato;

32 – O arguido não parou;

33 – Retomou a via de trânsito e prosseguiu a sua marcha;

34 – Procurando afastar-se do local do embate o mais depressa possível, ali deixando E... e F... entregues ao seu destino;

35 – E, assim, pretendendo eximir-se às responsabilidades dos seus actos;

36 – Em consequência do embate e da queda que se lhe seguiu, resultou, para E... : as lesões examinadas e descritas no auto e relatório de autópsia constante de fls. 305 a 312, cujo teor aqui se dá como integralmente reproduzido;

37 – As quais lhe determinaram a morte;

38 – Em consequência do embate e da queda que se lhe seguiu, resultou, para F... , dores e bem as lesões examinadas e descritas nos autos de exame médico constantes de fls. 323 a 325, cujo teor aqui se dá como integralmente reproduzido;

39 – O arguido quis manter a condução do veículo sabendo-se exausto e sonolento, carecendo de descansar;

40 – O arguido conhecia as características daquela via e das proximidades de locais onde habitualmente seguem pessoas a pé e na berma, com intenso trânsito de viaturas e pessoas;

41 – Sabendo que, daquele modo, poderiam resultar riscos de embate com outros utentes da via e, assim, para as suas vidas, mas confiando que tal não sucederia;

42 – O arguido agiu de modo livre, deliberado e consciente, querendo deixar E... e F... no local, sem ajuda, sem pedir ou se certificar que alguém chamava o socorro médico necessário, nem sinalizando o local do embate, a fim de minimizar riscos de novos acidentes;

43 – O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei;

44 – O arguido não tem inscrita, no seu registo criminal, qualquer condenação;

45 – O arguido é titular de carta de condução da carta de condução da categoria B desde 12/03/2010;

46 – O arguido não tem inscrita qualquer condenação, no respectivo registo individual de condutor.

(…)”.

  B) Inexistem factos não provados e dela consta a seguinte fundamentação quanto aos crimes de omissão de auxílio:

  “ (…).

  Buscando a tutela da vida, da integridade física e da liberdade e fundado na "solidariedade humana que a todos e a cada um nos obriga, em determinadas situações de perigo, para com o outro" [Américo Taipa de Carvalho – Comentário Conimbricense do Código Penal, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias. Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 848], sob a epígrafe "omissão de auxílio", o art.º 200.º, n.º 1, do Cód. Penal, sanciona criminalmente o comportamento de "quem, em caso de grave necessidade, nomeadamente provocada por desastre, acidente, calamidade pública ou situação de perigo comum, que ponha em perigo a vida, a integridade física ou a liberdade de outra pessoa, deixar de lhe prestar o auxílio necessário ao afastamento do perigo, seja por acção pessoal, seja promovendo o socorro", estabelecendo o n.º 2 do mesmo art.º moldura penal agravada "se a situação referida no número anterior tiver sido criada por aquele que omite o auxílio devido".

Esta incriminação enquadra-se na categoria dogmática dos denominados crimes de perigo (classificação doutrinária contraposta àqueloutra dos crimes de dano, os quais exigem, para o preenchimento do respectivo tipo, uma lesão do bem jurídico que visam proteger) [um estudo aprofundado sobre os crimes de perigo pode ler-se em José de Faria Costa – O Perigo em Direito Penal, Coimbra, 1992], em que o legislador antecipa a tutela penal para um momento anterior à produção do dano nos bens jurídicos protegidos. E exige o crime a concretização do perigo (e por isso se enquadra na categoria dogmática dos chamados crimes de perigo concreto), isto é, não basta um perigo abstractamente considerado, presumido iuris et de iure pelo legislador (como nos crimes de perigo abstracto), mas é essencial que esse perigo, por algum modo, se manifeste.

Conforme bem se escreve no Ac. da Relação do Porto de 25/02/2004, "… a produção do perigo tem de ser constatada pelo juiz. Por perigo deve entender-se um estado desacostumado e anormal no qual para um observador atento pode aparecer como provável à vista das concretas circunstâncias actuais a produção de um dano cuja possibilidade resulta evidente" [ac. da Relação do Porto de 25/02/2004 – CJ 2004, Tomo I, p. 219].

Pressupõe, pois, este tipo legal de crime, uma situação objectiva de perigo para os bens jurídicos no mesmo enunciados (vida, integridade física, liberdade) e que se trate de um perigo iminente de lesão substancial dos referidos bens jurídicos, ficando, assim, fora do seu âmbito, as situações de perigo de leves lesões da integridade física ou da liberdade [Américo Taipa de Carvalho – Comentário Conimbricense do Código Penal, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 849]. 

 Essencial, outrossim, ao preenchimento típico objectivo desta norma incriminatória é a possibilidade fáctica de o omitente poder realizar, na situação concreta, a conduta adequada e indispensável à remoção do perigo, tal se aferindo em termos de adequação causal (cfr. art.º 10.º, n.º 1, do Código Penal), levando-se a cabo um juízo de prognose póstuma, convocando o critério do homem médio do círculo de actividade do omitente colocado na sua posição.

A prestação desse auxílio necessário pode traduzir-se em uma acção pessoal ou na promoção do socorro, dependendo do circunstancialismo do caso concreto e das capacidades e possibilidades do prestador do auxílio.

A situação de ingerência contemplada no n.º 2 do art.º 200.º do Código Penal não se confunde com a ingerência fundamentadora do dever de garante do art.º 10.º, n.º 2, do mesmo compêndio substantivo ("A comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado"), restringindo-se às situações em que não se verifica o resultado tipicamente relevante ou em que o perigo criado não é adequado a provar o resultado; em que a situação de perigo criada pelo omitente se encontra a coberto de uma causa de justificação (à excepção do direito de necessidade e da legítima defesa quando a necessidade de defesa não foi provocada pelo omitente); em que a situação de perigo foi criada para o agressor inimputável em consequência de uma acção defensiva do agredido ou de um seu auxiliar; em que o entre o agressor e o defendente exista um dever de garante [continuamos a seguir de perto o comentário de Américo Taipa de Carvalho – Ob. cit., pp. 849 e 850].

Gizado este quadro, temos por certo que estamos perante uma situação de grave necessidade, cuja foi gerada pela actuação do arguido.

Pegando nas palavras do Ac. do STJ de 29/01/2003, "no caso do art. 219.º [a correspondente norma do Código Penal de 1982 ao actual art. o 200.º] a situação de necessidade decorre de um processo fáctico que, pelo menos a partir de determinado momento, não pode ser controlado pela vítima. Necessidade no sentido do preceito pressupõe, assim, a impossibilidade de por si só afastar o perigo que ameaça bens jurídicos pessoais, isto é, a incapacidade de desenvolver a actividade de defesa adequada às circunstâncias. A necessidade deve ainda ser grave. Gravidade que subentende um elemento quantitativo, podendo traduzir-se pela existência de consideráveis sinais exteriores facilmente percepcionados por qualquer pessoa, e um elemento qualitativo, que se manifesta na seriedade e premência do estado de necessidade. O que implica, portanto, a urgência da actuação, atentas as graves consequências que desse estado poderão advir para o necessitado. Caso de grave necessidade, para efeitos do art. 219.º é a situação de emergência em que se encontra um ser humano, carecendo em absoluto de uma intervenção alheia, adequada a afastar o perigo que ameaça bens jurídicos pessoais, que por si só é incapaz de superar" [ac. do STJ de 29/01/2003, Proc.º Nº 02P4426, www.dgsi.pt]. 

Porém, por um lado, ficou demonstrada a ocorrência da lesão da vida de um dos peões e da integridade física do outro, como decorrência do comportamento do arguido, portanto, a verificação do resultado de dano que o tipo legal de crime de perigo visa evitar.

Por outro lado, não ficou demonstrado, em termos factuais concretos, como seria imperioso, o perigo concreto, sendo, para tanto, necessário, v.g., que se demonstrasse, efectivamente, que dos ferimentos sofridos nas vítimas, designadamente, o agravamento das lesões decorrente da não prestação atempada de cuidados de saúde.

            Em síntese, o comportamento do arguido não deixa de ser ética e moralmente censurável, à luz do genérico dever de solidariedade que cada ser humano tem para com o seu semelhante, sobretudo, estando nele próprio a causação da situação em que a vítima se encontrou, contudo, tal censura não poderá ser de natureza penal (de ultima ratio, relembre-se), em termos de preenchimento dos respectivos pressupostos do tipo-de-ilícito, sem prejuízo, naturalmente, de tal conduta relevar em sede de determinação da medida concreta da pena, ex vi art.º 71.º, n.º 2, al. e), do Código Penal.

Improcede, portanto, nesta parte, a acusação.

(…)”.


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Do preenchimento ou não do tipo do crime de omissão de auxílio

1. Como decorre do que supra se deixou relatado, questão comum a ambos os recursos, e fulcral para a sua sorte, é a de saber se, face aos factos provados que constam da sentença recorrida – que teremos que considerar definitivamente fixados, uma vez que nenhum dos recorrentes impugnou a decisão proferida sobre a matéria de facto e a sentença não evidencia estar afectada por qualquer dos vícios da decisão, previstos no art. 410º, nº 2 do C. Processo Penal – está ou não preenchido, por duas vezes, o tipo do crime de omissão de auxílio, p. e p. pelo art. 200º, nºs 1 e 2 do C. Penal portanto, questão exclusivamente de direito.

Na sentença recorrida entendeu-se que não se mostra preenchido o tipo legal por não estar demonstrada a existência do perigo concreto. Oposta é a posição de ambos os recorrentes.

Vejamos, então, em nosso entender, a quem assiste razão.

2. Integrado no Livro II – Parte Especial, Título I – Dos Crimes Contra as Pessoas, Capítulo VIII, Dos crimes contra outros bens jurídicos pessoais, e com a epígrafe «Omissão de auxílio», dispõe o art. 200º do C. Penal:

1 – Quem, em caso de grave necessidade, nomeadamente provocada por desastre, acidente, calamidade pública ou situação de perigo comum, que ponha em perigo a vida, a integridade física ou a liberdade de outra pessoa, deixar de lhe prestar auxílio necessário ao afastamento do perigo, seja por acção pessoal, seja promovendo o socorro, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.

2 – Se a situação referida no número anterior tiver sido criada por aquele que omite o auxílio devido, o omitente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.

3 – A omissão de auxílio não é punível quando se verificar grave risco para a vida ou integridade física do omitente ou quando, por outro motivo relevante, o auxílio lhe não for exigível.    

Trata-se, na sua forma simples, de um crime comum – pois pode ter por agente qualquer pessoa – e de um crime específico impróprio, na sua forma qualificada – pois só pode ter por agente o causador do perigo, de um crime de perigo concreto – pois a verificação do perigo é elemento constitutivo do tipo –, um crime de omissão pura – pois traduz-se na omissão de uma conduta exigida pela lei, esgotando-se na própria inobservância da norma – e de um crime de mera actividade – pois é irrelevante para o preenchimento do tipo a verificação de um resultado lesivo – que, tendo como fundamento da incriminação a solidariedade social, tutela os bens jurídicos vida, integridade física e liberdade.

São elementos constitutivos do respectivo tipo base (nº 1 do art. 200º do C. Penal):

[Tipo objectivo]

- A verificação de caso de grave necessidade [provocado por desastre, acidente, calamidade pública, situação de perigo comum ou outra situação idêntica], que ponha em perigo a vida, a integridade física ou a liberdade de outra pessoa;

- A falta, pelo agente, da prestação do auxílio necessário ao afastamento do perigo [seja através de acção pessoal, seja promovendo o socorro por terceiro];

[Tipo subjectivo]

- O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade [em qualquer das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal].

No tipo qualificado (nº2 do art. 200º do C. Penal), acresce, como elemento do tipo objectivo:

- Que a verificação de caso de grave necessidade tenha sido criada pelo agente, omitente do auxílio devido.

Deste modo, o cometimento do crime pressupõe:

- A incapacidade da vítima, por si só, afastar o perigo iminente de lesão importante dos bens jurídicos, revelada pela existência de sinais apreensíveis por qualquer pessoa, da necessidade urgente de actuação na prestação do auxílio [os casos de grave necessidade];

- A percepção pelo agente a actualidade e idoneidade de um determinado acontecimento de facto para ameaçar a integridade dos bens jurídicos tutelados [o perigo concreto];

- A não realização dos actos que se revelavam como adequados e necessários ao afastamento do perigo de lesão dos bens jurídicos tutelados [omissão da conduta devida], através de um juízo de prognose ex ante, radicado nas circunstâncias concretas do caso e na conduta do bonus pater familiae, com os conhecimentos do agente;

- O conhecimento pelo agente da situação de grave necessidade, do perigo que recai sobre a vítima e da possibilidade de actuar no sentido exigido pela norma, e a vontade de omitir o auxílio imposto pela norma [o dolo].

Por outro lado, a verificação do dano não releva para o preenchimento do tipo, sendo o agente punido porque omitiu o auxílio devido e não, porque não impediu o resultado danoso que, entretanto, sobreveio.

3. Revertendo para a questão sub judice, em síntese, temos provado que:

- No dia 6 de Agosto de 2013, pelas 6h20, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula GE... , no IC2, ao km 180,6, no sentido Sul – Norte, pela metade direita da faixa de rodagem, atento o referido sentido;

- Nas mesmas circunstâncias de tempo e de lugar, integradas num grupo de peregrinos que se dirigia para Fátima, as ofendidas E... e F... , caminhavam pela berma do lado esquerdo, atento o sentido Norte – Sul, que era o seu, e usando coletes reflectores;

- O arguido, que não dormia desde as 10h do dia anterior e sabia estar exausto, sonolento e carecido de descanso, adormeceu ao volante do GE que começou a derivar para a direita, atento o sentido em que seguia, invadiu a berma do mesmo lado e aí foi embater na ofendida E... que foi projectada contra a ofendida F... , caindo ambas no chão;

- Com o barulho do embate o arguido acordou, deu conta de que se encontrava na berma, que tinha embatido em uma ou mais pessoas, as quais teriam sofrido traumatismos que careciam de imediato socorro médico, contudo, não parou, retomou a metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido em que seguia, e prosseguiu viagem, afastando-se do local, e deixando as ofendidas entregues à sua sorte;

- Em consequência do embate do GE e da queda que se lhe seguiu, a ofendida E... sofreu as lesões examinadas e descritas no relatório da autópsia, que lhe determinaram a morte;

- Em consequência da projecção da E... e da queda por ela provocada, a ofendida F... sofreu dores e as lesões examinadas e descritas nos relatórios de exame médico-legal juntos aos autos;

- O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, quis deixar as ofendidas no local sem ajuda, sem pedir ou se assegurar que alguém pedia o socorro médico necessário, e sabia que a sua conduta era proibida por lei.

Considerando a remissão que é feita para o relatório da autópsia, temos que a ofendida E... sofreu, além do mais, lesões traumáticas torácicas – fractura do esterno, fractura da 2ª, 3ª, 4ª, 5ª e 6ª costelas direitas, fractura da 2ª e 3ª costelas esquerdas, laceração do saco pericárdico, intensa infiltração sanguínea peri-aórtica, intensa infiltração sanguínea peri veia cava superior, e infiltração sanguínea em ambos os pulmões com colapso dos dois – que foram causa adequada da sua morte. Por outro lado, quer do relatório da autópsia, quer de fls. 103 – verificação do óbito por médico do Instituto Nacional de Emergência Médica – resulta que a vítima foi sujeita a manobras de reanimação durante mais de trinta minutos o que significa, até porque o socorro não pôde deixar de demorar algum tempo, por curto que fosse, ao local do acidente, que a morte da vítima não ocorreu imediatamente após o atropelamento. 

Dito isto, temos por seguro que o agente, condutor de veículo automóvel ligeiro que atropela um peão o qual, por força do embate, é projectado contra outro peão, fazendo com que ambos caiam no chão e sofrendo ambos traumatismos exigindo socorro médico imediato, criou, de imediato, perigo para a saúde, integridade física e mesmo, vida, dos dois.

Aliás, tanto assim é, tão real foi o perigo para a vida criado, que o resultado morte sobreveio, relativamente a um dos peões, sendo certo que, como supra se deixou dito, a sua verificação é indiferente para o preenchimento do tipo em análise. Na verdade, como nota Taipa de Carvalho, o crime de omissão de auxílio pode ser cometido mesmo quando, no momento da omissão do auxílio, este já ser objectivamente inútil, v.g., por o sinistrado já estar morto, tudo dependendo, na formulação do juízo de prognose ex ante, de ser evidente ou não, para o homem médio, a inutilidade do auxílio (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª Edição, 2012, Coimbra Editora, pág. 1239).

Assim, mostrando-se verificado o perigo concreto para a vida das ofendidas decorrente da situação causada pela condução do arguido, e tendo este prosseguido de imediato a marcha, apesar de consciente do que acabava de acontecer e da situação em que aquelas ficavam, sem que, dolosamente, tenha promovido o socorro que se impunha, quanto mais não fosse, chamar ou diligenciar pela chamada de socorro medido urgente, resta concluir que, face aos factos provados que constam da sentença recorrida, cometeu também o arguido, em concurso efectivo, dois crimes de omissão de auxílio, p. e p. pelo art. 200º, nºs 1 e 2 do C. Penal.

Com o que, procedem os recursos.


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Das consequências jurídicas dos cometidos crimes de omissão de auxílio

4. Como é sabido, prevenção e culpa são os factores a ter em conta na aplicação da pena e determinação da sua medida (art. 40º, nºs 1 e 2 do C. Penal), reflectindo a primeira a necessidade comunitária da punição do caso concreto e constituindo a segunda, dirigida ao agente do crime, o limite inultrapassável da pena (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 214 e ss.), donde, toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, 2ª Reimpressão, 2012, Coimbra Editora, pág. 84). 

Muito frequentemente a determinação da pena, entendida em sentido amplo, passa pela operação da respectiva escolha, assim acontecendo, desde logo, quando o crime é punido, em alternativa, com pena privativa e com pena não privativa da liberdade. Nestes casos, o critério de escolha da pena encontra-se fixado no art. 70º do C. Penal segundo o qual, o tribunal deve dar preferência à pena não privativa da liberdade, sempre que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição portanto, as finalidades de prevenção, geral e especial.

Os crimes de omissão de auxílio qualificado, praticados pelo arguido, são puníveis com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias. Há assim que proceder à operação de escolha da pena.

O arguido não tem antecedentes criminais nem cadastro rodoviário.

Não vem provada qualquer conduta do arguido reveladora de ter interiorizado o desvalor da sua conduta e a necessidade do seu sancionamento penal.

Há que considerar a verificação do resultado morte, relativamente a uma das ofendidas.

Finalmente, são consideráveis as exigências de prevenção geral dada a relativa frequência com que a omissão de auxílio vem acompanhando crimes contra a vida e contra a integridade física, negligentes, praticados no âmbito da condução rodoviária.

Tudo ponderado, consideramos que a pena não privativa da liberdade não daria adequada e suficiente realização às exigências de prevenção requeridas pelo caso concreto pelo que se opta pela aplicação de pena de prisão.

Escolhida a pena, há que determinar a sua medida concreta, dentro da moldura penal abstracta, supra indicada, tendo em conta a culpa do arguido e as exigências de prevenção (art. 71º, nº 1 do C. Penal), e relevando todas as circunstâncias que, não sendo típicas, depuserem a favor e contra o agente do crime, havendo, entre outras, que atender às previstas no nº 2 do art. 71º do C. Penal.

Sendo mediana a ilicitude do facto relativamente à ofendida F... e elevada relativamente à ofendida E... , tendo o arguido agido com dolo directo e por isso, com dolo intenso, sendo egoísta o móbil da conduta, não se fazendo sentir as exigências de prevenção especial, e sendo significativas as de prevenção geral, consideram-se adequadas e perfeitamente suportadas pela medida da culpa do arguido, a pena de seis meses e quinze dias de prisão, para o crime que tem por ofendida, F... , e a pena de dez meses de prisão, para o crime que tem por ofendida, E... .

5. A condenação do arguido em duas novas penas parcelares importa a realização de novo cúmulo jurídico, englobando estas e as que lhe haviam sido impostas na sentença recorrida, por força do disposto no art. 77º, nº 1 do C. Penal.

A punição do concurso de crimes é feita pela aplicação de uma pena única, a extrair de uma nova moldura penal que tem como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas e como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes – não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa – (art. 77º, nº 2 do C. Penal), ponderando-se na determinação respectiva medida concreta, conjuntamente, os factos e a personalidade do agente (art. 77º, nº 1 do C. Penal).

O elemento aglutinador dos vários crimes em concurso que vai determinar a pena única, é a personalidade do agente. Impõe-se, por isso, a relacionação de todos os factos entre si, de forma a obter-se a gravidade do ilícito global, e depois, relacionar cada um deles, e todos, com a personalidade do agente, a fim de determinar se estamos perante uma tendência criminosa, caso em que a acumulação de crimes deve constitui uma agravante dentro da moldura proposta ou se, pelo contrário, tal cumulação é uma mera ocasionalidade que não radica na personalidade do agente. E aqui, nota o Prof. Figueiredo Dias, cuja lição vimos seguindo (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 291 e seguintes), de grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)

Posto isto.

O arguido está condenado nas penas parcelares de dois anos e dois meses de prisão [homicídio por negligência], um ano de prisão [ofensa à integridade física por negligência], seis meses e quinze dias de prisão [omissão de auxílio] e dez meses de prisão [omissão de auxílio].

Deste modo, a pena aplicável ao concurso tem como limite mínimo 2 anos e 2 meses de prisão e como limite máximo 4 anos, 6 meses e 15 dias de prisão.

Os crimes em concurso foram todos praticados no mesmo circunstancialismo de tempo e de lugar, na sequência de um acidente de viação.

O arguido não tem, como se referiu, antecedentes criminais.

Ainda que não tenha revelado sinais de interiorização do desvalor das condutas, a sua revelada personalidade não permite, seguramente, concluir que a pluralidade de infracções cometidas decorre de uma tendência interior do agente para a prática do crime, tudo levando a crer que estamos perante uma infeliz circunstância, não devendo, por isso, funcionar o cúmulo como uma agravante.

Assim, considera-se adequada a pena única de três anos e quatro meses de prisão.

A pena única agora fixada, é substituída pela suspensão da respectiva execução, pelo mesmo período, com regime de prova, pelas razões expressas na sentença recorrida, quanto á substituição da pena única de prisão nela fixada.

Uma nota final.

Porque não foi objecto de recurso, não se conhece da decisão que ‘definiu’ o cúmulo das penas acessórias impostas ao arguido.


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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder provimento aos recursos. Em consequência, decidem:

A) Revogar a sentença recorrida na parte em que absolveu o arguido A... da prática de dois crimes de omissão de auxílio, p. e p. pelo art. 200º, nºs 1 e 2 do C. Penal, e na parte em que o condenou, em cúmulo, na pena única de três anos de prisão, suspensa na respectiva execução pelo mesmo período, com regime de prova.

 B) Condenar o arguido A... , pela prática de dois crimes de omissão de auxílio, p. e p. pelo art. 200º, nºs 1 e 2 do C. Penal, na pena de seis meses e quinze dias de prisão e na pena de dez meses de prisão.

C) Condenar o arguido A... , em cúmulo – englobando as penas parcelares referidas na antecedente alínea e as penas parcelares que lhe foram impostas na sentença recorrida, pela prática de crime de homicídio por negligência e de crime de ofensa à integridade física por negligência – na pena única de três anos e quatro meses de prisão, suspensa na respectiva execução pelo mesmo período, a contar do trânsito do presente acórdão, com regime de prova.

D) Confirmar, quanto ao mais, a sentença recorrida.

E) Recursos sem tributação.


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Coimbra, 5 de Abril de 2017


(Heitor Vasques Osório – relator)


(Helena Bolieiro – adjunta)