Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
122/20.1GCCLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ GUERRA
Descritores: NE BIS IN IDEM
OBJECTO DO PROCESSO
ACUSAÇÃO
Data do Acordão: 03/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO LOCAL CRIMINAL DAS CALDAS DA RAINHA – JUIZ 1
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 29.º, N.º 5, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
Sumário: I - O ne bis in idem tem por finalidade obstar a uma dupla submissão de um indivíduo a julgamento por um determinado acontecimento histórico, um facto naturalístico concreto ou um pedaço de vida já objeto de sentença ou decisão que se lhe equipare, independentemente do nomem iuris que lhe tenha sido ou venha a ser atribuído, no primeiro ou no processo subsequentemente instaurado.

II - Para este efeito o crime considera-se o mesmo quando exista uma parte comum entre o facto histórico julgado e o facto histórico a julgar e que ambos os factos tenham como objecto o mesmo bem jurídico ou formem, como acção que se integra na outra, um todo do ponto de vista jurídico.

III - Apesar de a Constituição da República Portuguesa apenas proibir expressamente o duplo julgamento pelo mesmo facto – ne bis in idem na vertente processual -, a proibição abrange ainda a aplicação de novas sanções penais pela prática do mesmo crime – ne bis in idem na vertente penal -, daqui resultando que o princípio tem o duplo sentido de proibição de duplo julgamento de uma infracção penal e de proibição de dupla punição.

IV - O objecto de cada processo penal é definido na acusação respectiva, pela narração de factos que dela consta, ou seja, pelos vários factos singulares que formam, quando aglutinados, o pedaço de vida em que se traduz o facto processual objecto que deverá manter-se, tendencialmente, inalterado, até ao trânsito da sentença que a tenha apreciado.

V - Do conceito de objecto do processo resulta que se na primeira acusação o Ministério Público não imputou ao arguido a pertinente factualidade integradora de determinado crime, se o Ministério Público lhe imputar essa factualidade numa subsequente acusação o tribunal tem que a conhecer, estando-lhe vedada a possibilidade de sindicar que a oportunidade dessa imputação podia ter sido feita naquela primeira acusação.

Decisão Texto Integral:

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I- RELATÓRIO

1. … foi o arguido AA sujeito a julgamento, mediante a acusação contra o mesmo deduzida pelo MºPº na qual se lhe imputava a prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de:

- um crime de falsas declarações, p. e p. pelo disposto no art. 348.º-A, n.º 1 do CP;

- um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo disposto no art. 256.º, n.º 1, al. d) com referência ao art. 255.º, al. a), todos do CP.

- um crime de violação de proibições, imposições ou interdições p. e p. pelo disposto no art. 353.º do CP.

*

2. Designada data para a audiência de julgamento, foi pelo ilustre mandatário do arguido pedida a palava no início da mesma [sessão realizada no dia 7.02.2022], e, no uso dela ditou o mesmo para a acta o seguinte, que se transcreve:

Parece-nos que o crime de falsificação de documento pelo qual o arguido vem acusado, já foi julgado pelos mesmos factos no âmbito do processo 289/20...., tal como se poderá verificar no processo.”

Concedida a palavra à Digna Magistrada do M.ºP.º no uso da mesma disse …

Tendo em consideração o alegado pelo arguido e uma vez que de facto é do meu conhecimento funcional que o arguido foi já julgado por factos senão iguais, pelo menos idênticos promovo que se solicite certidão da acusação e da sentença bem como do auto de noticia que deu origem ao inquérito onde o arguido foi condenado em falsificação para se observar se existe violação ou não do principio ne bis in idem.”

Tendo, de seguida, a Mm.ª Juiz proferido o seguinte despacho, que igualmente se transcreve:

Tendo em conta o que vem invocado pelo arguido de que os factos da presente acusação verifica-se que consta o averbamento pela prática do crime de falsificação de documento no âmbito do processo 289/20.... que corre termos neste juizo local criminal - J1, o arguido vem invocar que os factos ue constam da acusação, ou pelo menos, parte deles foram já objecto de apreciação no âmbito desse mesmo processo, pelo que, determino que se solicite ao mesmo o envio das peças processuais que o M.ºP.º promoveu e ainda que os autos me sejam presentes para consulta, considerando que a análise concreta da matéria acusatória e da decisão proferida naqueles autos deverá ser efectuada previamente ao inicio da produção de prova nos presentes autos, pelo que, decido não dar inicio à audiência de julgamento, determinando que por ora seja solicitada a remessa de certidão e apresentando aqueles autos para minha consulta após o que se decidirá tendo em conta o que da referida consulta resultar.

Não se designa por ora nova data para realização da audiência de julgamento o que posteriormente se designará data para o efeito.”

*

3. Por despacho proferido em 2 de Março de 2022, que constitui a Refª Citius 99396566, foi proferido nos autos os seguinte despacho, que que se transcreve:

 “Consigno que consultei o processo n.º 289/20.....

No âmbito daqueles autos, o arguido foi acusado, julgado e condenado pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256.º, n.º 1, al. d), do Código Penal, pelos exatos factos a que respeitam os pontos 1 a 8 do d. despacho de acusação proferido nos presentes autos.

Ocorre, porém, que no âmbito do processo n.º 289/20...., tais factos foram apenas qualificados, do ponto de vista jurídico, como um crime de falsificação de documentos, ao passo que, nos presentes autos, os factos foram ainda qualificados, adicionalmente, como um crime de falsidade de declaração, p. e p. pelo art.º 348.º-A, n.º 1, do Código Penal.

Não obstante a qualificação jurídica, constata-se que os factos são exatamente os mesmos e, sobre estes foi já proferida decisão, transitada em julgado.

Tal determina a verificação da existência de uma repetição de causas, tendo sido deduzida nova acusação por factos sobre os quais já recaiu decisão judicial anterior.   

Verifica-se, assim, uma situação de ne bis in idem, facto que tem de ser oficiosamente declarado, sob pena de violação da garantia constitucional que impede a dupla ocorrência de julgados.

Nesta conformidade e atento o exposto, por verificação desta circunstância, determino o prosseguimento dos autos apenas para apreciação da factualidade que integra os pontos 9 a 11 do d. despacho de acusação, dando-se por não escritos os demais.

…“

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4. Prosseguindo a audiência de julgamento na data para o efeito designada, veio a ser proferida sentença, em 23 de junho de 2022, na qual se decidiu condenar o arguido pela prática de um crime de violação de proibições, ilícito p. e p. pelo art.º 353.º, do C.P., na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de 5,50€ (cinco euros e cinquenta cêntimos).

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5. Inconformado com a decisão, recorreu o arguido, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões, que se transcrevem:

 “CONCLUSÕES

I. O Arguido nos presentes autos, vem acusado da prática, como autor material, na forma consumada e, em concurso efetivo, de um crime de falsas declarações, p. e p. pelo disposto no art. 348º -A, nº 1 do Código Penal, de um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo disposto no art. 256º, n.º 1, al. d), com referência ao art. 255º, alínea a), todos do Código Penal e de um crime de violação de proibições, imposições ou interdições p. e p. pelo disposto no art. 353º do Código Penal.

III. Na audiência de discussão e julgamento que decorreu no dia 26 de maio de 2022, a Meritíssima Juíza do Tribunal a quo decidiu julgar o Arguido pela prática do crime de violação de proibições, imposições ou interdições, p. e p. pelo disposto no art. 353º do Código Penal, referindo que o mesmo já fora acusado, julgado e condenado pela prática de um crime de falsificação de documentos p. e p. pelo art. 256º, n.º 1, al. d) do Código Penal, pelos exatos factos a que respeitam os pontos 1 a 8 do despacho de acusação, mencionando que nos presentes autos tais factos ainda foram qualificados adicionalmente, como um crime de falsidade de declarações, p. e p. pelo art. 348º -A, nº 1 do Código Penal, factos que são exatamente os mesmos sobre quais já fora proferida decisão transitada em julgado e verificando-se apenas e quanto a estes a repetição de causas.

IV. Determinando a Meritíssima Juíza do tribunal a quo o prosseguimento para julgamento do Arguido pela prática de crime de violação de proibições, imposições ou interdições p. e p. pelo art. 353º do C.P., e atenta a douta acusação pública que acusa o Arguido da autoria material, na forma consumada e, em concurso efetivo, da prática de um crime de falsas declarações, p. e p. pelo art. 348º -A, nº 1 do C.P., um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo art. 256º, n.º 1, al. d), com referência ao art. 255º, al. a), todos do C.P. e um crime de violação de proibições, p. e p. pelo art. 353º do C.P., isto é, um cúmulo de três crimes, dos quais dois foram declarados caso julgado, suscita-nos a dúvida se a referida decisão de prosseguimento para julgamento do Arguido pela prática do crime de violação de proibições, p. e p. pelo art. 353º do C.P., não coloca em causa o principio ne bis in idem.

V. Com o devido respeito, se o Arguido não foi julgado e condenado pela prática do crime de violação de proibições, imposições ou interdições p. e p. pelo art. 353º do Código Penal, no processo nº 289/20...., o que só poderá dever-se a um lapso da acusação, o tribunal a quo não pode vir depois remediar esse lapso.

VI. De acordo com o princípio ne bis in idem, um arguido não pode ser julgado mais de uma vez pelos factos de que foi acusado.

VII. A exceção de caso julgado materializa o disposto no art. 29º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa, quando se estabelece como princípio a proibição de reviver processos já julgados com resolução executória afirmando que: “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.

VIII. O crime de violação de proibições, imposições ou interdições p. e p. pelo disposto no art. 353º do Código Penal, pelo qual o Arguido vem acusado, está integralmente ligado a factos pelo qual já foi julgado no âmbito do processo nº 289/20...., que também correu os seus termos no juízo local criminal das Caldas da Rainha – Juiz 1.

IX. Os factos que constam da acusação, ou pelo menos, parte deles foram já objeto de apreciação no âmbito desse mesmo processo, pelo que, salvo o devido respeito, que é muito, foi violado o principio constitucionalmente consagrado ne bis in idem, ao ter de novo sido o arguido submetido a julgamento pela prática do crime de violação de proibições, imposições ou interdições p. e p. pelo disposto no art. 353º do Código Penal.

X. Em suma, teremos de concluir que o tribunal a quo violou o principio ne bis in idem            ao ter submetido o Arguido a julgamento e concomitantemente condená-lo pela prática de um crime de violação de proibições, imposições ou interdições p. e p. pelo disposto no art. 353º do Código Penal.

…”

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6. O recurso foi admitido.

7. A Digna Magistrada do Mº Pº junto da primeira instância respondeu ao recurso, concluindo na resposta da seguinte forma:

- O recurso versa sobre questão já decidida e transitada em julgado pelo que não pode ser processualmente aceite.

- Ainda que assim não se entenda, concorda inteiramente com a decisão que resulta da apreciação da questão do ne bis in idem e consequentemente da douta sentença ora proferida, a qual não merece nenhum reparo.

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8. Neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, no seguinte sentido:

- Na decorrência do que ficou dito, a matéria provada é manifestamente insuficiente para alicerçar uma condenação, no ponto 2 diz-se que entregou a carta de condução e, no ponto 3, diz-se que a carta lhe havia sido entregue, “na sequência dos factos acima descritos”.

- Em lado nenhum se diz quais sejam esses factos que deverão ser devidamente descritos, sem o que não se vê como possa ser feito um juízo de censura.

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9. Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal, não tendo sido apresentada resposta.

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10. Colhidos os vistos, foi realizada a conferência.

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II- FUNDAMENTAÇÃO

A) Delimitação do objecto do recurso

atentas as conclusões apresentadas pelo recorrente, a questão a decidir é a de saber se na sentença recorrida foi violado o princípio ne bis in idem.

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O arguido e ora recorrente  suscita no presente recurso a questão de poder a decisão que ordenou o prosseguimento dos autos para julgamento do arguido pela prática do crime de violação de proibições, previsto e punido pelo art. 335º do Código Penal, colocar em causa a violação do princípio ne bis in idem, por entender que se o arguido não foi julgado e condenado pela prática desse crime no processo nº 289/20...., tal só poderá ficar a dever-se a uma lapso da acusação, o qual não pode vir a ser remediado pelo tribunal a quo; tal crime de violação de proibições, imposições ou interdições, p. e p. pelo disposto no art. 253º do C. Penal, pelo qual o arguido vem acusado, está integralmente ligado a factos pelos quais já foi julgado no âmbito do processo nº 289/20...., que também correu seus termos no Juízo Local Criminal das Caldas da Rainha – Juiz 1.

Entende o recorrente que os factos que constam da acusação, ou pelo menos, parte deles, foram já objeto de apreciação no âmbito desse mesmo processo …

Concluindo que o tribunal a quo violou o principio ne bis in idem ao ter submetido o arguido a julgamento e concomitantemente condená-lo pela prática de um crime de violação de proibições, imposições ou interdições p. e p. pelo disposto no art. 353º do Código Penal.

Para cabal entendimento da questão suscitada pelo recorrente no presente recurso convirá ter em conta o seguinte iter processual:

a. Como resulta do relatório supra, foi deduzida nos autos pelo MºPº acusação contra o arguido ora recorrente, nos termos do despacho que constitui a Refª Citius 96538430, nela se imputando ao mesmo, como autor material, na forma consumada e, em concurso efectivo, a prática de:

- um crime de falsas declarações, p. e p. pelo disposto no art. 348.º-A, n.º 1 do CP;

- um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo disposto no art. 256.º, n.º 1, al. d) com referência ao art. 255.º, al. a), todos do CP.

- um crime de violação de proibições, imposições ou interdições p. e p. pelo disposto no art. 353.º do CP.

Incriminação esta ancorada no entendimento nela sufragado de que os autos indiciavam suficientemente a seguinte factualidade nela descrita:

 “1. Por sentença proferida a 25/10/2017, no âmbito do processo comum singular com o n.º 291/19...., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo Local Criminal das Caldas da Rainha, Juiz 1, transitada em julgado em 11/12/2019, foi o arguido condenado pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a) ambos do CP, entre o mais, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 5 meses.

2. No dia 11/12/2019 o arguido entregou a sua carta de condução nos autos identificados em 1. para cumprimento da pena acessória em que ali havia sido condenado.

3. No dia 12/12/2019, o arguido subscreveu e entregou no IMT um requerimento

pedindo a reemissão de documentos/segunda via através do qual requereu àquele instituto a emissão da segunda via da sua carta de condução alegando para tanto o extravio daquela, o que sabia não ser verdade.

4. No requerimento mencionado em 3. o arguido afirmou ainda que: “Declaro que a minha carta de condução não se encontra apreendida, nem me encontro a cumprir, ou vou cumprir inibição de conduzir. (…) Fico perfeitamente ciente que caso se comprove a falsidade da presente declaração, incorro em procedimento criminal pela prática de falsas declarações (…) “.

5. Na sequência do pedido formulado pelo arguido junto do IMT esta entidade emitiu uma segunda via da carta de condução do arguido em 12/12/2019 e o arguido recebeu-a no dia 24/12/2019.

6. Os factos declarados pelo arguido no requerimento mencionado em 3. são falsos, por não corresponderem à verdade, uma vez que o arguido tinha entregue no dia 11/12/2019 a sua carta nos autos identificados em 1. para cumprimento da pena acessória em que ali havia sido condenado.

7. O arguido quis e conseguiu actuar da forma acima descrita, bem sabendo que os factos acima descritos e que declarou perante o IMT não eram verdadeiros e que a tais declarações a lei atribuía efeitos jurídicos relativos à emissão de segunda via de carta de condução e que com a sua actuação colocava em crise a confiança e a credibilidade de que goza a emissão de tal documento e que prejudicava o Estado Português, bem sabendo ainda que em razão das suas declarações iria ser emitida uma segunda via da sua carta de condução e ainda que naquelas circunstâncias se encontrava obrigado a declarar a verdade quanto a tais factos.

8. Ao actuar da forma acima descrita agiu o arguido com o propósito concretizado de ter na sua posse nas circunstancias acima descritas a segunda via da sua carta de condução, o que sabia não ser permitido pela Lei, conseguindo assim o arguido um benefício, o qual sabia não ser legítimo pois bem sabia que tinha entregue a sua carta de condução no âmbito dos autos de inquérito identificados em 1.

9. No dia 22/03/2020, pelas 06h 02m, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-EB-.., pela Rua ..., na vila de ..., ocasião em que foi fiscalizado por militares da GNR e exibiu a carta de condução que lhe havia sido entregue na sequência dos factos acima descritos.

10. O arguido quis e conseguiu conduzir o veículo no dia 22/03/2020 da forma acima descrita bem sabendo que devia abster-se de conduzir veículos a motor nos termos determinados pela sentença referida em 1.

11. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por Lei.”

b. Recebida tal acusação e designada data para a realização da audiência de julgamento, no início da mesma [sessão realizada no dia 7.02.2022], suscitou o ilustre defensor nomeado nos autos ao arguido a seguinte questão, cujos termos exarados na respectiva acta se transcrevem, na íntegra;

Parece-nos que o crime de falsificação de documento pelo qual o arguido vem acusado, já foi julgado pelos mesmos factos no âmbito do processo 289/20...., tal como se poderá verificar no processo.”

c.  Sobre tal questão, veio a Mma. Juiz titular dos autos, por despacho proferido em 2 de Março de 2022, que constitui a Refª Citius 99396566, a pronunciar-se do seguinte modo:

 “Consigno que consultei o processo n.º 289/20.....

No âmbito daqueles autos, o arguido foi acusado, julgado e condenado pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256.º, n.º 1, al. d), do Código Penal, pelos exatos factos a que respeitam os pontos 1 a 8 do d. despacho de acusação proferido nos presentes autos.

Ocorre, porém, que no âmbito do processo n.º 289/20...., tais factos foram apenas qualificados, do ponto de vista jurídico, como um crime de falsificação de documentos, ao passo que, nos presentes autos, os factos foram ainda qualificados, adicionalmente, como um crime de falsidade de declaração, p. e p. pelo art.º 348.º-A, n.º 1, do Código Penal.

Não obstante a qualificação jurídica, constata-se que os factos são exatamente os mesmos e, sobre estes foi já proferida decisão, transitada em julgado.

Tal determina a verificação da existência de uma repetição de causas, tendo sido deduzida nova acusação por factos sobre os quais já recaiu decisão judicial anterior.

Verifica-se, assim, uma situação de ne bis in idem, facto que tem de ser oficiosamente declarado, sob pena de violação da garantia constitucional que impede a dupla ocorrência de julgados.

Nesta conformidade e atento o exposto, por verificação desta circunstância, determino o prosseguimento dos autos apenas para apreciação da factualidade que integra os pontos 9 a 11 do d. despacho de acusação, dando-se por não escritos os demais.

Notifique“.

d. Tal despacho foi devidamente notificado ao arguido e ao seu ilustre defensor oficioso, não tendo os mesmos reagido, por qualquer forma, ao mesmo.

e. Prosseguindo a audiência de julgamento, veio no final da mesma a ser proferida a seguinte sentença, que se transcreve, na parte com relevo para apreciação do presente recurso:

II - FUNDAMENTAÇÃO

A) Factos provados

Com relevância para a decisão da causa, da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos:

1. Por sentença proferida a 25/10/2017, no âmbito do processo comum singular com o n.º 291/19...., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo Local Criminal das Caldas da Rainha, Juiz 1, transitada em julgado em 11/12/2019, foi o arguido condenado pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a) ambos do CP, entre o mais, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 5 meses.

2. No dia 11/12/2019 o arguido entregou a sua carta de condução nos autos identificados em 1. para cumprimento da pena acessória em que ali havia sido condenado.

3. No dia 22/03/2020, pelas 06h 02m, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-EB-.., pela Rua ..., na vila de ..., ocasião em que foi fiscalizado por militares da GNR e exibiu a carta de condução que lhe havia sido entregue na sequência dos factos acima descritos. O arguido quis e conseguiu conduzir o veículo no dia 22/03/2020 da forma acima descrita bem sabendo que devia abster-se de conduzir veículos a motor nos termos determinados pela sentença referida em 1.

4. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por Lei.

5. O arguido confessou, de forma livre, integral e sem reservas os factos vindos de descrever.

6. À data de 2.05.2022, o arguido tinha averbada ao seu Certificado de Registo Criminal a prática das seguintes infrações: um crime de condução em estado de embriaguez, praticado em 26.10.2019, pelo qual foi condenado no processo n.º 291/19...., que correu termos pelo JLC de Caldas da Rainha – J1 e um crime de falsificação de documentos, praticado em 12.12.2019, pelo qual foi condenado no processo n.º 289/20...., que correu termos pelo JLC de Caldas da Rainha – J1.

(…)

* B) Factos não provados

Inexistem factos de relevo para a decisão da causa que não tenham resultado provados em Audiência de Julgamento.

(…)

III – DECISÃO

Pelo exposto, julgo integralmente procedente por provada a acusação e, em consequência:

1. Condeno o arguido AA pela prática de um crime de violação de proibições, ilícito p. e p. pelo art.º 353.º, do C.P., na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de 5,50€ (cinco euros e cinquenta cêntimos)“.

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O princípio ne bis in idem encontra consagração legal no normativo contido no art. 29º, nº5 da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime“.

O ne bis in idem tem, pois, por finalidade obstar a uma dupla submissão de um indivíduo a um mesmo processo. O que se proíbe é que um comportamento espacio-temporalmente caracterizado, um determinado acontecimento histórico, um facto naturalístico concreto ou um pedaço de vida de um indivíduo já objeto de uma sentença ou decisão que se lhe equipare possa fundar um segundo processo penal, independentemente do nomem iuris que lhe tenha sido ou venha a ser atribuído, no primeiro ou no processo subsequentemente instaurado – vide, neste sentido, o Ac. da Relação do Porto, de 10.07.2013, in www.dgsi.pt.

Apesar da CRP apenas proibir expressamente o duplo julgamento pelo mesmo facto – ne bis in idem na vertente processual – a proibição abrange ainda a aplicação de novas sanções penais pela prática do mesmo crime – ne bis in idem na vertente penal (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª Edição Revista, 2007, Coimbra Editora, pág. 497). Assim, o princípio é entendido no duplo sentido de proibição de duplo julgamento de uma infracção penal e de proibição de dupla punição, sendo seu fundamento essencial, o de que, para cada acto ilícito só pode existir uma reacção penal.

O principio ne bis in idem, visa evitar que exista um julgamento plural do mesmo facto de forma simultânea ou sucessiva, funcionando como a excepção do caso julgado e a litispendência que constitui uma emanação daquele mesmo princípio; o conceito necessário de mesmo (identidade) crime tem que ver não apenas com o mesmo agente (sem o qual nunca será o mesmo) e a mesma vítima mas essencialmente com o mesmo facto histórico localizado no tempo e no espaço – neste sentido  Ac. da Relação do Porto  de 25.01.2017, in  www.dgsi.pt.

O objecto de cada processo penal é definido na acusação respectiva, pela narração de factos que dela consta, ou seja, pelos vários factos singulares que formam, quando aglutinados, o pedaço de vida em que se traduz o facto processual (cfr. Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, 2ª edição, 1995, Almedina, pág. 97), objecto que deverá manter-se, tendencialmente, inalterado, até ao trânsito da sentença que a tenha apreciado.

É este pedaço/acontecimento de vida, enquanto pedaço da vida social, cultural e jurídica de um indivíduo que se sujeita à apreciação judicial, portanto, numa perspectiva da valoração e imagem social da conduta, ou seja, na perspectiva de como o homem médio vê e entende o acontecimento submetido a juízo (Frederico Isasca, op. cit., págs. 93 e 240).

Deste modo, definitivamente julgado o facto típico acusado, a questão que se coloca, como pressuposto da exceptio rei judicatae, é a de precisar a identidade daquele facto e a identidade do “novo” facto a julgar, de modo a concluir se são, ou não, o mesmo facto, a mesma realidade ou acontecimento de vida. E para este efeito, o crime deve considerar-se o mesmo quando exista uma parte comum entre o facto histórico julgado e o facto histórico a julgar e que ambos os factos tenham como objecto o mesmo bem jurídico ou formem, como acção que se integra na outra, um todo do ponto de vista jurídico (Germano Marques da Silva, op. cit., pág. 41). 

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Nos presentes autos o arguido e ora recorrente vinha acusado pela prática dos factos descritos na acusação que contra o mesmo foi deduzida pelo MºPº, factos esses integradores, segundo a mesma, de um crime de falsas declarações, p. e p. pelo disposto no art. 348.º-A, n.º 1 do CP, um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo disposto no art. 256.º, n.º 1, al. d) com referência ao art. 255.º, al. a), todos do CP e de um crime de violação de proibições, imposições ou interdições p. e p. pelo disposto no art. 353.º do CP.

Por entender que a factualidade descrita nos pontos 1. a 8. da acusação deduzida nos autos contra o arguido e ora recorrente já havia sido objecto de julgamento no âmbito do Proc. n.º 289/20.... que correra termos contra o mesmo, em obediência ao princípio ne bis in idem, foi ordenado pela Mma. Juiz titular do processo o prosseguimento do julgamento nos presentes autos apenas para apreciação da factualidade que integra os pontos 9 a 11 da acusação neles deduzida.

Tomada de posição essa que, aliás, não só foi ao encontro do propugnado pelo arguido quando suscitou no início da audiência de julgamento tal questão, como até foi mais além, já que nela se considerou que o prosseguimento do julgamento nos presentes autos incidiria sobre a factualidade descrita na acusação integradora do crime de violação de proibições, imposições ou interdições p. e p. pelo disposto no art. 353.º do CP., dele ficando arredada a demais factualidade nela descrita integradora dos crimes de de falsas declarações, p. e p. pelo disposto no art. 348.º-A, n.º 1 do CP, e de falsificação de documentos, p. e p. pelo disposto no art. 256.º, n.º 1, al. d) com referência ao art. 255.º, al. a), todos do CP,  decisão esta que não mereceu qualquer discordância por parte do arguido e ora recorrente.

Com efeito, em tal tomada de posição o arguido pugnara apenas no sentido de que tinha sido já julgado, no âmbito do processo 289/20...., pelo crime de falsificação de documento pelo qual também vem acusado nos autos, e, em tal decisão, a Mma. Juiz não só deu, nessa parte, razão ao ora recorrente como, ainda, considerou que também sobre a factualidade imputada ao arguido na acusação contra ele deduzida nos presentes autos que subjaz à imputação ao mesmo do crime de falsidade de declaração, p. e p. pelo art.º 348.º-A, n.º 1, do Código Penal, sobre ela igualmente já fora proferida decisão, com trânsito em julgado, no âmbito do referido 289/20...., cingindo, pois, o julgamento do arguido nos presentes autos à factualidade contida nos pontos 9 a 11 da acusação neles deduzida, com base na qual nela se imputa ao arguido e ora recorrente  a prática de um crime de violação de proibições, imposições ou interdições p. e p. pelo disposto no art. 353.º do CP.

E, assim sendo, – como, aliás, o recorrente refere na sua densificação recursiva, cuja sintetização faz nas Conclusões I. a III. -  não alcançamos donde possa emergir “a dúvida “ que o mesmo entende suscitar-se a respeito de a referida decisão, que determinou o prosseguimento para julgamento do arguido pela prática do crime de violação de proibições, imposições ou interdições p. e p. pelo disposto no art. 353.º do CP, poder colocar em causa o princípio ne bis in idem, dúvida essa a que o mesmo alude em sede recursiva e cuja sintetização leva à Conclusão IV.

É que, a decisão proferida pela Mma. Juiz que ordenou o prosseguimento dos autos apenas para apreciação da factualidade contida nos pontos 9. a 11. da acusação deduzida nos autos contra o arguido, visou, precisamente, obedecer ao princípio ne bis in idem, ao ter considerado que a demais factualidade que na referida acusação vinha imputada ao arguido já tinha sido julgada no âmbito do referido Proc.  289/20...., tendo, por isso, ordenado que o julgamento nos presentes autos tivesse apenas como objecto a factualidade contida nos pontos 9. a 11. da mesma, por esta, ao contrário da demais descrita em tal acusação, não ter sido objecto de decisão naquele processo.

E, tendo a audiência de julgamento prosseguido nos presentes autos apenas para apreciação de tal factualidade contida nos pontos 9. a 11. da acusação - que não foi objecto da decisão proferida naquele processo Proc.  289/20.... - vindo nos autos a ser proferida sentença que teve por base apenas tal factualidade contida nos referidos pontos 9. a 11. da acusação, não vislumbramos que tenha sido violado o princípio ne bis in idem, nem qualquer outro principio legal.

Para além disso, apesar de não alcançamos o verdadeiro sentido da argumentação recursiva sintetizada na Conclusão V., sempre se dirá que o objecto do processo é delimitado pela acusação, e se na acusação deduzida no referido Proc.  289/20.... o MºPº não imputou ao arguido, a par de outra que nela lhe imputou, a pertinente factualidade integradora do crime de violação de proibições, imposições ou interdições p. e p. pelo disposto no art. 353.º do CP, não podia o Tribunal a quo deixar de pronunciar-se sobre tal factualidade que vem imputada ao arguido na acusação contra o mesmo deduzida nos presentes autos, estando-lhe vedada a possibilidade de sindicar a oportunidade dessa imputação poder ter sido feita na acusação deduzida no referido Proc. 289/20.....

Por fim, a alegação sobre que repousa a consideração feita na Conclusão VII. de que o crime de violação de proibições, imposições ou interdições p. e p. pelo disposto no art. 353.º do CP pelo qual o arguido vem acusado nos presentes autos “está integralmente ligado“  a factos pelos quais o arguido já foi julgado no âmbito do Proc. 289/20....,  não poderá sustentar, como parece pretender o recorrente, que na sentença recorrida – na qual  o mesmo foi condenado pela prática desse crime -  tenha sido postergado o princípio ne bis in idem.

É que, como já deixámos dito, citando Frederico Isasca, in Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, 2ª edição, 1995, Almedina, pág. 9, o objecto de cada processo penal é definido na acusação respectiva, pela narração de factos que dela consta, ou seja, pelos vários factos singulares que formam, quando aglutinados, o pedaço de vida em que se traduz o facto processual objecto que deverá manter-se, tendencialmente, inalterado, até ao trânsito da sentença que a tenha apreciado.

Nos presentes autos o pedaço de vida que constituiu o facto processual objecto da acusação deduzida nos autos contra o arguido e que foi apreciado na sentença que neste veio a ser proferida diz respeito à actuação do arguido descrita nessa acusação que resultou provada na sentença recorrida, com base na qual nesta se decidiu ter o arguido cometido um crime de violação de proibições, imposições ou interdições p. e p. pelo disposto no art. 353.º do CP, factualidade essa que constitui um pedaço de vida que não se confunde com a actuação do arguido que determinou a condenação do mesmo no âmbito do referido Proc. 289/20.... pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256.º, n.º 1, al. d), do Código Penal, não só porque são distintos os factos que suportam uma e outra de tais condenações, como igualmente distintos são os bens jurídicos protegidos pelas respectivas normas incriminadoras, para além, ainda, de que o cometimento do crime de violação de proibições, imposições ou interdições p. e p. pelo disposto no art. 353.º do CP que vem imputado nos autos ao arguido e pelo qual foi o mesmo condenado nos presentes autos nem sequer depende do cometimento (como crime meio) do crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256.º, n.º 1, al. d), do Código Penal pelo qual foi o mesmo condenado no âmbito do referido Proc. 289/20.... .   

Tudo para dizer, pois, que a sentença recorrida ao condenar o arguido ora recorrente pela prática de um crime de violação de proibições, imposições ou interdições p. e p. pelo disposto no art. 353.º do CP na pena de multa nela decidida não violou o princípio ne bis in idem.

Pelo que, vindo apenas a pretendida absolvição do arguido alavancada na violação de tal princípio, manifesto de torna concluir que a pretensão do recorrente não poderá proceder.       

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III- Decisão

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em:

1. Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, e, em consequência:

 2. Confirmar a sentença recorrida.

3. Custas relativas ao recurso a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (arts. 513º, nº 1 e 514º, nº 1 do C. Processo Penal e 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).

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Coimbra, 22 de março de 2023

(Texto elaborado pela relatora e revisto por todas as signatárias – art. 94º, nº2 do CPP)

(Maria José Guerra – relatora)

(Helena Bolieiro – 1ª adjunta)

(Rosa Pinto – 2ª adjunta)