Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
759/09.0PAOVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ABÍLIO RAMALHO
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
Data do Acordão: 03/23/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE BAIXO VOUGA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 143º CP
Sumário: Comete o crime de ofensa à integridade física simples aquele que, intencionalmente e sem que nada lho legitimasse, agarra e aperta o braço da ofendida, com força e pressão adequada ao seu arrastamento para fora do gabinete onde se encontrava.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO


1 – Pugnando pela revogação da vertente da decisão-instrutória (exarada no despacho documentado na peça de fls. 131/134), que, por ajuizada insuficiência indiciária, concluiu pelo não pronunciamento do arguido HM... por assacado cometimento de suposto ilícito criminal de ofensa à integridade física da cidadã-queixosa-assistente LL..., (p. e p. pelo art.º 143.º, n.º 1, do C. Penal)[1], dela interpôs o MINISTÉRIO PÚBLICO o recurso ora analisando, de cuja motivação (ínsita na peça junta a fls. 138/147) extraiu o seguinte – aperfeiçoado – quadro-conclusivo[2]:
«1 - Os autos contêm indícios de facto e de direito suficientes que permitem imputar ao arguido HM... a prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º 1) do Cód. Penal e, dessa forma, submetê-lo a julgamento.
2 - Indícios suficientes que se surpreendem nos depoimentos da testemunha AA..., tendo a mesma declarado a fls. 38 que o HM... "...agarrou a LL... por um dos braços e puxou a mesma com a intenção de a retirar do gabinete..."; da testemunha JC… que a fls. 41 disse "...o denunciado agarrou no braço esquerdo da denunciante e disse-lhe que saísse do interior desse gabinete, arrastando-a para fora..."; da testemunha MF… que a fls. 42, disse que o denunciado "...agarrou no braço esquerdo da denunciante e disse-lhe que saísse do interior desse gabinete, arrastando-a para fora...".
3 - Indícios suficientes recolhidos também das declarações da assistente que a fls.33 afirma que sem que nada que o fizesse prever agarra com força e violência o seu braço no sentido de a obrigar a abandonar o gabinete técnico da XXX..., ao mesmo tempo que havendo intenção da sua parte em se libertar do agarro é certo que o denunciado persistiu na agressão, mantendo-a até ser impedido de tal prática pelo encarregado da firma XXX... de nome MF....
4 - Bem como se recolhem da prova pericial a fls. 24-26 que determinou o nexo causal das lesões (equimose violácea de contornos amarelados na face interna no terço proximal do braço) com a conduta do arguido, traduzida no agarrar a assistente pelo braço esquerdo, pressionando-a e puxando-a, o que lhe causou um período de doença fixável em seis dias, sem afectação da capacidade de trabalho.
5 - A conduta do arguido foi violenta, conforme reconhecido pelo M.mº Juiz "a quo", e independentemente de ter sido ou não em forma de impacto, o certo é que, ao agarrar o braço esquerdo da denunciante, puxando-a e arrastando-a para fora do referido gabinete com persistência, até ser impedido pela testemunha MF…, o arguido provocou directa e necessariamente na ofendida LL... dores e ferimentos designadamente "equimose violácea de contornos amarelados na face interna no terço proximal do braço medindo 3x2cm", cujas lesões lhe determinaram um período de 6 dias de doença, ainda que sem afectação da capacidade de trabalho, conforme o relatório pericial de fls. 24-26.
6 - O arguido, ao agarrar o braço esquerdo da ofendida LL...puxando-a e arrastando-a para fora do gabinete, fê-lo com persistência apesar da tentativa da ofendida em se libertar de tal agarro, o que só terminou após a intervenção da testemunha MF… .
7 - Do que resulta que o arguido sabia que, ao actuar da forma como o fez, molestava fisicamente a ofendida, provocando-lhe dores e ferimentos.
8 - Os elementos objectivos do tipo legal de crime imputado mostram-se pois preenchidos por suficientemente indiciados, bem como os respectivos elementos subjectivos se mostram apurados porquanto o arguido tinha perfeito conhecimento que, ao agredir fisicamente a ofendida tal como descrito na acusação, lhe causava dores físicas e agiu com plena consciência do carácter ilícito e criminoso do seu comportamento mas, apesar disso, não se absteve de o levar por diante.
9 - Ao praticar os factos da forma descrita na acusação, o arguido agiu sem que para tanto tenha ocorrido qualquer causa justificativa, seja de exclusão da ilicitude, seja de exclusão da culpa, nomeadamente do dolo, não podendo, assim, a sua conduta ser considerada penalmente irrelevante.
10 - Existe, assim, uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.
11 - O M.mº Juiz ao proferir despacho de não pronúncia, desvalorizando a conduta do arguido por entender que essa violência não foi em forma de impacto e entendendo que a ofensa à integridade física da ofendida e a respectiva lesão foi insignificante do ponto de vista penal, violou os comandos normativos dos art.s 143°1) do Cód. Penal e 283° 2), 308°1,2) do C.P.P..
12 - Em suma, dando provimento ao recurso, deverá ser revogado o despacho de não pronúncia, substituindo-o por outro que pronuncie o arguido HM... pela prática do crime de ofensa à integridade física simples imputado.»

2 – Respondeu o id.º sujeito-recorrido, argumentando no sentido da insubsistência da motivação recursória, e, consequentemente, propugnando a confirmação do sindicado despacho, (vide referente peça processual – de resposta –, a fls. 150/153, cujo teor identicamente se tem por reproduzido).

3 – Na mesma linha opinou o Ex.mo representante do M.º P.º nesta Relação, que, por conseguinte, se pronunciou pela improcedência do recurso, (vd. respectiva peça – parecer – de fls. 162/163).

4 – Observadas as pertinentes formalidades legais, nada obsta à apreciação recursória.


II – FUNDAMENTAÇÃO

II.A


Demandando-se desta Relação a análise do acerto jurídico-decisório de não pronunciamento do id.º arguido por imputada autoria comissiva duma infracção criminal de ofensa à integridade física, simples, à pessoa da cidadã-queixosa-assistente LL..., importa reter a essencialidade da respectiva acusação bem como da sindicada decisão-instrutória (por transcrição):

§ 1.º

– Acusação, (fls. 52/54)

«[…]
No dia 13 de Novembro de 2009, pelas 12h 05m, no interior da empresa "XXX..." sita na Rua …, nesta comarca, local onde o arguido e a assistente LL... trabalham, sendo ela sócia-gerente e ele desenhador, este interveio numa discussão que aquela mantinha com o pai deste.
Por causa disso ambos discutiram e, a determinada altura, o arguido, agarrou a assistente pelo braço esquerdo, pressionando-a e puxando-a, assim a agredindo.
Em consequência desta conduta do arguido, a ofendida sofreu dores e ferimentos designadamente "equimose violácea de contornos amarelados na face interna no terço proximal do braço medindo 3x2cm" tudo como melhor resulta do relatório de perícia de avaliação de dano corporal a fls. 24 a 26 aqui dado por reproduzido para os legais efeitos.
Tais lesões determinaram um período de doença fixável em seis dias, sem afectação da capacidade de trabalho geral e sem afectação da capacidade de trabalho profissional.
O arguido sabia que ao agarrar e puxar pelo braço a ofendida LL...da forma como o fez, a ofendia fisicamente, provocando-lhe dores e ferimentos.
Agiu livre, voluntária e conscientemente, querendo maltratar fisicamente a assistente propósito que alcançou, embora estivesse ciente de que tal comportamento não lhe era permitido e que é punido por lei criminal.
[…]»

§ 2.º

– Decisão-instrutória, (fls. 131/134)

«[…]
Do crime de ofensa à integridade física.
[…] o direito à integridade física consiste, primeiro que tudo, num direito a não ser agredido ou ofendido, no corpo, por meios físicos, sendo certo que tal direito, enquanto organicamente ligado à defesa da pessoa enquanto tal, goza de protecção absoluta, não podendo ser afectado mesmo em situações de suspensão de direitos fundamentais, na vigência de estado de sítio ou de emergência, como dispõe o artigo 19.º/6 da Lei Fundamental. Por outro lado, tal direito vale não só contra o Estado, mas contra qualquer outra pessoa, encontrando-se a protecção penal de comportamentos violadores desse direito fundamental na previsão dos crimes de ofensas corporais.
Dispõe o artigo 143.º/1 do Código Penal que quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
O bem jurídico protegido pela incriminação transcrita é o corpo e a saúde do ofendido, consistindo o crime de ofensa à integridade física num crime de resultado, consubstanciado na lesão do corpo ou da saúde de outrem.
[…] encontramo-nos em presença de um crime material e de dano, uma vez que tal tipo legal de crime abrange um determinado resultado, resultado esse que é a lesão do corpo ou saúde de outrem, fazendo-se a imputação objectiva deste resultado à conduta ou omissão do agente, de acordo com as regras gerais previstas no artigo 10.º do Código Penal. Tal crime é de realização instantânea, bastando-se para o seu preenchimento a verificação do resultado descrito, podendo a gravidade dos seus efeitos ou a sua duração conduzir à qualificação da lesão como ofensa à integridade física grave ou ser valorado no âmbito da determinação da medida da pena.
O artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal distingue duas modalidades de realização do tipo legal: a) ofensas no corpo; b) ofensas na saúde, preenchendo-se o tipo com a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde, independentemente da dor ou sofrimento causados, não relevando aqui os meios empregues pelo agressor, ou a duração da agressão.
Por ofensa no corpo deve entender-se todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem-estar físico de uma forma não insignificante, integrando o conceito típico as actuações que envolvem lesões de substância corporal, tais como nódoas negras, feridas ou inchaços, - podendo este crime existir mesmo que o ofendido não sofra, por via da agressão, qualquer lesão corporal, incapacidade para o trabalho, ou mesmo dor ou sofrimento físico, como no caso de ser vítima de uma bofetada dada com a intenção de ofender corporalmente - sendo objecto da acção o corpo humano.
O tipo legal do artigo 143.º exige o dolo em qualquer das suas modalidades (directo, necessário e eventual), sendo irrelevante a motivação do agente relativamente às ofensas produzidas no corpo e na saúde de outrem.
[…]
Ofensa do corpo é todo o mau trato através do qual o atingido é prejudicado no seu bem estar físico de uma forma não insignificante […].
No caso, o arguido limitou-se a agarrar a assistente pelo braço com a intenção de a retirar do gabinete onde a mesma se encontrava a discutir com o pai do arguido. Houve uma acção violenta, mas essa violência não foi em forma de impacto. O arguido tentou apenas deslocar a assistente, ainda que à força. A acção do arguido não agrediu o seu bem-estar físico, pelo menos de forma relevante. No fundo o que o arguido violentou foi a vontade da queixosa de permanecer dentro de um gabinete de uma empresa de que a assistente e o pai do arguido são sócios gerentes.
A conduta do arguido é censurável ao nível da convivência social, cujas regras terá violado, e ao nível do direito laboral na medida em que tentou retirar a sua entidade patronal, à força, de uma divisão da própria empresa. Mas não é tão grave que mereça tutela penal, dado que, mesmo a entender-se que a integridade física da queixosa foi ofendida, essa ofensa é, pelo que se disse, insignificante do ponto de vista penal - mesmo admitindo que do ponto de vista laboral estejamos perante uma violação grosseira dos deveres a que o arguido se encontra sujeito enquanto trabalhador. Aliás, do relatório pericial de fls. 24 ss. resulta evidente a insignificância da lesão.
Os indícios existentes não são suficientes para conduzir à condenação do arguido ou, pelo menos, a absolvição do arguido é muito mais provável que a sua condenação.
[…]
Pelo exposto, decido não pronunciar o arguido pelos crimes de ofensa à integridade física simples […].
[…]»

II.B


Apreciando:

1 – Com o devido respeito, encontrando-se o direito à absoluta inviolabilidade da pessoal integridade física terminantemente tutelado pela constituição nacional, (cfr. respectivo art.º 25.º), nada no vigente ordenamento jurídico consente e/ou legitima qualquer interpretação restritiva do respectivo conteúdo, em termos de apenas supostamente abranger a protecção contra um determinado grau, mais ou menos intenso, de ofensas corporais, (vide, máxime, neste sentido, Acórdão n.º 226/2000, de 05/04/2000, do Tribunal Constitucional, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc, e Assento n.º 2/92, do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no D.R., I Série – A, de 08/02/1992).

Assim, naturalmente, qualquer voluntário e injustificado acto comportamental atentatório à incolumidade corporal de terceira pessoa necessariamente – verificados os demais legais pressupostos, bem-entendido – fará incorrer o respectivo agente em responsabilidade criminal, que, à partida – não ocorrendo outros mais gravosos circunstancialismos típicos –, se balizará pela moldura penal correspondente ao tipo-de-ilícito prevenido no n.º 1 do art.º 143.º do Código Penal, independentemente da maior ou menor extensão objectiva da respectiva ofensa e das resultantes consequências.

2 – Por conseguinte, encontrando-se bastantemente informado nos autos que o arguido, sem que nada lho legitimasse, agarrou e apertou o braço esquerdo da id.ª cidadã LL…, com força e pressão adequada ao seu arrastamento para fora do gabinete onde se encontrava e, decorrentemente, à produção das sequelas caracterizadas no relatório pericial de fls. 24/26, como o próprio Ex.mo Juiz de Instrução reconhece no seu questionado despacho, mal se compreende o respectivo/discricionário ajuizamento da insignificância jurídico-criminal de tal acto, de todo inconsentido pelo ordenamento jurídico nacional, particularmente pelo enunciado art.º 25.º, n.º 1, da Constituição.

Nem obviamente assume qualquer sentido jurídico a alegação do arguido de que meramente o movia a intenção de retirar a visada senhora do gabinete de modo a acautelar a estabilidade emocional do seu pai – com quem ela então discutiria –, dado que, por tal efeito, sempre necessariamente lhe afectaria o respectivo direito à pessoal integridade corporal, e, dessarte, incontornavelmente realizaria a referente infracção criminal – p. e p. pelo n.º 1 do art.º 143.º do Código Penal – com dolo necessário, (cfr. art.º 14.º, n.º 2, do mesmo compêndio legal). 

3 – Consequentemente, apresentando-se inequivocamente revelada tal conduta objectiva do id.º sujeito-arguido – como reconhecido no despacho recorrido –, e sendo axiomaticamente inescapável a respectiva ilicitude, bem como o nexo de imputação subjectiva, a título de dolo necessário, impor-se-á concluir pela cabal indiciação da sua pessoal autoria comissiva da referida infracção criminal de ofensa à integridade física – simples – da id.ª cidadã LL…, p. e p. pelo n.º 1 do art.º 143.º do Código Penal, a que corresponde a moldura penal abstracta de 1 mês a 3 anos de prisão ou multa de 10 a 360 dias, (cfr. ainda arts. 41.º, n.º 1, e 47.º, n.º 1, do mesmo C. Penal).

Tanto basta, pois, para, em conformidade com a dimensão normativa decorrente do n.º 2 do art.º 283.º e ns. 1 e 2 do art.º 308.º do C. P. Penal, ser produzido referente/apropriado despacho de pronúncia, sendo irrelevantes nesta fase processual quaisquer outros ajuizamentos quanto ao grau de gravidade da conduta ofensiva cuja pertinência apenas potencialmente se convocará em sede de escolha e graduação penal.


III – DISPOSITIVO


Destarte – sem outras considerações por despiciendas –, concedendo-se provimento ao recurso, delibera-se:

1 – A revogação do sindicado despacho.

2 – A determinação ao tribunal recorrido de prolação de despacho de pronúncia do identificado cidadão-arguido HM… pela sua indiciariamente revelada – e supra apontada – pessoal/dolosa autoria comissiva dum ilícito criminal de ofensa à integridade físicasimplesda id.ª cidadã LL…, p. e p. pelo n.º 1 do art.º 143.º do Código Penal.


***

Sem tributação, por dela se encontrar o arguido isento, [cfr. art.º 75.º, al. b), do Código das Custas Judiciais, ainda aplicável por força do estatuído no art.º 27.º, n.º 1, do D.L. n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro].

***


Abílio Ramalho (Relator)
Luís Ramos


[1] Vide acusação de fls. 52/54, (acompanhada pela id.ª assistente pela peça de fls. 81).
[2] Vide despacho (do ora relator) de fls.167, e peça de fls. 175/177.