Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
68/08.1TALSA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EDUARDO MARTINS
Descritores: PROVA
LIVRE APRECIAÇÃO
TRIBUNAL DE RECURSO
PENAS
SUSPENSÃO
DEVERES
Data do Acordão: 09/22/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA LOUSÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 50º,52º CP E 127º CPP,
Sumário: 1. .A livre apreciação da prova significa que esta deve ser feita de acordo com a convicção íntima do juiz.

2. Quando a atribuição de credibilidade a uma dada fonte de prova se baseia numa opção do julgador assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só pode exercer censura crítica se ficar demonstrado que o caminho de convicção trilhado ofende patentemente as regras da experiência comum.

3. A suspensão da execução da pena de prisão, entre outros fins, visa afastar o arguido dos estabelecimentos prisionais por isso não é adequada a condição de suspensão com visitas a condenados presos pela prática do mesmo tipo de crime.

4. A lei só permite uma pena que implique trabalho para o arguido, desde que este esteja disponível para a aceitar.

5. Sendo assim, não é possível impor a um condenado a obrigação de trabalho como condição de suspensão da execução da pena de prisão, pois tal acabaria por ser visto como a criação judiciária de uma pena.

Decisão Texto Integral: I. Relatório:                                                                

          A) No âmbito do processo comum (tribunal singular) n.º 68/08.1TALSA que corre termos no Tribunal Judicial da Lousã, Secção Única, por Sentença de 16/12/2009, o arguido A... foi absolvido da prática do crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 1, ambos do C. Penal, e a arguida C... foi condenada, pela prática do citado crime, com referência ao artigo 202.º, al. a), do mesmo diploma, na pena de seis meses de prisão.

          Mais foi decididosuspender por um ano a pena de prisão aplicada, com a condição de a arguida cumprir as prescrições atinentes ao plano de reinserção a elaborar pela DGRS, no âmbito de regime de prova, o que deverá incluir, entre o mais, a integração em posto de trabalho ou inscrição em Centro de Emprego; a sujeição a consulta de psicologia e psiquiatria e cumprimento de tratamento que eventualmente lhe vier a ser prescrito, actividades de voluntariado como frequência, pelo menos, semanal, em instituições a indicar pela DGRS, e visitas a condenados presos pela prática do mesmo tipo de crime, com frequência, pelo menos, mensal”.

          Foi, ainda, julgado parcialmente procedente o pedido cível e, consequentemente, foi a demandada condenada a pagar à demandante P... as quantias de nove mil cento e oitenta e cinco euros, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros desde a citação até efectivo e integral pagamento, e de mil e quinhentos euros, a cada uma das demandantes, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros desde a presente sentença até efectivo e integral pagamento.

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B) Inconformada com a decisão recorrida, dela recorreu, em 26/1/2010, a arguida C..., pedindo a revogação da sentença, e sua substituição por outra que decrete a sua absolvição, extraindo da motivação as seguintes conclusões:                                                                                     1. A Arguida põe em crise a Sentença proferida, quer quanto à matéria de facto, quer quanto à matéria de direito.                                                              2. A Arguida entende que houve insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição entre os factos provados e os factos não provados e erro na apreciação da prova produzida (artigo 410.º, n.º 2, als. a), b) e c), CPP).

3. A Arguida não pode deixar de considerar que o Tribunal a quo, atenta a diversa prova produzida, andou mal ao dar como provados os factos constantes de 2. A 41., já que, e desde logo, impõem decisão diversa os depoimentos das próprias Queixosas, constantes do suporte digital (16:19.30 a 17:19:36 e 10:08:51 a 11.06:43 e 11.06:53 a 11.30:12 e 11.30.14 a 11:47:35, respectivamente), pois revelam incongruências e contradições que afastam a sua credibilidade.

4. Tais depoimentos revelam incongruências que afastam a sua credibilidade e até a postura apresentada pelas Queixosas, em sede de Julgamento, contraria o que alegam, pois pretendendo revelar ingenuidade, um não saber, ao prestarem os seus depoimentos, revelam esperteza, inteligência, instrução, experiência de vida, o que contraria o que as mesmas alegam. Em sentido contrário, apresenta-se a arguida que é praticamente analfabeta.

5. Muitas das respostas dadas pelas Queixosas são fruto de perguntas que já continham em si a resposta, limitando-se estas a confirmar ou a infirmar a mesma, pelo que a Arguida põe, com o devido respeito, o modo de inquirição utilizado pelo Tribunal a quo, mormente da Queixosa Patrício Francisco, já que não foram de molde a conhecerem-se os factos ocorridos, sobretudo porque ocorreram e como ocorreram, de forma a obter uma resposta espontânea.

6. Salvo melhor juízo e com o devido respeito por opinião diversa, recorreu-se à formulação de perguntas insidiosas e sugestivas, o que a lei impede.

7. A Arguida entende que fica mal ao Tribunal fazer uso das expressões, como o fez, no que concerne ao próprio crime de que vinha acusada, sendo que, nessa altura e ainda, a Arguida se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação.

8. As testemunhas que, em parte, corroboram os depoimentos das Queixosas: S... (12:39:44 a 12:57:34, de 11:27 a 14:19), taróloga e terapeuta de Reiki, refere que as Queixosas terão sido apresentadas em finais de 2006 e que as mesmas já eram suas clientes, antes dos factos alegados por estas, o que contraria as versões das Queixosas; I... e de T..., marido/pai e sobrinha/prima (12:58:14 a 13:13:03 e 12:31:04 a 12:39:04, respectivamente), esta refere que nunca soube de nada, que nunca comentaram e que apenas tomou conhecimento dos factos quando a chamaram para depor e que nunca viu troca de objectos, envelopes ou outros (1:18, 3:27, 4:16 a 4:36), tal contraria as regras da experiência comum.

9. As Queixosas e as testemunhas indicadas por aquelas não merecem a credibilidade que lhes foi dada pelo Tribunal a quo.

10. Existe contradição entre factos provados e não provados.

11. Os factos merecem indagação e são necessários para a formulação de um juízo decisório que, no caso, é de absolvição, merecendo análise e avaliação os elementos probatórios supra alegados, devendo proceder-se, nos termos dos artigos 412.º, n.ºs 3 e 4, e 430.º, CPP, à sua renovação, o que se requer.

12. A omissão de diligências de prova requeridas pela Arguida (consultas ao Banco de Portugal, encargos financeiros e taxa de esforço e ao serviço de Finanças, para apuramento do rendimento das Queixosas) constitui uma nulidade, conforme previsto no CPP, já que aquelas revelavam-se pertinentes para a boa descoberta da verdade, sendo que não foram praticadas pelo Tribunal a quo que apenas veio dizer, na própria Sentença, não serem relevantes para a mesma.

13. A Arguida exerceu o seu direito de defesa, tendo indagado, investigado, particularmente, o que não é proibido, antes sugerido e defendido por Mestres do Direito Penal.

 Os depoimentos das testemunhas arroladas pela Arguida abalam a versão apresentada pelas Queixosas: a testemunha M... (10:46:40 a 11.04:30) referiu que tem uma loja de artigos religiosos/esotéricos e que a Queixosa F... era sua cliente há já muito tempo, tendo apresentado recibos (documentos 4 e 5, juntos pela Arguida em sede de Julgamento) nesse sentido; já em 22 de Março e 4 de Abril de 2007, a Queixosa F... adquirira produtos, nomeadamente fluidos para defumar o café, no estabelecimento daquela (7:03 a 7:48, 8:20, 9:52), os produtos foram entregues pela filha da testemunha M... às Queixosas que lhes explicou o seu funcionamento (9:23, 10:10), a testemunha M... manifestou ainda que, ainda durante o julgamento, a Queixosa F... adquirira uma novena no seu estabelecimento (10:40, 12:52 a 13:20); a testemunha L... (10:35:11 a 10:45:55) referiu que, em momento anterior aos factos alegados pekas Queixosas (em Março/Abril de 2007, antes da Páscoa), procurou daber do trespasse, do valor do mesmo, do valor da renda, tendo justificado o seu interesse (1.12), manifestou ainda o contacto das Queixosas para falar no sentido de que a arguida tinha oferecido serviços de  “bruxaria” (1:12 a 3:11), tendo tido conhecimento da história, contactou a arguida no sentido de lhe expor o sucedido (3.35), atendendo a que se trata de um meio pequeno e à proximidade de vizinhança; quanto ao depoimento da testemunha MM... (11:53.15 a 12:05:00), percute-se o supra alegado, nomeadamente que as queixosas já conheciam e recorriam a pessoas habilitadas na área do oculto/bruxaria (1:52, de 7:38 a 8:23 e documentos 1, 2 e 3 (recibos), juntos em sede de Audiência de Julgamento, tendo a mesma prestado serviços às Queixosas, inclusive deslocando-se ao café, em Miranda do Corvo, pelo que deveria o douto Tribunal a quo ter dado como provados tais factos.

15. O Tribunal a quo deu como provados factos contra as regras da experiência comum, pelo que existe erro notório na apreciação da prova. O erro notório na apreciação da prova, como vício a apreciar em sede processual penal, é, quer para a doutrina quer para a jurisprudência mais generalizadas, o que é evidente para qualquer indivíduo de médio discernimento e deve resultar do texto da sentença conjugado com as regras da experiência comum.

16. A recorrente não concorda com a apreciação que o tribunal a quo fez das declarações das Queixosas e de três das testemunhas ouvidas (S..., I... e T...) e as razões por si aduzidas são, salvo melhor entendimento, suficientes para pôr em causa a convicção do Tribunal a quo, pelo que se pode afirmar a existência de erro notório na apreciação da prova.

17. O artigo 217.º, CP, dispõe, no seu n.º 1, que “Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial, é punido com prisão até três anos ou com pena de multa”. O n.º 1 do artigo seguinte dispõe que “Quem praticar o facto previsto no n.º1 do artigo anterior é punido, se o prejuízo patrimonial for de valor elevado, com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até seiscentos dias”.

18. “São os seguintes os elementos do tipo objectivo da burla: a) o emprego de astúcia pelo agente; b) a verificação de erro ou engano da vítima devido ao emprego da astúcia; c) a comprovação da prática de actos pela vítima em consequência do erro ou engano em que foi induzida; d) a existência de prejuízo patrimonial da vítima ou de terceiro, resultante da prática dos referidos actos” – Acórdão TRP, de 25-03-2009, in http://www.dgsi.pt.

19. Não se vislumbra, no primeiro encontro relatado e em outros actos alegadamente havidos, quaisquer actos reveladores de astúcia, capazes de induzir as Queixosas em erro ou engano; os factos invocados não dão a uma falsidade a aparência de verdade, pelo que inexiste astúcia; não se identificam no primeiro encontro relatado e em outros actos alegadamente havidos quaisquer actos reveladores de astúcia, capazes de induzir as Queixosas em erro ou engano, pelo que, salvo melhor entendimento, não se encontram preenchidos todos os elementos do tipo legal de crime de burla.

20. Assim, inexistindo aquele elemento do tipo, forçoso é concluir que a arguida não praticou o crime por que veio acusada e pelo qual foi condenada.

21. Salvo melhor entendimento, o raciocínio do Tribunal a quo, quanto às habilitações das Queixosas, é perigoso, quanto ao grau de censura, tanto mais que a vida do dia-a-dia demonstra que o burlão revela uma capacidade cognitiva e uma inteligência superiores e, por outro lado, o burlado revela menores capacidades, as Queixosas revelaram-se esclarecidas, instruídas, fluentes e pessoas com discernimento e experiência de vida.

22. Os fundamentos aduzidos pela Sentença a quo para a opção pela aplicação da pena de prisão, afastando a aplicação de pena não detentiva, não permitem identificar todos os elementos da fundamentação de uma forma inequívoca, configurando uma nulidade da sentença, decorrente da falta de fundamentação, a que se alude no artigo 379.º, n.º 1, al. a), ex vi artigo 374.º, n.º 2, ambos do CPP, pelo que a ausência de tal fundamentação implica a nulidade da sentença, porquanto a mesma deixa de se pronunciar sobre questões que devia apreciar (cfr. artigo 379.º, n.º 1, al. a), CPP).

23. O Tribunal a quo entendeu submeter a Arguida a regime de prova, nomeadamente: a integração em posto de trabalho ou inscrição em Centro de Emprego; a sujeição a consulta de psicologia e psiquiatria e cumprimento de tratamento que eventualmente lhe vier a ser prescrito, actividades de voluntariado como frequência, pelo menos, semanal, em instituições a indicar pela DGRS, e visitas a condenados presos pela prática do mesmo tipo de crime, com frequência, pelo menos, mensal.

24. A Arguida entende que o regime de prova fixado viola os direitos de personalidade, à luz da CRP e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, quer os seus, quer os de terceiro.

25. Como escreve Figueiredo Dias (in Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, parágrafo 630 e parágrafo 646), «a peça indispensável deste mecanismo de socialização», o «testemunho da estratégia (e da táctica) que o tribunal entende dever seguir», «a articulação do cumprimento dos deveres e regras de conduta impostas com as tarefas de vigilância a cargo do trabalhador especializado ou técnico de reinserção social, que não deve ceder à tentação de tomar a sua tarefa “em missionarismo paternalista e predicante”, mas ater-se aos limites de “legalidade externa” impostos».

26. Assim, nesta medida, a decisão em crise é ilegal, violando o disposto nos supra referidos normativos.

  27. A sentença proferida pelo Tribunal a quo viola o disposto nos artigos 217.º, n.º 1, 218.º, n.º 1, 202.º, al. a), 51.º, n.º 2, 52.º e 53.º, do C. Penal, artigos 374.º, n.º 2, 375.º, n.º 1, 379.º, n.º 1, al. a), e 127.º, do CPP, artigos 32.º e 205.º, da CRP.

28. Dadas as matérias de facto e de direito alegadas, dúvidas não subsistem que outra deveria ter sido a decisão proferida pelo tribunal a quo: a absolvição da arguida da prática do crime pelo qual vinha acusada.

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C) O Ministério Público junto da 1ª instância respondeu, em 5/3/2010, ao recurso da arguida, defendendo a sua improcedência e apresentando as seguintes conclusões:     

         1. Analisada a sentença proferida nos autos, verificamos que a mesma foi devidamente fundamentada, inexistindo qualquer falta de sintonia entre os factos apurados e a douta decisão.

         2. Com efeito, a Meritíssima Juiz faz correcta interpretação dos factos e adequada aplicação de Direito.

         3. A sentença é insusceptível de qualquer reparo ou censura, pelo que deverá ser confirmada e, em consequência, ser negado provimento ao recurso interposto.                                          

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         O recurso foi, em 23/3/2010, admitido.

Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 12/4/2010, emitiu douto parecer em que, após expressar a posição de que a requerida renovação da prova não deveria ser admitida, defendeu a improcedência total do recurso.

Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido exercido o direito de resposta. 

Por despacho de 5/5/2010, não foi admitida a requerida renovação da prova (fls. 592 a 595).

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar a legal conferência, cumprindo apreciar e decidir.


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II. Decisão Recorrida:

Em processo comum e perante tribunal singular, o Ministério Público deduziu acusação contra

C..., , divorciada, residente na Rua …, Miranda do Corvo, e

A..., , divorciado, residente na …, Pedrógão Grande,

imputando-lhes a prática, em co-autoria material e em concurso real, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 1, ambos do C. Penal, com referência ao artigo 202.º, al. a), do mesmo diploma.

                As ofendidas deduziram, ainda, pedido de indemnização civil contra os arguidos, concluindo pela condenação dos mesmos a pagar a cada uma das demandantes, a título de danos não patrimoniais, a quantia de 10.000 euros, e, por danos patrimoniais, o montante de 9.330 euros à ofendida P…, e de 100 euros à ofendida L….

                Os arguidos contestaram, negando os factos vertidos na acusação.

                A audiência decorreu com observância das formalidades legais.

                Após ter sido saneado o processo, não ocorreram nulidades ou questões prévias de que cumpra conhecer.

                FACTOS PROVADOS:

1.Em dia não determinado de Maio de 2007, os arguidos entraram no Café explorado pela queixosa F…o, sito na Rua ….

2. Após terem pedido dois cafés, a arguida C...chamou a queixosa F..., mãe da queixosa P…, à sua mesa, dizendo-lhe para retirarem de imediato o tapete que estava colocado na porta de entrada do Café, pois havia pessoas que lhes queriam mal e que lhes metiam coisas debaixo do dito objecto.                                                                                                                                                                   3. A arguida explicou então que tinha um dom e que pretendia ajudar, afirmando que já ajudara muita gente e exemplificando com uma determinada situação em que o motor de uma camioneta não funcionava e passou a funcionar graças à sua intervenção.                                                                                                             4. Durante a conversa, O arguido acenava com a cabeça para cima e para baixo, dizendo que era verdade.                                                                                                                                                                                             5. Mais disse a arguida que a filha de P... se encontrava doente e que tal se ficava a dever a bruxarias que faziam à F… e que caíam na menina.                                                                                              6. Asseverou que iria ajudar, devendo as ofendidas queimar velas, uma, na casa de banho de uso ao quintal e, outra, na dispensa do café, tendo então dito “Vocês pagam as velas aqui ao meu namorado que ele trá-las de Coimbra”.                                                                                                                                                                        7. Transmitiu-lhes ainda que as velas deveriam ser pagas com o dinheiro da gaveta do café, pois deveriam ser pagas com o “produto do sacrifício”da P....                                                                                           8. O arguido A… disponibilizou-se imediatamente para trazer as velas de Coimbra, recebendo então de P… a quantia de €40,00 para o pagamento das mesmas.                                                                9. No final desse dia, o arguido levou para o dito café duas velas – uma de cor amarela e outra de cor preta -, entregando-as a P….                                                                                                                                                    10. A partir desse dia, a arguida C...passou a frequentar diariamente o café em causa, dizendo às queixosas que tinham de esperar pelo resultado das velas e pelas rezas que a arguida também fazia em casa.                                                                                                                                                                                            11. Dizia às queixosas que eram os vizinhos que iam colocar coisas para lhes retirar os clientes, para lhes fazer mal, dando a entender que eram os donos do restaurante vizinho os causadores de tais males.             12. Como a saúde da filha de P… não melhorava, a arguida ia dizendo que tinha de queimar mais duas velas, uma preta e outra amarela, com formas diferentes das primeiras, tendo a primeira pago mais €50,00 por elas.                                                                                                                                                                                13. A arguida dizia-lhes ainda que tinham de lavar o chão do café, as vitrinas e portas todos os dias com água e sal, pois que só assim se lavava o mal que lhes faziam.                                                                                              14. As queixosas adquiriram ainda à arguida outra vela por €20,00, de cor roxa, pretensamente impregnada de sementes e ervas secas, tendo aquela dito que a queixosa se deveria sentar a ver queimar a vela, pensando em tudo o que de mau lhe estava a acontecer, pedindo tudo de bom para o futuro, devendo os resíduos da vela ser enterrados junto a uma árvore.                                                                                                                         15. As queixosas agiam na esperança de melhoria da sua vida quer no tocante à viabilidade do estabelecimento quer relativamente à saúde da filha de P…, aspectos então problemáticos, o que a arguida sabia.                                                                                                                                                                                                  16. Em Julho de 2007, a arguida disse-lhes que já não as podia ajudar mais e que teria de ser uma senhora de Mira, de nome “E…”, a fazê-lo, em troca de preço elevado, sendo que não poderiam contactar directamente com esta porque a mesma era pessoa influente que só recebia figuras importantes.                           17. No dia seguinte, a arguida dirigiu-se ao café e disse às queixosas que a dita E... aceitara a missão, querendo em troca €500,00 em dinheiro, quantia que lhe foi entregue por P... num envelope fechado.                                                                                                                                                                                              18. Passados alguns dias, a arguida referiu à queixosa P... que a dita E... que dissera que terceiros lhe estavam a fazer mal, sendo a filha o elo mais fraco, mais referindo que alguém da família da P... falecera sem cumprir uma promessa de oferecimentos de velas em forma de órgãos em Fátima.              19. Mais disse que, por isso, a dita E... só poderia desmanchar o mal feito a P... se tal promessa fosse cumprida e se fosse morta uma galinha preta numa mata, devendo para o efeito partir-se uma garrafa de vidro em cada encruzilhada que fosse passada até ao local do abatimento, atando-se uma fita de seda a uma árvore.                                                                                                                                                                                               20. Disse igualmente que tal serviço a efectuar por tal pessoa de nome E... custaria à P... a quantia de €3.500,00, e que, se não fosse feito, a filha da queixosa poderia morrer.                                                          21. A queixosa P... veio a entregar tal dinheiro à arguida, num envelope fechado dirigido à dita E....                                                                                                                                                                                             22. Dias depois, a arguida disse às queixosas que vira a dita E... e que a mesma apresentava a cara negra, o que tinha sido causado pela galinha aquando da sua morte, o que simbolizava a extensão do mal que estavam a fazer à P....                                                                                                                                                      23. Mais ia dizendo à queixosa que até Outubro a vida melhoraria, e que tinha de continuar a queimar velas ao Anjo da Guarda e a Nossa Senhora.                                                                                                                 24. Com a melhoria gradual do estado de saúde da filha, mais P... se ia convencendo dos poderes da arguida e da dita E....                                                                                                                                                       25. Em Outubro de 2007, a arguida disse às queixosas que deveriam trespassar o café e que tinham de sair dali, tal a magnitude do mal que lhes queriam.                                                                                                                            26. Disse-lhes ainda que iria haver uma morte na família, tendo a queixosa P... acreditado nessa pretensa premonição, já que o seu pai andava muito mal de saúde.                                                                                 27. A arguida pediu-lhes então mais €5.000,00 para conseguir que o trespasse  do café pudesse ser levado a cabo até finais de 2007.                                                                                                                                                 28. A queixosa P... entregou tal quantia à arguida num envelope fechado, aditando-lhe €75,00 por conta de uma nova vela preta – em forma de caveira -, que deveria ser queimada.                                                      29. Em finais de Novembro de 2007, a arguida pediu a P... mais €400,00, o que esta recusou, referindo que não tinha mais dinheiro.                                                                                                                30. Em Janeiro de 2008, a queixosa P... telefonou à arguida, pedindo-lhe contas sobre o que iria acontecer, tendo-lhe esta respondido que iria falar à dita E... e, mais tarde, referindo que deveriam esperar até 15 de Janeiro segundo aquela.                                                                                                                                                            31. Já algo desconfiada, a queixosa P... pediu-lhe o número de telefone da dita E..., tendo-o a arguida fornecido posteriormente.                                                                                                                                                32. A queixosa P... telefonou então vindo a ser atendida por um homem que, ao segundo ou terceiro telefonema, lhe respondeu que a sua esposa, a dita E..., falecera há dias.                                                               33. A arguida agiu de modo livre, voluntário e consciente, com o propósito concretizado de, através da aparência de verdade de uma história por eles inventada, fazer crer às queixosas que poderia vir a contribuir para a melhoria das suas vidas, familiar e profissionalmente, caso anuíssem em entregar-lhes as diversas quantias pecuniárias por ela pedidas, quantias essas com que se locupletou.                                                                         34. Apoderou-se assim da quantia de €9.185,00, a que sabia não ter direito, querendo causar prejuízo à queixosa, o que conseguiu.                                                                                                                                                       35. A queixosa só entregou as supra referidas quantias nos moldes descritos porque se convenceu que a história que a arguida ia contando era verdadeira e que aquele esquema de crendice e de bruxaria poderia vir a resultar em benefícios para a sua vida, acreditando em tudo o que a arguida lhe contava, de forma firme, mostrando saber aspectos da sua vida que a queixosa lhe não relatara, no tocante à saúde da sua filha.                   36. A arguida estava convencida de que não tinha qualquer dom ou poder de ajudar as queixosas, ao contrário do que lhes dizia e fazia crer, bem sabendo que não existia qualquer “E...”, sabendo, por conseguinte, que a sua conduta era proibida e punida por lei.                                                                               37. Nas circunstâncias de tempo e lugar em que a arguida fez a primeira abordagem, as queixosas andavam deveras preocupadas com a filha de P..., que se encontrava doente sem que o diagnóstico médico de início fosse conclusivo.                                                                                                                                                      38. As demandantes chegaram a deslocar-se a Mira, não logrando encontrar qualquer E..., na medida em que ninguém conhecia uma tal pessoa com as referidas características.                                                     39. As queixosas sentiram-se emocionalmente perturbadas ao descobrir que haviam sido enganadas pela arguida, sentido vergonha.                                                                                                                                                         40. As demandantes utilizaram, para entregar à arguida, dinheiro proveniente, designadamente, da conta do filho e irmão das ofendidas, respectivamente, pessoa portadora de deficiência.                                             41. A queixosa P... recebeu tratamento nos HUC tendo sido consultada pela Psiquiatria e sujeita a terapia de grupo.                                                                                                                                                                                       42. Os arguidos são amigos há vários anos, tendo mantido relacionamento amoroso em tempos e tendo a arguida trabalhado durante cerca de um ano para o último.                                                                                      43.Após o primeiro encontro, o arguido não voltou mais ao estabelecimento das queixosas.                     44. Arguidos e lesadas não se conheciam anteriormente.                                                                                45. A queixosa P... estudou até ao 12º ano.                                                                                               46. A arguida conhecia o local onde se encontrava o dito café, sendo que aí, habitualmente, aguardava pela saída da filha da escola ou tomava um café depois de ir ao restaurante ou a uma loja.                                 47. O café, montado, equipado e licenciado a expensas das queixosas, pagando a renda mensal de €500,00, tinha pouca clientela.                                                                                                                                               48. Certo dia, as queixosas lamentaram-se da elevada conta de luz, tendo a arguida comunicado o facto a um seu conhecido que se dirigiu ao local e concluiu que haveria engano, sendo que os montantes vieram a sofrer correcção.                                                                                                                                                            49. A arguida informou-se no BPI sobre, pelo menos, se alguém poderia conseguir empréstimo bancário sem autorização do marido.                                                                                                                                   50. Deixou de ir ao café a partir de finais de 2007.                                                                                                51. Apresentou queixa-crime contra a ofendida P..., tendo o inquérito vindo  a ser arquivado por ilegitimidade do Ministério Público para promover os respectivos termos.                                                                               52. Em Janeiro de 2008, P... telefonou várias vezes à arguida pedindo-lhe o dinheiro de volta.                                                                                                                                                                                                  53. Em matéria de produtos esotéricos, as queixosas consumiam ocasionalmente, pelo menos velas, já antes da prática dos factos.                                                                                                                                                         54. Os arguidos não têm antecedentes criminais.                                                                                  FACTOS NÃO PROVADOS:                                                                                                                                        Não se provou que os arguidos se tivessem previamente apetrechado de algumas informações sobre a vida da queixosa P... nem que tivessem indagado sobre a vida das queixosas junto das mesmas nem que as últimas tivessem entregue mais do que uma quantia em dinheiro ao arguido.                                                                               Por demonstrar ficou igualmente que os arguidos tivessem agido em execução de um plano previamente delineado entre ambos, nem que o arguido tivesse agido de modo consciente com o propósito de causar prejuízo às queixosas.                                                                                                                                                Por provar ficou igualmente que tivesse sido o arguido a atender o telefonema referido, informando do falecimento da dirá E....                                                                                                                                                Não resultou ainda que as demandantes tivessem suportado €100,00 na deslocação a Mira nem €150,00 em telefonemas para a arguida nem ficou demonstrado o preço de mercado das velas adquiridas.      Também não se demonstrou que tenha sido intensa a vergonha sentida ou que a demandante P... tivesse sentido desgosto profundo ou que tivesse por causa dos factos perdido a alegria de viver, descuidando as necessidades da filha.                                                                                                                                                                   Por outro lado, ficou por provar que, por causa do sucedido, a queixosa P... se tivesse tentado suicidar.                                                                                                                                                                                          Não ficou ainda demonstrado que por causa do sucedido a demandante F... tivesse sofrido depressão e que tivesse gasto em medicamentos €100,00.                                                                                        No tocante à matéria ínsita na contestação, não se provou que antes de irem ao café, os arguidos tivessem almoçado juntos nem que a seguir tivessem ido comprar ração.                                                                   Não resultou que as arguidas conhecessem pessoas habilitadas na área das artes mágicas/ocultismo que vendem conselhos ao nível dos narrados na acusação pública nem que as confidências trocadas entre arguida e queixosas se tenham reportado ao assunto da paternidade da filha de P... nem que lhe tenham dado mais atenção após o episódio da EDP.                                                                                                                    Por apurar ficou ainda que a ofendida Piedade tivesse referido à arguida que necessitava de um empréstimo bancário ou que lhe tivesse pedido o que quer que fosse a este nível, designadamente, pedindo-lhe que fosse sua fiadora ou mesmo mutuária nem que a arguida a tenha informado acerca de qualquer empréstimo.                                                                                                                                                                   Também se não provou que as ofendidas mal falassem à arguida no café por vezes nem que, durante os telefonemas de Janeiro de 2008, a ofendida tivesse dirigido a arguida quaisquer expressões, para além de lhe pedir o dinheiro que lhe dera;                                                                                                                                                           Por último, não foi comprovado que as ofendidas tivessem colocado anúncio de trespasse no “Jornal de Coimbra”, com indicação do preço.                                                                                                           FUNDAMENTAÇÃO:                                                                                                                                                   Na medida em que os arguidos negaram os factos que lhes foram imputados, cumpre expor em síntese, o raciocínio seguido.                                                                                                                                                               O arguido deu conta de ter ido ao estabelecimento das queixosas um única vez, com a arguida, negando tudo o mais que vem descrito na acusação.                                                                                                     Por seu turno, a arguida explicou que começou efectivamente a frequentar o dito café e que, a certa altura, as queixosas lhe pediram dinheiro. Como não acedeu a tal pedido, aquelas cortaram então relações consigo. Negou, no mais, o libelo acusatório.                                                                                                                           No tocante às suas condições pessoais, afirmou que trabalhou apenas um ano por motivos fiscais, pois que nunca precisou de trabalhar realmente na medida em que o seu pai a “deixou bem”.                                     Instada, no entanto, não pretendeu ser precisa neste particular.                                                                As queixosas prestaram declarações de modo convergente, fluente, coerente e natural, indo ao encontro do relato da acusação.                                                                                                                                                  Registou-se a sua postura natural. Na verdade, não vieram “debitar” uma versão previamente estudada, sendo ostensivo que iam recordando os diferentes episódios à medida que iam sendo questionadas.             A versão que apresentaram saiu reforçada pelo depoimento de Isidro Francisco, pai e marido, respectivamente, das queixosas, que assistiu uma vez à entrega de dinheiro à arguida pela filha que lho pedira previamente. Merece destaque este depoimento. Com efeito, esta testemunha, apesar de ter estado fora boa parte do tempo em questão, em Angola, poderia ter apresentado um discurso mais apaixonado, poderia ter referido mais pormenores. Fácil teria sido, pois, ter dito que presenciara outras conversas mantidas com a arguida, por exemplo. Fácil teria sido, pois, vir apetrechado de mais pormenores para convencer o tribunal. Todavia, Isidro Francisco deu conta apenas do que tinha visto, i. é., do que tinha conhecimento directo, poupando-se a juízos de valor. O que reforçou e tornou inequívoca a sua intenção de falar verdade.                 A convergir no mesmo sentido, fluiu o testemunho de S..., que deu conta de a arguida lhe ter certo dia telefonado pedindo-lhe que justificasse às arguidas determinada quantia pedida bem como o paradeiro de uma outra dita vidente de nome E.... Pedido que a testemunha recusou. Deu ainda conta de ter assistido a um dos telefonemas que a queixosa P... fez para um dos números de telefone fornecidos pela arguida.                                                                                                                                                                                              As testemunhas XX… e Y… mostraram não ter conhecimento directo dos factos. Tal como T...que apenas viu a queixosas a conversarem com a arguida e ouviu falar das tentativas de suicídio da queixosa P....                                                                                                                                                                                                        MF… confirmou o episódio da EDP, de resto, relatado por arguida e ofendidas, constituindo aquele que foi o único denominador comum às versões trazidas.                                                                                              AS…, bancária, explicou que a arguida se dirigira ao seu local de trabalho perguntando se era possível alguém contrair empréstimo bancário sem autorização do marido.                                                           I…e explicou que trabalha como taróloga e que recebeu várias vezes as queixosas, que lhe ficaram a dever as consultas.                                                                                                                                                                   M... deu conta de que as queixosas lhe adquiriram diversos produtos esotéricos, exibindo os recibos.                                                                                                                                                                                 L..., por seu turno, explicou que antes de Maio de 2007, as queixosas pretenderam trespassar o estabelecimento, colocando anúncios nas vitrine, tendo a testemunha perguntado o valor, o qual achou elevado, desinteressando-se. Mais afirmou que um ex-namorado da queixosa P... lhe contou certo dia no estabelecimento de café da testemunha “Olha sabes, a P... tentou suicidar-se por minha causa. É verdade”.                                                                                                                                                                                   As testemunhas ouvidas foram mais ou menos fluentes. Todavia, mostraram um discurso coerente e natural, em nada infirmado por outros elementos de prova, sem prejuízo dos argumentos a seguir expendidos no tocante à testemunha M…. Excepção verificada apenas no tocante à testemunha L... que apresentou um relato pouco fluente e natural e até inverosímil no respeitante aos que o ex-namorado da queixosa P... lhe teria dito. Pois, fez referência a uma afirmação que imputou a um ex-namorado de P... sem contextualizar, designadamente a conversa, sem aditar mais pormenores da mesma e sem explicar até o tipo de amizade que a testemunha teria com aquele, que justificasse tal desabafo, bem como sem referir conversas posteriores.                                                                                                                                                  É certo que as queixosas não foram questionadas sobre se efectivamente procuraram ou não os serviços e produtos das testemunhas M… e …. Todavia, a verdade é que os factos de que estas vieram dar conta não abalam a versão das queixosas nem contendem com a resolução da causa. Natural seria, pois, que as ofendidas sentissem vergonha, o que não compromete a credibilidade dos depoimentos que apresentaram pelas razões supra tecidas. Sempre se dirá, no entanto, que se desconhecem as habilitações de tais testemunhas.                                                                                                                                                                    Por outro lado, é verdade que a testemunha M... afirma que as queixosas lhe pediram para relatar determinado facto em tribunal. Não foi, contudo, clara em esclarecer se pretendiam que mentisse ou que dissesse algo de que não tinha conhecimento. Todavia, inexiste qualquer razão para atribuir mais credibilidade a esta testemunha do que, v.g., à testemunha S... ou às queixosas. Isto, porque, além da coerência, fluência e adição de pormenores que escapariam à ficção que se verificou nos respectivos relatos, a verdade é que, em particular no confronto daquelas testemunhas, se verifica que a isenção é diferente. Com efeito, a testemunha S... respondeu de forma tranquila, sem adiantar informação, respondendo ao ritmo das questões formuladas, explicando que aconselhou um e outro lado (arguida e queixosas) a apresentar queixa em caso de se sentirem lesadas, procurando pouco envolvimento com a situação. Envolvimento que apenas não conseguiu de todo evitar porque a arguida C...lhe pedira para mentir às queixosas.                                           Acresce que a testemunha surge porque efectivamente existiu uma ligação entre as queixosas e aquela no âmbito dos factos em apreço.                                                                                                                                   Diferentemente, a arguida, que dera conta de não conhecer antes as queixosas, consegue descortinar o sítio onde as mesmas se aconselham com taróloga, afinal amiga da arguida, e compram produtos esotéricos. A referida testemunha M..., que afinal nada sabia dos factos, foi abordada ou abordou a arguida A…. Ora, mal se percebe por que se solidarizou logo com a arguida, se a não conhecia, e não com as queixosas, a quem, afinal, nem perguntara a razão do pedido e que eram suas clientes. Estranhou-se igualmente que tenha vindo equipada com o seu livro de recibos e que, instada acerca do aditamento de “Piedade” a “Maria “, com outra letra e caneta num dos recibos exibidos, tivesse dito que talvez tivesse acrescentado porque a filha preenchera mal.                                                                                                                   Neste quadro, afigura-se que o empenho em prejudicar as queixosas foi bem mais evidente e pensado do que o empenho eventualmente dedicado por S... em sentido inverso.                                                              Se as queixosas pretenderam anteriormente ou não trespassar o negócio também se não afigura relevante. Igual raciocínio no que toca aos rendimentos dos arguidos, pelo que se não deferiu toda a prova documental requerida.                                                                                                                                                           Também a questão bancária se mostra irrelevante. O facto de a arguida ter pretendido saber junto do banco se era possível alguém, designadamente F..., pedir empréstimo sem que o marido soubesse não significa que o não tenha feito motu próprio.                                                                                                     Saliente-se que nos documentos juntos atinentes à queixa-crime apresentada, verifica-se que a queixosa enviou mensagens escritas por telemóvel à arguida cujo teor corrobora na íntegra a versão aqui apresentada. Por outro lado, note-se que não seria necessário aditar que a arguida dissera que tinha o “dom do Sousa Martins”, pormenor até evidenciado apenas por P... -, ou que a tal vidente era de Mira. Note-se que a viagem a Mira foi pormenorizadamente relatada. Com efeito, as queixosas referiram com quem falaram, a placa com nome parecido que viram em determinado prédio que situaram, etc.                                                               Em suma, a particular fluência e coerência do relato das queixosas, o contributo das testemunhas F… e S... e as razões referidas que abalam os testemunhos mais importante em sentido contrário, formaram a convicção segura da veracidade do libelo acusatório, no essencial, no que respeita à arguida.                                                                                                                                                                                    Diferentemente sucedeu, porém, no caso do arguido, já que a prova produzida não foi suficiente para legitimar qualquer conclusão no tocante à conduta do mesmo. Pois, não obstante a primeira conversa em que o arguido esteve presente, confirmando os “feitos” da arguida e em que se comprometeu a trazer uma vela, a verdade é que se desconhece o que pensaria na realidade o arguido acerca do invocado “dom” da arguida. Desconhece-se ainda se teve conhecimento do desenrolar dos factos.                                                                                  Não se olvida que P... se convenceu de que foi o arguido que se fez passar por “viúvo” da dita E.... Também já se referiu que, atento o telefonema da arguida para S..., dúvidas não subsistem de que inexistia tal pessoa. Todavia, também ficou patente que apenas ao segundo ou terceiro telefonema foi dada tal informação, não se tendo apurado se tal interlocutor falou com a arguida e, na afirmativa, qual o teor da conversa. Acresce que a queixosa se capacitou de que era o arguido que atendia uma vez que o mesmo gaguejava por vezes. Ora, tal característica não é exclusiva do arguido.                                         De qualquer modo, não pode deixar de notar-se que, efectivamente, o arguido gagueja por vezes, sendo, no entanto, necessário manter alguns minutos de conversa para perceber isso mesmo. Ora, de acordo com a versão dos arguidos, nesse primeiro encontro em que o arguido esteve presente, arguidos e queixosas mal se falaram. Denominador comum foi também que, após isso, não se voltaram a encontrar. As queixosas referiram apenas a entrega de duas velas. Por conseguinte, seria muito pouco provável que a queixosa se tivesse apercebido de tal característica do arguido na versão que o mesmo apresentou.                                                             Importa agora olhar à prova feita da matéria invocada no enxerto cível.                                                    Com efeito, as regras da experiência comum levam a concluir pela ausência de nexo de causalidade entre a mentira de que as queixosas foram vítimas e as tentativas de suicídio e depressões da queixosa P....            A tais estados não teriam sido alheias possivelmente, entre outras, as questões de ordem financeira. Todavia, atendendo à idade das queixosas, à circunstância de uma delas ter uma criança pequena para educar, não se vislumbra tal nexo de causalidade. Na verdade, o que dizem as regras da experiência comum é que são as questões de ordem pessoal que conduzem as jovens as estados depressivos. A vergonha sentida também não parece assumir os contornos descritos no pedido cível, atenta a facilidade com que prestaram declarações.               Por último, sublinhe-se que é facto notório que o recurso a produtos esotéricos e a serviços de tarólogas e afins é frequente e é transversal às diversas classes sociais e faixas etárias, com predomínio dos epítetos “taróloga” em meios mais sofisticados e de “Bruxa” ou vidente” em meios mais humildes.                       Foi ainda tido em conta o teor dos CRC juntos aos autos.                                                                                             Para prova das respectivas condições sócio-económicas, valeram as declarações dos arguidos.                         O DIREITO:                                                                                                                                                                     Vêm os arguidos acusados da prática, em co-autoria material e em concurso real, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 1, do C. Penal                                                                              Dispõe o nº1 do art.217º que “Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial, é punido com prisão até três anos ou com pena de multa”.                                                                                                                                                                   Acrescenta o nº1 do artigo seguinte que “Quem praticar o facto previsto no nº1 do artigo anterior é punido, se o prejuízo patrimonial for de valor elevado, com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até seiscentos dias ”.                                                                                                                                                           No art. 202º, al. a) refere-se que o “valor elevado” corresponde ao que excede 50 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto.                                                                                                                                 Trata-se de um delito de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico (o património globalmente considerado) tem de ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento. Qual seja, a utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa em erro, o qual, por seu turno, a leva a praticar actos de que resultem prejuízos patrimoniais próprios ou alheios.                 Não basta, pois, o simples emprego de um meio enganoso. Torna-se necessário que ele consubstancie a causa efectiva da situação de erro em que se encontra o indivíduo. Nesse engano há-de residir a causa da prática, pelo burlado, dos actos de que decorrem os prejuízos patrimoniais. É nisto que consiste o denominado duplo nexo de imputação objectiva.                                                                                                                                             Pressupõe a referida indução em erro um conteúdo comunicacional com o sujeito passivo. O agente provoca na vítima uma falsa visão da realidade, nomeadamente através de uma qualquer manobra fraudulenta ou de uma mentira qualificada acompanhada por actos que reforcem e dêem uma maior credibilidade a essa visão deturpada da realidade.                                                                                                                                                            No recente Acórdão de 19.03.09 (disponível em www.dgsi.pt), o STJ sintetizou este elemento da seguinte forma: “O crime de burla surge como forma de captar o alheio em que o agente se serve do erro causado ou mantido através da sua conduta astuciosa ou do engano prolongado pela omissão do dever de informar para, através desta falsa representação da realidade, insidiosamente induzir a vítima a defraudar o seu património ou de terceiros ”.           A astúcia a que o preceito se refere pode consistir na invocação de um facto falso. Interessa é que os factos invocados dêem a uma falsidade a aparência de verdade. É indispensável que os actos além de astuciosos sejam aptos a enganar, não se limitando o burlão a mentir. Necessário se torna que na mentira revele engenho e habilidade, evidenciando uma maior intensidade no dolo e uma maior susceptibilidade de os outros serem convencidos. Neste particular, esclarece o STJ no aresto de 08.11.07, que “ Longe de envolver, de forma inevitável, a adopção de processos rebuscados ou engenhosos, a sagacidade do agente comporta uma regra de economia de esforço, limitando-se o burlão ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima. E a idoneidade do meio enganador utilizado pelo agente afere-se tomando em consideração as características do concreto burlado”.                                                                        Por erro, deve entender-se a falsa ou a nenhuma representação da realidade concreta, a funcionar como vício influenciador do consentimento ou da aquiescência da vítima.                                                                       É, pois, necessário concluir-se por praticas integradoras da indução em erro ou da força do engano, pois que só a partir da concretização dessas práticas e dos seus cambiantes envolventes, e lícito e possível exprimir um juízo válido e seguro acerca da vulnerabilidade do sujeito passivo da infracção e, consequentemente, da eficácia frutuosa da relação entre os actos configuradores da astúcia delineada e do erro ou engano engendrados e a cedência do lesado na adopção de atitudes a ele ou a outrem prejudiciais.                        Em suma, a astúcia existe quando os factos invocados dão a uma falsidade a aparência de verdade ou o burlão refira factos falsos.                                                                                                                                            Tratando de caso muito semelhante, o STJ, no Acórdão de 09.12.98, concluiu que “Se está provado que o assistente era crente em bruxaria mas não esta provado que se tenha decidido a fazer qualquer dadiva às arguidas apenas por imperativo da sua crença e só porque estas se arrogassem a sua condição de bruxas, então o caso em relação ao daquelas pessoas que voluntaria e livremente dão o seu contributo económico em favor de alguma pessoa ou organização que se afirma portadora de um inspirado projecto de vida melhor para os seus fieis em geral só tem de comum a predisposição interior para acreditar na existência dos outros poderes que não apenas dos que podem ser certificados ou atestados pela razão”.                                                                                 Mais considerou que os autos revelam que o assistente foi astuciosa e activamente induzido no erro de acreditar que não quaisquer bruxas mas as arguidas pelos seus específicos poderes e pelas práticas que concretamente lhes fizeram crer que dominavam iam curar a esposa daquele. E foi sempre nesse convencimento que o último pagou, sempre como condição de continuação do tratamento e por estar convencido de que só assim seria possível a cura.   Não se olvida que, não obstante a tendência que se esboça, não é ainda pacífico no plano doutrinal o conceito de “astúcia”.Ganha, no entanto, vantagem o entendimento de que a astúcia se revela na análise da combinação que o agente faz da antecipação das reacções do sujeito passivo com a escolha dos meios idóneos para conseguir o objectivo em vista. Sagacidade orientada por uma economia de esforço, sendo que o meio adequado pode ser totalmente desprovido de qualquer sofisticação se assim se mostrar também a vítima (neste sentido, v., A. M. Almeida Costa, in Comentário Conimbricense, e Fernanda Palma/Rui Pereira, in RFDL 1994-327).                                                                                                                            No caso que nos ocupa, a arguida referiu que tinha um dom, que podia ajudar as queixosas, que já antes ajudara muita gente, relatando um exemplo concreto respeitante ao funcionamento do motor de uma camioneta que não “pegava” e dizendo que a filha bebé da ofendida P... estava doente. Deu conta ainda de que lhe faziam mal e que o colocavam – ao mal -, debaixo do tapete, sendo necessário proceder à limpeza do estabelecimento das queixosas com água e sal para limpar o mal.                                                                                   De início, foi apenas isto que a arguida necessitou de dizer para convencer as queixosas. Induziu-as em erro e foi por, erradamente tomarem por real o dito dom que as ofendidas entregaram mais de €9.000,00, ao todo, à arguida.                                                                                                                                                                          ASSIM, VERIFICADOS O ERRO E O NEXO CAUSAL ENTRE ESTE E O PREJUÍZO SOFRIDO, CUMPRE TÃO-SÓ INDAGAR SE A CONDUTA DA ARGUIDA REVELOU IGUALMENTE ASTúCIA.     Com efeito, a arguida não se limitou a mentir. É certo que pouco teve de se esforçar. Todavia, para quem se encontra fragilizado e permeável a qualquer tipo de promessa de ajuda, ouvir por um estranho que a filha está doente e tomando isso como um facto de que a pessoa não poderia ter conhecimento se não possuísse o dito dom transcendente, bem como o relato de um exemplo concreto de intervenção milagrosa, é suficiente e adequado a convencer. Foi isso que a arguida foi percebendo, mantendo o engano meses a fio, sem descurar a manutenção da confiança depositada, referindo pormenores mais elaborados. Em suma, foi aqui que se revelou a astúcia, i. é., a inteligência da arguida, nesta escolha de factos que referiu e no registo em que o fez, indo ao encontro dos pontos fracos de uma jovem mãe solteira, simpatizante de produtos esotéricos, a empreender um estabelecimento comercial num meio pequeno em tempo de crise e com concorrentes instalados em local próximo. Factos e registo que, face a este contexto de vida, a arguida intuiu que convenceriam as arguidas do dito “dom”, o que foi confirmando com o decurso do tempo.                                          Neste quadro, sabendo ainda a arguida que a sua conduta era proibida e punida por lei, verificados estão os elementos objectivo e subjectivo do crime pelo qual a arguida vinha acusada.                                       Inexistindo qualquer causa de exclusão da culpa e da ilicitude, forçoso é concluir que a arguida praticou efectivamente tal crime, ao qual presidiu uma única resolução criminosa.       Esclareça-se que não estamos em face de forma continuada, já que, como é bem de ver, a resolução inicial abarcou as várias intervenções registadas.                                                                                                                                                                Não se provou que o arguido tivesse agido com o mesmo propósito da arguida, sequer que o conhecesse.                                                                                                                                                                             É certo que também se não provou o contrário, i. é., que não foi o arguido a praticar os factos constantes da acusação.                                                                                                                                               Todavia, um dos princípios basilares do nosso sistema processual penal, com acolhimento na Lei Fundamental e, de resto, em todas as Convenções Internacionais relacionadas com os Direitos Humanos, é precisamente o princípio da presunção de inocência. Dispõe, pois, o art.32º, nº5 da CRP que “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.                                                                  Significa este princípio, no seio do actual processo penal português, que os arguidos se presumem inocentes até prova em contrário produzida em audiência de julgamento (art. 32º, nº2 da C.R.P. e art.355º, nº1 do C.P.P., relativo à proibição de valoração de provas que não tenham sido produzidas em audiência).                               Consequentemente, não é necessário ao arguido em processo penal provar que não cometeu os factos de que veio acusado, pois tem a seu favor uma presunção legal de inocência. A lei liberta-o desse ónus, que poderia ser insuportável, provando por ele que não cometeu os factos, ou seja, ficcionando a sua inocência. Um dos corolários ou decorrências deste princípio, é a velha máxima in dubio pro reo. É esta que norteia a forma como o julgador deve valorar a prova feita e decidir com base nessa prova, solvendo o problema da dúvida sobre os factos e determinando que, na dúvida quanto ao sentido em que aponta a prova produzida, o arguido tem que ser absolvido.                                                                                                                    Conforme sublinham G. Canotilho e Vital Moreira (in Constituição da República Portuguesa anotada, 1º vol. –215), “os princípios da presunção de inocência e do “in dubio pro reo” constituem a dimensão jurídico-processual do princípio jurídico-material da culpa concreta, como suporte axiológico-normativo da pena”.                                                                                                                                                                                                         Por outro lado, a própria obrigatoriedade da fundamentação das sentenças que a lei impõe é uma das mais importantes garantias de um Estado-de-Direito Democrático, traduzindo-se num factor, hoje tão invocado, de transparência da Justiça. Ora, essa fundamentação só será possível e clara se o julgador estiver certo relativamente à questão de facto solvenda, com apoio em provas concretas e inequívocas.                                               Assim, um arguido apenas será condenado, se, em audiência de julgamento, se lograr provar que, efectivamente, cometeu os factos que lhe são imputados, por forma a ilidir aquela presunção. Caso isto não aconteça, i. é., se o tribunal se não convencer mediante provas concretas e inequívocas de que o arguido cometeu os factos, terá de o absolver. O que tem ainda outra consequência: o arguido será também absolvido quando, não obstante ter a acusação feito prova, não seja a mesma suficientemente consistente para ultrapassar toda e qualquer dúvida. Ou seja, quando não demonstre a culpa do arguido de forma absolutamente inequívoca.                                                                                                                                                          Não é, pois, qualquer prova que tem o alcance de ilidir a presunção de inocência, mas apenas aquela que conduza à certeza da culpa, sem margem para dúvidas. A este propósito, pronunciou-se o STJ em acórdão proferido em 12.10.00, (in www.dgsi.pt), sustentando que “...existindo um laivo de dúvida, por mínimo que seja, sobre a veracidade de um facto em que se alicerça uma imputação, ninguém pode ser condenado com base nesse facto. Logo, a punição só pode ter lugar quando o julgador, face às provas produzidas, adquire a convicção da certeza da imputação feita ao acusado(...)”.                                                                                                           Se no espírito do julgador permanecer qualquer dúvida razoável, terá que ter lugar a absolvição. Entende desde há muito a civilização ocidental que mais justo será um culpado livre do que um inocente preso.     Em suma, da análise crítica da prova produzida, conjugando os depoimentos prestados, não conseguiu o tribunal ultrapassar o estádio da dúvida razoável, quanto à questão de facto em discussão. Acresce que não se está neste processo em domínio onde se pudesse recorrer às regras da experiência.                                                        Assinale-se ainda a este propósito que outra decorrência da máxima in dubio pro reo que assume enorme relevância prática traduz-se precisamente em impedir o julgador de tomar uma decisão segundo o seu critério ou convicção, no que respeita aos factos duvidosos desfavoráveis ao arguido. Neste sentido, a citada máxima funciona como um verdadeiro limite ao princípio da livre apreciação da prova pelo julgador.

Nesta confluência, terá o arguido de ser absolvido.                                                                                               O CRIME DE BURLA QUALIFICADA É PUNÍVEL COM PENA DE PRISÃO Até CINCO ANOS OU COM PENA DE MULTA ATÉ SEISCENTOS DIAS.                                                                                                              Não obstante o carácter de ultima ratio que assumem actualmente no nosso sistema penal as sanções privativas da liberdade, e, bem assim, a ausência de antecedentes criminais, afigura-se que, no caso em apreço, uma pena de multa não será suficiente para advertir a arguida, levando-a a ponderar as consequências da prática de outros ilícitos da mesma natureza, satisfazendo também as exigências de prevenção geral. Pois, a postura tomada, negando os factos, e a conduta mantida durante perto de nove meses revelam uma personalidade bastante desconforme ao direito que apenas poderá ser modificada através de um forte impacto.           A determinação da medida da pena é feita dentro dos limites definidos na lei em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo certo que, conforme resulta do nº2 do art.40º do mesmo diploma, em caso algum poderá ultrapassar a medida da culpa.                                                                                                    Para tanto, na determinação concreta da pena de multa, o tribunal atenderá a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor da arguida ou contra ela.                                                        O grau de censura de que são passíveis os seus comportamentos situa-se a um nível elevado, já que a arguida não olvidava os problemas de ordem económica e pessoal que as queixosas atravessavam. Por outro lado, não resultou que a arguida se deparasse com qualquer aperto financeiro. Antes pelo contrário. A moderar a medida da culpa concorre apenas o facto de a arguida não ter empreendido um grande esforço na concretização do seu propósito criminoso. Na realidade, tendo em conta a era da informação e da globalização em que vivemos e a circunstância de uma das queixosas ter estudado até ao 12º ano, dir-se-ia que foi tudo muito fácil para a arguida.                                                                                                                                                          A licitude reveste uma gravidade relativamente reduzida, atento o valor em questão e aqueles que ainda poderiam caber no preceito.                                                                                                                                                As necessidades de prevenção geral são muito elevadas, pois numa Sociedade obcecada com o lucro, por uma lado e com novas necessidades, por outro, que se depara com uma crise económica generalizada, comportamentos deste tipo são cada vez mais frequentes.                                                                                                         Por seu turno, o grau de sacrifício a impor à arguida para lograr conseguir -se que, doravante, a mesma paute o seu comportamento de acordo com o direito, i. é., o grau de sacrifício necessário a causar na sua vida o impacto suficiente capaz de levá-la a ponderar as consequências da prática de novos ilícitos da mesma natureza e a dissuadi-la dessa mesma prática, - a isto se chamam necessidades de prevenção especial -, parece situar-se a um nível elevado pela mesma ordem de razões que determinaram a opção pela pena de prisão.                                                                                                                                                                                                            Tudo ponderado, sendo certo que a medida da culpa constitui o limite da medida da pena e que a medida das necessidades de prevenção geral constitui o seu limite mínimo, reputa-se suficiente e adequada a pena de seis meses de prisão.                                                                                                                                                           Resulta do art. 50º, nº1, do Cód. Penal que “O tribunal suspende a pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior  ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.                                                                           O nº2 prevê a possibilidade de a suspensão ser condicionada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, podendo ainda ser acompanhada de regime de prova.                                   O período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão mas nunca inferior a um ano.                  A escolha de uma pena de substituição como é a suspensão da execução da pena pressupõe a emissão de um juízo de prognose favorável ao agente, baseada num risco prudencial. Funciona como um instituto em que se une o desvalor ético-social contido na sentença com o apelo - fortalecido pela ameaça de executar no futuro a pena -, à vontade do condenado em se integrar na Sociedade.                                                                       Contudo, o risco a assumir deve ser prudente. Se existirem sérias dúvidas acerca da capacidade do condenado para compreender a oportunidade da ressocialização que se oferece, a prognose deve ser negativa. A escolha desta pena de substituição deve ainda atender às exigências de prevenção geral positiva para que a reacção penal responda adequadamente às expectativas comunitárias na manutenção e reforço da validade da norma violada e assegure a protecção do bem jurídico violado.                                                                  O balanceamento terá que ser operado entre as finalidades de prevenção geral positiva e de prevenção especial de socialização, em que a primeira exerce função delimitadora da segunda (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 16.07.08, disponível em _www.dgsip.pt).                                                                                             No caso vertente e tendo ainda em atenção o princípio da adequação da pena, reputa-se que as necessidades de prevenção especial e geral ficarão ainda satisfeitas com a suspensão da execução da pena de prisão subordinada a obrigações que, por um lado, integrem a arguida no mundo do trabalho, e, por outro, lhe proporcionem reflexão acerca do respeito devido às outras pessoas, designadamente, pelo seu trabalho. Tendo em conta que a arguida sabia das dificuldades sentidas pelas queixosas, a sua conduta revelou uma total indiferença não só pelo bem jurídico atingido como pela pessoa das envolvidas de modo geral. Acresce que se afigura igualmente que o modus operand da arguida é reflexo da desocupação em que a mesma vive. Importa assim que, no âmbito de um Plano de Reinserção Social a elaborar pela DGRS, nos termos do art.s 52º e seguintes do Cód. Penal, sujeitando-a, pois, a Regime de Prova, a arguida trabalhe, desenvolva acções úteis à Comunidade, designadamente em regime de voluntariado, partilhe experiências e reflexões acerca do peso custos-benefício com agentes do mesmo tipo de crime que se encontrem presos, e, por último, que despiste eventual desvio de personalidade que constitua patologia.                                                                                                          DO PEDIDO CíVEL:                                                                                                                                                     Nos termos do disposto no art.129º do Cód. Penal, a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.                                                                                                                                         Reiterando as considerações supra aduzidas, conclui-se que reunidos estão os pressupostos previstos nos art.s 483º e 563º, do Cód. Civil. A saber, repisando, a culpa já aflorada, a ilicitude consubstanciada na agressão do património das ofendidas através de um específico modus operandi; o nexo causal entre o facto culposo e o prejuízo sofrido.                                                                                                                                                 A propósito dos danos não patrimoniais, prescreve o art. 496º do Cód. Civil, no seu nº1, que “ Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”.                                                                                                                                                                        Alguma doutrina, de que é representativa a posição do Professor Antunes Varela, entende que o dano moral deve ser de tal modo grave que justifique a concessão da indemnização pecuniária ao lesado. Considera o Professor que a gravidade se mede por um padrão objectivo, conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias concretas, e deve apreciar-se em função da tutela do direito.                                                             Nos antípodas desta, consideram as teorias subjectivistas que a gravidade se afere em função das qualidades pessoais dos envolvidos.                                                                                                                            Entende-se que a primeira posição enunciada é a mais razoável e, de resto, a mais consentânea com a letra da lei. A apreciação da gravidade do dano não patrimonial, embora tenha de assentar no circunstancialismo concreto envolvente, deve operar sob um critério objectivo, em quadro de exclusão, tanto quanto possível, da subjectividade inerente a alguma particular sensibilidade do lesado (cfr. o Aresto do STJ, 23.04.09, disponível na mesma fonte).                                                                                                                              Os interesses cuja lesão desencadeia um dano não patrimonial são infungíveis, não podendo ser reintegrados mesmo por equivalente. Mas é possível, em certa medida, contrabalançar o dano, i. é., compensá-lo mediante satisfações derivadas da utilização do dinheiro. Não se trata, pois, de atribuir ao lesado um “preço de dor” ou um “preço de sangue”, mas de lhe proporcionar uma satisfação, em virtude da aptidão do dinheiro para proporcionar a realização de uma ampla gama de interesses (v. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 1992, 125). Interesses, designadamente, imateriais, atrevemo-nos a acrescentar.                                                               A lei remete a fixação do montante indemnizatório por danos não patrimoniais para juízos de equidade, haja culpa ou dolo (496º, nº.3), tendo em atenção os factores referidos no art. 494º (grau de culpabilidade do agente, situação económica deste e do lesado e quaisquer outras circunstâncias).                        Por “quaisquer outras circunstâncias”, referidas no art. 494º, vem-se entendendo a idade da vítima, a natureza das suas actividades, as incidências financeiras reais, possibilidades de melhoramento, reeducação e melhoramento de reeducação e de reclassificação.                                                                                                                        Tudo ponderado, e tendo em conta os valores que, em casos algo similares, vêm sendo atribuídos, reputa-se justo fazer corresponder a compensação por danos não patrimoniais à quantia de (mil e quinhentos euros) €1.500,00 (v. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 27.06.07, disponível em www.dgsi.pt). Dispõe o artigo 562º do Cód. Civil que quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à indemnização. Acrescenta o artigo 563º que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.                                                                                                                                                                  Tal reconstituição, no caso dos autos, mostra-se possível ao nível dos danos patrimoniais.                               Não se fez prova no tocante ao valor de velas, telefonemas ou viagens. Acresce que tais despesas não derivaram directamente da conduta da arguida/demandada (raciocínio que se torna mais nítido se atentarmos na hipótese de a arguida ter referido que a dita E... vivia em Espanha e as ofendidas se terem instalado uns dias num Hotel para procurá-la), falhando assim o elemento constitutivo da obrigação de indemnizar, atinente ao nexo causal entre o facto e o dano. Recorde-se que, de acordo com a lei vigente, um facto será causal de determinado dano se for causa adequada e provável de tal produção (a propósito da noção de “causalidade”, v., v.g., o Acordão de 23.04.09, disponivel em  www.dgsi.pt).                                                                                                              Assim sendo, deve a arguida devolver – apenas – as quantias com que se locupletou indevidamente (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28.05.09, disponível na mesma fonte).                                           DECISÃO:                                                                                                                                                                        Pelo exposto, decide-se:                                                                                                                                                             - ABSOLVER O ARGUIDO A... DA PRÁTICA DO CRIME DE BURLA QUALIFICADA P. P. PELOS ART.S 217º, Nº1 E 218º, Nº1, DO COD. PENAL DE QUE VINHA ACUSADO;

          - CONDENAR A ARGUIDA C... PELA PRÁTICA DE UM CRIME DE BURLA QUALIFICADA P. P. PELOS ART.S 217º, Nº1 E 218º, Nº1, DO COD. PENAL, COM REFERêNCIA AO ART. 202º, AL.A), DO MESMO DIPLOMA, NA PENA DE SEIS MESES DE PRISÃO.               MAIS SE DECIDE SUSPENDER POR UM ANO A PENA DE PRISÃO APLICADA COM CONDIÇÃO DE A ARGUIDA CUMPRIR AS PRESCRIÇÕES ATINENTES AO PLANO DE REINSERÇÃO SOCIAL A ELABORAR PELA DGRS, NO ÂMBITO DE REGIME DE PROVA, E QUE DEVERÁ INCLUIR, ENTRE O MAIS, A INTEGRAÇÃO EM POSTO DE TRABALHO OU INSCRIÇÃO EM CENTRO DE EMPREGO; A SUJEIÇÃO A CONSULTA DE PSICOLOGIA E PSIQUIATRIA E CUMPRIMENTO DE TRATAMENTO QUE EVENTUALMENTE LHE VIER A SER PRESCRITO, ACTIVIDADES DE VOLUNTARIADO COM FREQUÊNCIA, PELO MENOS, SEMANAL, EM INSTITUIÇÕES A INDICAR PELA DGRS, E VISITAS A CONDENADOS PRESOS PELA PRÁTICA DO MESMO TIPO DE CRIME, COM FREQUÊNCIA, PELO MENOS, MENSAL.                                                                                                                    Mais se julga parcialmente procedente o pedido cível e, consequentemente, condena-se a demandada a pagar à demandante P... as quantias de €9.185,00 (nove mil, cento e oitenta e cinco euros), a título de danos patrimoniais acrescida de juros desde a citação até efectivo e integral pagamento, e de €1.500,00 (mil e quinhentos euros) a cada uma das demandantes, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros desde a presente sentença ate efectivo e integral pagamento.                                                                                      Vai ainda a arguida condenada no pagamento das custas do processo, fixando-se em 2 UC a taxa de justiça.                                                                                                                                                                                                            Custas cíveis por demandantes e demandada em partes iguais.                                                           Notifique a DGRS para elaborar Plano de Reinserção Social em conformidade.                 Notifique e deposite.”

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III. Apreciação dos Recursos:

O objecto de um recurso penal é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do C.P.P.

Na realidade, de harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. –  Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).

         São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».

Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais para se obter o reexame da matéria que foi sujeita à apreciação da decisão recorrida e não vias jurisdicionais para um novo julgamento.

As declarações oralmente prestadas em audiência foram documentadas em acta por referência aos respectivos suportes áudio, nos termos estipulados no artigo 363.º do C.P.P.

Deste modo, deverá conhecer este Tribunal de facto e de direito, de acordo com o artigo 428.º, n.º 1, do C.P.P.                                                                      As questões a conhecer são as seguintes:

1. Saber se há, na sentença recorrida, os vícios previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. a), b) e c), do CPP;

         2. Saber se os factos provados (2 a 41) devem ser dados como não provados;

         3. Saber se existe nulidade, por ter havido omissão de diligências requeridas pela arguida;

         4. Saber se estão preenchidos todos os elementos do tipo legal de crime de burla;

         5. Saber se a sentença é nula, decorrente de falta de fundamentação, a que alude o artigo 379.º, n.º 1, al. a), ex vi artigo 374.º, n.º 2, ambos do CPP;

         6. Saber se as medidas aplicadas, em sede de regime de prova, violam os direitos de personalidade da arguida e são desadequadas à luz da CRP e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

                                                        ****

         Questões n.º 1 e n.º 2:

         Por uma questão de lógica, há que abordar ambas em conjunto.

         Desde já, há que fazer uma pergunta.

A recorrente pretende, ao fim e ao cabo, invocar vícios oficiosos do artigo 410º, do CPP, assim impugnando a matéria de facto dada como provada, ou pretende reapreciar a matéria dada como provada, nos termos do artigo 412º, n.º 3 do CPP?                                                                                   Não há que confundir estas duas formas de impugnação da matéria factual – por um lado, a invocação dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, alíneas a). b) e c), e por outro, os requisitos da impugnação – mais ampla - da matéria de facto a que se refere o artigo 412º, n.º 3, alíneas a), b) e c), todos do CPP.

Aliás, tal ficou, de algum modo, já expresso, no despacho de fls. 592/595, de 5/5/2010, no qual não foi admitida a renovação da prova requerida pela recorrente.                                                                                                                                ****                                                          Estabelece o art. 410.º, n.º 2, do CPP, que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:                                                                                   a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;                        b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;                                                                                                           c) Erro notório na apreciação da prova.                                                     Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.                                                                                        A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.                                         A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.              Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.           O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).          Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).                                       Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).                                             Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício. 

                                                       ****                                                   Por sua vez, o erro de julgamento, consagrado no artigo 412º, nº 3, do CPP, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.                                                                   Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.                     Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do CPP.                                                                                                                    Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.    E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º3, do C.P.Penal:                               «3.Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:                                                                                   a)- Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;         b)-As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;              c)-As provas que devem ser renovadas».                                                   A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.

                                               ****

Podemos, então, concluir que a circunstância da recorrente discordar da valoração da prova feita pelo tribunal recorrido pertence, antes, ao domínio da impugnação da convicção do tribunal a quo, questão a ser analisada de acordo com o disposto  nos termos do artigo 412.º, n.º 3 e n.º 4, do CPP.

Como vem sendo entendido pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores – ver, nesse sentido, o Ac. do S.T.J. de 11/1/2001, proferido no Processo n.º 2191/00, 5ª Secção -, “impugnando no seu recurso a matéria de facto, impondo-se, consequentemente, a confrontação entre a prova produzida e o alegado na motivação, mas não satisfazendo o recorrente essa exigência não pode apreciar-se o thema decidendum, por ser impossível a dissecação ideológico-anatómica da prova”.

Com este enquadramento de ordem geral, importa, em seguida, reter que as mencionadas especificações não podem ser meras remissões para os números e lados das cassetes, devendo, antes, conter a indicação concreta das metragens da fita gravada.

Tenhamos presente, nesse sentido, o Ac. do S.T.J. de 24/10/2002, proferido no Processo n.º 2124/02, em que pode ser lido o seguinte: “(…) o labor do tribunal de 2.ª Instância num recurso de matéria de facto não é uma indiscriminada expedição destinada a repetir toda a prova (por leitura e/ou audição), mas sim um trabalho de reexame da apreciação da prova (e eventualmente a partir dos) nos pontos incorrectamente julgados, segundo o recorrente, e a partir das provas que, no mesmo entender, impõem decisão diversa da recorrida – art.º 412.º, n.º 3, als. a) e b) do C.P.P. e levam à transcrição (n.º 4 do art.º 412.º do C.P.P.).

Se o recorrente não cumpre esses deveres, não é exigível ao Tribunal Superior que se lhe substitua e tudo reexamine, quando o que lhe é pedido é que sindique erros de julgamento que lhe sejam devidamente apontados com referência à prova e respectivos suportes”.

Mais, como se observa no Acórdão do S.T.J. de 26/1/2000, publicado na Base de Dados da DGSI (www.dgsi.pt) sob o n.º SJ200001260007483: “Não são os sujeitos processuais (nem os respectivos advogados) quem fixa a matéria de facto, mas unicamente o Tribunal que apura os factos com base na prova produzida e conforme o princípio da livre convicção (artigo 127.º, do Código de Processo Penal), aplicando, depois, o direito aos mesmos factos, com independência e imparcialidade”.

                                                        ****

A recorrente defende, em sede de apreciação de facto, que não existe prova que justifique a sua condenação, uma vez que foram incorrectamente julgados os pontos 2 a 41, sendo certo que os mesmos deveriam ser considerados como não provados.

Ao alegar o que consta das suas motivações, a recorrente está, em síntese, a impugnar a convicção adquirida pelo tribunal a quo sobre determinados factos, em contraposição com a que sobre os mesmos aquele adquiriu em julgamento, esquecendo-se da regra da livre apreciação da prova inserida no artigo 127.º, do C.P.P., segundo o qualSalvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.

Prova livre não significa prova arbitrária ou caprichosa, antes quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos. Se O tribunal decidisse como lhe apetecesse não apreciaria livremente as provas, antes estaria a desprezá-las…

Ora, não se extrai que o tribunal tenha procedido a um julgamento arbitrário da prova produzida. E a valoração por este feita não tem que coincidir com aquela que o recorrente pretende ver operada.

A livre apreciação da prova significa, em resumo, que esta deve ser feita de acordo com a convicção íntima do juiz. Aliás, já Chiovenda o afirmava, citando o imperador Adriano, conforme pode ler-se no Digesto 3, 2, De testibus, 22, 5…

 À valoração do tribunal preside um juízo atípico, porque fundando-se nas regras da experiência, isto é em critérios generalizadores e tipificados, índices corrigíveis, critérios definidores de conexões de relevância, orientam os caminhos da investigação e oferecem probabilidades conclusivas, mas sempre tendo presente a individualidade histórica do caso concreto, tal como ela foi adquirida representativamente no processo, pelas alegações, respostas, inquirições e outros meios de prova disponibilizados[1].

E se é certo que o princípio da livre apreciação da prova não pode ser confundido como uma apreciação judicial arbitrária - ou, na expressiva fórmula de Paolo Tonini “o conflito entre a acusação e a defesa não pode ser resolvido com base num acto de fé[2] -, e que a livre convicção do juiz não pode ser meramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável[3], certo é, também, que a “verdade material que se busca em processo penal, não é o conhecimento ou apreensão absolutos de um conhecimento, que todos sabem escapar à capacidade de conhecimento humano; tanto mais que aqui intervêm, irremediavelmente, inúmeras fontes de possível erro, quer porque se trata do conhecimento de acontecimentos passados, quer porque o juiz terá as mais das vezes de lançar mão de meios de prova que, por sua natureza - e é o que se passa sobretudo com a prova testemunhal -, se revelam particularmente fiáveis».[4]

E assim, como ensina o insigne Professor, “a convicção judicial será suficientemente objectivável e motivável quando o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos, para além de toda a dúvida razoável. Não se tratará, pois, na “convicção”, de uma mera opção “voluntarista” pela certeza de um facto e contra toda a dúvida, ou operada em virtude da alta verosimilhança ou probabilidade do facto, mas sim de um processo que só se completará quando o tribunal, por uma via racionalizável pelo menos a posteriori, tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse».

Consabidamente, a verdade que o direito encerra é a «processualmente demonstrada por recurso às provas carreadas para os autos, sujeita a todos os limites que, por definição, tem o espírito humano na tentativa de conhecer e compreender o real. O conhecimento da verdade (correspondente ao “pedaço de vida” acontecido) «na maioria das situações pressuporia uma impossível incursão na mente humana, empreitada essa, de patente que é, não necessita de ser sublinhada».[5]

Intimamente ligados ao princípio da livre apreciação da prova estão os princípios da continuidade da audiência, ou da concentração, oralidade e imediação da prova.

Quanto aos dois últimos, constituem a um tempo decorrência lógica do princípio da livre apreciação da prova e “conditio sine qua non” para a respectiva admissibilidade. Com efeito, apenas quem tenha assistido à produção da prova e às disposições assumidas pela acusação e pela defesa poderá estar capaz, no fim da discussão, de se considerar convicto de uma determinada verdade, podendo proceder ao julgamento. Paralelamente, a oralidade permite com muito maior probabilidade aceder a um discurso directo, espontâneo, não ensaiado e vivo, o que obviamente contribui para um aumento das possibilidades de descoberta da verdade e de formação de uma correcta convicção.

Quando a atribuição de credibilidade a uma dada fonte de prova se baseia numa opção do julgador assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só pode exercer censura crítica se ficar demonstrado que o caminho de convicção trilhado ofende patentemente as regras da experiência comum.

No caso em apreço, a decisão recorrida, não o esqueçamos,  encontra-se bem fundamentada, oferecendo um raciocínio linear, lógico e perceptível, não sendo vislumbrada qualquer incorrecta apreciação da prova, nomeadamente quanto à medida e extensão da credibilidade que mereceram (ou não) os depoimentos prestados durante o julgamento, em conjugação com todos os outros elementos de prova.

No acórdão recorrido, foi dada credibilidade a determinadas fontes de prova, sendo certo que a opção do Tribunal assentou na imediação e na oralidade, não tendo resultado que a mesma seja inadmissível perante as regras da experiência comum.

Concretizemos o que acaba de ser referido.

Quais as provas que, no entender da recorrente, impõem uma decisão diversa da encontrada?

         Tal vem expresso nas conclusões n.º 3, n.º 8 e n.º 14.

         Começa por considerar que as próprias declarações das queixosas impõem decisão diversa, por revelarem incongruências e contradições. 

Ora, nesta parte, nada há que possa impor uma alteração de facto.

 Estamos, apenas, perante meras contradições de pormenor nas declarações das queixosas (essenciais, para a recorrente, admissíveis, para o tribunal a quo).

Na realidade, a recorrente acaba por salientar algumas contradições com pouco relevo, tendo por referência o cerne da questão (alegação de dificuldades financeiras/existência de poupanças/apuro diário do café, prova dos pagamentos efectuados á arguida, serviços prestados por uma anterior testemunha, S..., proveniência de 5000 euros, atrasos nos pagamentos da renda, relações com as pessoas do restaurante ao lado, doença da menina/reduzido rendimento do Café).

Note-se, até, que o Tribunal a quo esteve, necessariamente, atento a esse aspecto, pois, na sua fundamentação, salienta que «as queixosas prestaram declarações de modo convergente, fluente, coerente e natural, indo ao encontro do relato da acusação.         Registou-se a sua postura natural. Na verdade, não vieram “debitar” uma versão previamente estudada, sendo ostensivo que iam recordando os diferentes episódios à medida que iam sendo questionadas».

Isto só pode significar que o Tribunal a quo considerou, como não poderia deixar de ser, a totalidade das declarações das queixosas que se prolongaram no tempo, como resulta do registo da gravação (mais de uma hora).

É inquestionável que as declarações das queixosas foram no sentido que consta dos factos provados.

Às vezes, é necessário relembrar uma evidência.                                  Pois bem, aqui fica uma registada – São raros os casos em que, num julgamento, não ocorrem contradições entre os ofendidos, entre as testemunhas, a menos que, anteriormente, tenha havido uma preparação prévia nesse sentido…

Em boa verdade, a arguida não apresenta um conjunto de declarações que sustente e que imponha uma versão contrária à do tribunal recorrido, sendo certo que esta se apresenta harmoniosa, coerente e segundo as regras da experiência comum.

De facto, a análise feita pela recorrente surge apenas pela negativa, não sendo transmitido qualquer conjunto de declarações que, pela sua conjugação, e pela positiva, possa impor uma decisão contrária à do tribunal recorrido.

Nunca é demais insistir neste ponto, para que haja uma alteração da matéria de facto, tem que haver uma demonstração concludente que a imponha, de acordo com os princípios acima expostos.                               Como todos sabem, regra geral, são feitas muitas afirmações em julgamento cuja importância é reduzida, ou, até, mesmo nula. É quase impossível fugir a isso, cabendo ao julgador filtrar tudo o que é dito, nomeadamente contradições, a fim de obter o que importa de verdade ao caso em apreço.

Neste domínio, há que fazer apelo ao que ensina Musatti, “Elementi della psicologia della testimonianza”, pág. 6, ou seja, “às vezes, um depoimento sem lógica, contraditório, é considerado pouco fiel, porque se julga que a testemunha não se recorda bem, ou então pouco sincero, ao passo que os testemunhos correntes dão uma impressão de fidelidade e de veracidade; e pode ser o contrário, provindo o primeiro de uma dificuldade em se exprimir, ou de um fenómeno de timidez, ao passo que a naturalidade do segundo pode derivar de uma hábil preparação”.

                                               ****

Indo um pouco mais longe, importa, ainda, dizer algo a propósito das declarações das queixosas, e no que tange às conclusões n.º 5 a 7.

Começando por esta última, não tem a mesma razão de ser, independentemente do direito à crítica que deve estar sempre inerente a qualquer decisão judicial.

Com efeito, o facto do arguido se presumir inocente até ao trânsito em julgado de uma sentença condenatória não pode impedir que, durante a audiência, se aluda ao crime em discussão, sob pena da mesma se transformar em algo abstracto, próprio de um exercício de puro academismo.

Uma audiência é algo de concreto e não pode a recorrente negar que, nos autos, está em causa a prática de crime de burla. O objecto do processo é esse!

A circunstância da Meritíssima Juiz ter referido que “burlas destas…entre aspas…sem imprimirmos o sentido técnico à questão…burlas destas…entre aspas…tomamos conhecimento delas muitas vezes na televisão” (aquando do depoimento da queixosa P... – 4:45) em nada pode ter afectado a presunção de inocência dos arguidos. Como se dúvidas houvesse, a decisão de absolver o arguido António Coelho é disso bem elucidativo…  

Quanto à formulação de perguntas insidiosas e sugestivas, a recorrente, na sua Motivação, depois de afirmar que “muitas das respostas dadas pelas queixosas são fruto de perguntas que já continham em si a resposta, limitando-se estas a confirmar ou a infirmar a mesma”, acrescenta, “neste sentido, do depoimento de P..., vejam-se:”. De seguida, enumera diversas perguntas e respostas (fls. 534 e 535).

Logo, se bem repararmos, no que diz respeito à inquirição da queixosa F..., nada é apontado.

Assim sendo, nada há que referir.

Resta a inquirição de P....                                                                                             Às testemunhas não devem ser feitas perguntas sugestivas ou impertinentes, nem quaisquer outras que possam prejudicar a espontaneidade e a sinceridade das respostas, de acordo com o artigo 138º, n.º 2, do CPP.              Uma vez que ao juiz incumbe, no âmbito dos poderes de disciplina e de direcção da audiência, garantir o contraditório e impedir a formulação de perguntas legalmente inadmissíveis, conforme artigo 323º, al. f), do CPP, por maioria de razão se impõe que seja o primeiro a respeitar tais princípios.

Ora, lendo a acta da sessão de julgamento realizada em 25/11/2009 (fls. 437), dia em que foi ouvida a referida queixosa, verifica-se que o ilustre mandatário da recorrente nada nela fez consignar quanto ao modo como decorreu a inquirição por parte do Tribunal, ou seja, não suscitou, no momento próprio o conhecimento da irregularidade ora enunciada.

Por conseguinte, a admitir que a mesma tivesse existido, sempre estaria sanada, nos termos do artigo 123.º, n.º 1, do CPP, pelo que extemporâneo se tornou suscitar a questão no recurso.

****

  Ora, e avançando para a análise dos depoimentos das testemunhas apresentados pela recorrente, podemos já adiantar que o Tribunal a quo expurgou o acessório e aproveitou o essencial dos depoimentos, como lhe competia, de uma forma que não merece reparo.

Acontece que, neste âmbito, uma vez mais, nada há que possa impor uma alteração de facto.

Com efeito, a recorrente limita-se a enumerar diversas afirmações de testemunhas, junta-as, e, por serem favoráveis à posição mantida por si em julgamento, conclui que o Tribunal a quo apreciou mal a prova, com base numa mera discordância da valoração que foi feita na sentença.

Note-se que, no recurso, surgem expressões como “a recorrente não concorda com a apreciação que o tribunal a quo fez das declarações das queixosas e das três testemunhas ouvidas (S..., I... e T...)”, e “os depoimentos das testemunhas arroladas pela arguida abalam a versão apresentada pelas queixosas”.

Como todos sabem, num julgamento, uma das regras é, justamente, as testemunhas arroladas por um arguido contrariarem a versão dos ofendidos. A experiência quotidiana de quem preside a julgamentos aponta para aí…

Tal é compreensível.

Logo, a existência de depoimentos de testemunhas que contrariem, por si só, o afirmado pelas queixosas, não chega para impor uma alteração da matéria de facto.

Há que demonstrar, de forma objectiva, que tais depoimentos levam forçosamente a uma outra conclusão.

Quase poderíamos dizer que, da mesma forma que o julgador tem que fundamentar a sua decisão, o recorrente tem de fundamentar a sua pretensão, isto é, tem que adiantar os motivos em que esta assenta.

Nesse aspecto, a fundamentação existente na sentença, coerente e concisa, não pode ser abalada por certos depoimentos, tanto mais que a recorrente não desenvolve as razões pelas quais os mesmos justificariam, realmente, uma diferente apreciação da prova, para lá da mera divergência existente com a versão das queixosas.

Havendo divergência de versões, tudo se resume a uma questão de credibilidade.

Assim sendo, e pelas razões acima expostas, vedado está a este Tribunal censurar a matéria de facto apurada, a partir do momento em que não está demonstrado que o caminho de convicção trilhado pela decisão ora em crise ofendeu patentemente as regras da experiência comum.

Logo, improcede, nesta parte, o recurso.

****

         Questão n.º 3:

Estabelece o n.º 1 do art. 340.º, do C.P.P., que O tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.”                                                                                                            E acrescenta o n.º 2, “Se o tribunal considerar necessária a produção de meios de prova não constantes da acusação, da pronúncia ou da contestação, dá disso conhecimento, com a antecedência possível, aos sujeitos processuais e fá-lo constar da acta”.

         Por sua vez, nos respectivos n.º e n.º 4, pode ser lido o seguinte:

         “3 – Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 328.º, os requerimentos de prova são indeferidos por despacho quando a prova ou o respectivo meio forem legalmente inadmissíveis.

         4 – Os requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que:

a) As provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas;

b) O meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa;

c) O requerimento tem finalidade meramente dilatória.”

         Existe consenso generalizado que esta norma consagra, para a audiência, o princípio da investigação, isto é, que em última instância, recai sobre o juiz o encargo de investigar e esclarecer oficiosamente o facto submetido a julgamento. Os meios de prova não estão limitados aos fornecidos pela acusação ou pela defesa.                                                             Este princípio não se opõe a uma estrutura basicamente acusatória do processo penal, pois que não impede ou limita a apresentação de prova pelo Ministério Público, pelo assistente ou pelo arguido - Cfr. neste sentido o Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, ed. Verbo, 1993, pág. 94.“Só significa que - ao contrário do que sucede com o princípio de discussão - a actividade investigatória do tribunal não é limitada pelo material de facto aduzido pelos outros sujeitos processuais, antes se estende autonomamente a todas as circunstâncias que devam reputar-se relevantes”- Cfr. Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, 1º Vol., edição da C.E., 1974, pág. 192.      Como resulta expressamente do n.º1, do art. 340.º, do CPP, a audiência de julgamento visa a descoberta da verdade e a boa decisão da causa, isto é, a chamada verdade material, através dos meios de prova que se afigurem necessários. E o árbitro da necessidade, como é evidente, é o tribunal.             Os princípios da investigação e da verdade material, enunciados nos n.ºs 1 e 2 do 340.º do CPP, que dominam o processo penal, têm, por sua vez, os seus próprios limites enunciados nos seus números 3 e 4.                         

                                                        ****

         O artigo 323.º, do CPP, nas alíneas a) e b), dispõe o seguinte:

         “Para disciplina e direcção dos trabalhos cabe ao presidente, sem prejuízo de outros poderes e deveres que por lei lhe forem atribuídos:

         a) Proceder a interrogatórios, inquirições, exames e quaisquer outros actos de produção de prova, mesmo que com prejuízo da ordem legalmente fixada para eles, sempre que o entender necessário à descoberta da verdade;

         b) Ordenar, pelos meios adequados, a comparência de quaisquer pessoas e a reprodução de quaisquer declarações legalmente admissíveis, sempre que o entender necessário à descoberta da verdade;”

         Neste artigo, está consagrado o modelo de composição do sistema acusatório com o sistema de investigação objectiva e imparcial por parte do tribunal.

                                                        ****

         Entende, então, a recorrente que o tribunal a quo indeferiu diligências de prova por si requeridas, sendo certo que as mesmas, na sua perspectiva, se revelavam pertinentes para a boa descoberta da verdade.

         Na contestação apresentada nos autos (fls. 197/217), foi requerido pelos dois arguidos a notificação de:

         - Banco de Portugal, para prestar informação sobre a lesada P..., nomeadamente sobre os encargos financeiros da mesma e taxa de esforço;

         - Diário de Coimbra, para prestar informação sobre o anúncio do trespasse do Café explorado pelas lesadas, número de telefone de contacto e autor/subscritor do pedido de anúncio;

         - Serviço Local de Finanças de Miranda do Corvo, para juntar aos autos o IRS de 2008 e 2008 da lesada P...;

         - EDP, para juntar aos autos o movimento histórico de consumo e pagamento do ano de 2007, relativo ao estabelecimento comercial explorado pela lesada P...;

         - Vodafone Portugal, para informar quem é o titular, ou titulares, dos números de telemóvel 917004946 e 918216931.

         Tal deu origem ao despacho de fls. 232, de 25/5/2009, no qual foi ordenada a notificação da demandante P... para se pronunciar, querendo, sobre os documentos/informações que os arguidos pretendiam que o tribunal solicitasse, com a cominação de, nada dizendo, tal ser entendido que nada tinha a opor à obtenção dos mesmos.

         Na sequência, em 17/6/2009, a fls. 303/305, as duas demandantes vieram afirmar aos autos que não viam relevância na prova requerida.

         Depois disso, em 25/6/2009, foi proferido o seguinte despacho:

         “(…)Oportunamente, apreciar-se-á da necessidade de produção da prova documental ora requerida.”

         Significa isto que o Tribunal a quo relegou para a audiência final a apreciação da acuidade do solicitado para a descoberta da verdade material (note-se que tomou a mesma posição quanto a diligências de prova solicitadas pelas queixosas).

         Resulta das actas de julgamento (fls. 416/421 – 26/10/2009, fls. 437/439 – 25/11/2009, fls. 480/484 – 2/12/2009, fls. 514 – 16/12/2009) que o Tribunal a quo não chegou a proferir despacho, durante a audiência, sobre as requeridas diligências de prova. 

         Sobre tal assunto, limitou-se, na fundamentação da sentença, a deixar expresso que “(…) Igual raciocínio no que toca aos rendimentos dos arguidos, pelo que se não deferiu toda a prova documental requerida.

         Daí que se compreenda, de certa maneira, a posição da recorrente, quando afirma na Motivação do recurso que o Tribunal a quo “…apenas veio dizer não serem relevantes para a mesma.”

         E dissemos “de certa maneira”, porque a questão ora suscitada, em boa verdade, não tem razão para existir.

         Vejamos.

         Na sessão de julgamento do dia 2/12/2009, antes de ser concedida a palavra para alegações, e logo após ter sido admitida aos autos a junção de certa documentação, nos termos do artigo 340.º, do CPP, consta da respectiva acta o seguinte (fls. 483):

         “Em seguida, a Mma. Juiz perguntou à Digna Magistrada do Ministério Público e aos Ilustres Mandatários Intervenientes se tinham mais alguns meios de prova para apresentar ou se pretendiam requerer outras diligências, tendo os mesmos declarado nada mais ter a apresentar ou a requerer, prescindindo da testemunha faltosa.

         Significa isto que o Tribunal a quo, finda a prova testemunhal e após terem sido juntos aos autos documentos, nos termos do artigo 340.º, do CPP, ao longo das diversas sessões de julgamento (ver actas), deu a palavra aos intervenientes processuais no sentido de, se assim o entendessem, requerer algo mais que julgassem pertinente, estando implícito, de modo evidente, que entendia, da sua parte, nada mais se justificar.

          Nesse momento, competia à ora recorrente reiterar, caso estivesse interessada nisso, o requerimento acima referido e que agora está em causa.

Simplesmente, não o fez, como consta da acta.

         Não o tendo feito, é de concluir que não tinha o Tribunal a quo de se estar a pronunciar, expressamente, sobre o requerido, na contestação, pela ora recorrente, na medida em que, face à posição assumida em audiência (nada mais a apresentar ou requerer), deixara de haver necessidade de proferir despacho sobre tal solicitação, por inutilidade superveniente.

          Por conseguinte, também nesta questão, é de improceder o recurso.

                                                        ****

 Questão n. 4:
          A recorrente defende que não se alcançam actos reveladores de astúcia, por parte da arguida, capazes de induzir as queixosas em erro ou engano, ou seja, coloca em causa que estejam preenchidos os elementos típicos do crime de burla.
        Quanto a isto, não há muito a referir, já que sentença recorrida, de forma escorreita, analisa correctamente a questão.
        Pode ler-se, no Acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra, de 2 de Março de 2005, Processo n.º 3756/04, relatado pelo Exmo. Desembargador Belmiro Andrade, in www.dgsi.pt.jtrc, o seguinte:                                           “Pratica o crime de burla “Quem, com intenção de obter enriquecimento ilegítimo para si ou para terceiro por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial...”.                                                                                                                        Trata-se de um crime material ou de resultado (crime de dano) que só se consuma com a ocorrência de um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo da infracção ou de terceiro e em que o bem jurídico protegido consiste no património globalmente considerado – cfr. Comentário Conimbricense ao C. Penal, tomo 2, anotação ao art. 217º, p. 275/276.                                                                                                                                 Constituindo um crime complexo que, para certos autores – v. FERNANDA PALMA, Rui Carlos Pereira na R.F.D.L., vol. XXXV, 1994 - comporta um triplo nexo de causalidade.     Falando outros autores mesmo num quadruplo nexo de causalidade – entre os vários elementos referidos no tipo – cfr. José António Barreiros e Beleza dos Santos, citados em anotação ao art. 217º do C. Conimbricense.                                                                  Enquanto que para outros – cfr. A.M. Almeida Costa, no mesmo Comentário Conimbricense, p. 293 - a consumação da burla passa por um duplo nexo de imputação objectiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de actos tendentes à diminuição do seu património ou de terceiro e depois entre os últimos e a efectiva verificação do prejuízo, sem que haja necessidade de recorrer à figura de “sub-nexos causais”.                                                                                                                                       Merecendo a «astúcia», aliás, uma consideração muito atenta, neste crime, para compreender a essência do ilícito típico da burla no Código de 1982-95. A astúcia equivale a «manha», ou «ardil». Requer, na sugestiva linguagem de Nelson Hungria, o enredo subtil, a trapaça, a mistificação, o embuste.                                                                                                A exigência da astúcia restringe o âmbito da incriminação. Sem astúcia não pode haver burla, nem sequer na forma tentada, a astúcia é elemento objectivo do tipo. Não bastando que a atitude psicológica do agente seja astuciosa: a conduta exterior deverá revelar astúcia, para efeito do preenchimento do tipo. Isto resulta de a astúcia ser referida, no art. 217º, ao modo de ser objectivo da acção.                                                                               Como resulta da simples leitura do tipo tem que haver relação de causa/efeito, entre a astúcia e o erro, entre o erro e a prática de factos pela própria vítima e entre esses actos da vítima e o prejuízo. Decomponham-se ou não os vários elementos exigidos em sucessivos nexos causais, o que releva é que exista o nexo de causalidade adequada entre a “mise-en-scène” levada a cabo pelo agente e o acto de disposição de terceiro que esse acto de disposição causem efectivo prejuízo no património alheio.                                                           Exige-se que o erro seja consequência do engano, o acto de disposição consequência do erro e o prejuízo consequência do acto de disposição – cfr. Bajo Fernandez Manual de Derecho Penal, parte especial, p. 175.”
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        A propósito do conceito de “astúcia”, salientemos o que a seu propósito, e em resumo, tem sido entendido:                                                                 “Começando pela abordagem da astúcia, causa do erro ou engano, importa ver em que é que ela se analisa. Já se defendeu, sobretudo no tempo do C.P. de 1886, e tendo em conta a redacção do artº 405º do C.P. francês, a necessidade de uma determinada “mise en scène”, como procedimento do agente (na linha da doutrina e jurisprudência francesas, ao tempo mais relevantes para nós, dadas as afinidades entre os dois códigos penais). Ou seja, a necessidade da prática de actos materiais, considerando-se insuficiente a simples mentira. Mas,  já então, para outra corrente, a exigência se circunscrevia a uma “mentira qualificada” denunciadora de particular engenho ou habilidade (Beleza dos Santos, Luís Osório).                                                                                                                                             Com o Código de 1982, passou a ser maioritariamente entendido que, face à nova redacção do crime de burla (na versão de 1982, do artº 313º, hoje, do artº 217º), a problemática em foco perdera actualidade. No sentido de que a falsa representação da realidade, em que o erro ou engano se traduz, pode derivar da mentira simplesmente verbalizada (assim, na jurisprudência, por exemplo, o Ac. deste S.T.J. de 12/3/92, Pº 42115, e, na doutrina, Almeida Costa in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo II, pag. 296, Simas Santos e Leal Henriques in “Código Penal Anotado”, 2º vol. Pag. 837, Marques Borges in “Crimes Contra o Património em Geral”, pag. 22,). Além fronteiras, também a não exigibilidade de actos materiais configuradores de uma “mise en scène”, vem sendo defendida (assim, v.g. Cobo del Rosal et alteri in “Derecho Penal – Parte Especial” vol. II, pag. 207, Muñoz Conde in “Derecho Penal – Parte Especial” pag. 427, Serrano Gomez et alter in “Derecho Penal - Parte Especial”, pag. 411 e nota (16) ou F. Mantovani in “Diritto Penale – Delitti contro il Patrimonio”, pag. 192).– ver Acórdão do S.T.J., de 24/4/2008, Processo n.º 06P3057, in www.dgsi.pt.jstj.
                                                        ****
         Revertendo ao caso dos autos, relembre-se a fundamentação da sentença:         “No caso que nos ocupa, a arguida referiu que tinha um dom, que podia ajudar as queixosas, que já antes ajudara muita gente, relatando um exemplo concreto respeitante ao funcionamento do motor de uma camioneta que não “pegava” e dizendo que a filha bebé da ofendida P... estava doente. Deu conta ainda de que lhe faziam mal e que o colocavam – ao mal -, debaixo do tapete, sendo necessário proceder à limpeza do estabelecimento das queixosas com água e sal para limpar o mal.                                                                                              De início, foi apenas isto que a arguida necessitou de dizer para convencer as queixosas. Induziu-as em erro e foi por, erradamente tomarem por real o dito dom que as ofendidas entregaram mais de €9.000,00, ao todo, à arguida.                                                                                                                                                                                 Assim, verificados o erro e o nexo causal entre este e o prejuízo sofrido, cumpre tão-só indagar se a conduta da arguida revelou igualmente astúcia.                                                                                                                         Com efeito, a arguida não se limitou a mentir. É certo que pouco teve de se esforçar. Todavia, para quem se encontra fragilizado e permeável a qualquer tipo de promessa de ajuda, ouvir por um estranho que a filha está doente e tomando isso como um facto de que a pessoa não poderia ter conhecimento se não possuísse o dito dom transcendente, bem como o relato de um exemplo concreto de intervenção milagrosa, é suficiente e adequado a convencer. Foi isso que a arguida foi percebendo, mantendo o engano meses a fio, sem descurar a manutenção da confiança depositada, referindo pormenores mais elaborados. Em suma, foi aqui que se revelou a astúcia, i. é., a inteligência da arguida, nesta escolha de factos que referiu e no registo em que o fez, indo ao encontro dos pontos fracos de uma jovem mãe solteira, simpatizante de produtos esotéricos, a empreender um estabelecimento comercial num meio pequeno em tempo de crise e com concorrentes instalados em local próximo. Factos e registo que, face a este contexto de vida, a arguida intuiu que convenceriam as arguidas do dito “dom”, o que foi confirmando com o decurso do tempo.”                 Perante os factos provados, outra conclusão seria impossível de retirar.      Dúvidas não há de que a arguida empregou astúcia, pois, ao longo de algum tempo, verbalizou uma mentira, aproveitando a idiossincrasia das queixosas.                                                                                                                                                                          Não assiste, pois, razão à recorrente.
                                                        ****
        Questão n.º 5:
        A recorrente entende, também, que a sentença é nula, por falta de fundamentação, na medida em que, no seu entender, não explica devidamente a escolha da medida concreta da pena.                                                                                       ****
                1) O artigo 205.º, n.º1, da CRP, consagra o seguinte:

1. As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.”

Na al. a), do n.º 1, do art. 379.º, do CPP, comina-se de nula a sentença que não contiver as menções referidas no art. 374.º, n.ºs 2 e 3, al. b), do mesmo Código.
Pois bem, o artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal que versa sobre os requisitos da sentença, e que agora interessa analisar, estipula que «ao relatório segue-se a fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».

A obrigação de fundamentação respeita à possibilidade de controlo da decisão.

É, pois, na fundamentação da sentença que se poderá avaliar a consistência, objectividade, rigor e legitimidade do processo lógico e subjectivo da formação da convicção do julgador. 
A razão de ser da exigência de fundamentação em geral está ligada ao próprio conceito do Estado de direito democrático, sendo um instrumento de legitimação da decisão que serve a garantia do direito ao recurso e a possibilidade de conhecimento mais autêntico pelo tribunal de recurso.                         Assim, a fundamentação da decisão deve obedecer a uma lógica de convencimento que permita a sua compreensão pelos destinatários, mas também ao tribunal de recurso.
Sublinhe-se que a necessidade de motivar as decisões judiciais é uma das exigências do processo equitativo, um dos Direitos do Homem, consagrados no artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, na medida em que a motivação é um elemento de transparência da justiça inerente a qualquer acto processual.
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Analisada a exposição dos motivos que levaram à aplicação da medida concreta da pena, afigura-se-nos como boa a fundamentação apresentada.

O Tribunal a quo apresenta dois motivos para excluir a pena não privativa da liberdade: 1) a postura tomada em audiência pela arguida, ao negar os factos; 2) o período em que manteve a sua conduta (perto de 9 meses). Ambos demonstram uma personalidade desconforme ao direito, no entender do julgador.

Não há, pois, falta de fundamentação.

É evidente que o Tribunal a quo entendeu, e bem, que a arguida não interiorizou o desvalor da sua conduta, sendo certo que esta nada teve de ocasional, uma vez que se prolongou por vários meses, o que é reprovável, sem dúvida.

Daí, a opção pela pena privativa de liberdade, até por razões de prevenção geral, como é aludido na sentença, o que, uma vez mais, bem se compreende, dada a frequência com que actos semelhantes aos dos autos acontecem na nossa sociedade.
        Tal está sobejamente concretizado na sentença. Seria inócuo acrescentar algo mais sobre o assunto.
        Aliás, se bem notarmos, quanto a esta questão, a recorrente acaba, apenas, por manifestar uma discordância quanto à fundamentação usada na sentença, sendo evidente que a compreendeu em toda a sua extensão, o que é sinónimo de que aquela não está ausente. Caso contrário, não invocaria, por um lado, que ela é parca na exposição dos motivos que justificam a pena de prisão, e que, por outro lado, ela peca por utilizar um raciocínio perigoso.
        Ora, a mera discordância de um recorrente quanto aos fundamentos de uma decisão não implica a existência de nulidade da sentença, cuja essência exige uma falta objectiva de fundamentação que impeça a compreensão do decidido.
        Por isso, também aqui improcede o recurso.
                                                        ****
        Questão n.º 6:
        A recorrente entende que as obrigações impostas na sentença, como condição da suspensão da execução da pena, violam os direitos de personalidade da arguida e são desadequadas à luz da CRP e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
         Há que atender ao que dispõem os artigos 50.º a 54.º, do Código Penal.
        Em síntese, podemos afirmar que a “suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime” (artigo 51.º), e, ainda, que o “tribunal pode impor ao condenado o cumprimento, pelo tempo de duração da suspensão, de regras de conduta destinadas a facilitar a sua reintegração na sociedade” (artigo 52.º).
        Além disso, o “tribunal pode determinar que a suspensão seja acompanhada de regime de prova”, sendo verdade que este “assenta num plano individual de readaptação social, executado com vigilância e apoio, durante o tempo de duração da suspensão, dos serviços de reinserção social” (artigo 53.º, n.º 1 e n.º 2).
        Por fim, “o plano individual de readaptação social é dado a conhecer ao condenado, obtendo-se, sempre que possível, o seu acordo”, sem esquecer que o “tribunal pode impor os deveres e regras de conduta referidos nos artigos 51.º e 52.º” (artigo 54.º, n.º 1 e n.º 2).
        Quaisquer deveres e regras podem ser impostos ao arguido, desde que se comportem dentro dos limites da razoabilidade estabelecidos no n.º 2, do artigo 51.º.
        Na realidade, neste campo, é este o princípio essencial.
        A citada norma dispõe o seguinte:
        “Os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir”.
                                                        ****
        Relembre-se, agora, o que foi imposto à arguida:
a) Integração em posto de trabalho ou inscrição em Centro de Emprego;
b) Sujeição a consulta de psicologia e psiquiatria e cumprimento de tratamento que eventualmente lhe vier a ser prescrito;
c) Realização de actividades de voluntariado em instituições a indicar pela DGRS;
d) Visitas a condenados presos pela prática do mesmo tipo de crime, com frequência, pelo menos, mensal.
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        Começando, desde já, pela última obrigação, dada a sua evidência, é manifesto que ela excede os aludidos limites da razoabilidade.
        A suspensão da execução da pena de prisão, entre outros fins, visa afastar o arguido dos estabelecimentos prisionais.
        Não é de aceitar, pois, que se imponha a uma arguida, a quem é concedida a possibilidade de ficar longe da prisão, que frequente tal meio.                              Tal constitui, até, com o devido respeito, um paradoxo.
        Por isso, deve ser considerada como não escrita a citada condição.
        Da mesma forma, a sujeição a consulta e a tratamento ultrapassa os limites da razoabilidade, face ao que consta dos autos.
        Não ficou provado que a arguida sofra, ou sequer aparente padecer, de qualquer anomalia do foro psíquico.
        Não há, assim, qualquer justificação para a condição em causa. Como tal, deve a mesma, igualmente, ser considerada como não escrita.
        Mais, mesmo que se entendesse que era razoável a imposição, sempre haveria que atender ao disposto no n.º 3, do artigo 52.º, do C. Penal, segundo o qual a sujeição a tratamento médico ou a cura em instituição adequada dependem de consentimento prévio do condenado.
        Avançando um pouco mais, quanto à realização de actividades de voluntariado, a serem fixadas oportunamente, tal revela-se razoável. Aliás, a recorrente não chega a colocar isso em causa (ver Motivação do recurso).
        Para o fim, deixámos, intencionalmente, a imposição de integração em posto de trabalho ou inscrição em Centro de Emprego, por entendermos que é aquela que pode oferecer mais controvérsia.
        Certamente que se trata de um tema que poderia levar a uma ampla discussão, mas uma sentença judicial não é o local indicado para o fazer, pelo que nos vamos limitar ao caso concreto.
        A recorrente entende que “obrigar a arguida a trabalhar ou a inscrever-se em Centro de Emprego é violar os direitos de personalidade de uma pessoa no Estado de Direito”, adiantando, até, que tal faz recordar “o regime soviético e dos seus satélites”.
        Evidentemente que longe vão os tempos da máxima “Arbeit macht frei”…
        Porém, convém ter presente que o direito ao trabalho vem consagrado na C.R.P., no artigo 58.º, n.º 1, o que significa que estamos na presença de algo valioso para qualquer Estado de Direito.
        Num momento em que todos os estados europeus convergem no sentido de aumentar a idade da reforma, penalizando quem trabalhou uma vida inteira, por causa dos custos sociais inerentes à manutenção de um estado social o mais justo possível, até que ponto é legítimo a um cidadão recusar a prestação de trabalho e beneficiar de contribuições dos que labutam diariamente? 
        Importa discutir isso, urgentemente, no espaço próprio!...
        Deixando isso de lado, e no plano estritamente jurídico-penal, há que ter bem presente que a lei, aqui e agora, faz depender de requerimento do condenado a substituição da pena de multa por trabalho (artigo 48.º, n.º 1, do C. Penal), da mesma forma que a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade só pode ser aplicada com aceitação do condenado (artigo 58.º, n.º 5, do C. Penal).
        Portanto, é líquido que a lei só permite uma pena que implique trabalho para o arguido, desde que este esteja disponível para a aceitar.
        Sendo assim, e por maioria de razão, certamente que não é possível impor a um condenado a obrigação de trabalho como condição de suspensão da execução da pena de prisão, pois tal acabaria por ser visto como a criação judiciária de uma pena. 
        Assim sendo, nesta parte, assiste razão à recorrente.
        Não há, assim, qualquer justificação para a condição em causa. Como tal, deve a mesma, também, ser considerada como não escrita.
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IV – DECISÃO:

Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em confirmar a sentença recorrida, salvo quanto às três mencionadas condições (integração em posto de trabalho ou inscrição em Centro de Emprego, sujeição a consulta de psicologia e psiquiatria e cumprimento de tratamento, visitas a condenados presos), que se consideram como não escritas.    

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.


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         (elaborado e revisto pelo relator, antes de assinado)

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Coimbra, 22 de Setembro de 2010
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(José Eduardo Martins)

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     (Isabel Valongo)


  



[1] - cfr. Prof. Castanheira Neves, Sumários de Processo Penal, 1967/1968, n.º 4 - Os Princípios de Processo Penal.
[2] La Prova Penale, pág. 9 e segs.
[3] “A liberdade de apreciação da prova não pode estar mais longe das meras conjecturas e das impressões sensitivas injustificáveis e não objectiváveis” - Paulo Saragoça da Mata, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Organizadas pela Faculdade de Direito de Lisboa e pelo Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados, Coordenação Científica de Maria Fernanda Palma, Almedina, pág. 231.
[4] Cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Lições coligidas por Maria João Antunes, secção de textos da FDUC, 1988-9, págs. 140.
[5] Paulo Saragoça da Mata, ob. cit., pág. 251.