Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
542/16.6GCVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA;
INSUFICIENTE DESCRIÇÃO DE TIPO DE CRIME;
DEDUÇÃO DE NOVA ACUSAÇÃO
Data do Acordão: 05/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE VISEU – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA, PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ART. 311.º, N.ºS 2, AL. A), E 3, AL. D), DO CPP
Sumário:
A rejeição liminar da acusação por insuficiente descrição de tipo de crime [cfr. 311.º, n.ºs 2, al. a), e 3, al. d), do CP] não determina o imediato arquivamento dos autos; ao invés, pode a entidade acusadora (MP/assistente), respeitando o mesmo condicionalismo naturalístico, suprimir a dita insuficiência através da dedução de novo libelo acusatório.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO
Nos presentes autos:
- a assistente AS deduziu acusação particular (fls. 45/47) contra a arguida AA, imputando-lhe a prática, em concurso real e na forma consumada, de um crime de difamação p. e p. pelo artigo 180º e de um crime de injúria p. e p. pelo artigo 181º, ambos do Código Penal (deduzindo também pedido de indemnização civil, a título de danos não patrimoniais).
O Ministério Público acompanhou a acusação deduzida (fls. 51).

Por despacho de fls. 58/63, tal acusação particular, apresentada pela assistente, foi rejeitada por manifestamente infundada (uma vez que os factos imputados à arguida, tal e qual se encontram descritos, não constituem crime), nos termos do artigo 311º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. d) do CPP.
Mais foi determinado o arquivamento dos autos.
*
A assistente interpôs recurso de tal despacho, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões:
1. O despacho recorrido rejeitou, por manifestamente infundada, a acusação particular deduzida pela assistente, determinando o arquivamento dos autos.
2. Alegando que a assistente não descreve todos os factos que permitam imputar à arguida uma pena ou uma medida de segurança pela prática dos crimes imputados.
3. Alegando ainda que a assistente omite os factos alusivos à consciência da ilicitude por parte da arguida, ou seja, que a mesma agiu, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
4. Concluindo que, “... além da acusação estar ferida de nulidade, os factos, pelos motivos supra expostos, tal e qual se encontram descritos, não constituem crime, pelo que, deverá tal acusação particular ser rejeitada, por manifestamente infundada.”
5. Determinando, em consequência, o arquivamento dos autos.
6. Contudo e, analisada a acusação particular deduzida pela assistente, verifica­-se que se encontram preenchidos os elementos típicos (objectivos e subjectivos) dos crimes, objeto da acusação particular, a que aludem as alíneas a) a g) do n° 3 do art. 283° do C.P.P., nomeadamente na alínea b), de modo a que a mesma não seja considerada nula, mas, válida e legal.
7. Até porque e, como resulta desta norma, basta uma narração sintética dos factos que fundamentam os elementos típicos, objectivos e subjectivos, do crime, que se verificam no caso concreto.
8. No que se refere ao elemento subjetivo do crime de injúrias e do crime de difamação, em que assenta o despacho sob censura, a assistente alegou que: “... tais expressões proferidas pela arguida dirigidas à assistente pretenderam ofender a honra, consideração e imagem pessoal desta,
Objectivo, in casu, totalmente atingido, na estrita medida em que a assistente se sentiu bastante ofendida na sua honra, consideração e imagem pessoal…”
9. Concluindo em 14° da acusação que: "A arguida atuou de forma livre, consciente e com o propósito de ofender o bom nome, honra e consideração devidas à assistente;
10. Entendendo, pois, a recorrente, que a alegação de tais factos consubstanciam, factualmente, consciência da ilicitude, entendida esta, como uma exigência da actuação dolosa do agente na realização do facto típico, integrando tal narração, os elementos intelectual e volitivo do dolo, dolo ofendendi e difamandi, integrantes dos ilícitos descritos na acusação.
11. Sendo certo que, mesmo que assim se não entendesse, no caso concreto, nunca estaríamos perante a ausência da narração de factos subjacentes aos elementos subjectivos dos crimes de injúrias e de difamação, pois, nesse caso, i.é, de deficiente, e não, ausência de narração, dos factos integradores do elemento subjectivo do tipo (dolo) pode sempre ser integrada, em julgamento, por recurso à lógica, racionalidade e normalidade dos comportamentos humanos, donde se extraem conclusões suportadas pelas regras da experiência comum.
12. Isto porque, não constitui nulidade, a deficiente (e não, inexistente), descrição dos elementos subjectivos dos ilícitos criminais constantes da acusação.
13. Até porque e, como já se referiu, a assistente alegou que a arguida “… atuou de forma livre, consciente e com o propósito de ofender o bom nome, honra e consideração devidas à assistente.
Objectivo, in casu, totalmente atingido, na estrita medida em que a assistente se sentiu bastante ofendida na sua honra, consideração e imagem pessoal ...
14. Sendo pois certo que, nos referidos crimes dolosos (injúrias e difamação) imputados à arguida, consta expressamente da acusação particular deduzida pela assistente que a arguida agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - a arguida pôde determinar a ação), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade - o arguido é imputável).
15. Encontrando-se, pois, estes elementos preenchidos na alegação da assistente mencionada em 8. e 13., tendo, pois, a arguida agido livre, deliberada e conscientemente.
16. De tal factualidade se extrai ou, pelo menos, é possível extrair, o conhecimento do ato criminoso constante das expressões imputadas - elemento intelectual e a vontade de praticar e atingir um ato e resultado criminoso ­elemento volitivo.
17. Ademais e, mesmo que assim se não entendesse, sempre se diria que, a nulidade prevista no n.º 3 do art. 283° do C.P.P. não é insanável. Neste sentido, Ac. RP de 6 de dezembro de 2006, Proc. 0644697, Rel. Pinto Monteiro e ainda no mesmo sentido, Ac. STJ de 7 de dezembro de 1994, BMJ 442, pág. 76.
18. " a omissão total do elemento subjectivo, e insusceptível de ser suprida é que constitui fundamento para a rejeição" (Ac. RE de 15 de Julho de 2008, CT, XXXIII, T.III, pág. 264). (o sublinhado e o negrito são nossos).
19. O que não se verificou, de todo, na acusação particular dos autos, como resulta do atrás exposto.
20. A recorrente entende que, com a sua alegação, encontram-se preenchidos os elementos subjectivos dos crimes que imputa à arguida.
21. Mesmo que assim se não entendesse, o que apenas se equaciona por hipótese de raciocínio, sempre se diria que, há mesmo quem considere que, nos casos em que os elementos do crime não se encontram completamente enunciados na acusação, que a acusação não é manifestamente infundada, não podendo, por isso, ser rejeitada. Neste sentido, Ac. RL de 26 de setembro de 2001 - Proc. 0075443, Rel. Adelino Salvado e Ac. RL de 12 de novembro de 2008 - Proc.5736/2008-3a, Rel. Telo Lucas.
22. Concluindo, entre outros, o Ac. RP de 5 de dezembro de 2007, Proc. 0745339, Rel. Artur Oliveira que: "Não é fundamento de rejeição da acusação a falta de alegação da consciência da ilicitude." (o sublinhado e o negrito são nossos)
23. Entendendo pois a recorrente que a sua alegação, nos termos expostos e referente ao elemento subjectivo dos crimes de que deduziu acusação, não constitui qualquer omissão do referido elemento subjectivo, uma vez que, e com referência ao momento volitivo (vontade de realização do tipo objectivo de ilícito) encontra-se totalmente preenchido, e mesmo que se equacionasse por mera cautela, haver, quando muito, uma deficiente ou precária narração quanto ao seu elemento intelectual (conhecimento do carácter ilícito da conduta), a mesma, tendo em conta o conjunto da restante factualidade narrada dos elementos subjectivos pode ser colmatada nos termos atrás expostos.
24. Não sendo, pois, em nosso entender, tal eventual "deficiente ou precária" narração, no que concerne ao elemento intelectual, motivo para a rejeição da acusação, nos termos constantes do despacho recorrido.
25. Aliás, a acusação particular foi acompanhada pela digna Magistrada do Ministério Público por douto despacho de fls. 51.
26. Que, assim, em conformidade com o disposto no n.º 4 do art. 285° do C.P.P., acusou pelos mesmos factos constantes da acusação particular.
27. Constituindo o referido despacho de acusação pelos mesmos factos e a acusação particular deduzida pela assistente, duas peças processuais autónomas, que delimitam o objecto do processo, e não, apenas, a acusação particular da assistente.
28. Acusação essa do Ministério Público, que não foi objecto de qualquer rejeição, por parte do despacho sob censura.
29. O que implica, por um lado, a rejeição da acusação particular deduzida pela assistente, com fundamento na sua nulidade e, ao mesmo tempo, considera destituída de qualquer nulidade a acusação pelos mesmos factos, deduzida pelo M.P ..
30. O que não deixa de constituir uma contradição insanável do douto despacho sob censura, que determina a sua nulidade e implica a sua substituição por outro, que receba a acusação particular.
31. O despacho sob censura violou, pois, por deficiente interpretação e/ou aplicação, o disposto nos arts. 283° e 311° do C.P.P. e arts.180° e 181° do C.P..
Termos em que, julgando não verificada a nulidade da acusação particular e substituindo o despacho recorrido, por outro, que receba a mesma, farão V.Ex.ª(s) Justiça !

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Responderam a arguida e a Magistrada do Ministério Público junto do tribunal a quo defendendo ambas a improcedência do recurso.
Nesta instância também o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, quanto à rejeição da acusação particular, por a mesma ser omissa quanto ao elemento intelectual do dolo, isto é, a alegação de que a arguida ao agir do modo descrito tinha conhecimento da ilicitude dos factos e que estes eram puníveis criminalmente.
Todavia, entende que se deverá ponderar a revogação do despacho recorrido quanto ao arquivamento dos autos, porquanto, sobre esta matéria - da rejeição de uma acusação por manifestamente infundada por insuficiente descrição de um elemento típico, mas admitindo a possibilidade de vir a ser deduzida validamente uma nova acusação, suprindo aquela omissão - foi recentemente tomada pelo Tribunal Constitucional uma decisão nesse sentido, no acórdão n.º 246/2017, DR II série, de 25-07-2017.
No referido acórdão se sintetiza o dispositivo nos seguintes termos:
«decide-se não julgar inconstitucional a norma extraída da conjugação dos artigos 311.º, n.ºs 1, 2, alínea a), e 3, alínea d), e 283.º, todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, tendo sido deduzida acusação contra um arguido, imputando-lhe a prática de um crime, e tendo esta acusação sido liminarmente rejeitada por insuficiente descrição de um elemento típico, poder vir a ser validamente deduzida nova acusação pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, suprindo a omissão da descrição do sobredito elemento típico, sujeitando-se a julgamento e condenando-se o arguido pelos factos e qualificação jurídica dela constantes.»

Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do CPP, não foi obtida resposta.
Os autos tiveram os vistos legais.
***
II- FUNDAMENTAÇÃO
É do seguinte teor o despacho recorrido (por transcrição):
Dispõe o artigo 311º, do Código de Processo Penal, que:
“1- Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos dos artigos 284º, nº 1, e 285º, nº 3 respectivamente”.
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime”.
In casu constatamos que a assistente AA ( - Trata-se de manifesto erro material, dado que o nome da assistente é AS.) deduziu a acusação particular de fls. 45 e segs, contra a arguida AA, onde lhe imputa a prática de um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180º Código Penal e de um crime de injúria, previsto e punido pelo art. 181.º do Código Penal.
A Digna Magistrada do MP acompanhou a referida acusação particular, a fls. 51.
Nos termos do disposto no art. 284.º n.º 2 do Código de Processo Penal, é correspondentemente aplicável à acusação deduzida pela assistente, o disposto nos nºs. 3 e 7 do art. 283.º do mesmo diploma, isto é, os requisitos que a acusação deve observar, sob pena de nulidade. Entre esses requisitos encontra-se «A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada» (art. 283.º n.º 3, al. b) do Código de Processo Penal).
No caso vertente os factos que fundamentam a aplicação à arguida de uma pena ou de uma medida de segurança são aqueles que preenchem os elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito dos crimes que lhe são imputados, de injúria e de difamação.
O elemento objectivo do crime de injúrias concretiza-se na imputação de factos ou utilização de palavras ou expressões, dirigidas aos próprios visados e na presença destes, ofensivas da sua honra ou consideração.
O referido ilícito é um crime doloso, sendo que o elemento subjectivo concretiza-se em o agente ter conhecimento e consciência de que os factos por si imputados, ou as expressões que utiliza, são de molde a produzir ofensa na honra ou consideração da pessoa visada e de que tal conduta é proibida por lei.
Por sua vez, o elemento objectivo do crime de difamação concretiza-se na imputação de um facto ofensivo da honra ou consideração de outrem, na formulação de um juízo de desvalor igualmente lesivo da honra ou consideração ou, ainda, na reprodução daquele facto ou juízo, exigindo-se que tais condutas se não façam directamente ao ofendido mas se levem a cabo perante terceiros, aqui residindo o traço distintivo entre o crime de difamação e o crime de injúria, cujo elemento objectivo se concretiza na imputação de factos ou utilização de palavras ou expressões, dirigidas aos próprios visados e na presença destes, ofensivas da sua honra ou consideração.
Por outro lado, e tal como no crime de injúrias, o elemento subjectivo do crime de difamação concretiza-se em o agente ter conhecimento e consciência de que os factos por si imputados, ou as expressões que utiliza, são de molde a produzir ofensa na honra ou consideração da pessoa visada e de que tal conduta é proibida por lei.
Percorrendo a acusação particular em causa, constatamos que a assistente não descreve todos os factos que permitam imputar à arguida uma pena ou uma medida de segurança pela prática dos imputados crimes.
Desde logo a assistente omite os factos alusivos à consciência da ilicitude por parte da arguida, ou seja, que a mesma agiu bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
Conforme se escreve no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 2/03/2016, publicado in www.dgsi.pt, “a consciência da ilicitude é uma exigência da actuação dolosa do agente na realização do facto típico.
Acresce, como elemento emocional, ao conhecimento e vontade de realizar o facto típico (elementos do dolo do tipo), traduzindo-se na indiferença ou oposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma (tipo de culpa doloso). Por isso, ela não pode deixar de constar da acusação”.
A apontada omissão nunca poderia ser colmatada em sede de julgamento por simples recurso ao artigo 358.º do CPP – alteração não substancial dos factos.
Com efeito, o Acórdão Uniformizador nº 1/2015 de 27 de Janeiro (in DR, 1ª Série, nº 18, de 27 de Janeiro de 2015) fixou a seguinte jurisprudência: “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e da vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal”.
Como se nota na Fundamentação do referido Acórdão Uniformizador, (…) “a acusação, enquanto delimitadora do objecto do processo, tem de conter os aspectos que configuram os elementos subjectivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo de culpa no sentido referido, englobando a consciência ética ou a consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso; o conhecimento ou representação de todas as circunstâncias do facto, tanto as de carácter descritivo, como as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias, ou, na falta de intenção, a representação do evento como consequência necessária (dolo necessário) ou a representação desse evento como possível, conformando-se o agente com a sua produção (dolo eventual), actuando, assim, conscientemente contra o direito”.
Ainda na Fundamentação, fez-se constar: “Conexionado com o problema anterior, coloca-se finalmente a questão de saber se a falta, na acusação, de todos ou de alguns dos elementos caracterizadores do tipo subjectivo do ilícito, mais propriamente, do dolo (englobando o dolo da culpa, no sentido atrás referido), pode ser integrado no julgamento por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP. Tal equivalerá a considerar essa integração como consubstanciando uma alteração não substancial dos factos. Já vimos que esses elementos têm de constar obrigatoriamente da acusação, implicando a sua falta a nulidade do libelo (art. 283.º, n.º 3, alínea b) do CPP). Por conseguinte, tendo o processo sido despachado para julgamento, sem ter passado pela instrução, o respectivo juiz (presidente) deveria rejeitar a acusação, não só por a mesma ser nula, nos moldes referidos, mas também por ser manifestamente infundada, nos termos do art. 311.º, n.ºs 2, alínea a) e 3, alínea b) do CPP – não conter a narração dos factos”.
Assim sendo, além da acusação particular estar ferida de nulidade, os factos, pelos motivos supra expostos, tal e qual se encontram descritos, não constituem crime, pelo que deverá tal acusação particular ser rejeitada, por manifestamente infundada.
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Nesta conformidade, decide-se ao abrigo do disposto no artigo 311º, nº 2, alínea a) e nº 3, alínea d), do CPP, rejeitar a acusação particular deduzida pela referida assistente, por manifestamente infundada, uma vez que os factos imputados à arguida, tal e qual se encontram descritos, não constituem crime.
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Mais se determina, em consequência, o arquivamento dos autos, sendo certo que o pedido indemnização cível deduzido pela assistente está depende da acusação particular que foi rejeitada.

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APRECIANDO
O âmbito do recurso define-se pelas conclusões que os recorrentes extraem das respectivas motivações, de acordo com o estabelecido no art. 412º, n.º 1 do CPP, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
No caso presente, perante as conclusões da motivação, a questão submetida à apreciação deste tribunal consiste em saber se a acusação particular deduzida pela assistente, por crimes de difamação e de injúrias, contem os requisitos legais para ser submetida a julgamento.
Vem ainda invocada a nulidade do despacho recorrido por contradição insanável.
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Sustenta a recorrente que o despacho sob censura padece de contradição insanável, a determinar a sua nulidade.
Como fundamento alega:
“A acusação particular foi acompanhada pela digna Magistrada do Ministério Público. Constituindo o referido despacho de acusação pelos mesmos factos e a acusação particular deduzida pela assistente, duas peças processuais autónomas, que delimitam o objecto do processo, e não, apenas, a acusação particular da assistente.
Acusação essa do Ministério Público, que não foi objecto de qualquer rejeição, por parte do despacho sob censura.
O que implica, por um lado, a rejeição da acusação particular deduzida pela assistente, com fundamento na sua nulidade e, ao mesmo tempo, considera destituída de qualquer nulidade a acusação pelos mesmos factos, deduzida pelo M.P., o que não deixa de constituir uma contradição insanável do douto despacho.”

Não assiste razão à recorrente.
Como estabelece o artigo 285º do CPP: 1- Findo o inquérito, quando o procedimento depender de acusação particular, o Ministério Público notifica o assistente para que este deduza em dez dias, querendo, acusação particular.
E, após a acusação do assistente, o MP usa da faculdade do disposto no n.º 4, podendo:
- aderir a essa acusação;
- acusar, em peça autónoma, pelos mesmos factos ou por parte deles;
- acusar por outros factos, desde que não constituam alteração substancial dos factos da acusação particular (podendo consequentemente alterar a qualificação jurídica dos mesmos);
- não aderir à acusação particular.

No caso vertente, o MP aderiu à acusação da assistente, não deduziu acusação em peça autónoma, pelo que contrariamente ao que afirma a recorrente inexistem duas peças processuais autónomas.
Como sublinha o Exmº PGA no seu Parecer: esta pronúncia do Ministério Público não assume um carácter autónomo que exija uma decisão também autónoma por parte do Juiz de Julgamento. Desde logo, porque a lei não o exige. Depois, porque se por hipótese o Ministério Público não acompanhar a acusação particular por qualquer motivo, a mesma acusação particular é submetida de per si a apreciação judicial.
Situação diversa, seria a hipótese de o MP ter optado por deduzir acusação autónoma, contendo factos que constituam alteração substancial dos factos da acusação particular, caso em que, no momento do saneamento do processo (art. 311º, n.º 2, al. b) do CPP) o juiz tinha de se pronunciar sobre a acusação do MP, rejeitando-a.
Não se verifica, pois, a invocada contradição insanável do despacho recorrido.
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A assistente deduziu acusação particular contra a arguida, imputando-lhe a prática de um crime de difamação e de um crime de injúrias, respectivamente p. e p. pelos artigos 180º, n.º 1 e 181º, n.º 1, ambos do CP. São tais crimes dolosos.
E, na mesma acusação a assistente descreve o elemento subjectivo de tais ilícitos nos seguintes termos: “A arguida atuou de forma livre, consciente e com o propósito de ofender o bom nome, honra e consideração devidas à assistente.” (artigo 14.º da acusação particular).

Considerou a Exmª Juiz a quo que a “a assistente omite factos alusivos à consciência da ilicitude por parte da arguida, ou seja, que a mesma agiu bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei penal”.
Tendo concluindo que a falta do mencionado elemento determina a nulidade da acusação particular, nos termos do artigo 283º, n.º 3, al. b) do CPP, por falta de narração dos factos que fundamentam a aplicação à arguida de uma pena, o que torna a acusação particular manifestamente infundada, de acordo com o preceituado pelo artigo 311.º/3/b) do CPP, e bem assim que, a acusação particular também se mostra manifestamente infundada considerando que, sendo omissa na descrição integral do tipo subjetivo de ilícito do crime imputado, contém factos que não constituem crime [cfr. art. 311º, n.º 3, al. d)].

O processo criminal tem estrutura acusatória (artigo 32º, n.º 5 da CRP), o que significa que o objecto do processo é fixado pela acusação, a qual delimita o poder cognitivo do juiz, de forma a assegurar todas as garantias de defesa do arguido (n.º 1 do artigo 32º).
De acordo com o artigo 283º, n.º 3, al. b), do CPP, aplicável à acusação particular por força do n.º 3 do artigo 285º, a acusação contém, sob pena de nulidade, “b) a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;”.

E, se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o juiz pode rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada [artigo 311º, n.º 2, al. a)]; concretizando o n.º 3 do preceito, quais as situações em que a acusação pode ser considerada manifestamente infundada, a saber:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.

Discordando do despacho recorrido, diz a assistente/recorrente:
“a sua alegação referente ao elemento subjectivo dos crimes de que deduziu acusação, não constitui qualquer omissão do referido elemento subjectivo, uma vez que, e com referência ao momento volitivo (vontade de realização do tipo objectivo de ilícito) encontra-se totalmente preenchido, e mesmo que se equacionasse por mera cautela, haver, quando muito, uma deficiente ou precária narração quanto ao seu elemento intelectual (conhecimento do carácter ilícito da conduta), a mesma, tendo em conta o conjunto da restante factualidade narrada dos elementos subjectivos pode ser colmatada”.

Para a verificação de determinado crime, exige-se que se mostrem preenchidos os respectivos elementos objectivos e subjectivo.
Os elementos objectivos constituem a materialidade do crime e, traduzem a conduta, a acção, enquanto modificação do mundo exterior apreensível pelos sentidos, por sua vez, os elementos subjectivos traduzem a atitude interior do agente na sua relação com o facto material.
No caso vertente, entendeu a Mmª Juiz a quo que o elemento subjectivo dos crimes de injúrias e de difamação não estava completo, por falta de factos alusivos à consciência da ilicitude da arguida, integradores do elemento intelectual do dolo, daqui resultando, por consequência, que os factos descritos na acusação particular integradores do elemento volitivo do dolo e dos elementos objectivos dos ilícitos em causa, por si só, não constituem crime; por insuficiência de factos que permitissem a imputação de uma conduta ilícita à arguida.

De referir que, sendo a acusação omissa, total ou parcialmente, quanto aos elementos subjectivos do crime, em julgamento está vedado ao tribunal o recurso ao disposto no artigo 358º do CPP.
Na verdade, esta foi uma questão que dividiu a jurisprudência, e que levou o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão n.º 1/2015 (DR, I SÉRIE, Nº 18, 27 de Janeiro de 2015, P. 582 - 597) a fixar jurisprudência no sentido de que «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.».

A estrutura do dolo abrange o elemento intelectual e o elemento volitivo, consistindo o primeiro “na representação pelo agente, no momento em que pratica a conduta, de todos os elementos ou circunstâncias constitutivas do tipo de ilícito objectivo” e, pressupondo o segundo “que o agente dirija a sua vontade ou, pelo menos, se conforme com a realização do facto típico ” ( - Taipa de Carvalho in Direito Penal, Parte Geral, Questões Fundamentais, Teoria Geral do Crime, 2ª ed., 2008, págs 321 e 325.).
Ainda quanto ao elemento volitivo, em função da diversa atitude do agente, conforme o disposto no artigo 14º do CP, serão diversas as espécies de dolo, a saber: dolo directo (a intenção de realizar o facto), dolo necessário (a previsão do facto como consequência necessária da conduta) e o dolo eventual (a conformação da realização do facto como consequência possível da conduta).

Como vem sublinhado no citado Acórdão do STJ n.º 1/2015 “o que tradicionalmente se engloba nos elementos subjectivos do crime, costuma ser expresso na acusação por uma fórmula em que se imputa ao agente o ter actuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo represen­tado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude).” (são nossos os sublinhados)

Na situação em análise, como resulta da leitura da acusação particular deduzida pela assistente, falta um dos elementos subjectivos dos crimes que vêm imputados à arguida: - que a arguida ao agir do modo descrito tinha conhecimento da ilicitude dos factos e que estes eram puníveis pela lei penal.
Deste modo, nenhum reparo nos merece o despacho recorrido ao determinar a rejeição da acusação particular apresentada pela assistente, por manifestamente infundada.
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Outra questão deverá ser equacionada e que foi suscitada, com toda a pertinência, pelo Exmº PGA no seu Parecer: - a revogação do despacho recorrido na parte em que determinou o arquivamento dos autos, porquanto, sobre esta matéria - da rejeição de uma acusação por manifestamente infundada por insuficiente descrição de um elemento típico, mas admitindo a possibilidade de vir a ser deduzida validamente uma nova acusação, suprindo aquela omissão - foi recentemente tomada pelo Tribunal Constitucional uma decisão nesse sentido, no acórdão n.º 246/2017, DR II série, de 25-07-2017.
Com efeito, decidiu o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 246/2017:
«não julgar inconstitucional a norma extraída da conjugação dos artigos 311.º, n.ºs 1, 2, alínea a), e 3, alínea d), e 283.º, todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, tendo sido deduzida acusação contra um arguido, imputando-lhe a prática de um crime, e tendo esta acusação sido liminarmente rejeitada por insuficiente descrição de um elemento típico, poder vir a ser validamente deduzida nova acusação pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, suprindo a omissão da descrição do sobredito elemento típico, sujeitando-se a julgamento e condenando-se o arguido pelos factos e qualificação jurídica dela constantes.»

Subjacente a tal decisão do TC, e de acordo com o assinalado na mesma não será isenta de dificuldade uma solução que, perante qualquer erro (designadamente, a insuficiente descrição de um elemento típico) que torne a acusação “não-apta” para conformar o objeto do julgamento, conduza sempre e inexoravelmente à falência do processo penal e à impossibilidade da perseguição criminal, sob pena de se frustrarem os objetivos do próprio sistema processual penal, sem com isso (só com isso) se salvaguardar qualquer interesse importante do arguido. No limite, a justiça penal poderia ficar, assim, por realizar em virtude de meras imprecisões e erros superáveis, desfecho que, certamente, o legislador ordinário não pretenderia e, acima de tudo, a Constituição não parece impor.
Afigura-se, pois, razoável que, no processo penal, o legislador encontre soluções que permitam a correção de lapsos e omissões, até certo ponto, ultrapassando a “não-aptidão” da acusação, desde que sejam respeitados certos limites e se continue a assegurar ao arguido um julgamento justo e com as devidas garantias de defesa.

Concordando com a ponderação efectuada, no sentido de poder vir a ser validamente deduzida nova acusação particular pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, dos mesmos crimes, suprindo a omissão da descrição do elemento típico em falta, deverá ser revogado o despacho recorrido na parte em que determinou o arquivamento dos autos.
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III- DECISÃO
Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:
- julgar parcialmente provido o recurso e, em consequência:
a) manter o despacho recorrido, na parte em que rejeitou a acusação particular apresentada pela assistente, por manifestamente infundada;
b) revogar o despacho recorrido, na parte em que determinou o arquivamento dos autos.

Sem custas (artigo 513º, n.º 1 do CPP, na redacção dada pelo DL n.º 34/2008, de 26.02).
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Coimbra, 8 de Maio de 2018

Elisa Sales (relatora)
Jorge Jacob (Frederico Cebola)