Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4713/16.7T8VIS-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: HIPOTECA
USUFRUTO
PRINCIPIO DA INDIVISIBILIDADE
Data do Acordão: 07/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - VISEU - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.686, 688, 691, 696 CC
Sumário: A hipoteca incidente sobre imóvel em propriedade plena continua - atenta a sua natureza, efeitos e abrangência, vg. a sua indivisibilidade: artº 696º do CC - a incidir sobre o usufruto de tal bem, posteriormente autonomizado, maxime se este o foi após o registo do ónus e continua na titularidade dos devedores hipotecários.
Decisão Texto Integral:






ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

Foi declarada a insolvência de C (…).

No apenso de reclamação de créditos, o Sr. Administrador da Insolvência apresentou a lista de credores por si reconhecidos, a que alude o artigo 129.º, n.º 1, do CIRE.

Tal lista é constituída apenas por um credor, a C (...) , S.A.

 Na mesma o crédito foi qualificado como comum.

A credora  impugnou a natureza do seu crédito.

Disse:

Não obstante o insolvente atualmente ser apenas usufrutuário do imóvel, pelo facto de ter sido constituída hipoteca sobre este, o seu crédito, por força do princípio da indivisibilidade da hipoteca, deve ser reconhecido como garantido.

O Sr. Administrador da Insolvência respondeu à impugnação.

Referindo que o bem sobre o qual incide a garantia é propriedade de outrem, que não o insolvente.

2.

Seguidamente foi proferida decisão na qual se dispôs:

«Nestes termos e pelos fundamentos expostos, julgo improcedente a impugnação apresentada pela C (...) , S.A. e, em consequência, julgo reconhecido e verificado o respetivo crédito de capital de €66.370,40 (sessenta e seis mil, trezentos e setenta euros e quarenta cêntimos) como crédito comum e, bem assim, o crédito de juros  vencidos até três de novembro de dois mil e dezasseis no montante de €357,15 (trezentos e cinquenta e sete euros e quinze cêntimos) e vincendos até integral pagamento, como crédito subordinado, pelo que, em primeiro lugar, proceder-se-á ao pagamento do crédito comum e, em segundo e último lugar, o crédito subordinado.

3.

Inconformada recorreu a credora.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

(…)

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e  639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:

Qualificação do crédito como privilegiado por a hipoteca incidir sobre o usufruto.

5.

Os factos considerados foram os seguintes:

1) Nos autos de insolvência dos quais os presentes autos de reclamação de créditos são apenso, por sentença proferida a 3 de outubro de 2016, transitada em julgado, foi declarada a insolvência de C (…) (fls. 40 a 44 – ref.ª 78249816 - dos autos principais).

2) Para a massa insolvente foi apreendido o “usufruto do prédio urbano, sito (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Penedono sob o n.º 2431/Penedono e inscrito na matriz com o art.º 183 da União de Freguesias de Penedono e Granja, do concelho de Penedono” (fls. 3, do apenso A).

3) O prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Penedono sob o número 2431, da freguesia de Penedono, tem registadas as seguintes inscrições:

a. Ap. 1226 de 28-06-2010, hipoteca voluntária a favor da C (...) s, S.A., para garantia de empréstimo, no montante de capital de €30.000,00, juro anual de 8,246%, acrescido de 4% na mora a título de cláusula penal, despesas €1.200,00, tudo até ao limite máximo de €42.221,40;

b. Ap. 1227 de 28-06-2010, hipoteca voluntária a favor da C (...) s, S.A., para garantia de empréstimo, no montante de capital de €35.000,00, juro anual de 8,246%, acrescido de 4% na mora a título de cláusula penal, despesas €1.400,00, tudo até ao limite máximo de €49.258,30;

c. Ap. 1111 de 15-04-2011, hipoteca voluntária a favor da C (...) s, S.A., para garantia de empréstimo, no montante de capital de €7.000,00, juro anual de 8,246%, acrescido de 4% na mora a título de cláusula penal, despesas €280,00, tudo até ao limite máximo de €9.851,66.

d. Ap. 597 de 15-09-2014, aquisição a favor de (…), por doação do insolvente e (…)

e. Ap. 597 de 15-09-2014, usufruto simultâneo e sucessivo, a extinguir no todo apenas à morte do último que sobreviver, a favor do insolvente e (…) (fls. 7 a 10, do apenso A).

4) No dia 15 de setembro de 2014, o insolvente e (…) declararam perante adjunta de conservador, que consignou a escrito as suas declarações em título de doação, que, com reserva para si do usufruto simultâneo e sucessivo, a extinguir no todo apenas à morte do último que sobreviver, doavam à sua filha (…) menor de sete anos de idade, o prédio descrito sob o número 2431, da freguesia de Penedono.

5) O crédito reclamado pela C (...) s diz respeito aos contratos de empréstimos garantidos pelas hipotecas mencionadas no artigo 3.º, discriminado da forma seguinte:

a. Contrato de mútuo com o n.º 00....., com a garantia da hipoteca referida na alínea a):

i. Capital €27.373,06

ii. Juros vencidos de 03-10-2016 até 03-11-2016 €140,88

b. Contrato de mútuo com o n.º 003506060004141585, com a garantia da hipoteca referida na alínea b):

i. Capital €32.401,46

ii. Juros vencidos de 03-10-2016 até 03-11-2016 €166,76

c. Contrato de mútuo com o n.º 003506060004189985, com a garantia da hipoteca referida na alínea c):

i. Capital €6.595,28

ii. Juros vencidos de 03-10-2016 até 03-11-2016 €49,51.

Perante o alegado pela reclamante e os documentos juntos aos autos, está ainda provado o facto por ele invocado, qual seja:

6. À data da constituição das hipotecas, o insolvente e M (…) eram proprietários plenos do prédio urbano identificado em 1).

6.

Apreciando.

6.1.

A hipoteca é um direito real de garantia.

O efeito principal da hipoteca é a satisfação do direito de crédito garantido através do bem hipotecado.

Para o efeito, e como direito real que é, goza do atributo de sequela.

Vale isto por dizer que, enquanto subsistir, acompanha as vicissitudes do bem sobre que incide  habilitando o seu titular a atingir a coisa onde esta se encontrar.

Tal jaez traduz o poder do credor hipotecário de atuar sobre a coisa que lhe foi afeta, sem ter de se deter perante a atitude da pessoa que estiver atualmente na posse da coisa.

Por outras palavras, o direito de sequela significa que a garantia é inerente ao bem, acompanhando-o em posteriores alienações ou onerações, seguindo-o em todas as suas transferências, não a afetando quaisquer atos de disposição posteriores.

A hipoteca não cria uma simples relação pessoal entre credor e proprietário, consistindo num direito absoluto, válido contra todo o terceiro e estabelecido diretamente sobre a coisa.

Consequência disto é que a sorte do direito hipotecário não se subordina à permanência do domínio do imóvel na mesma pessoa; é nas pretensões erga omnes que se manifesta com absoluta clareza o carácter real deste direito de garantia.

Este cariz da figura ajuda a compreender a sua abrangência.

Assim, tem-se entendido que a hipoteca abrange o bem hipotecado em todas as suas transformações futuras: «que embora constituindo uma unidade jurídica, económica e jurídica autónoma e distinta da unidade hipotecada, não está fraccionada, de modo a permitir projectar sobre cada fracção o valor proporcional correspondente ao crédito hipotecário»

Pelo que, por exemplo:

«A hipoteca abrange, não só as benfeitorias, mas também qualquer outra valorização do imóvel sobre que incide, nomeadamente as construções que nele vierem a ser edificadas» - Ac. do STJ de 17.05.2007, p. 07B718; neste sentido, cfr.  ainda, os  Acs. do STJ de  13.12.1998 p. 98A1001 e de 12.07.2005, p. 05B2012, todos in dgsi.pt.

Tal abrangência dimana, vg., do disposto no  artº 691º, alínea c) do CC e do princípio da indivisibilidade da hipoteca consagrado no artº 696º do mesmo diploma.

Estatui este preceito:

«Salvo convenção em contrário, a hipoteca é indivisível, subsistindo por inteiro sobre cada uma das coisas oneradas e sobre cada uma das partes que as constituam, ainda que a coisa ou o crédito seja dividido ou este se encontre parcialmente satisfeito.»

Ora:

«O artº 696º do C Civil veio consagrar em toda a sua extensão a regra de indivisibilidade da hipoteca em três planos diferentes: a) Determinou a subsistência da hipoteca sobre cada uma das coisas oneradas, quando, como é natural, ela se haja, ab initio,  constituído sobre um objeto múltiplo: é a hipoteca solidária do direito alemão; b) Determinou a subsistência da hipoteca, por inteiro, sobre cada uma das novas coisas resultantes da divisão de um bem inicial hipotecado ou sobre cada uma das partes de coisas autonomizadas a partir de um prédio, também anteriormente hipotecado: é a indivisibilidade romanística…; c) determinou a subsistência da hipoteca, por inteiro, em prol de c ada um dos credores investidos, mercê da divisão de um crédito anterior» - Ac. do STJ de 22.04.1997, BMJ, 466º-463.

(sublinhado nosso)

6.2.

No caso vertente o Sr. Juiz decidiu nos seguintes termos:

«A hipoteca incide sobre o imóvel em si mesmo e não sobre o usufruto.

A lei prevê a possibilidade de ser hipotecado o usufruto (art.º 688.º, n.º 1, alínea e), do Código Civil) o que, no entanto, pressupõe um usufruto já constituído, “quer dizer, essa faculdade pertence apenas ao usufrutuário e não ao proprietário pleno” (Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª edição, pág. 940, nota 1, no mesmo sentido, João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 4.ª edição, pág. 537).

Nos termos do disposto no artigo 686º, nº 1, do Código Civil, “A hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.” A obrigação garantida pela hipoteca pode ser futura ou condicional (artigo 686º, nº 2, do Código Civil).

Sobre o imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Penedono sob o nº 2431 estão inscritas hipotecas voluntárias a favor da C (...) , SA para garantia das obrigações relativas a empréstimos (art.º 3.º dos factos provados).

A questão que se coloca é a de saber se as garantias hipotecárias constituídas sobre aquele imóvel se estendem ao produto da venda do usufruto.

O imóvel não foi enquanto tal apreendido para a massa insolvente.

Daí que, sendo objeto de liquidação apenas o usufruto e incidindo a hipoteca sobre o imóvel em si mesmo, com o devido respeito por opinião contrária, o credor hipotecário não goza de qualquer garantia sobre o usufruto apreendido que o habilite a concorrer, com a preferência da hipoteca, à graduação, até porque a venda do direito de usufruto não colide com a hipoteca que se mantém, independentemente da transmissão do usufruto.

Também com o devido respeito por opinião contrária, a regra da indivisibilidade da hipoteca prevista no artigo 696.º do Código Civil não determina solução diversa, por não estarem em causa dois prédios nem o fracionamento do prédio.

Pelo que, ao crédito da C (...) , S.A., garantido por hipotecas, não é atribuída qualquer garantia sobre o direito ao usufruto do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Penedono sob o número 2431, mas apenas sobre o próprio bem.

Assim, não tendo a C (...) s, S.A. garantia sobre o direito ao usufruto, e não tendo o imóvel sido apreendido, o respetivo crédito de capital é um crédito comum (art. 47.º, n.º 4, alínea c)) e o de juros (vencidos após a declaração de insolvência) é um crédito subordinado (artigo 47.º, n.º 4, alínea b), 48.º, alínea b)), pelo que será pago, em primeiro lugar, o crédito comum e, em segundo lugar, o crédito subordinado, nos termos previstos nos artigos 48.º, 176.º e 177.º, todos do CIRE.»

Pelo que supra se expôs em tese, e considerando os contornos do caso concreto, já se antevê que este entendimento não pode ser sufragado.

Na verdade, a questão não pode ser perspetivada e decidida, como o foi, a jusante, apenas em função da isolada consideração do bem – usufruto -  que foi apreendido para a insolvência.

Mas antes, desde logo e a montante, na perspetiva da consideração da natureza, efeitos e abrangência daquele direito real e da dinâmica do seu ajustamento/acompanhamento às vicissitudes do bem.

Ora a hipoteca  incidiu sobre o bem na sua plenitude, ou seja, sobre a propriedade plena que engloba a nua propriedade e o seu usufruto.

Aliás, e ainda que a hipoteca possa, em tese, ser constituída sobre o usufruto – artº 688º nº1 al. e) – no caso sub judice, e como bem frisa  a recorrente,  tal constituição quedava impossível, pois que ela pressupõe a existência autónoma deste direito, e, à data da constituição do ónus em causa,  o usufruto não tinha ainda tal autonomia.

Destarte, hipotecado o bem em propriedade plena, a hipoteca abrangeu o usufruto, não tendo a sua autonomização posterior virtualidade e força bastantes para o eximir de tal ónus.

Até porque a hipoteca foi registada ainda antes da autonomização do usufruto e este continuou  na titularidade dos devedores hipotecários.

E foi certamente na consideração do valor desta plenitude - o qual, certamente, ou normalmente, é superior ao da nua propriedade-, que a reclamante  perspetivou e aceitou a constituição da hipoteca.

Pelo que a subtração do usufruto à alçada da mesma constituiria uma intolerável frustração da expectativa do credor  quanto à idoneidade garantística do bem, suscetível, tal como clama a insurgente, de constituir  violação  do princípio da confiança ínsito no princípio constitucional do Estado de Direito estatuído nos artigos 2º e 18º nº 2 da Constituição.

Decorrentemente, conclui-se que o crédito reclamado deve ser qualificado de garantido, bem assim como os juros dos últimos três anos ,  estes, considerando o preceituado no artº 48º, al. b), 2ª parte do CIRE e 693º nº2 do CC.

Procede, brevitatis causa, o recurso.

7.

Sumariando- artº 663º nº7 do CPC.

A hipoteca incidente sobre imóvel em propriedade plena continua - atenta a sua natureza, efeitos e abrangência, vg. a sua indivisibilidade: artº 696º do CC -  a incidir sobre o usufruto de tal bem, posteriormente autonomizado, maxime se este o foi após o registo do ónus e continua na titularidade dos devedores hipotecários.

8.

Deliberação.

Termos em que se acorda conceder provimento ao recurso, revogar a decisão, e declarar o cariz de garantido ao crédito da reclamante, bem como dos juros dos últimos três anos, com as legais consequências.

Custas pela massa.

Coimbra, 2017.07.12.

Carlos Moreira ( Relator )

Moreira do Carmo

Fonte Ramos