Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1191/15.1PBVIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
COMPETÊNCIA POR CONEXÃO
APENSAÇÃO DE PROCESSOS PARA JULGAMENTO CONJUNTO
Data do Acordão: 11/14/2018
Votação: DECISÃO SINGULAR
Tribunal Recurso: VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
Decisão: DETERMINAÇÃO DO TRIBUNAL COMPETENTE
Legislação Nacional: ART. 25.º DO CPP
Sumário: A conexão (subjectiva) prevista no artigo 25.º do CPP verifica-se apenas quando, em princípio, existe uma pluralidade de crimes cometidos pelo mesmo agente, para cujo conhecimento sejam competentes tribunais com sede na mesma comarca.
Decisão Texto Integral:

I. Relatório:

A Sr.ª Juiz do Juízo Local Criminal de Viseu (J2) suscitou a resolução do conflito negativo de competência (por conexão) existente entre a própria e o Sr. Juiz do Juízo Central Criminal de Viseu (J1), estando em causa determinar se cabe (ou não) ao segundo dos dois Juízos referidos a realização do julgamento (conjunto) relativo ao processo comum colectivo n.º 362/15.5GCVIS e aos autos do processo (comum singular) n.º 1191/15.1PBVIS.

 Cumprido o disposto no artigo 36.º, n.º 1, do CPP, não houve respostas. VER

O Sr. Procuradora-Geral Adjunto emitiu posição no sentido de ser atribuída competência para o indicado fim o Juízo Central Criminal de Viseu (J2) – doravante apenas designado Juízo Central Criminal; o outro tribunal conflituante será apenas Juízo Local Criminal.


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II. Fundamentação:

1. Elementos relevantes:

A. No domínio do processo n.º 1191/15.1PBVIS, o Ministério Público acusou A. e B. pela prática, cada um dos arguidos, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. no artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal;

B. Por sua vez, no âmbito do processo n.º 362/15.5GCVIS, o Ministério Público, no libelo acusatório deduzido imputou aos arguidos: C., D., E., F., G. e H., o cometimento, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º do DL 15/93, de 22-01, e ainda ao arguido C. a perpetração, em autoria material, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 5/2006; I., J., K., A. e L, em cumplicidade com os demais arguidos, um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. no normativo já enunciado (art. 21.º do DL 15/93), e também ao arguido L. um crime de detenção de arma proibida com consagração típica no artigo 86.º, n.º 1, als. a) e d) da Lei 5/2006. 

C. Posteriormente, por despacho de 04-10-2017, o Sr. Juiz do Juízo Local Criminal determinou, ao abrigo do disposto nos artigos 24.º, n.º 2, 25.º, 28.º, a), e 29.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, a apensação aos autos indicados na alínea antecedente do proc. 1119/15.1PBVIS, a qual veio a ocorrer em 14-11-2017.

D) No início da audiência de julgamento do proc. 362/15.5GCVIS, ocorrido em 04-12-2017, o Sr. Juiz Presidente despachou nestes termos (transcrição parcial):

«No âmbito dos nossos autos e antes deste Tribunal se pronunciar sobre se aceitava ou não a referida apensação foram notificados todos os Ex.mos defensores dos arguidos neste processo para se pronunciarem no prazo de 10 dias, prazo esse que no dia de hoje ainda se encontra em curso, mas relativamente ao qual os Ex.mos advogados acabam de declarar que prescindem.

Porém, a verdade é que os intervenientes desse processo [n.º 1191/15.1PBVIS] não estão notificados para comparecerem no dia de hoje.

Ora, a tomar-se posição sobre a referida apensação e ao admitir-se eventualmente a mesma, tal iria protelar o início deste julgamento com todos os inconvenientes decorrentes, atento até o número de sessões que este julgamento iria certamente implicar.

Em face de tudo o exposto, fica prejudicada qualquer tomada de posição sobre a mencionada apensação, devendo os autos de processo comum singular n.º 1191/15.1PBVIS (…) ser devolvidos.»

E) Regressados os autos ao Juízo Local Criminal, neles foi proferido novo despacho, com o conteúdo infra transcrito, nas partes tidas como relevantes:

«(…).

Foi determinado (…) a separação destes autos e a sua devolução (…).

Ora, esta ordem de desapensação equivale para todos os efeitos legais à declaração de cessação da conexão e subsequente ordem de separação de processos a que alude o n.º 1 do [art.] 30.º do Código de Processo Penal.

Nos termos do artigo 31.º, al. b) do mesmo Código, a competência determinada por conexão (…) mantém-se para o conhecimento dos processos separados nos termos do n.º 1 do citado artigo 30.º.

Trata-se, como logo a epígrafe daquele preceito legal o indica, de um caso de prorrogação de competência.

(…).

Fora do caso previso no n.º 2 do artigo 30.º do CPP – que aqui não está em causa – cessada a conexão, a competência para o julgamento mantém-se no tribunal que determinou a separação (…).

(…).

Assim sendo, declaro a incompetência deste Juízo Local Criminal – J2 para realizar o julgamento nos presentes autos e determino que, após trânsito do presente despacho, se remetam os presentes autos ao Juízo Central Criminal – J1, desta Comarca de Viseu.»

F) Reenviado o processo 1191/15.1PBVIS, novo despacho surgiu nos autos com o n.º 362/15.5GCVIS, o qual, nos segmentos que importa ter em conta, se passa a reproduzir:

«Pese embora a Ex.ma Juiz do Juízo Local tenha determinado a remessa dos seus autos para apensação aos presentes, em momento algum foi aceite por estes autos a invocada conexão e consequente apensação.

E se não houve reconhecimento da existência de conexão, não houve seguramente apensação e muito menos desapensação.

E, assim sendo, mal percebemos a invocação do citado art. 31.º do CPP, o qual para funcionar pressupõe a apensação/aceitação da conexão.

(…).

Aliás, nestes autos, antes de se tomar posição a respeito de tal questão, ou seja, se aceitaríamos ou não a conexão, ordenou-se a notificação dos demais arguidos nestes autos para se pronunciarem, tendo-se por despacho proferido na ata da audiência de julgamento do dia 4/12/2017, dia em que terminava o aludido prazo anteriormente concedido, decidido estar prejudicada a apreciação de tal questão, pelas razões invocadas no mesmo despacho, motivo pelo qual se determinou a devolução dos autos de processo comum singular ao mencionado juízo Local Criminal, devolução essa que tendo implícita a negação de competência para o julgamento identificado [no] processo comum singular e tendo o despacho respectivo transitado em julgado, entendemos não ser de suscitar aqui qualquer conflito.

Em conformidade com o exposto, (…) devolvam-se os autos ao Juízo Local Criminal – J2.»

  G) Foi em seguida suscitado, no proc. 1191/15.1PBVIS, o presente conflito.


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II. Cumpre decidir:

Preliminarmente importa perspectivar se, como refere a Sr.ª Juiz do Juízo Local Criminal, existe assunção da competência (por conexão) para o julgamento (conjunto) nos referenciados processos pelo Sr. Juiz do Juízo Central Criminal.

A resposta a esta questão, pronta e directa, só pode negativa.

A razão afigura-se-me simples.

Como revelam os autos [cfr. antecedente alínea D], o Sr. Juiz Presidente do Tribunal Colectivo, com invocação de fundamentos de grande fragilidade jurídica, reconhece-se, mais não fez do que deixar consignado, embora de forma implícita, a incompetência do Juízo Central Criminal para o julgamento do proc. comum singular n.º 1191/15.1PBVIS.

Posicionamento que está impressivamente vincado em posterior despacho [cfr. antecedente alínea F)]. 

E não estando determinada a conexão de processos, é inapropriada a invocação do normativo do artigo 30.º, onde estão elencadas as situações legalmente justificadoras da separação de processos, e, consequentemente, a aplicabilidade do artigo 31.º, alínea a), do mesmo diploma, onde está pressuposta a dita separação.


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Disto isto, surge de imediato a questão de saber qual o campo de intervenção do artigo 25.º do Código de Processo Penal, mais precisamente, se a aplicabilidade da referida norma está limitada a processos nos quais é apenas um o agente de múltiplos crimes cujo julgamento seja da competência de tribunais com sede na mesma comarca, ou se, verificado este último condicionalismo, não obstante a diversidade de arguidos nos diversos processos, ainda assim deve operar a mesma regra alargada de competência.

A jurisprudência dos nossos Tribunais da Relação não tem sido absolutamente consensual neste domínio.

Está escrito no Ac. da Relação do Porto de 09-12-2004, publicado em www.dgsi.pt. (o único que se conhece no dito sentido):

“(…) o único índice de conexão legalmente estabelecido é o mesmo agente ter cometido vários crimes, cujo conhecimento seja da competência de tribunais com sede na mesma comarca. Nem se diga que esta expressão “o mesmo agente” afasta as hipóteses em que haja uma pluralidade de agentes. Havendo uma pluralidade de agentes, a melhor leitura da lei é, em nosso entender, a que faz depender a conexão apenas da prática, por um mesmo agente, de vários crimes na área da mesma comarca. Não faria qualquer sentido afastar a conexão, ao abrigo do art. 25.º do C.P.Penal, quando vários agentes tivessem cometido, em co-autoria, na área da mesma comarca, vários crimes. É assim claro que, da letra do citado preceito, só pode extrair-se a conclusão de que é de todo em todo irrelevante que o mesmo agente tenha praticado só, ou em qualquer outra forma de participação criminosa, vários crimes na área da mesma comarca.

Por um lado, a razão de ser deste elemento de conexão é a economia processual, com a consequente vantagem do agente poder ser julgado conjuntamente pelos vários crimes praticados, para efeitos de aplicação de uma pena única, em razão do concurso de crimes (art. 77.º do C.Penal) […]. Esta razão subjacente à referida conexão processual é prosseguida mesmo que o julgamento conjunto arraste o julgamento de outros arguidos.”

Seguindo posição diversa, podem consultar-se os Acs. do Tribunal da Relação do Porto de 06-07-2005 e de 08-03-2017, proferidos nos processos 0443684 e 5544/11.6TAVNG-U.P1, e as decisões dos Srs. Presidentes de Secções Criminais da Relação do Porto de 04-07-2014 (proc. n.º 589/12.1GAVNF-B.P1) e da Relação de Évora de 21-05-2015 (proc. n.º 52/15.9YREVR), todos publicados in www.dgsi.pt., e, na doutrina, Simas Santos e Leal Henriques, in Código de Processo Penal Anotado, vol. I, 2.ª edição, 1999, pág. 192, e Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 17.ª edição, 2009, em anotação ao artigo 25.º.

Extractamos da decisão de conflito relativa ao processo n.º 589/12.1GAVNF-B.P1 as seguintes passagens:

«(…) em nosso entender, tanto o espírito legislativo como a unidade do sistema jurídico impedem se considere que há uma conexão entre os processos em causa.

Desde logo porque o art.º 25º do CPP, de forma expressa se refere ao “mesmo agente”, acrescentando: que “tiver cometido vários crimes”.

Mesmo agente importa unidade de acusado, não pluralidade de acusados. E [deste modo] tem de ser entendido, pelas razões que a Sr.ª Juiz do processo comum singular aduz, nas quais nos revemos, e que aqui reproduzimos: “A não ser assim, conduziria o artigo 25.º do CPP a múltiplas situações de conexão e consequente apensação de processos em que até poderá não haver um único arguido comum a todos os processos apensados, sendo julgadas conjuntamente pessoas sem qualquer ligação entre si e por factos sem qualquer relação palpável, sendo o tribunal «obrigado» a apreciar complexas realidades simultaneamente multi-pessoais e multi-factuais sem outra relação que não seja a de se repetir, e apenas «pontualmente» (pois que bastaria para a conexão que houvesse um arguido – entre muitos – comum entre determinado processo e aquele que seria competente para o julgamento, independentemente do número de arguidos neste acusados, podendo esta situação multiplicar-se por número considerável de processos), um mesmo agente.»

Procedendo à devida recensão crítica das duas teses em confronto, estou do lado a que pertence a enunciada em último lugar.

A disposição normativa génese da anunciada divergência, com a epígrafe “Conexão de processos da competência de tribunais com sede na mesma comarca”, dispõe:

«Para além dos casos previstos no artigo anterior, há ainda conexão de processos quando o mesmo agente tiver cometido vários crimes cujo conhecimento seja da competência de tribunais com sede na mesma comarca, nos termos dos artigos 19.º e seguintes”.

A conexão (subjectiva) prevista no preceito legal acabado de citar tem como pressuposto a existência de concurso de infracções, para além dos casos de unidade de acção ou de omissão da alínea a) do n.º 1 do artigo 24.º. Prevê-se aqui a pluralidade de comportamentos integrantes de vários crimes da competência material de tribunais sedeados na mesma comarca; haverá, então, conexão de processos, que são julgados em conjunto, da competência do tribunal que resultar da aplicação das regras de competência determinadas pelo artigo 28.º (vide Henriques Gaspar, in Código de Processo Penal Comentado, 2014, Almedina, pág. 99/100).

A razão da conexão de processos radica na celeridade e economia processual e na vantagem dela advinda para o agente, que, julgado conjuntamente, pelos diversos crimes, vê a sua situação jurídico-penal unitariamente definida (a propósito, Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. I, 6.ª edição, pág. 210).

Dito isto, subscrevemos, sem nenhuma reserva, a interpretação do preceito que conduz à existência da conexão prevista no artigo 25.º apenas quando existe pluralidade de crimes cometidos pelo mesmo agente.

A não se entender deste modo, resultaria incompreensivelmente sacrificado o basilar princípio da economia e celeridade na gestão e decisão dos processos.

Com efeito, o posicionamento que, por economia de palavras, agora designarei de “mais alargado”, poderia conduzir - em situações pontuais, conduziria seguramente -, ao julgamento conjunto de uma imensa multiplicidade de processos, com um cortejo inimaginável de arguidos, em que as situações fácticas reveladas não teriam nenhuma relação entre si.

Como se refere no já aludido despacho do Sr. Presidente das Secções Criminais da Relação de Évora, a exegese acolhida “não impedirá que, para além dos casos previstos nas alíneas d) e e) do art. 24.º do CPP, e em caso de vários arguidos, agindo em coautoria, possa ocorrer a apensação de processos crime, pendentes na mesma comarca, ao processo a que respeitar o crime determinante da competência por conexão, segundo os critérios enunciados no artigo 28.º (pena mais grave, arguido preso, prioridade da notícia do crime) quando os agentes dos crimes forem os mesmos em todos os processos.[1]

 

Em jeito de síntese conclusiva, cabe dizer: a conexão (subjectiva) prevista no artigo 25.º do CPP apenas se verifica quando, em princípio, existe uma pluralidade de crimes cometidos pelo mesmo agente, para cujo conhecimento sejam competentes tribunais com sede na mesma comarca.

Seguramente esta situação não existe no caso que estes autos revela, onde não existe coincidência na identidade dos arguidos nos dois processos em causa.


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III. Dispositivo:

Posto o que precede, decidindo o presente conflito negativo, determino que cada um dos dois tribunais em confronto detém competência para o julgamento do processo que lhe foi oportunamente distribuído.

Sem tributação.

Cumpra-se o disposto no art. 36.º, n.º 3, do CPP.


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Coimbra, 14 de Novembro de 2018

(Documento elaborado e integralmente revisto pelo signatário, Presidente da 5ª Secção - Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra)

(Alberto Mira)                                                  


[1] Neste sentido, o acórdão da Relação do Porto de 6 de Julho de 2005, relator Agostinho de Freitas, acessível in www.dgsi.pt/jtrp.