Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
728/11.0T4AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE MANUEL LOUREIRO
Descritores: JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO
PRESCRIÇÃO
PROCESSO DISCIPLINAR
INTERRUPÇÃO
DEVERES DO TRABALHADOR
VIOLAÇÃO
Data do Acordão: 12/05/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – TRIBUNAL DO TRABALHO DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 329º, Nº 1, 338º E 351º, NºS 1, 2 E 3 DO CT/09.
Sumário: I – Como é doutrina e jurisprudência uniformes, a prescrição do poder disciplinar interrompe-se com a comunicação da nota de culpa ou com a instauração de inquérito destinado a verificar a existência da infracção, as circunstâncias determinantes da sua gravidade e, se necessário, a identificação dos agentes.

II – Se os factos imputados ao trabalhador integrarem um ilícito criminal, o prazo de prescrição da infracção disciplinar passa a ser o da prescrição prevista para o ilícito penal, sendo que esse alargamento não depende do efectivo exercício da acção penal, nem da prévia verificação de qualquer outra condição ou pressuposto, maxime do exercício do direito de queixa-crime, quando o exercício daquela esteja dependente desta.

III – Para que se esteja perante uma justa causa de despedimento torna-se necessário que haja um comportamento culposo do trabalhador e que a sua gravidade seja de tal ordem que torne impossível a subsistência da relação de trabalho.

IV – A justa causa do despedimento pressupõe uma acção ou uma omissão imputável ao trabalhador a título de culpa, e violadora dos deveres principais, secundários ou acessórios de conduta a que o trabalhador, como tal, está sujeito, e que tal comportamento seja grave em si mesmo e nas suas consequências, de modo a tornar impossível a subsistência da relação laboral.

V – A confiança entre o empregador e o trabalhador desempenha um papel essencial nas relações de trabalho, tendo em consideração a forte componente fiduciária daquelas; com efeito, a relação juslaboral pressupõe a integridade, lealdade de cooperação e absoluta confiança da/na pessoa contratada.

Decisão Texto Integral: I - Relatório

A autora intentou contra a ré a presente acção declarativa com processo especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, mediante apresentação do correspondente formulário legal, requerendo que seja declarada a ilicitude ou a irregularidade do seu despedimento pela ré, com as legais consequências.


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Frustrada a tentativa de conciliação levada a efeito na audiência de partes, a ré apresentou o articulado de motivação do despedimento, no qual sustentou a regularidade do procedimento disciplinar e alegou os factos imputados à trabalhadora na decisão disciplinar para fundamentar o seu despedimento com justa causa; juntou o procedimento disciplinar.

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A autora contestou e deduziu reconvenção.
Começou por invocar a prescrição da infracção disciplinar, alegando ter decorrido mais de um ano entre a data da prática dos factos que lhe são imputados e a data em que recebeu a nota de culpa.
A seguir, excepcionou a caducidade do procedimento disciplinar, sustentando que os factos constantes da nota de culpa sempre foram do inteiro conhecimento dos superiores hierárquicos da autora e que quando a ré deduziu a nota de culpa já há muito que havia decorrido o prazo de 60 dias previsto no art. 329º/2 do CT/09.
A seguir, apresentou uma diferente versão dos factos que lhe foram imputados na decisão disciplinar, defendendo que a sua conduta não integra a violação culposa de qualquer dever laboral, sendo ilícito o despedimento decretado pela ré.
Concluiu, pedindo a declaração de ilicitude do seu despedimento e a condenação da ré na reintegração no seu posto de trabalho ou na indemnização substitutiva que fixou provisoriamente em € 2.893,46, bem como no pagamento à autora das retribuições intercalares vencidas e vincendas até à data da sentença, ascendendo as vencidas desde 12/7/2011 a € 2.486,22, e dos juros de mora legais.

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 A empregadora respondeu, sustentando que não se verificam as excepções de prescrição e de caducidade arguidas na contestação, que a retribuição base da autora era de € 642,99, acrescida de € 160,75 de subsídio de turno, de € 25,00 de abono para falhas e de € 6,40 de subsídio de refeição por cada dia de trabalho prestado, não relevando estas duas últimas prestações para efeitos do disposto no art. 390º/1 do CT, que a sanção disciplinar de despedimento foi proporcional à gravidade do comportamento da autora, ao grau de lesões dos interesses da ré, razão pela qual pugna pela declaração de licitude do despedimento e pela improcedência da reconvenção.

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Saneado o processo, procedeu-se a julgamento, com observância dos legais formalismos, após o que foi proferida sentença em que se entendeu estar prescrito o procedimento disciplinar instaurado à autora, com a consequente ilicitude do despedimento dela, constando do respectivo dispositivo, designadamente, o seguinte:
Pelo exposto e, sem necessidade de mais considerações, julga-se parcialmente procedente a presente acção e, consequentemente:
1- Declara-se ilícito o despedimento da A., nos termos do disposto no art. 382º, nº1, do C.Trabalho, por ter decorrido o prazo previsto no nº1 do art.  329º.

 2- Condena-se a R. a reintegrar a A. no mesmo estabelecimento da empresa, sem prejuízo da sua categoria e antiguidade.
 3- Condena-se a R. a pagar à A. o montante das retribuições que deixou de auferir desde 15.7.2011, à razão mensal de € 803,74, e dos subsídios de férias e de Natal, até ao trânsito em julgado da decisão da presente acção, com dedução das importâncias que se encontra a receber a título de subsídio de desemprego desde 19.8.2011, no valor mensal de € 561,60 e pelo período de 390 dias, a entregar pela R. à Segurança Social, bem como, se for caso disso, de outras quantias que comprovadamente tenha passado a auferir com a cessação do contrato e que não receberia se não fosse o despedimento.
4- As prestações retributivas mencionadas em 3., vencem juros de mora, à taxa legal, desde da data do respectivo vencimento até integral pagamento.”.

                                                           *
Não conformada com o assim decidido, apelou a ré, sustentando que “Nestes termos, e nos demais de Direito, cujo douto suprimento expressamente se requer, deve ser concedido integral provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida e substituindo-se a mesma por uma decisão que declare a tempestividade do exercício do poder disciplinar e, bem assim, a existência de justa causa do despedimento da recorrida, assim se fazendo inteira JUSTIÇA!”.
Apresentou, para tanto, as seguintes conclusões:
[...]

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A autora não contra-alegou.
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Nesta Relação, a exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu o parecer que consta de fls. 204 a 208, no sentido de que o recurso merece provimento por não ter ocorrido a prescrição da infracção disciplinar continuada imputada à trabalhadora.
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Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do mérito, cumpre decidir
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II – Questões a resolver
Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso, sãos as seguintes as questões a decidir:
1ª) Se está prescrito o procedimento disciplinar instaurado à autora.
2ª) Em caso de resposta negativa à primeira questão, se caducou o procedimento disciplinar.
3ª) Em caso de resposta negativa à segunda questão, se estava verificada justa causa para despedimento da autora.
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III – Fundamentação

A) De facto

São os seguintes factos provados:
[...]

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B) De direito

Primeira questão: se está prescrito o procedimento disciplinar instaurado à autora.

Para conhecer da excepção de prescrição do procedimento disciplinar que vem posta à consideração deste tribunal e que foi decida no sentido da sua verificação na decisão recorrida, importa perceber, nos seus contornos factuais, qual a infracção disciplinar com fundamento na qual a ré despediu a autora com invocação de justa causa.
Lida a decisão disciplinar e a decisão recorrida, pode descortinar-se o seguinte:
a) a autora entendeu, em data não posterior a 30/12/09, aproveitar-se de promoções de venda de máquinas de café A... levadas a efeito pela ré, para se apoderar do prémio de promoção oferecido pela ré aos adquirentes dessas máquinas e que estes reclamassem nos termos préviamente fixados para o efeito (envio de um cupão devidamente preenchido, com indicação do NIB de uma conta domiciliada em Portugal, acompanhado do código de barras original, recortado da caixa da máquina A... adquirida, e de fotocópia do talão de compra ou factura entregues pelo ponto de venda, que indicassem o modelo, o valor e a data da compra da máquina A... adquirida);
b) em execução desse seu desígnio, por seis vezes e por referência a seis vendas de máquinas A... que fez a clientes da ré, a autora remeteu à ré seis cupões destinados à reclamação dos prémios de promoção correspondentes a essas vendas, nos quais apôs o nome de D..., um endereço postal correspondente à sua morada da altura (rua ... ... Amadora) e  um NIB de uma conta bancária que lhe pertencia e domiciliada em Portugal ( x...), fazendo acompanhar esses cupões dos códigos de barra originais recortados das caixas das máquinas vendidas e dos duplicados das respectivas vendas a dinheiro por si emitidas;
c) recebidos os elementos remetidos pela autora nos termos descritos na antecedente alínea b), a ré transferiu para a conta da autora, por seis vezes, € 50 euros de cada vez, correspondentes aos prémios de promoção correspondentes às aquisições de máquinas de café;
d) a autora usou em proveito próprio as quantias assim transferidas pela ré.
Estes são, a nosso ver, os factos que integram a infracção disciplinar que motivou o despedimento da autora.
Podem surpreender-se no desenrolar factual dessa infracção disciplinar três fases principais, a saber:
1ª) a primeira que se desenvolve até à remessa dos cupões e documentos complementares para os serviços da ré, correspondendo esta fase à da tentativa de concretização do desígnio da autora no sentido de que a ré transferisse para si os prémios de promoção das vendas que, a serem transferidos, seriam utilizados em benefício da autora;
2ª) a segunda que se desenvolve a partir da recepção dos cupões e documentos complementares nos serviços da ré e que culmina com a realização das transferências bancárias dos prémios de promoção para a conta da autora – a fase em que se consuma o empobrecimento da ré e o enriquecimento da autora;
3ª) a terceira que respeita à utilização pela autora, em benefício próprio, dos montantes correpondentes às transferências bancárias feitas pela ré, bem sabendo a autora que não tinha direito a tais quantias, destinadas exclusivamente aos adquirentes das máquinas – a fase da concretização do destino dado pela autora ao dinheiro a que sabia não ter direito.
Assim, caso a ré não tivesse transferido para a conta da autora as quantias correspondentes aos prémios de promoção reclamados, naturalmente que a infracção disciplinar da autora deveria ter-se por consumada no momento em que a mesma remeteu os documentos necessários para as reclamações dos prémios.
Porém, não foi isso que sucedeu.
A ré transferiu efectivamente para a conta da autora as quantias reclamadas, pelo que a infracção disciplinar da autora passou da fase da mera tentativa de emprobrecimento da ré e de concomitante enriquecimento da autora, para a efectiva consumação desse resultado.
Naturalmente que para efeitos disciplinares, esta fase da consumação do resultado ilícito pretendido pela autora consome a fase imediatamente anterior de mera tentativa de o produzir.
Tudo se passa aqui como, para efeitos penais, nos casos de burla que comportam necessariamente a fase da mera tentativa, a que pode seguir-se, ou não, a fase da consumação correspondente à prática dos actos determinantes do empobrecimento do lesado, sendo a primeira consumida pela segunda nos casos em que esta efectivamente se regista.
A tudo acresce, no caso dos autos, que após a prática dos actos de empobrecimento da ré e de correspondente enriquecimento da autora, esta utilizou em benefício próprio o dinheiro que indevidamente a ré colocou à sua disposição.
Resulta de quanto vem de referir-se que, a nosso ver, a conduta da autora com relevo disciplinar inicia-se com a remessa dos documentos necessários à cobrança dos prémios de promoção e termina apenas com a utilização em benefício próprio das quantias monetárias que indevidamente a ré colocou à disposição da autora.
Assim, não acompanhamos a primeira instância quando decidiu que a infracção disciplinar da autora se consumou com a remessa e recepção pela ré dos documentos necessários à reclamação dos prémios de promoção, de nada relevando os factos subsequentes, concretamente o prejuízo causado, em particular em situações como a dos autos em que a verificação desse prejuízo depende de um comportamento do empregador levado a efeito a coberto do engano ou artifício fraudulento utilizado e mantido pelo trabalhador para o determinar e sem o qual tal comportamento não seria assumido.
Essas situações são distintas, razão porque devem merecer tratamento distinto, daquelas outras do tipo daquelas que foram abordadas e decididas no acórdão da Relação de Lisboa de 23/2/2011, proferido no âmbito da apelação 848/08.8TTLSB.L1-4 e invocado na decisão recorrida, em que a verificação do prejuízo decorrente da conduta infraccional não depende minimamente de qualquer comportamento do empregador ou de terceiros, emergindo do simples comportamento do trabalhador, razão porque o prejuízo não pode considerar-se como elemento determinante da consumação da infracção disciplinar – na situação decidida por aquele acórdão da Relação de Lisboa o que estava em causa era um comportamento do trabalhador que consistia num acumular de falhas de caixa, não contabilizadas em conta própria, nem comunicadas, nos termos impostos por ordem de serviço, não estando o prejuízo daí emergente dependente de qualquer comportamento do empregador, antes emergindo do próprio comportamento do trabalhador; na situação dos autos, o prejuízo também emerge do facto da empregadora ter anuído, por ter laborado em erro provocado pela trabalhadora, em assumir um determinado comportamento de disposição patrimonial que não teria sido assumido não fora o comportamento astucioso da trabalhadora.
Por outro lado, independentemente de quanto acaba de referir-se, não pode deixar de igualmente relevar para efeitos disciplinares o comportamento da autora subsequente aos actos de disposição patromonial cometidos pela ré, deles resultando que na posse ilegítima do dinheiro transferidos pela ré, a autora não só não o devolveu à ré, como era sua estrita obrigação por saber que ao mesmo não tinha direito, como para lá disso o utilizou em benefício próprio.
Esta utilização indevida, em benefício próprio, do dinheiro que para si foi indevidamente transferido pela ré, não pode deixar de considerar-se como fazendo parte integrante do comportamento infraccional a considerar no âmbito destes autos para os efeitos de se saber se a ré tinha ou não justa causa para despedir a autora.
Nos termos do art. 329º/1 do CT/09, “O direito de exercer o poder disciplinar prescreve um ano após a prática da infracção, ou no prazo de prescrição da lei penal se o facto constituir igualmente crime.”.
Está em causa, na situação dos autos, um comportamento infraccional continuado que, como dito, culmina com a utilização indevida pela autora do dinheiro que ilegitimimamente foi transferido para a sua conta bancária pela ré.
Como é doutrina e jurisprudência uniformes, a prescrição do poder disciplinar interrompe-se com a comunicação da nota de culpa ou com a instauração de inquérito destinado a verificar a existência da infracção, as circunstâncias determinantes da sua gravidade e, se necessário, a identificação dos agentes.
No caso em apreço, o último acto de disposição patrimonial da ré data de 25/6/2010, razão porque os últimos actos de utilização indevida pela autora do dinheiro ilegitimamente transferido pela ré não podem ser anteriores a essa data.
A autora foi notificada da nota de culpa em 20/5/2011.
Como assim, facilmente se conclui que entre 25/6/2010 e 20/5/2011 não decorreu o prazo de prescrição fixado no art. 329º/1 CT/09.
Não prescreveu, assim, ao contrário do decidido pelo tribunal recorrido, o direito da ré proceder disciplinarmente contra a autora.
Isto mesmo sem equacionar a questão de saber se a conduta da autora integra um ilícito típico de natureza jurídico-criminal e, por isso, a aplicação ao caso dos autos da jurisprudência que se vem firmando no STJ, no sentido de que se os factos imputados ao trabalhador integrarem um ilícito criminal, o prazo de prescrição da infracção disciplinar passa a ser o da prescrição prevista para o ilícito penal, sendo que esse alargamento não depende do efectivo exercício da acção penal, nem da prévia verificação de qualquer outra condição ou pressuposto, maxime do exercício do direito de queixa-crime, quando o exercício daquela esteja dependente desta (acórdão de 22/09/2011, proferido na revista 429/07.3TTPRT.P1.S1; acórdão de 13/01/2010, proferido no âmbito da revista 1321/06.4TTLSB.L1.S1), bem como no TC no sentido de que, nessa interpretação, o art. 372º/2 do CT/2003, correspondente ao art. 329º/1 do CT/09, não é inconstitucional (acórdão 625/11, de 19/12/2011, proferido no âmbito do processo 543/10, da 1ª secção).
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Segunda questão: se caducou o procedimento disciplinar.

Resulta dos autos que a pessoa com competência disciplinar sobre a autora tomou conhecimento dos factos ilícitos imputados à trabalhadora no dia 18/4/2011 – ponto 49º dos factos provados.
Tendo a autora sido notificada da nota de culpa em 30/5/2011 (ponto 50º dos factos provados), evidente é que não tinha até então decorrido o prazo de 60 dias enunciado no art. 329º/2 do CT/09.
Não se verifica, assim, a excepção de caducidade arguida pela autora.
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Terceira questão: se estava verificada justa causa para despedimento da autora.

Prescreve o art. 338º CT/2009 que “É proibido o despedimento sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos.”, estatuindo o nº 1 do art. 351º do mesmo diploma que “Constitui justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho”.
Por sua vez, no nº 2 da mesma disposição legal, a título exemplificativo, o legislador concretizou alguns dos comportamentos do trabalhador que poderão constituir, eventualmente, justa causa de despedimento.
Os nºs 1 e 2 do art. 351º do CT/2009 correspondem, no essencial, aos nºs 1 e 3 do art. 396º do CT/2003, bem como aos nºs 1 e 2 do art. 9º da anterior Lei dos Despedimentos (DL 64-A/89, de 27/02), pelo que mantiveram actualidade a doutrina e jurisprudência anteriores, relativas à justa causa de despedimento.
Ora, segundo tem sido doutrina e jurisprudência pacíficas, a existência de justa causa de despedi­mento nos termos do citado preceito, exige a verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
1) um, de natureza subjectiva, traduzido num comportamento culposo do trabalhador;
2) outro, de natureza objectiva, que se traduz na impossibilidade de subsistência da relação de trabalho;
3) e, ainda, a existência de nexo de causalidade entre aquele comportamento e esta impossibilidade de subsistência da relação laboral.
Assim, para que se esteja perante justa causa de despedimento torna‑se necessário que haja um comportamento culposo do trabalhador e que a sua gravidade seja de tal ordem que torne impossível a subsistência da relação de trabalho.
A justa causa do despedimento pressupõe uma acção ou uma omissão imputável ao trabalhador a título de culpa, e violadora dos deveres principais, secundários ou acessórios de conduta a que o trabalhador, como tal, está sujeito, deveres esses emergentes do vínculo contratual, cuja observância é requerida pelo cumprimento da actividade a que se obrigou, pela disciplina da organização em que essa actividade se insere, ou, ainda, pela boa-fé que tem de registar-se no cumprimento do contrato.
Não basta, porém, aquele comportamento culposo do trabalhador. É que, sendo o despedimento a mais grave das sanções, para que o comportamento do trabalhador integre a justa causa é ainda necessário que seja grave em si mesmo e nas suas consequências, de modo a tornar impossível a subsistência da relação laboral.
E a gravidade do comportamento do trabalhador não pode aferir‑se em função do critério subjectivo do empregador, devendo atender‑se a cri­térios de razoabilidade, considerando a natureza da relação laboral, o grau de lesão dos interesses da entidade empregadora, o carácter das relações entre as partes e demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes – nº 3 do art. 351º do Código do Trabalho/2009.
Tanto a gravidade como a culpa hão‑de ser apreciadas em termos objectivos e concretos, de acordo com o entendimento de um bom pai de família ou de um empregador normal, em face do caso concreto, e segundo critérios de objectividade e razoabilidade (cfr. art. 487º/2 CC), sendo certo que o comportamento culposo do trabalhador apenas constitui justa causa de despedimento quando determine a impossibilidade prática da subsistência da relação laboral.
Por isso se pode afirmar que existe justa causa de despedimento quando o estado de premência do despedimento seja de julgar mais importante que os interesses opostos na permanência do contrato, só se podendo concluir pela existência de justa causa, quando, em concreto e tendo em conta os factos praticados pelo trabalhador, seja inexigível ao empregador o respeito pelas garantias da estabilidade do vínculo laboral.
Assim, existirá impossibilidade prática de subsistência da relação laboral sempre que, nas circunstâncias concretas, a permanência do contrato e das relações pessoais e patrimoniais que ele importa, sejam de forma a ferir, de modo exagerado e violento, a sensibilidade e a liberdade psicológica de uma pessoa normal, colocada na posição do empregador, ou seja, sempre que a continuidade do vínculo represente uma insuportável e injusta imposição ao empregador (cfr. Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 8.ª edição, vol. I, págs. 461 e segs; Menezes Cordeiro, Manual de Direito do Trabalho, 1991, págs. 822; Lobo Xavier, Curso de Direito do Trabalho, 1992, págs. 488; Jorge Leite e Coutinho de Almeida, em Colectânea de Leis do Trabalho, 1985, págs. 249).
E porque o despedimento é sempre um facto socialmente grave por lançar o trabalhador no desemprego e atendendo a que tal sanção é a mais grave do elenco das sanções disciplinares previstas no CT/09, a justa causa só deve operar quando o comportamento do trabalhador é de tal modo grave em si mesmo e nas suas consequências, que não permite, em termos de razoabilidade, a aplicação de sanção viabilizadora da manutenção da relação de trabalho, não esquecendo que a sanção disciplinar deve ser sempre proporcionada à gravidade da infracção e à culpabilidade do infractor (princípio da proporcionalidade – art. 330º/1 do CT/09).
Este princípio da proporcionalidade, que é comum a todo e qualquer direito punitivo, implica uma dupla apreciação: a determinação da gravidade da falta e a graduação das sanções.
A primeira resultará da apreciação do facto delituoso em si, das circunstâncias em que ocorreu a sua prática, das suas consequências, da culpabilidade e dos antecedentes disciplinares do arguido.
A segunda justifica-se na medida em que apenas se deverá aplicar uma sanção mais grave quando sanção de gravidade menor não for suficiente para defender a disciplina dentro da empresa - Pedro Sousa Macedo, Poder Disciplinar Patronal, págs. 55/ 56.
Cabe, agora, apreciar a situação em apreço.

Na verdade, é sabido que no âmbito das relações jurídicas de trabalho subordinado, o trabalhador deve proceder de boa-fé no exercício dos seus direitos e no cumprimento dos seus deveres [arts. 126º/1 CT/09 e 762º/2 CC – com a ideia de boa-fé estão relacionadas, como é sabido, as ideias de fidelidade, lealdade, honestidade e confiança na realização e cumprimento dos negócios jurídicos (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, Coimbra Editora, 1968, pág. 2)], estando sujeito à obrigação de cumprir um conjunto de deveres que estão enunciados no art. 128º/1 do CT/09, alguns principais, como por exemplo o de realizar o trabalho com zelo e diligência (alínea C), outros secundários, como por exemplo o de velar pela conservação e boa utilização dos bens relacionados com o seu trabalho (alínea F), e ainda outros que são acessórios de conduta, deduzidos do princípio geral da boa-fé supra referido, como por exemplo o de guardar lealdade ao empregador, nomeadamente não negociando por conta própria ou alheia em concorrência com ele, nem divulgando informações referentes à sua organização, métodos de produção ou negócios (alínea E) - Maria do Rosário Palma Ramalho qualifica o referido dever de lealdade e outros, como por exemplo os de respeito e urbanidade e de custódia, como deveres acessórios autónomos, os quais, não dependendo propriamente da prestação principal (a actividade laboral), surgem com a celebração do contrato, mantêm-se ao longo da sua execução, subsistem nas situações de não prestação do trabalho e/ou de suspensão do contrato e perduram mesmo para além da cessação do vínculo (Direito do Trabalho, Parte II, 2010, pág. 412).

É sabido, também, que a confiança entre o empregador e o trabalhador desempenha um papel essencial nas relações de trabalho, tendo em consideração a forte componente fiduciária daquelas; com efeito, a relação juslaboral pressupõe a integridade, lealdade de cooperação e absoluta confiança da/na pessoa contratada.

Do mesmo modo, sabe-se que a subsistência daquela confiança pressupõe a observância do mencionado dever de lealdade do trabalhador para com o empregador, pois que aquela será sempre afectada, podendo mesmo ser irremediavelmente destruída, quando se fere o mencionado dever, sendo que a observância deste é fundamental para o correcto implemento dos fins prático-económicos a que o contrato se subordina.

“Em geral, o dever de fidelidade, de lealdade ou de “execução leal” tem o sentido de garantir que a actividade pela qual o trabalhador cumpre a sua obrigação representa de facto a utilidade visada, vedando-lhe comportamentos que apontem para a neutralização dessa utilidade ou que, autonomamente, determinem situações de “perigo”(-) para o interesse do empregador ou para a organização técnico-laboral da empresa(-)”, sendo que “o dever geral de lealdade tem uma faceta subjectiva que decorre da sua estreita relação com a permanência de confiança entre as partes (nos casos em que este elemento pode considerar-se suporte essencial de celebração do contrato e da continuidade das relações que nele se fundam)” e que, encarado de um outro ângulo, “apresenta também uma faceta objectiva, que se reconduz à necessidade do ajustamento da conduta do trabalhador ao princípio da boa-fé no cumprimento das obrigações”, “com o sentido que lhe é sinalizado pelo art. 119.º/1 CT”, donde promana, “no que especialmente respeita ao trabalhador, o imperativo de uma certa adequação funcional — razão pela qual se lhe atribui um cariz marcadamente objectivo — da sua conduta à realização do interesse do empregador, na medida em que esse interesse esteja “no contrato”, isto é, tenha a sua satisfação dependente do cumprimento (e do modo do cumprimento) da obrigação assumida pela contraparte.” – Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 12.ª edição, Almedina, págs. 231 a 234.

O “… dever de lealdade manifesta-se hoje, basicamente, nos deveres de não concorrência e de sigilo profissional, sendo expressão da boa-fé contratual e significando que o trabalhador não deverá aproveitar-se da posição funcional que ocupa na empresa em detrimento do empregador (desviando a sua clientela, revelando segredos à concorrência, etc.)” - Leal Amado, Contrato de Trabalho, 2.ª edição, Coimbra Editora, pág. 386.

Trata-se, conforme o exposto, de um dever que numa vertente objectiva se traduz na necessidade do trabalhador ajustar o seu comportamento aos princípios da boa-fé no cumprimento do contrato e numa vertente subjectiva se reconduz à relação de confiança entre as partes que impõe que a conduta do trabalhador não seja susceptível de abalar tal confiança e, assim, criar no espírito do empregador a dúvida sobre a idoneidade futura do comportamento do trabalhador – cfr. acórdãos do STJ de 17/04/1996 e de 14/01/1998, proferidos, respectivamente, nos processos 4429 e 110/97, ambos da 4.ª secção.

Naturalmente que esse dever de lealdade não apresenta, sempre, o mesmo conteúdo; ao invés, este varia em função da natureza das funções do trabalhador, sendo mais acentuado quanto mais qualificadas forem as funções desempenhadas pelo trabalhador na organização técnico-laboral do empregador; coerentemente com o acabado de afirmar, o juízo de censura dirigido ao trabalhador não tem de ser sempre igual, devendo ser tanto mais severo quanto mais elevado for o grau de confiança estabelecido entre as partes, objectivado nas funções confiadas ao trabalhador na respectiva estrutura organizativa da empresa.

Atente-se, no entanto, em que dado o carácter absoluto do dever de lealdade (v.g., acórdãos da Relação do Porto de 5/12/11, proferido na apelação 513/10.6TTMAI.P1, de 12/9/2011, proferido na apelação 787/10.2TTPRT.P1, da Relação de Lisboa de 8/2/2012, proferido no âmbito da apelação 3061/03.7TTLSB.L1-4, de 26/9/2012, proferido no âmbito da apelação 1004/10.0TTLRS.L1; na doutrina pode consultar-se, por exemplo, Menezes Cordeiro, Manual de Direito do Trabalho, págs. 826 a 828, e Lobo Xavier, Da Justa Causa de Despedimento no Contrato de Trabalho, pág. 19), a diminuição de confiança resultante da violação deste dever não está dependente da verificação de prejuízos materiais, nem da existência de culpa grave do trabalhador: por isso, a simples materialidade desse comportamento lesivo do dever em apreço, aliado a um moderado grau de culpa do trabalhador pode, em determinado contexto, levar a um efeito redutor das expectativas de confiança (acórdão do STJ de 11/10/95, publicado na CJ, tomo III, pág. 277).

Como ensina Júlio Gomes (Direito do Trabalho, vol. I, Relações Individuais de Trabalho, Coimbra Editora, 2007, pág. 951), no tocante às consequências da conduta do trabalhador, “…estas deverão consistir num prejuízo grave para o empregador, embora tal prejuízo não seja necessariamente de ordem patrimonial. Com efeito, as consequências perniciosas podem consistir em minar a autoridade do empregador (ou do superior hierárquico), lesar a imagem da empresa ou num dano por assim dizer “organizacional”. Referimo-nos, com isto, ao que vulgarmente se refere pela perda de confiança no trabalhador.”.

Neste enquadramento, a violação do dever de lealdade e a consequente violação da relação de confiança que é fundamento nuclear da subsistência do vínculo de trabalho subordinado contituirá justa causa de despedimento, por comprometer de forma prática e irremediável a subsistência da relação de trabalho, se não for possível reconstituir no empregador a confiança perdida.

No caso em apreço, cumpre sublinhar, antes de mais, que a ré depositava na autora total confiança - ponto 3º dos factos provados.

Por outro lado, temos por evidente que a autora violou claramente o dever de lealdade a que estava obrigada para com a ré.

Para assim concluir basta atentar nos factos descritos nos pontos 7º) a 45º) dos factos provados.

Desses mesmos factos resulta, também, a reiteração da autora na prática de comportamentos lesivos do dever de lealdade para com a ré.

Com efeito, por seis vezes consecutivas a autora remeteu à ré documentação necessária ao pagamento de prémios de promoção a que não tinha direito (entre 30/12/09 e 12/1/2010; entre 30/12/09 e 12/1/2010; entre 7/1/2010 e 12/1/2010; entre 6/4/2010 e 8/6/2010; entre 13/4/2010 e 8/6/2010; entre 20/4/2010 e 8/6/2010), arrogando-se sempre uma qualidade que não tinha (a de compradora de máquinas A...), após o que, por duas vezes (24/2/2010 e 25/6/2010), a ré transferiu indevidamente para a autora os prémios de promoção reclamados, a partir do que a autora despendeu em proveito próprio as quantias assim transferidas.

Desses mesmos factos também resulta, de forma inequívoca, que a autora actuou sempre de forma dolosa, na sua forma mais grave de dolo directo – ponto 46º dos factos provados.

Numa palavra: a autora assumiu, por diversas vezes e em todas com vontade de assim proceder, comportamentos desonestos para com a ré.

Ora, essa desonestidade da autora, ainda por cima reiterada e dolosa, mina irremediavelmente, pela sua gravidade intrínseca, a relação de confiança que tinha de existir entre a autora e a ré como pressuposto de manutenção da relação de trabalho, mesmo atendendo ao valor diminuto do prejuízo global emergente dos comportamentos ilícitos, em consequência do que se deve considerar irremediavelmente comprometida a subsistência da relação de trabalho entre a autora e a ré, ficando esta constituída, assim, no direito que exerceu de despedir a autora com justa causa – neste sentido, em casos de assunção pelos trabalhadores de comportamentos desonestos e, por isso, lesivos do dever de lealdade, podem consultar-se, acórdãos do STJ de 17/7/1987, TJ, 34, 1987, pág. 27, de 19/11/1987, TJ, 36, 1987, pág. 28, de 19/1/1994, CJ do STJ, 1994, t. 1, pág. 278, de 17/1/96, CJ do STJ, 1996, t. 1, pág. 247, da Relação de Lisboa de 5/4/1995, CJ 1995, t. 2, pág. 178, da Relação do Porto de 20/4/1998, CJ, 1998, t. 2, pág. 267, da Relação de Coimbra, BMJ 368, pág. 620.
Tudo para concluir no sentido de que nas circunstâncias concretas em apreciação, a permanência do contrato da autora e das relações pessoais e patrimoniais que ele importava, feririam, de modo exagerado e violento, a sensibilidade e a liberdade psicológica de uma pessoa normal, colocada na posição do empregador, ou seja, a continuidade do vínculo representaria uma insuportável e injusta imposição à ré.
Bem andou a ré, pois, ao sancionar a autora com o despedimento.

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IV – Decisão

Termos em que deliberam os juízes que compõem esta secção social do Tribunal da Relação de Coimbra no sentido de revogar a decisão recorrida, declarando-se regular e lícito o despedimento da autora promovido pela ré, com a consequente improcedência da reconvenção da autora.
Custas pela autora, em ambas as instâncias.

Jorge Manuel Loureiro (Relator)

Ramalho Pinto

Azevedo Mendes