Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2526/20.0T8CBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: REGULAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
INSTRUÇÃO
OBTENÇÃO DE PROVAS NO ESTRANGEIRO
Data do Acordão: 01/18/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 21.º, N.º 1, ALÍNEA E), E 39.º, N.º 5 DO REGIME GERAL DO PROCESSO TUTELAR CÍVEL, APROVADO PELA LEI N.º 141/2015, DE 8 DE SETEMBRO
CONVENÇÃO DA HAIA DE 1970 SOBRE A OBTENÇÃO DE PROVAS NO ESTRANGEIRO EM MATÉRIA CIVIL OU COMERCIAL
Sumário: I – No processo de regulação das responsabilidades parentais constitui diligência imprescindível para a boa decisão da causa o apuramento das condições pessoais e económico-sociais dos progenitores, ainda que residam no estrangeiro.

II – À obtenção de provas no Reino Unido, após a sua saída da União Europeia, é aplicável a CONVENÇÃO DA HAIA DE 1970 sobre a Obtenção de Provas no Estrangeiro em Matéria Civil ou Comercial.

Decisão Texto Integral:      


                                                               



            Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                                       *

            1 – RELATÓRIO

 Em autos de regulação das responsabilidades parentais instaurados pela Exma. Magistrada do Mº Pº contra A. [dado como residente em ..., (Portugal)] e B. [dada como residente em ..., no Reino Unido], progenitores dos menores C. , nascida a 08.06.2007, e de D. , nascido a 18.08.2004, na medida em que a progenitora requerida, foi qualificada como “ausente” nos autos, foi-lhe nomeado um Defensor Oficioso ao abrigo do art. 21º do n.C.P.Civil, e, operada a correspondente citação, veio a ser apresentado um requerimento de “Defesa”, em 23/05/2021, subscrito pela Exma. Defensora que lhe havia sido nomeada, formulando pedido de realização de diligências instrutórias/probatórias, mais concretamente o seguinte:

«A- Requer-se nos termos do art.º 436.º e 440.º do C.P.C., que sejam oficiadas, as entidades oficiais Inglesas competentes para virem aos autos dizerem o que tiverem por conveniente, nomeadamente sobre a alegada incapacidade da requerente e, em caso de resposta afirmativa, a identificação, caso haja, do seu representante legal/tutor;

B- Requer-se que seja solicitada à Segurança Social, I.P. a realização de relatórios sociais à requerida B. ;

C- Requer-se que a acta de conferência de pais realizada a 24 de Novembro de 2020 – referência Citius 84193372, o despacho proferido a 4 de Maio de 2021 – referência Citius 85320819 e a presente defesa sejam traduzidas para a língua inglesa e remetidas à requerida ou ao representante legal/tutor no caso de se confirmar a sua incapacidade.»

*

Tal requerimento foi indeferido por despacho judicial proferido em 04.06.2021, o qual se traduziu nos seguintes termos:

«Requerimento de 23 de maio de 2021:

Indefiro o requerido ofício às autoridades inglesas, por falta de fundamento legal, não competindo ao Tribunal a realização da investigação pretendida pela requerida.

Mais indefiro a solicitação à Segurança Social para a realização de relatório social à requerida, por manifesta impossibilidade, posto que a requerida reside em país estrangeiro.

Acresce que, atendendo às declarações prestadas por pai e filhos, não se afigura existir qualquer utilidade na solicitação de relatórios sociais às autoridades inglesas, posto que não é de todo provável que a requerida possa constituir-se como alternativa ao pai nos cuidados a prestar aos menores, atendendo à doença mental relatada.

 Por último, proceda à notificação à requerida e a E. nos termos solicitados, através do email utilizado para contactar o Tribunal a 23 de novembro de 2020, utilizando previamente o tradutor do Google na tradução para língua inglesa e fazendo menção de tal utilização no texto traduzido.

(…)»

                                                           *

            Inconformada com essa decisão, apresentou a progenitora requerida recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
« I. O tribunal a quo procedeu à citação da requerida, residente em Inglaterra e de nacionalidade inglesa para o presente processo de Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais em clara violação do estatuído no art.º 9.º-A do C.P.C. (que estabelece que as citações e as notificações devem usar uma linguagem simples clara) e no Regulamento (CE) n.º 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Novembro de 2007, relativo à citação e à notificação dos actos judiciais e extrajudiciais em matérias civil e comercial, por falta de junção do Anexo II. Regulamento que ainda é aplicável actualmente, vide art. 68.º do Acordo sobre a saída do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica (2019/C 384 I/01);
II. O Regulamento (CE) n.º 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Novembro de 2207 (doravante Regulamento) tem como objectivo, melhorar a eficácia e a celeridade dos processos judiciais, ao estabelecer o princípio da transmissão directa dos actos judiciais e extrajudiciais, sendo aplicável em matéria civil ou comercial, quando um ato judicial ou extrajudicial deva ser transmitido de um Estado-Membro para outro Estado-Membro para aí ser objecto de citação ou notificação;
III. No capítulo II do Regulamento, encontramos as disposições que prevêem os diferentes meios de transmissão e de citação ou notificação dividindo- se este capítulo em duas secções: A secção 1 respeita à transmissão pelas entidades designadas pelos Estados-Membros, designadas “entidades de origem” e “entidades requeridas”, competentes, respectivamente, para transmitir os actos para efeitos da sua citação ou notificação noutro Estado-Membro e para receber tais actos provenientes de outro Estado-Membro. No art.º 8.° do Regulamento - Recusa de recepção de ato” – podemos constatar que, “1. A entidade requerida avisa o destinatário, mediante o formulário constante do Anexo II, de que pode recusar a receção do ato quer no momento da citação ou notificação, quer devolvendo o ato à entidade requerida no prazo de uma semana, se este não estiver redigido ou não for acompanhado de uma tradução numa das seguintes línguas: a) Uma língua que o destinatário compreenda; ou b) A língua oficial do Estado-Membro requerido ou, existindo várias línguas oficiais nesse Estado-Membro, a língua oficial ou uma das línguas oficiais do local onde deva ser efetuada a citação ou notificação. 2. Se a entidade requerida for informada de que o destinatário recusa a receção do ato ao abrigo do disposto no n.° 1, deve comunicar imediatamente o facto à entidade de origem, utilizando para o efeito a certidão a que se refere o artigo 10.°, e devolver-lhe o pedido e os documentos cuja tradução é solicitada. 3. Se o destinatário tiver recusado a receção do ato ao abrigo do disposto no n.° 1, a situação pode ser corrigida mediante citação ou notificação ao destinatário, nos termos do presente regulamento, do ato acompanhado de uma tradução numa das línguas referidas no n.° 1. Nesse caso, a data de citação ou notificação do ato é a data em que o ato, acompanhado da tradução, foi citado ou notificado de acordo com a lei do Estado-Membro requerido. Todavia, caso, de acordo com a lei de um Estado-Membro, um ato tenha de ser citado ou notificado dentro de um prazo determinado, a data a tomar em consideração relativamente ao requerente é a data da citação ou notificação do ato inicial, determinada nos termos do n.° 2 do artigo 9.° 4. Os n.ºs 1, 2 e 3 aplicam-se igualmente aos meios de transmissão e de citação ou notificação de atos judiciais previstos na secção 2. 5. Para efeitos do n.° 1, os agentes diplomáticos ou consulares, nos casos em que a citação ou notificação é efetuada nos termos do artigo 13.°, ou a autoridade ou pessoa, nos casos em que a citação ou notificação é efetuada nos termos do artigo 14.°, devem avisar o destinatário de que pode recusar a receção do ato e que o ato recusado deve ser enviado àqueles agentes ou àquela autoridade ou pessoa, conforme o caso.”
IV. Na secção 2 do Regulamento encontramos outros “meios de transmissão e de citação ou notificação de atos judiciais”: art.º 12.º Transmissão por via diplomática ou consular; art.º 13.º Citação ou notificação de actos judiciais por agentes diplomáticos ou consulares; art.º 14.º Citação ou notificação pelos serviços postais e no art.º 15.º Citação ou notificação directa.
V. No que nos respeita, citação ou notificação pelos serviços postais, o art.º 14.° do Regulamento dispõe que: “Os Estados-Membros podem proceder diretamente pelos serviços postais à citação ou notificação de atos judiciais a pessoas que residam noutro Estado-Membro, por carta registada com aviso de receção ou [envio] equivalente.”
VI. Mas tal não obsta a que se anexe o formulário do Anexo II para que se possa cumprir o estatuído no art.º 8.º do Regulamento: dar a conhecer ao destinatário da citação ou notificação o seu direito de recusar a sua recepção, pelo facto de o acto em causa não estar redigido ou não ser acompanhado de uma tradução numa língua que o destinatário é suposto compreender;
VII. Ora, o direito de recusar a recepção de um acto objecto de citação ou notificação decorre da necessidade de proteger os direitos de defesa do destinatário desse acto, de acordo com as exigências de um processo equitativo, consagrado no artigo 47.°, segundo parágrafo, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e no artigo 6.°, n.° 1, da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de Novembro de 1950;
VIII. Com efeito, embora o Regulamento n.° 1393/2007 se destine, essencialmente, a melhorar a eficácia e a celeridade dos processos judiciais e a assegurar a boa administração da justiça, o Tribunal de Justiça Europeu declarou que os referidos objectivos não podem ser alcançados à custa de um enfraquecimento, seja de que maneira for, do respeito efetivo dos direitos de defesa dos destinatários dos atos em causa (v., neste sentido, acórdão de 16 de setembro de 2015, Alpha Bank Cyprus, C-519/13, EU:C:2015:603, n." 30 e 31, e despacho de 28 de abril de 2016, Alta Realitat, C-384/14, EU:C:2016:316, n." 48 e 49”.;
IX. Neste conspecto, importa garantir que o destinatário não só receba a citação ou notificação mas, e se não o mais importante, possa compreender o sentido e o alcance da acção proposta contra ele no estrangeiro para fazer valer os seus direitos de uma forma plena e eficaz no Estado-Membro de origem, o mesmo se refira no direito interno português que estabeleceu no seu art. 9.º-A do C.P.C. que o tribunal aquando de qualquer comunicação deve usar uma linguagem simples e clara - cfr. Acórdão de 16 de setembro de 2015, Alpha Bank Cyprus, C-519/13, EU:C:2015:603, n.° 32 e jurisprudência referida, e despacho de 28 de abril de 2016, Alta Realitat, C-384/14, EU:C:2016:316, n.° 50);
X. Mas para que possa exercer o seu direito de recusa nos termos do art.º 8.º, n.º 1 do Regulamento, necessário se torna que o destinatário do acto tenha sido devidamente informado, previamente e por escrito, da existência desse direito - vide, neste sentido, acórdão de 16 de setembro de 2015, Alpha Bank Cyprus, C-519/13, EU:C:2015:603, n." 50 e 54, e despacho de 28 de abril de 2016, Alta Realitat, C-384/14, EU:C:2016:316, n." 62 e 66;
XI. Tal informação é-lhe comunicada através do formulário constante do Anexo II do Regulamento, não existindo qualquer excepção quanto à sua utilização;
XII. Não tendo sido cumprida tal formalidade a mesma é nula nos termos do art.º 191.º do C.P.C.
XIII. O Tribunal a quo, realizou as citações, por meio do envio de carta registada com aviso de recepção, exclusivamente em português sabendo tratar-se de uma cidadã inglesa e sem lhe comunicar o direito que tinha de recusar a sua recepção, ou seja, realizou as citações sem aquelas estarem acompanhadas pelo Anexo II do Regulamento;
XIV. Chegados aqui e à presente data, data posterior a 31 de Dezembro de 2020, temos de verificar se ainda é possível a sanação de tal omissão. Para tal, teremos de atender ao já mencionado art. 68.º do Acordo sobre a saída do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica;
XV. Estabelece aquele preceito que: “No Reino Unido, bem como nos Estados-Membros em situações que envolvam o Reino Unido, os atos seguintes aplicam-se como se segue: a) O Regulamento (CE) n.º 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho (82) é aplicável aos atos judiciais e extrajudiciais recebidos para efeitos de citação e notificação antes do termo do período de transição através de um dos seguintes meios: i) uma entidade requerida, ii) uma entidade central do Estado em que deva ser efetuada a citação ou notificação, ou iii) agentes diplomáticos ou consulares, serviços postais ou oficiais de justiça, funcionários ou outras pessoas competentes do Estado requerido, a que se referem os artigos 13.º, 14.º e 15.º desse regulamento (…)”.
XVI. Assim, deverá, o presente recurso ser julgado procedente por provado e em consequência ser anulado todo o processado após as citações efectuadas de forma irregular, devendo o Tribunal a quo ordenar nova citação, por carta registada com aviso de recepção, devidamente acompanhada com cópia do formulário constante do Anexo II do Regulamento (CE) 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, 13 de Novembro de 2007, tudo devidamente e idoneamente traduzido na língua inglesa;
XVII. O tribunal a quo atribuiu provisoriamente o exercício das responsabilidades parentais dos menores de forma exclusiva ao requerido/pai na conferência a que alude o art.º 35.º do R.G.P.T.C. (sem a presença da requerida/mãe), constando da acta o seguinte:
- Foi ouvido o requerido, pai dos jovens que referiu o seguinte – apenas se transcreve da acta factos relevantes: “(…) Não vê a mãe dos seus filhos há cinco anos. Pelo que a família lhe conta, neste momento ela está incapaz e sofre de doença mental. Pelo que a assistência social informou ela tem uma incapacidade de entender a situação em que se encontra, tem a impossibilidade de criar novas memórias e não tem capacidade para se cuidar, daí ela estar internada sob ordem judicial, o qual irá ficar o resto da vida. (…)”.
- Os Jovens, que, como se retira da própria acta, não falam a língua portuguesa, foram ouvidos com auxílio da tradução do requerido/pai (!):
“Consigna-se que no decorrer da tomada de declarações aos menores e por dificuldade de entendimento da língua Portuguesa, a Mmª perguntou ao digno Magistrado do M.P se tinha alguma coisa a opor que o pai das crianças fizesse a tradução das declarações, ao que disse nada ter a opor.”;
- Ficou estabelecido provisoriamente o exercício das responsabilidades parentais na qual: “As responsabilidades parentais referentes às questões de particular importância para a vida das crianças serão exercidas em exclusivo pelo pai face à incapacidade da mãe”.
XVIII. O tribunal a quo declarou a requerida incapaz SOMENTE com base em declarações do requerido/pai e de um e-mail cujo remetente é desconhecido nos autos (!).
XIX. Não se coloca aqui em crise o formalismo normal da nomeação efectuada nos termos do art.º 21.º do C.P.C., caso o tribunal a quo tivesse comprovado a incapacidade da requerida efectivamente: ”Além da personalidade judiciária, devem as partes possuir capacidade judiciária.” que, conforme dispõe o art.º 9, n.º 1 do C.P.C: “(…) consiste na susceptibilidade de ser parte”, significando não só o poder de escolher livremente quem o represente na acção mas também ser capaz de exercer por si os seus direitos subjectivos materiais, in casu, direitos tão sensíveis como o exercício das responsabilidades parentais, estando em causa não só os seus direitos mas também os interesses de dois menores;
XX. A lei enuncia em que casos é que o sujeito titular de direitos não está capaz de os exercer por si, prevendo como é que essa capacidade é suprida, sendo a nomeação efectuada nos termos do art.º 21.º do C.P.C. um desses mecanismos;
XXI. Mas necessário se torna, sob pena de se estar a coarctar alguém do exercício dos seus direitos – e livre escolha não só do mandatário ou defensor mas também da forma como quer exercer ou se quer exercer o seu direito material -, a COMPROVAÇÃO DA INCAPACIDADE DESSE EXERCÍCIO;
XXII. In casu, o tribunal a quo, sem qualquer comprovação, documento idóneo ou averiguação oficiosa, coarctou liminarmente a requerida da sua capacidade judiciária;
XXIII. Com base no supra alegado e após a sua nomeação, naturalmente, a subscritora, na qualidade de defensora, requereu que, de forma a comprovar a alegada incapacidade da requerida B. : “(…)e para a presente nomeação efectuada nos termos do art.º 21.º do C.P.C., bem como todos os actos praticados ao abrigo de tal nomeação não sejam colocados em causa, requer-se nos termos do art.º 436.º e 440.º do C.P.C., que sejam oficiadas as entidades oficiais Inglesas competentes para virem aos autos dizerem o que tiverem por conveniente, nomeadamente sobre a alegada incapacidade da requerente e, em caso de resposta afirmativa, a identificação do seu representante legal/tutor.”;
XXIV. Requerimento de prova que foi indeferido; O Ministério Público proferiu como promoção que: “(…) quanto ao se oficiar ás autoridades inglesas para que as mesmas digam sobre a alegada incapacidade, p. que se indefira o requerido já que nos autos não existem quaisquer fundamentos para se porem em causa as declarações do pai e das crianças quanto a essa incapacidade, por eles relatadas.”(?!);
XXV. O tribunal a quo indeferiu por: “(…) por falta de fundamento legal, não competindo ao Tribunal a realização da investigação pretendida pela requerida”. (?!)
XXVI. Com todo o respeito, não podemos deixar de demonstrar total discordância não só com o indeferimento mas também com a (falta) de fundamentação;
XXVII. Nos termos do art.º 12.º do R.G.P.T.C., os processos tutelares cíveis, como é o caso dos presentes autos, têm natureza de jurisdição voluntária, ou seja,“ Nos processos de jurisdição voluntária não existe um conflito de interesses a dirimir, mas apenas um interesse fundamental, que o juiz procura regular da forma mais conveniente e oportuna. A ausência de um conflito de interesses não significa que não possa haver um conflito de opiniões sobre o mesmo interesse. Assim, numa acção de regulação do exercício do poder paternal, proposta por um dos progenitores contra o outro, qualquer dos pais procura defender os interesses do filho. (…) in Direito Processual Civil, Jorge Augusto Pais de Amaral;
XXVIII. Um dos princípios que caracterizam o processo de jurisdição voluntária, que se encontra estabelecido no art.º 986.º, n.º 2 C.P.C. – é o princípio do inquisitório, podendo o tribunal livremente investigar os factos, coligir as provas, ordenar inquéritos e recolher as informações convenientes – pelo que, não se compreende o segmento decisório “(…) por falta de fundamento legal, não competindo ao Tribunal a realização da investigação pretendida pela requerida”.
XXIX. E nos termos do estabelecido no art.º 67.º, n.º 1 al. c) do Acordo supra citado, aos processos que se tenham iniciado até 31 de Dezembro de 2020, continua-se a aplicar o Regulamento de Bruxelas 2201/2003 de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental, aplicando-se ainda, por força do art.º 62.º deste Regulamento, a Convenção de Haia de 1980 e 1996, e por força do ponto (20) dos considerandos do Regulamento de Bruxelas aplica-se também o Regulamento (CE) 1206/2001 do Conselho de 28 de Maio de 2001, relativo à cooperação entre os tribunais dos Estados-Membros no domínio da obtenção de provas em matéria civil ou comercial;
XXX. Assim, e nos termos do art.º 1, n.º 1 do Regulamento 1206/2001, o tribunal a quo podia e devia ter solicitado a comprovação da alegada incapacidade da requerida directamente a Inglaterra;
XXXI. Não se aceita, portanto, que “por falta de fundamento legal não competindo ao Tribunal a realização da investigação pretendida pela requerida” se tenha coarctado o direito da requerida no exercício do seu direito material e do contraditório e, assim, o seu acesso ao Direito;
XXXII. O tribunal podia e devia, se não antes pelo menos após ter sido requerido, ter solicitado às Autoridades Inglesas a comprovação da alegada incapacidade da requerida e de quem é o seu representante legal/tutor, nomeadamente solicitar ao tribunal Inglês para que este junto dos serviços sociais indaga-se da alegada incapacidade;
XXXIII. Assim, deve ser revogado o despacho recorrido e ser ordenado que sejam oficiadas as entidades oficiais inglesas competentes para virem aos autos dizer o que tiverem por conveniente, nomeadamente sobre a alegada incapacidade da requerente, juntando os documentos judiciais idóneos, e, em caso de resposta afirmativa, a identificação do seu representante legal/tutor;
Para tanto e nos termos do art.º 646.º, n.º 1 do C.P.C., por forma a instruir o recurso, requer-se a junção das seguintes certidões:
10. P.I. – Referência Citius 5829770;
11. Citação efectuada a 7 de Julho de 2020 – Referência Citius 83233493;
12. Citação efectuada a 16 de Outubro de 2020 – Referência Citius 83865024;
13. E-mail’ datados de 19 e 23 de Novembro de 2020 – Referência Citius 6117571 e 6125239;
14. Acta de conferência de pais de 24 de Novembro de 2020 – Referência Citius 84193372;
15. E-mail datado de 17 de Maio de 2021- Referência Citius 6466306;
16. Requerimento da defensora nomeada de 23 de Maio de 2021 – Referência Citius 6483087;
17. Promoção do Ministério Público de 28 de Maio de 2021 – Referência Citius 85551168;
18. Despacho proferido a 4 de Junho de 2021 – Referência Citius 85602664.
Termos em que deverá, o presente recurso ser julgado procedente por provado e em consequência ser:
A) anulado todo o processado após as citações efectuadas de forma irregular, devendo o Tribunal a quo ordenar novo envio de citação, por carta registada com aviso de recepção, devidamente acompanhada com cópia do formulário constante do Anexo II do Regulamento (CE) 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, 13 de Novembro de 2007,
caso assim não se entenda
B) deve ser anulado o despacho de indeferimento de meio de prova por haver fundamentação legal para que o tribunal comprove a alegada incapacidade..»

                                                                       *

            O Exmo. Magistrado do Mº Pº apresentou contra-alegações ao antecedente recurso, as quais concluiu no sentido de que «(…) deve negar-se provimento ao recurso, mantendo-se a decisão.»

                                                                       *

A Exma. Juíza a quo proferiu despacho a não admitir o recurso interposto, mas tal decisão foi revogada em Reclamação interposta no quadro do art. 643º do n.C.P.Civil, em consequência do que se solicitou ao Tribunal de 1ª instância  a remessa  dos autos a este Tribunal de recurso, nos termos previstos no nº6 do mesmo art. 643º do n.C.P.Civil, para competente apreciação.

De referir que a Exma. Juíza a quo oportunamente já havia sustentado a não verificação da arguida nulidade de citação.

                                                           *

            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 684º, nº3 e 685º-A, nºs 1 e 3, ambos do C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no art. 3º, nº3 do C.P.Civil:

            - irregularidade da citação da progenitora requerida, residente em Inglaterra e de nacionalidade inglesa [por alegada clara violação do estatuído no art. 9.º-A do C.P.C. (que estabelece que as citações e as notificações devem usar uma linguagem simples clara) e no Regulamento (CE) n.º 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Novembro de 2007, relativo à citação e à notificação dos atos judiciais e extrajudiciais em matérias civil e comercial, por falta de junção do Anexo II];

            - em qualquer caso, que podia e devia ter solicitado a comprovação da alegada incapacidade da requerida diretamente a Inglaterra [nomeadamente solicitar ao tribunal Inglês para que este junto dos serviços sociais indagasse da alegada incapacidade, juntando os documentos judiciais idóneos, e, em caso de resposta afirmativa, a identificação do seu representante legal/tutor].

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Como factos a ter em conta para a decisão, para além dos que decorrem do relatório que antecede, importa ter presente que resulta da consulta dos autos ter a progenitora Requerida sido citada a 18 de dezembro de 2020, tendo o conteúdo da citação sido traduzido para língua inglesa [cf. P.E. sob a refª 84266384 e 6771888].

                                                                       *

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1 - Irregularidade da citação da progenitora requerida, residente em Inglaterra e de nacionalidade inglesa [por alegada clara violação do estatuído no art. 9.º-A do C.P.C. (que estabelece que as citações e as notificações devem usar uma linguagem simples clara) e no Regulamento (CE) n.º 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Novembro de 2007, relativo à citação e à notificação dos atos judiciais e extrajudiciais em matérias civil e comercial, por falta de junção do Anexo II]:

Será que se pode e deve concluir pela irregularidade da citação dessa dita progenitora, por ter sido efetuada por meio do envio de carta registada com aviso de receção, exclusivamente em português, sabendo tratar-se de uma cidadã inglesa e sem comunicar a esta o direito que tinha de recusar a sua receção?

Esta é efetivamente a primeira situação que cumpre decidir, o que se impõe dada a sua natural influência e reflexo em tudo o demais.

Na verdade, a ter lugar o reconhecimento da irregularidade na citação invocada, teria esse ato que ser repetido, com observância dos trâmites legais adequados ao caso, o que naturalmente se refletiria na tramitação subsequente dos autos que já teve lugar.

            Que dizer então sobre a dita arguição da irregularidade de citação?

            Desde logo se reconhece que que ao ser praticado um ato que a lei não admitiria [operar-se a citação da dita progenitora sem observância de todas as formalidades impostas], teria sido cometida a nulidade da citação em causa, ex vi do art. 195º, nº1 do n.C.P.Civil.

Sucede que desde logo nos parece de questionar que se possa concluir, no caso vertente, que a irregularidade cometida claramente influiu no exame e na decisão da causa, pois que, como flui do consignado supra, a dita progenitora Requerida foi citada a 18 de dezembro de 2020, tendo o conteúdo da citação sido devidamente traduzido para língua inglesa, não tendo sido alegado que, em concreto, a tradução padecesse de alguma incorreção.

Acresce que – e decisivamente! – a mesma progenitora Requerida interveio no processo, através da sua Defensora, a 23 de maio de 2021, não tendo arguido a nulidade da citação, sanando-se, por conseguinte, qualquer nulidade que pudesse ter ocorrido aquando da sua citação [cf. art. 189º do n.C.P.Civil].

Improcede, assim, sem necessidade de maiores considerações, a arguição da irregularidade/nulidade da citação.

                                                           *

4.2 Resta, assim, apreciar a questão, supra igualmente alinhada, da alegada indevida omissão de diligência instrutória/probatória [em qualquer caso, que podia e devia ter solicitado a comprovação da alegada incapacidade da requerida diretamente a Inglaterra, nomeadamente solicitar ao tribunal Inglês para que este junto dos serviços sociais indagasse da alegada incapacidade, juntando os documentos judiciais idóneos, e, em caso de resposta afirmativa, a identificação do seu representante legal/tutor].

Pelo que é dado perceber face à alegação recursiva da Requerida/recorrente quanto a este particular, está não só em causa a regularidade da tramitação dos autos no que à Requerida diz respeito [também no aspeto da sua representação nos autos, sendo disso caso], como igualmente o apurar-se as suas condições pessoais e económico-sociais – estas com relevância para a decisão final de mérito quanto ao aspeto da opção sobre a qual dos progenitores deve competir a guarda dos menores.

A Exma. Juíza a quo, em outro segmento do despacho recorrido, emitiu decisão no sentido de «indefiro a solicitação à Segurança Social para a realização de relatório social à requerida, por manifesta impossibilidade, posto que a requerida reside em país estrangeiro».

Tal não se encontra diretamente questionado neste recurso [leia-se, no que à “Segurança Social, I.P.” diz respeito].

Sucede que é diligência imprescindível, para uma boa e fundada decisão neste particular, apurar-se informação mínima que seja, e com credibilidade, em termos de relatório social, sobre as ditas condições pessoais e económico-sociais da Requerida.

Existe informação nos autos sobre a progenitora Requerida, mormente prestada pelo progenitor e filhos de ambos, no sentido de a mesma padecer presentemente de doença mental e de estar internada sob ordem judicial.

Assim como já interveio nos autos, informal e avulsamente, uma pessoa identificada como “E. ”, que se intitulou de “assistente social” e “representante” da Requerida.

Acontece que nada disto se encontra certificado nos autos, e, independentemente disso, importa averiguar e apurar o concreto grau daquela incapacidade, em termos de diagnóstico médico que já tenha sido feito, e bem assim se tal já foi objeto de reconhecimento/declaração pela autoridade judicial competente, com eventual decisão de internamento, e sendo disso caso, se se encontra salvaguardada a representação legal e na pessoa de quem.

Dito de outa forma: as informações e depoimentos constantes dos autos não podem deixar de se considerar insuficientes/deficientes, donde a realização do dito relatório social tem que ser considerada necessária e indispensável, ainda que com retardamento para a solução final do caso.

Tal é o que resulta prescrito legalmente, designadamente no art. 39º, nº5 do REGIME GERAL DO PROCESSO TUTELAR CÍVEL[2], sendo que na circunstância tal se concretizará pela solicitação da realização de tal diligência ao Tribunal do Reino Unido competente – com referência à morada em “Kent”.

Nem, aliás, outra coisa se pode legitimamente sustentar face ao atual Código de Processo Civil – mormente face às regras gerais do “Dever de Gestão Processual” que impende sobre o Juiz ex vi do art. 6º do n.C.P.Civil!

Acrescendo que uma tal diligência de prova permitirá suprir a informação sobre a regularidade da tramitação dos autos no que à Requerida diz respeito, mormente no que à representação legal da mesma diz respeito, sendo disso caso.

Estando-se como se está no domínio de um processo de jurisdição voluntária, os princípios desta jurisdição afastam a rígida aplicação da legalidade estrita, pelo que não está o Juiz inibido de ordenar o que se afigura necessário e mais conveniente.

De referir que após o designado “BREXIT”, mormente após o fim do período de transição, os métodos disponíveis para a obtenção de prova que envolvam o Reino Unido são agora diferentes.

Consabidamente, o período de transição, segundo o ACORDO sobre a saída do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia, terminou em 31 de dezembro de 2020, donde, a  partir de 1 de fevereiro de 2021 o Reino Unido passou a ser considerado um país terceiro relativamente à EU, deixando de lhe ser aplicável o direito próprio da União[3].

Assim, o Regulamento (CE) n.º 1206/2001 relativo à obtenção de provas será aplicável aos pedidos recebidos antes do termo do período de transição e deixa de ser aplicável aos pedidos recebidos após o termo daquele período.

Relativamente a este, passa a aplicar-se a CONVENÇÃO DA HAIA DE 1970 sobre a Obtenção de Provas no Estrangeiro em Matéria Civil ou Comercial [sobre obtenção de prova transfronteiriça].[4]

Isto é, a aplicação da dita CONVENÇÃO DA HAIA DE 1970, nas relações com o Reino Unido, encontra-se repristinada na totalidade a partir de 1 de Janeiro de 2021.

Pelo que será ao abrigo de tal que terá de ser agora ordenada a realização da diligência de prova em referência, com a consequente revogação dos segmentos do despacho recorrido a tal atinentes.

Nestes termos procedendo o recurso. 

                                                                       *

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

O Regulamento (CE) n.º 1206/2001 relativo à obtenção de provas será aplicável aos pedidos recebidos antes do termo do período de transição e deixa de ser aplicável aos pedidos recebidos após o termo daquele período.

Relativamente a este, passa a aplicar-se a CONVENÇÃO DA HAIA DE 1970 sobre a Obtenção de Provas no Estrangeiro em Matéria Civil ou Comercial [sobre obtenção de prova transfronteiriça].         

                                                           *

6 - DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se a final, na procedência parcial do recurso, em revogar os segmentos da decisão recorrida, determinando a sua substituição por decisão que, no quadro do disposto nos arts. 21º, nº 1, al.e) e 39º, nº5, ambos do RGPTC, e através de carta rogatória [ao abrigo da CONVENÇÃO DA HAIA DE 1970 sobre a Obtenção de Provas no Estrangeiro em Matéria Civil ou Comercial] solicite ao Tribunal do Reino Unido competente – com referência à morada em “Kent” da Requerida – de relatório social sobre as condições pessoais e económico-sociais da mesma, complementarmente importando averiguar e apurar o concreto grau da incapacidade de que a visada padeça, em termos de diagnóstico médico que já tenha sido feito, e bem assim se tal já foi objeto de reconhecimento/declaração pela autoridade judicial competente, com eventual decisão de internamento, e sendo disso caso, se se encontra salvaguardada a representação legal e na pessoa de quem.

Sem custas.

                                                                                   Coimbra, 18 de Janeiro de 2022

          Luís Filipe Cravo

                                                         Fernando Monteiro

   António Carvalho Martins


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carvalho Martins

[2] Aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 08/09, doravante “RGPTC”.
[3]Cf.https://eurlex.europa.eu/legalcontent/PT/TXT/HTML/?uri=CELEX:12019W/TXT(02)&from=PT.
[4]Cf.https://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/instrumentos/convencao_obtencao_provas_estrangeiro.pdf