Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
158/16.7T9PBL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: PESSOA COLECTIVA
INSOLVÊNCIA
ENCERRAMENTO DA LIQUIDAÇÃO
INEXISTÊNCIA DE PATRIMÓNIO A LIQUIDAR
EXTINÇÃO
Data do Acordão: 09/18/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE POMBAL – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 146.º, N.º 2, E 160.º, N.º 2, DO CSC; ART. 127.º, N.º 2, DO CP
Sumário: I – Só com o registo formal do encerramento da liquidação as sociedade comerciais, perdendo a sua personalidade jurídica, ficam juridicamente extintas.

II – Deste modo, não se pode declarar extinto o procedimento instaurado contra uma sociedade, com o fundamento de ela ter sido declarada insolvente e não possuir património a liquidar.

Decisão Texto Integral:











ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

Nos autos de processo sumaríssimo que, sob o nº 158/16.7T9PBL, correram termos pelo Juízo Local Criminal de Pombal, J2, da Comarca de Leiria, o Ministério Público acusou os arguidos “A. Lda.” e B. pela prática do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 107°, n° 1, com referência ao artigo 105°, n° 1, do RGIT, em conjugação com os artigos 30°, n° 2 e 79° do Código Penal, e a empresa arguida ainda pelo artigo 12°, n° 3 e 7°, n° 1 do RGIT.

Por sentença datada de 8/6/2017, a arguida A. Lda.” viria a ser condenada pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 107°, n° 1, com referência ao artigo 105°, n° 1, 12°, n° 3 e 7°, n° 1 todos do RGIT, em conjugação com os artigos 30°, n° 2 e 79° do Código Penal, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de € 5, perfazendo um total de € 750.

A 15/1/2019 viria a ser proferido despacho do seguinte teor integral:

Extinção de sociedade arguida

Da análise da certidão do registo predial da sociedade arguida resulta patenteado que já se encontrava declarada insolvente (a 03.12.2014) anos antes da instauração deste processo em 2016 e como tal da sua condenação transitada em julgado a 26.06.2017 (fls.175).

O mencionado processo foi encerrado por insuficiência de bens da massa insolvente por despacho de 02.03.2017, publicitado pela Ap. 1 de 10.03.2017 (fls. 201), tendo o processado seguido em termos meramente formais para a liquidação administrativa a que alude o Regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de entidades comerciais - Decreto Lei n.º 74-A/2006, 29 de Março.

Donde, nesta fase, podemos desde logo concluir o seguinte. Que à sociedade arguida não foram encontrados quaisquer bens no processo de insolvência susceptíveis de liquidação ou que tendo-o sido o seu valor provável não seria suficiente para assegurar os custos de um processo de insolvência e sua liquidação (o que se presume acontecer quanto tal valor hipotético ascende a menos de 5.000,00 €).

Por outro lado, os valores que vierem hipoteticamente a ser liquidados em processo administrativo de liquidação, garantidas as custas a que haja dado azo, constituem em primeiro lugar proventos da massa insolvente e devem ser imputáveis às custas daquele processo que ascendem normalmente, pelo menos, a 3.000,00 € (honorários do AI e custas mínimas).

Por fim, diz-nos ainda um conhecimento empírico adquirido na jurisdição comercial que as Conservatórias do Registo Comercial só avançam para a execução da liquidação se os bens que forem identificados pelo processo de insolvência (se não forem identificados, também não nomeiam liquidatário para os procurar) garantirem os custos que terão com aquele procedimento e nomeação de liquidatário, o que redunda, muitas das vezes, numa inacção que se traduz no não encerramento da liquidação.

Isto para dizer que não obstante o acertado enquadramento legal que foi citado pelo MP, a fls.187, a respeito da morte jurídica da sociedade arguida, certo é que o «óbito» desta sociedade já se mostrava judicialmente atestado desde a sua declaração de insolvência no ano de 2014, pelo menos, ficando este tipo de processos a aguardar um encerramento da liquidação incerto ou quando não raras vezes a mera declaração de prescrição de uma pena de multa/coima que na verdade nunca foi verdadeiramente liquidada por ausência de destinatário (em especial depois da declaração de inconstitucionalidade dos mecanismos de sub-rogação legal e de solidariedade pelo seu pagamento dos artigos 7.° e 8.° do RGIT).

Isto para dizer, com o devido respeito por opinião diversa, que a manutenção deste tipo de processos tendo em mira a obtenção de proventos muito improváveis pelas razões aduzidas deve merecer um juízo positivo de inutilidade/impossibilidade da lide tendo em vista evitar actos inúteis.

Solicite à Conservatória do Registo Comercial de Y (...) que informe por referência à sociedade arguida/insolvente se tem pendente processo administrativo de dissolução e liquidação desta entidade comercial e na positiva quais os bens por si identificados e o seu hipotético valor, bem como o estado da liquidação.

Independentemente da resposta e decorridos os promovidos três meses conclua.

Na sequência, a 15/3/2019, viria a ser proferido despacho do seguinte teor:

A informação prestada pela CRComercial de Y (...) vai ao encontro do que se havia já consignado em despacho anterior sobre o exercício das competências administrativas, pelo que considerando que se trata de uma sanção aplicada a uma pessoa colectiva que à data da sua condenação já se mostrava declarada insolvente há mais de três; que inexistem bens a liquidar; que não existem processos de substituição legal e atenta a falta de iniciativa da Conservatória do Registo Comercial de Y (...) - que não está, neste particular, sob a alçada desta jurisdição comum, embora se conheçam outras posições mais pragmáticas ordenando-se que o tal processo de dissolução de cariz administrativo de facto tenha lugar - em dissolver e cancelar a matrícula desta sociedade, como legalmente obrigada, reputa-se a pendência deste processo como inútil. Excepção inominada que deve dar lugar ao encerramento do processo criminal, quando o Arguido deste processo de facto não existe e aguarda apenas uma validação administrativa que, por idiossincrasias próprias e já assinaladas, tarda e declaradamente também nunca terá lugar, dando assim azo a uma pendência e tramitação processual manifestamente injustificada.

No boletim a remeter ao registo criminal deverá constar como causa do encerramento do processo a "impossibilidade da lide" e não sendo possível a extinção da pessoa colectiva arguida.

Notifique.

            Inconformado, o MP interpôs o presente recurso, que motivou, concluindo nos seguintes termos:

1. Vem o presente recurso interposto do despacho do Mmo. Juiz que declarou encerrado o presente processo criminal no tocante à sociedade arguida «A., Lda.», invocando para tanto a mais que provável impossibilidade do cumprimento da pena de multa por que a mesma foi condenada, dada a sua situação de insolvência, já declarada, bem como a concomitante inexistência de quaisquer bens capazes de satisfazer a quantia em causa.

2. Determinando a emissão de boletim de onde constasse como causa de encerramento do processo a «impossibilidade da lide», afirmando que a manutenção dos presentes autos como pendentes se revelaria como inútil.

3. Consubstanciando o procedimento administrativo na Conservatória do Registo Comercial apenas uma mera validação daquela mesma situação já acima enunciada e bastamente evidenciada, e da qual a extinção dos presentes autos, por ocorrência de uma «excepção inominada» - como seja o impasse havido ao nível da instância registral -, não se encontra, de modo nenhum, dependente.

4. Sucede que a perda da personalidade jurídica das sociedades comerciais obedece a todo um procedimento para o qual concorrem vários actos, em certos casos praticados quer por instâncias jurisdicionais, quer por instâncias administrativas.

5. Deste modo, caberá sempre ao juiz da insolvência, num primeiro momento, e ao conservador do registo comercial, num segundo, a prática dos actos concernentes à perda de personalidade jurídica por banda de uma sociedade declarada insolvente e havida como sem bens.

6. Pelo que somente após a publicitação da decisão de encerramento da liquidação, a cargo do conservador do registo comercial, se poderá dizer que uma determinada sociedade, havida nas condições acima referidas, se desfez, se extinguiu, não lhe restando personalidade jurídica capaz de sustentar a concomitante responsabilidade criminal, ou sequer património atendível para os efeitos do artigo 127° n° 2 do Código Penal.

7. Fora a "morte" da empresa, o tribunal apenas estaria autorizado a arquivar os autos quando ocorresse o pagamento da quantia em dívida, que daria lugar à extinção da pena, ou a prescrição do procedimento criminal, decidindo em conformidade quando tal viesse, como certamente virá, a verificar-se.

8. Foram violadas, entre outras, por erro de interpretação e de aplicação, as normas dos artigos 11° n° 1 do Código Penal, 141° n° 1 al. e), n° 2 e 142° n° 2, 146° n° 2 e 234° n° 2 do Código das Sociedades Comerciais, 234° n° 2 do CIRE, 25° e 26° do Anexo III do Decreto-Lei n° 76-A/2006, de 29 de Março.

9. Assim, face ao exposto, tem-se por certo que a decisão ora posta em crise - caso se entenda não dever ser objecto de qualquer reparação - deverá ser substituída por outra, que mantenha os autos a correr termos até ocorrer uma das três situações referidas - "morte" da empresa; prescrição da pena ou pagamento da quantia em dívida a título de pena, únicos fundamentos legais para legitimar o arquivamento do processo.

Contudo, V. Exas. Farão Justiça.

            Não foi apresentada resposta.

            O M.mo Juiz sustentou longamente o despacho recorrido, concluindo ser de manter a sua decisão.

            Nesta Relação, a Dig.ma PGA emitiu douto parecer no sentido de que «terá de apurar-se se teve lugar, ou não, o procedimento administrativo de liquidação e, em caso afirmativo, se o mesmo já foi objecto de registo, e só depois se poderá decidir a questão atinente à responsabilidade criminal da sociedade arguida». Assim, conclui pelo provimento do recurso.

            Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

DECIDINDO:

            A questão em análise nos presentes autos prende-se com aquela de saber se deve ser declarado extinto o procedimento criminal instaurado contra a arguida sociedade, por “impossibilidade da lide”, face à declaração da sua insolvência, à inexistência de bens a liquidar e à inexistência de processos de substituição legal com vista à dissolução e cancelamento da matrícula da sociedade.

            O despacho recorrido equipara tal situação ao «óbito» da sociedade, pois que anteriormente afirmara que o mesmo «já se mostrava judicialmente atestado desde a sua declaração de insolvência no ano de 2014».

            As sociedades comerciais mantêm a sua personalidade jurídica na fase da liquidação, considerando-se extintas pelo registo do encerramento da liquidação. (artºs 146º, 2 e 160º, 2, ambos do CSC).

            Ou seja, só com o registo formal do encerramento da liquidação perdem essa personalidade, o que determina que o procedimento criminal haja de estar pendente até à extinção da sociedade. E a norma do artº 127º, 2, do C. Penal é clara na equiparação dessa «extinção» à «morte» das pessoas singulares.

            E, do mesmo modo que não se pode declarar extinto o procedimento criminal instaurado contra um individuo, afirmando que ele, apesar de vivo, padece de uma doença terminal da qual não recuperará, também não se pode declarar extinto o procedimento instaurado contra uma sociedade, afirmando que ela foi declarada insolvente e que não tem património a liquidar.

            Assim sendo, não ocorre qualquer excepção dilatória inominada, como se pretende, pois que só com a verificação da excepção peremptória «extinção» da sociedade arguida, se pode retirar o efeito em causa, ou seja a extinção do procedimento criminal (v. o artº 576º, 3 do CPC e o artº 127º, 2, do CP).

            Daqui se conclui que não é lícito ao juiz (por estarmos no âmbito do direito público e assim adstritos ao princípio da legalidade) antecipar a verificação da causa de extinção do procedimento criminal invocando critérios de oportunidade e utilitaristas, v.g. afirmando que a manutenção do processo daria «azo a uma pendencia e tramitação processual manifestamente infundada».

            Com efeito, nesta sede, o juiz mostra-se vinculado a critérios formais de lei estrita, quais sejam os da verificação dos pressupostos de que a lei faz depender a extinção daquele procedimento criminal, ou seja, a extinção da pessoa colectiva, que ainda não ocorreu.

            Assim sendo, não ocorre causa de extinção do procedimento criminal, razão pela qual deve ser revogado o despacho recorrido.

            Deverá aguardar-se serenamente pelo registo do procedimento administrativo de liquidação ou pela ocorrência de uma outra qualquer causa nominada de extinção do procedimento criminal.

            Termos em que, nesta Relação, se acorda em conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido.

            Recurso sem tributação.

Coimbra, 18 de Setembro de 2019

Jorge França (relator)

Alcina da Costa Ribeiro (adjunta)