Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
490/05.5TBAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GONÇALVES FERREIRA
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
PROCURAÇÃO IRREVOGÁVEL
DOLO
Data do Acordão: 06/15/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 240, 247, 2448, 149, 153, 410 CC
Sumário: I - O dolo, para desencadear a anulabilidade do negócio, tem de ser essencial ou determinante.

II - Em caso de dolo incidental, o negócio é válido, mas, apenas, nos termos em que teria sido concluído sem o erro, operando, então, o fenómeno da redução, a menos que o interessado na anulação prove que o negócio não teria sido concluído sem a parte viciada.

III - À procuração são aplicáveis as regras relativas à falta e vícios da vontade.

IV - A cláusula de irrevogabilidade da procuração só é válida se servir um interesse próprio, objectivo, específico e directo do procurador, aferido à luz da relação subjacente.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. Relatório:

M (…) e marido, M (…) reformados, residentes na Rua (…)..., intentaram acção declarativa comum, sob a forma de processo ordinário, contra C – Construções, Ldª, com sede na Rua (…), ... e contra C (…), solteiro, residente em R. (…), alegando, em resumo, que:

São donos de um terreno com a área de 6.989 m2, localizado no centro da cidade de ...; tendo decidido vendê-lo, em 2003, contactaram J (…), que sabiam ser sócio da sociedade ré, empresa construtora que se dedica à compra e venda de imóveis, o qual propôs, e eles aceitaram, comprar a sociedade aquele terreno por € 200.000,00, acrescidos de 10% (em apartamentos) da construção que ali viesse a ser permitida, ficando o negócio sem efeito se nada fosse permitido construir.

O referido J (…) comprometeu-se entregar-lhes, a título de sinal e princípio de pagamento, o valor de € 30.000,00 e o restante logo que obtivesse financiamento.

Comprometeu-se, ainda, a reduzir a escrito os termos do negócio, tendo-lhes, depois, apresentado documento escrito já assinado pela respectiva esposa, enquanto representante da sociedade ré, que eles (autores) confiaram corporizasse o acordado.

Todavia, mais tarde, verificaram que aí constava o preço de € 30.000,00, em vez de € 200.000,00, sendo que o mencionado J (…) lhes entregou, apenas, aquela primeira quantia e, posteriormente, mais € 7.400,00.

Acontece que a Câmara Municipal de ... indeferiu a possibilidade de construção no terreno, pelo que o negócio deixou de poder produzir efeitos; de resto, não sendo determinado nem determinável o preço do negócio prometido (por se ignorar o que pode vir a ser construído), é a promessa nula.

O falado J (…) sob pretexto de necessitar de tal acto para apresentar requerimentos na Câmara Municipal relativamente à viabilidade das construções, levou-os a assinar uma procuração irrevogável, que permitia à ré vender o terreno em causa pelo preço e condições que entendesse, o que não correspondia à intenção dos autores, que, só muito depois, entenderam o significado daquele acto; nessa medida, revogaram a procuração e notificaram a ré, que, apesar disso, a usou, outorgando um contrato de promessa com eficácia real com o réu C (…), irmão do sócio da ré, J (…), e cunhado da gerente da mesma, negócio não querido pelas partes, que o celebraram com a intenção de ludibriar os autores.

Souberam, mais tarde, ter assinado um outro documento, cujo conteúdo ainda hoje não entendem, que permitia à ré outorgar o contrato definitivo, não pelo valor do contrato, mas por valor mais ajustado ao mercado.

Terminaram, pedindo:

a) Se declarasse serem eles os únicos proprietários do identificado imóvel;

b) Se declarasse ineficaz o contrato-promessa que celebraram com a ré (…) por falta de verificação das condições administrativas a que o negócio ficou sujeito, devolvendo eles à ré o valor do sinal recebido, no montante de € 37.400,00.

A não ser assim,

 c) Se considerasse nulo o contrato-promessa, por falta e impossibilidade de determinação do preço do contrato prometido;

d) Se considerasse anulável o mesmo contrato, por erro na declaração, posto que a sua vontade, nele declarada, não corresponde à vontade real;

e) Se considerasse nula a procuração, por não ter sido outorgada no seu interesse nem no de qualquer interesse legítimo da ré.

Não sendo esse o entendimento,

f) Considerar-se tal procuração não irrevogável e já revogada, sendo nulos os actos praticados posteriormente através da mesma;

g) Considerar-se que o contrato-promessa celebrado pela ré (…) depois de revogada a procuração não produziu qualquer efeito.

Mas, quando, ainda assim, se não entendesse,

h) Considerar-se nulo o negócio com eficácia real, pela circunstância de o réu C (…) não ter pago à ré (…) o valor de € 30.000,00, nem esse ser o valor real do terreno;

i) Serem eliminadas todas as inscrições registrais efectuadas após a inscrição da titularidade dos autores.

Regularmente citados, os réus contestaram do seguinte modo:

Ré (…) – foram os autores quem a procurou, com a intenção de vender o terreno, tendo-o oferecido, primeiro, por € 25.000,00, e, depois, por € 30.000,00, e proposto que o preço englobasse, ainda, 10% da área útil de construção; nunca foi falado o preço de € 200.000,00, quantia que não corresponde ao valor real do terreno que é rústico e alagadiço.

O contrato de promessa foi redigido e assinado com o acordo prévio das partes, tendo os autores conhecimento e consciência do seu conteúdo, bem como de que a viabilidade de construção no imóvel não estava definida, por depender da aprovação do Plano Director Municipal.

A procuração que lhe foi outorgada pelos autores, assinada por estes no notário, onde o respectivo conteúdo lhes foi explicado, é o resultado de sugestão sua, perante pedido do filho dos autores para que a ré inscrevesse no registo a titularidade do imóvel, o que não seria viável, já que o registo seria efectuado com base em € 30.000,00 e qualquer dos proprietários confinantes poderia vir exercer o seu direito de preferência; de resto, a mesma é, também, do interesse da ré e mantém-se em vigor, por não ser válida a revogação pretendida.

O “valor ajustado ao mercado”, constante de aditamento, diz respeito, apenas, ao valor que deveria constar da escritura pública.

Quanto à promessa com eficácia real ao réu C (…), destinou-se a mesma a resolver a crise financeira pela qual passava a contestante, a quem o réu C (…) emprestou dinheiro, tendo ficado como “garantia” aquele negócio, ao qual seria colocado termo logo que a crise financeira da Casa Italiana o permitisse.

Réu C (…) – a promessa com eficácia real tinha, tão-somente, em vista garantir o empréstimo de € 30.000,00 que efectuou à (…), tendo sido convencionado, aliás, que a mesma seria rescindida logo que a ré devolvesse a quantia em causa, equiparando-se a uma venda a retro, não sendo o negócio simulado.

O contrato só não foi, ainda, rescindido, porque, entretanto, deu entrada a presente acção.

No despacho saneador foram declaradas a validade e a regularidade da lide.

A selecção da matéria de facto não foi alvo de reclamação.

Realizado o julgamento e fixados, sem reparação, os factos provados e não provados, foi proferida sentença, que declarou serem os autores os únicos donos do imóvel em apreço nos autos, ser nulo o contrato-promessa na parte em que o preço do negócio prometido não corresponde ao acordado entre autores e ré, que foi de € 200.000,00, acrescidos de 10% da área de construção, ser nula a procuração outorgada pelos autores à ré, na parte em que excede a outorga dos poderes necessários à formulação de requerimentos à Câmara Municipal de ... com vista à construção no imóvel e, entretanto, já revogada, e ser ineficaz, relativamente aos autores, a promessa de compra e venda celebrada entre a ré (…) e o réu C (…), bem como os registos efectuados a esse respeito.

Os réus interpuseram recurso, mas só a ré (…) apresentou alegações, que concluiu desta forma:

1) O contrato-promessa foi celebrado com conhecimento e por vontade de todos os outorgantes e subordinado à condição de ser aberta uma estrada no prédio e, bem assim, à autorização de construção pela Câmara Municipal de ...;

2) O preço foi estabelecido, em parte, em numerário – € 30.000,00 – e, noutra parte, em espécie – 10% da construção autorizada pela Câmara Municipal de ... e de acordo com o PDM;

3) Tais valores não são prejudiciais para os autores, tendo em conta que no prédio existe uma zona de equipamentos (o que obriga à construção e sua entrega à Câmara Municipal) e outra não construtiva;

4) Posteriormente ao envio da carta a revogar a procuração, os autores declararam que a ré cumpriu o contrato e propôs-lhe a venda de um outro prédio, na condição de aquele negócio ser anulado;

5) Significa isso que não houve dolo nem erro da sua parte e que a sua conduta foi legal, pelo que o contrato é válido e eficaz;

6) A procuração, irrevogável, foi outorgada no 2.º Cartório Notarial de ..., sendo que o seu conteúdo foi lido e explicado aos outorgantes, pelo que a sua revogação só poderia ser feita por instrumento público e com invocação de justa causa:

7) Logo, mantém-se válida nos precisos termos em que foi outorgada.

Os autores responderam à alegação da ré, afirmando dever ser rejeitado o recurso quanto à matéria de facto e sustentando, no mais, a correcção e o bem fundamentado da decisão impugnada.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

            Presentes as conclusões da alegação da ré, são estas as questões a requerer resolução:

            A) A alteração da matéria de facto.

            B) A validade do contrato-promessa celebrado entre os autores e a ré.

            C) A validade da procuração outorgada pelos autores à ré.

            D) A validade do contrato-promessa celebrado entre a ré, como procuradora dos autores, e o réu C (…).

            II. Na sentença apelada foi considerada provada a seguinte matéria de facto:

1) Na Conservatória do Registo Predial de ... está descrito, sob o n° ..., o seguinte prédio: Rústico, parcela de terreno. Área: 6.989 m2. Confrontações: Norte - arruamento de ligação a Vilar; Sul – (…); Nascente – (…); Poente (…) Artigo -.... V.P. - € 89,00 – fls. 37/40 – alínea A).

2) Este prédio está inscrito a favor de M (…), c.c. M (…), por partilha da herança de W..., pela Inscrição C-4, Ap. ... – alínea B).

3) A Ré C(…) Construções, Lda. está matriculada na Conservatória do Registo Comercial de ... sob o n.º ..., tem por objecto a construção de imóveis para venda, compra e venda de propriedades e tem como sócios J (…)e C (…), cada um com uma quota de € 25.000,00, sendo gerente a sócia K...- fls. 41/43 – alínea C).

4) A 12 de Setembro de 2003, M (…) e mulher M (…), como primeiros outorgantes, e (…) Construções, Lda., como segundo outorgante, celebraram o "Contrato-Promessa de Compra e Venda" constante de fls. 211/212, nos termos do qual:

1.º - Os primeiros outorgantes, como donos e legítimos proprietários do prédio rústico sito no lugar de ..., freguesia da ..., ..., inscrito na matriz sob o artigo n.º... e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ... e aí inscrito a seu favor, prometem vender este prédio à segunda outorgante, que o promete comprar;

2.° - Foi acordado o preço de € 30.000,00, acrescido de 10% da área de construção que a Câmara Municipal de ... vier a autorizar para aquele prédio, nas condições a definir e que, na data da subscrição do contrato, se não podiam determinar;

3.° - O pagamento do preço será feito da seguinte forma:

a) Na data da assinatura do contrato-promessa, a título de sinal e princípio de pagamento, a segunda outorgante entregou € 10.000,00, de que os primeiros outorgantes deram quitação;

b) No dia 05/10/2003, a segunda outorgante entregará aos primeiros outorgantes € 20.000,00;

c) Os 10% da área útil de construção serão entregues pela segunda outorgante aos primeiros outorgantes em apartamentos a construir pela segunda outorgante no prédio ora prometido vender e desde que a Câmara Municipal de ... autorize a construção;

4.° - A assinatura do contrato prometido será realizada no Cartório Notarial de ..., no prazo de 18 meses a contar da data da assinatura deste contrato, sendo prorrogado por períodos de 6 meses até que se encontrem realizados os condicionalismos a que fica subordinado;

5.° - Os outorgantes subordinam o presente contrato-promessa à abertura de uma estrada no prédio objecto do presente contrato e à autorização de construção pela Câmara Municipal de ..., nesse mesmo local e prédio, conforme consta do documento anexo que integra o presente contrato-promessa e vai rubricado por todos os outorgantes;

6.° - No caso de não se verificarem estas condições, de que fica dependente o presente contrato-promessa, os primeiros outorgantes devolverão à segunda outorgante € 30.000,00, entretanto entregues pela segunda outorgante – alínea D).

5) No dia 28/10/2003, os ora autores M (…) e mulher, M (…), outorgaram, no 2.° Cartório Notarial de ..., a PROCURAÇÃO constante de fls. 54/55, pela qual:

a) Constituem sua procuradora a sociedade C (…) Construções, Lda., à qual conferem os necessários poderes para, pelo preço e condições que entender por convenientes, vender ou prometer vender o prédio rústico composto de parcela de terreno, sito no lugar de ..., freguesia da ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..., da aludida freguesia da ..., e inscrito na matriz sob o n.º..., podendo fazer negócio consigo mesma, assinar a correspondente escritura, para, na competente Conservatória, requerer quaisquer actos de registo predial, provisórios ou definitivos, incluindo averbamentos e cancelamentos, para no Serviço de Finanças competente, liquidar impostos ou contribuições, reclamar dos indevidos ou excessivos, receber títulos de anulação e suas correspondentes importâncias, fazer manifestos, alterá-los ou cancelá-los, requerer avaliações fiscais e inscrições matriciais, podendo prestar declarações complementares, para na competente

Câmara Municipal requerer licenças para obras ou reconstrução, assinar requerimentos, apresentar plantas ou projectos, requerer seguros ou alvarás, tudo relacionado com o imóvel acima descrito;

b) "A procuração é também conferida no interesse da sociedade mandatária, pelo que é irrevogável, não caduca por morte, interdição ou inabilitação dos mandantes, nos termos dos artigos 265.°, n.º 3, e 1175.°, ambos do Código Civil" – alínea E).

6) Esta procuração foi lida e explicada aos outorgantes na presença dos ora autores – alínea F).

7) Os ora autores subscreveram as "Declarações Suplementares" constantes de fls. 111, datadas de 28.10.03, pelas quais, em aditamento ao contrato-promessa anterior, "declaram que: se for do interesse ou conveniência da parte dos segundos outorgantes os primeiros outorgantes autorizam que, na altura da escritura do terreno referente a este contrato, seja declarado um valor mais ajustado ao mercado. Para mais, os primeiros outorgantes declaram que todos os valores em dinheiro estão totalmente liquidados" – alínea F).

8) No dia 07/04/2004, C (…) – Construções, Lda., representada pela sócia gerente (…): a) prometeu vender, como mandatária dos ora autores, pela escritura outorgada no 2° Cartório Notarial de ..., a C (…), que prometeu comprar, pelo preço de € 30.000,00, o prédio acima identificado em 1 supra; b) os contraentes atribuíram expressamente à promessa de compra e venda eficácia real; c) o promitente vendedor declarou ter recebido os € 30.000,00 do preço da prometida venda - fls. 59/60 – alínea H).

9) A ora ré remeteu, a 14/01/2004, a (…), a carta de fls. 61, a dar-lhe informação de que: a) é procuradora dos ora autores e de que está em negociações para venda do terreno rústico sito no lugar de ..., Vilar, registado na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ... e inscrito na matriz sob o n°..., "pelo preço de € 300.000,00 e mais 10% de construção que a Câmara Municipal de ... futuramente autorize para o local"; b) como confinantes, Vs. Ex. "tem direito de preferência; sendo assim, ficamos a aguardar que Vs. Ex. exerçam o direito à preferência, dentro do prazo previsto por lei" – alínea I).

10) Os ora autores apresentaram denúncia crime contra (…) C (…) e J (…), por crime de burla, mas o respectivo processo de Inquérito foi mandado arquivar pelos fundamentos constantes de fls. 103/108 – alínea J).

11) Os ora autores subscreveram, a 22/07/2004, a "Confissão de Dívida" de fls. 109, na qual se confessam devedores de J (…) da quantia de € 7.394,23 e se obrigam a pagar esta dívida no prazo de um ano, ou seja, até 23/07/2005, por meio de cheque visado ou numerário – alínea L).

12) A autora M (…) emitiu, a 20/02/2004, o cheque de fls. 110, do montante de € 7.394,23, a favor de C (…) Construção, Ldª, o qual foi apresentado a pagamento e devolvido por falta de provisão – alínea M).

13) O ora autor M (…) subscreveu e remeteu a (…) a carta de fls. 115, datada de 26/07/2004, na qual propõe a (…) a venda de um outro prédio inscrito na matriz sob o artigo..., sito no lugar da ... da freguesia da ..., ... – alínea N).

14) O prédio identificado em A) e D) -1° situa-se dentro da cidade de ..., junto ao Parque das Feiras – alínea O).

15) Porque conheciam o Sr. J (…), que três meses antes lhes havia adquirido um outro terreno, e sabiam que era sócio da "(…)", sociedade que se dedica à compra e venda de imóveis, os AA, contactaram-no dando-lhe a conhecer que o pretendiam vender – alínea P).

16) Mostraram-lhe o prédio, no local, e todos os documentos que tinham em seu poder a ele relativos – alínea Q).

17) O Sr. J (…) deslocou-se à Repartição de Finanças para obter certidão de teor actualizada – alínea R).

18) Os autores receberam, após a assinatura do contrato-promessa referido em 4), € 30.000,00 e, mais tarde, € 7.400,00 – alínea S).

19) O réu C (…) é irmão de J (…) e cunhado da sócia gerente da "(…)" (…) alínea T).

20) Pela Inscrição F-1, Ap. 03/200404, foi levada ao registo predial a promessa de venda referida em 8) – alínea U).

21) O Sr. Dr. (…) fez remeter à "(…)", a 02/04/2004, a carta constante de fls. 56/57 – alínea V) –, na qual se lê, entre o mais, “E dizendo haver necessidade de assinar um documento no notário para poderem fazer diligências tendentes a conseguir uma mais rápida solução para se verificar a viabilidade do processo e o aproveitamento do prédio, pediram-lhes que, no dia 28 de Outubro de 2008, se dirigissem ao 2º Cartório Notarial de ... e, afinal, era para assinarem uma procuração a conceder poderes para vender ou prometer vender o prédio (...). E nem mesmo chegaram a entender que se tratava de procuração conferida também no interesse da mandatária pelo que seria irrevogável (…).

(…)

Por tudo isto e o mais que adiante se acrescentará, venho avisá-los e notificá-los de que:

a) – Não podem fazer uso de procuração acima referida e que os meus clientes consideram nula e de nenhum efeito – ou, pelo menos, revogada, para não mais ser usada, como se avisa e notifica por esta carta;

(...)”

22) Na altura da celebração da escritura do contrato promessa referido em H), os sócios da "(…)", por esta se encontrar com algumas dificuldades financeiras, pediram ao R. C (…) um empréstimo de € 30.000,00 – alínea X).

23) Acordado tal empréstimo, procuraram encontrar uma forma de garantir ao réu o pagamento da importância que lhes emprestara – alínea Z).

24) A forma de garantia encontrada foi a celebração do "Contrato-Promessa" com eficácia real referido – alínea AA).

25) O qual, todavia, seria rescindido por acordo logo que a "(…)" pudesse pagar os € 30.000,00 que o R. C (…) lhe tinha emprestado – alínea BB).

Das respostas à Base Instrutória

26) O documento anexo referido em 4) -5° é a planta constante de fls. 44 – resposta ao artigo 1.º da BI.

27) No Verão de 2003, os autores decidiram, em conjunto com os filhos, vender o prédio identificado em 1) e 4) -1°, dada a necessidade de auxiliar um filho a pagar dívidas e assegurar a subsistência do casal dos autores na velhice – resposta ao artigo 3º da BI.

28) O A. nasceu a 02.10.1928 e a autora a 01.07.1931 – resposta ao artigo 4º da BI.

29) O Sr. J (…) deslocou-se à Câmara Municipal de ... e ali obteve a planta topográfica constante de fls. 44 – resposta ao artigo 5º da BI.

30) Os autores tiveram uma proposta de compra do prédio feita por (…) de valor não especificamente apurado, mas entre € 150.000,00 e 200.000,00 – resposta ao artigo 7º da BI.

31) Os autores não aceitaram a proposta referida em 30 – resposta ao artigo 8º da BI.

32) Os autores disseram a J (…) que venderiam o terreno por valor superior ao referido em 30 – resposta ao artigo 9º da BI.

33) (…), arrogando-se representante da sociedade Ré, propôs aos autores a aquisição do terreno por esta sociedade, por € 200.000,00, mais 10% da área de construção que viesse ali a ser autorizada, a entregar em apartamentos ali a construir – resposta aos artigos 10º e 11º da BI.

34) Se não viesse a ser possível a construção no local, o contrato ficava sem efeito – resposta ao artigo 12º da BI.

35) Os autores aceitaram o preço de € 200.000,00, que lhes seria pago, com uma entrada inicial de € 30.000,00, a título de sinal – resposta ao artigo 13º da BI.

36) O resto seria pago logo que o Sr. J (…) obtivesse fundos suficientes para o efeito – resposta ao artigo 14º da BI.

37) Aquando destas negociações não era possível, nem aos autores nem ao Sr. J (…), conhecer a viabilidade de construção para o prédio – resposta ao artigo 15º da BI.

38) A 12/09/2003, o Sr. J (…) apareceu em casa dos autores, dizendo ter já o contrato-promessa para formalizar as negociações preliminares antes referidas pronto para ser assinado pelos autores – resposta ao artigo 17º da BI.

39) E que o mesmo contrato-promessa estava já assinado pela sua esposa, então gerente da "(…)", em representação desta – resposta ao artigo 18º da BI.

40) Os autores assinaram o contrato, confiando que tudo estava de acordo com o acordado nas negociações antes referidas, designadamente que o preço dele constante era o de € 200.000,00 – resposta ao artigo 19º da BI.

41) Só mais tarde vieram a verificar que do seu texto constava o preço de € 30.000,00, em vez do preço de € 200.000,00 que fora acordado – resposta ao artigo 21º da BI.

42) Pelo menos os € 30.000,00, referidos em 18, foram entregues por J (…)aos autores, a título de sinal – resposta ao artigo 22º da BI.

43) Parte do terreno localiza-se em zona de equipamento e parte localiza-se em zona de construção de habitação multifamiliar de baixa densidade – resposta ao artigo 25º da BI.

44) No dia 28/10/2003, o Sr. J (…) telefonou a um dos filhos dos AA. — (…) —, a quem pediu que falasse com os pais para o acompanharem ao Notário de ... para passar uma procuração destinada a fazer requerimentos à Câmara Municipal de ... com vista à viabilidade das construções – resposta ao artigo 27º da BI.

45) Esta mesma finalidade da procuração foi reafirmada aos autores pelo Sr. J (…), que se disponibilizou a transportá-los ao Notário – resposta ao artigo 28º da BI.

46) Os autores só outorgaram a procuração referida em 5) por estarem convencidos de que, como lhes tinha dito o Sr. J (…), esta tinha a finalidade única de obter a licença de viabilidade de construções – resposta ao artigo 29º da BI.

47) Só em Fevereiro de 2004, lhes foi explicado que aquele papel, de que lhes não foi entregue cópia, permitiria à "(…)" vender, pelo preço e condições que entendesse, o prédio prometido vender pelos autores, para além de obter os documentos necessários junto da Câmara e outras repartições – resposta ao artigo 31º da BI.

48) Também só em Fevereiro de 2004 souberam que, conjuntamente com a procuração, haviam assinado a DECLARAÇÃO referida em 7 – resposta ao artigo 32º da BI.

49) A sociedade "(…)" e o Sr. J (…) sabiam que o valor do prédio não era o referido no Contrato-Promessa – resposta ao artigo 34º da BI.

50) O valor comercial do prédio é de cerca de € 1.363.530,00 – resposta ao artigo 35º da BI.

51) Autores e ré sabiam que a construção estava dependente de autorização camarária e esta estaria dependente do que estabelecessem para o local os instrumentos legais de administração e gestão do território – resposta ao artigo 43º da BI.

52) O contrato de promessa foi assinado pelos autores na presença do seu filho, (…) – resposta ao artigo 44º da BI.

53) Até ao momento da realização da audiência, ainda não estava decidido pela Câmara Municipal de ... se há inviabilidade ou não de construção – reposta ao artigo 49º da BI.

III. O direito:

A) A alteração da matéria de facto

(…)

            O recurso quanto à pretendida modificação da matéria de facto não tem a menor viabilidade.

            B) A validade do contrato-promessa celebrado entre os autores e a ré

           

            A pretensão última dos autores é a de que fiquem sem efeito o contrato promessa que celebraram com a ré (…), a procuração que lhe outorgaram e o contrato promessa celebrado por esta, em representação deles (autores), com o réu C (…)

            Neste âmbito, requereram:

            1) Se declarasse ineficaz o primeiro contrato promessa, por falta de verificação das condições a que o mesmo ficou sujeito, ou nulo, por indeterminação ou indeterminabilidade do preço, ou, então, anulável, por erro na declaração, dado a sua vontade real não corresponder à vontade declarada;

            2) Se considerasse nula a procuração, por não ter sido outorgada no seu interesse nem para qualquer interesse legítimo, ou validamente revogada, por não ter sido outorgada no interesse do mandatário, sendo de nenhum efeito os actos praticados com a mesma;

            3) Se considerasse a não produção de efeitos do segundo contrato promessa, porque efectuado por quem não tinha poderes, ou a sua nulidade, por simulação do preço;

            4) Se declarasse a nulidade de todas as inscrições registrais efectuadas depois do registo de propriedade do prédio a seu favor.

            No que tange ao primeiro contrato promessa, a sentença afastou a ineficácia, a nulidade (no segmento reportado à indeterminação/indeterminabilidade do preço) e a anulabilidade total (por erro ou dolo), decidindo, porém, pela anulabilidade parcial (no que respeita ao preço).

            Neste último particular (o único que importa apreciar, uma vez que a ineficácia, a nulidade por indeterminação ou indeterminabilidade do preço e a anulabilidade total por erro ou dolo não foram questionados), seguiu-se o seguinte raciocínio:

            Os autores, ao celebrar o negócio, agiram em erro, motivado por dolo da ré, que fez constar do contrato o preço de € 30.000,00 (mais 10% da construção), quando tinha ficado acordado o preço de € 200.000,00 (para além dos 10%).

            Não correspondendo a vontade real à vontade declarada, no que se refere ao preço, é a cláusula que o estabeleceu anulável, devendo, no entanto, o negócio valer, por efeito da redução, pelo preço efectivamente contratado: € 200.000,00, mais 10% da área de construção que a Câmara Municipal autorizar para o terreno.

            O desacordo da ré entronca, basicamente, na matéria de facto; para ela, não ficou provado que o preço acordado tenha sido o de € 200.000,00, mas, sim, o de € 30.000,00, pelo que não teria havido dolo da sua parte (nem erro por banda dos autores), o que deitaria por terra a construção urdida na sentença.

            Improcedente a impugnação da matéria de facto, parece clara a falência da pretensão deduzida.

            Não obstante, e secundando a sentença recorrida, excelentemente fundamentada, realce-se, sempre se tecerão algumas considerações.
          O acordo celebrado entre os autores e a ré – retratado, em termos factuais, no ponto 4 dos factos provados – foi ali qualificado como um contrato-promessa de compra e venda. Apesar de o enquadramento jurídico, mesmo se aceite pelas partes, como é o caso, não vincular o tribunal de recurso, temos por certo que não vale a pena discuti-lo, notório, que é, que a aludida factualidade encaixa simetricamente no conceito de contrato-promessa, tal como é definido pelos civilistas, em função da previsão do artigo 410.º, n.º 1, do C. Civil (diploma a que pertencerão os demais preceitos que vierem a ser citados sem indicação de origem): “convenção pela qual ambas as partes, ou apenas uma delas, se obrigam, dentro de certo prazo ou verificados certos pressupostos, a celebrar determinado contrato” (Prof. Antunes Varela, Das Obrigações Em Geral, volume I, 7.ª edição, página 312; Prof. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 3.ª edição refundida, páginas 282/283; Conselheiro Abel Pereira Delgado, Do Contrato-Promessa, página 14).
          O contrato-promessa rege-se, como decorre do referido artigo 410.º, n.º 1, do CC, pelas normas aplicáveis ao contrato prometido; vigora, pois, o chamado princípio da equiparação, que significa que “o contrato-promessa, quanto aos requisitos e efeitos, se encontra, via de regra, submetido às normas respeitantes aos contratos em geral e às que sejam específicas do contrato prometido” (Prof. Almeida Costa, Contrato-Promessa, uma síntese do regime actual, 4.ª edição, página 21).                    
          Aplicam-se-lhe, assim, as regras comuns sobre capacidade, vícios da vontade, resolução, excepção de não cumprimento, etc., mas, também, as normas específicas da compra e venda quanto à capacidade dos contraentes, às proibições de aquisição, à interpretação e integração do negócio e à disponibilidade de direitos (Prof. Antunes Varela, ob. cit. página 319).
          O princípio da equiparação comporta, no entanto, duas excepções, já que não são extensivas ao contrato-promessa as disposições relativas à forma, nem aquelas que, pela sua razão de ser, se mostrem inaplicáveis.
          No que tange à forma, há que distinguir entre o contrato-promessa referente à celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício, ou fracção autónoma dele, já construído, em construção ou a construir e o contrato-promessa relativo a outros fins.
          Para esta última hipótese rege o n.º 2 do citado artigo 410.º: se para a celebração do contrato prometido for exigível documento, seja autêntico, seja particular, o contrato-promessa só é válido se constar de documento assinado pelos contraentes.
          À primeira hipótese aplica-se o n.º 3 do mesmo preceito: o documento deve conter o reconhecimento presencial da assinatura do promitente ou promitentes e a certificação, pelo notário, da existência da licença respectiva de utilização ou de construção; mas o contraente que promete transmitir ou constituir só pode invocar a omissão destes requisitos quando a mesma tenha sido culposamente causada pela outra parte.
          O contrato em causa enquadra-se naquela segunda hipótese, sendo que, em termos formais, nada obsta à sua validade, pois que foi celebrado por documento, assinado pelos contraentes.
          A questão reside, tão-somente, na alegada falta de correspondência entre a vontade real dos autores e a vontade declarada, motivada por dolo da ré. É o problema da divergência entre a vontade e a declaração, com guarida nos artigos 240.º e seguintes do Código Civil.
          É sabido que, por regra, a vontade negocial declarada corresponde àquilo que foi a intenção do declarante. Mas há casos de divergência, que tanto pode ser intencional como não intencional.
          Na divergência intencional enquadram-se a simulação, a reserva mental e as declarações não sérias; na não intencional, o erro-obstáculo ou erro na declaração, a falta de consciência na declaração e a coacção física ou violência absoluta.
          Havendo divergência entre a vontade declarada e a vontade real, coloca-se o problema de saber se o negócio jurídico há-de valer com o sentido correspondente à vontade real ou se será, pura e simplesmente, nulo.
          A solução não é uniforme para todas as situações, havendo de ser encontrada à luz dos interesses existentes e em conformidade com cada uma das formas que a divergência reveste (Prof. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 2.ª edição, páginas 460/469; Prof. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, volume II, páginas 149/168).
          Interessa, ao caso, o erro na declaração ou erro-obstáculo, cujo princípio geral vem formulado no artigo 247.º: “Quando, em virtude de erro, a vontade declarada não corresponda à vontade real do autor, a declaração negocial é anulável, desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro”.
          Prevê-se, aqui, uma divergência inconsciente entre a vontade e a declaração; queria-se uma coisa, mas, por erro, seja material, seja de diversa natureza, declarou-se outra.
          Quando assim suceda, e ressalvadas as hipóteses de lapso material revelado ostensivamente no contexto da declaração ou de o declaratário conhecer a vontade real do declarante – na primeira, o negócio será rectificado (artigo 249.º), na segunda, valerá de acordo com a vontade real (artigo 236.º, n.º 2) – o negócio é anulável, a pedido do declarante, desde que o elemento sobre que o erro incidiu seja essencial para ele e o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade.
          Mas a anulabilidade não colhe se o declaratário aceitar o negócio de acordo com o que era a vontade do declarante (artigo 248.º).
          O dolo, por sua vez, é um erro sui generis, porque provocado (em contraste com o erro espontâneo) ou qualificado (em contraste com o erro simples). A diferença entre o dolo e o erro simples e espontâneo reside na causa, que naquele há-de consistir num processo enganatório (Prof. Manuel de Andrade, obra citada, página 256).
          A lição do mestre tem tradução no artigo 253.º, n.º 1, que define o dolo como qualquer sugestão ou artifício que alguém empregue com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração, bem como a dissimulação, pelo declaratário ou terceiro, do erro do declarante.
          O dolo comporta várias modalidades (positivo e negativo, bonus e malus, inocente e fraudulento, do declaratário e de terceiro, essencial e incidental), relevando, em especial, a segunda, a quarta e a quinta.
          O dolus bonus é integrado pelas sugestões ou artifícios habitualmente usados no comércio jurídico e aí considerados legítimos, à luz das concepções dominantes (n.º 2 do artigo 253.º), consistindo o dolus malus, por contraposição, nas sugestões ou artifícios de cariz enganatório.
          Dolo do declaratário, como a designação indica, é o que provém do outro contraente, enquanto que o dolo de terceiro tem origem em não contraente (por vezes, em conluio com o declaratário ou, ao menos, com o conhecimento dele, o que conduz ao dolo do próprio declaratário).
          Dolo essencial é aquele que, isoladamente ou em colaboração com qualquer outra circunstância, levou o enganado a concluir o negócio em si mesmo e não apenas nos termos em que foi concluído; dolo incidental é o que influiu somente nos termos do negócio, por maneira que o enganado sempre estaria disposto a conclui-lo noutras condições, naturalmente mais favoráveis (Professor Manuel de Andrade, obra citada, páginas 259/260 e 237/238).
          O declarante cuja vontade tenha sido determinada por dolo do declaratário pode anular a declaração (artigo 254.º, n.º 1), tendo direito à repristinação da situação anterior ao negócio e à cobertura dos danos que sofreu por ter confiado no negócio e não teria sofrido sem essa confiança.
          São três as condições de relevância do dolo do declaratário como motivo de anulação do negócio:
          1) Que se trate de dolus malus.
          2) Que seja essencial ou determinante.
          3) Que exista no declaratário a intenção ou, ao menos, a consciência de enganar, embora não de prejudicar.
          A bilateralidade do dolo não exclui a anulação (Prof. Mota Pinto, obra citada, páginas 519/520).
          O dolo tem um requisito específico, que é a dupla causalidade, que se verifica quando o dolo seja causa do erro e este, por sua vez, seja causa determinante do negócio (acórdão do STJ, de 30.04.2006, CJ do Supremo, Ano XIV, Tomo I, página 65, que se abona no ensinamento do Prof. Carvalho Fernandes).
          Apesar de só o dolo essencial desencadear a anulabilidade do negócio, o dolo incidental não é inócuo; neste caso, o negócio será válido, mas, apenas, nos termos em que teria sido concluído sem o erro. A menos que se não tenham por seguros ou bastante prováveis esses termos ou se prove que a outra parte os não teria acolhido; então, a solução é mesmo a anulabilidade (obra e autor antes citados, páginas 507/508).
          Ou seja, influenciada a vontade do declarante por erro provocado por uma conduta dolosa, relativamente a uma parte, apenas, do conteúdo negocial, o princípio básico é a sobrevivência do negócio, expurgado do vício, naturalmente, ao abrigo do mecanismo da redução, previsto no artigo 292.º.
          Visto que se estabelece, neste normativo, uma presunção de divisibilidade ou separabilidade do negócio, sob o ponto de vista da vontade das partes, é ao contraente que pretender a declaração da invalidade total que incumbe o ónus da prova de que a vontade das partes, ou de uma delas, era no sentido de que o negócio não teria sido concluído sem a parte viciada (Prof. Mota Pinto, obra referida, página 613; cf. também, o acórdão do STJ, de 18.06.2009, processo n.º 08B3202, em www.dgsj.pt).
          Aqui chegados, é sem esforço que se vê, dada a matéria de facto provada – cf., em especial, os pontos 4), 33), 35), 38), 39) e 40) –, que a vontade real dos autores diverge da vontade declarada, devido a dolo da ré.
          Esta acordou com aqueles adquirir-lhes o terreno em causa pelo preço de € 200.000,00, acrescido de 10% do valor da construção que viesse a ser autorizada, mas, no contrato-promessa, por si elaborado, fez constar, tão-somente, € 30.000,00, que não os € 200.000,00 acordados. E para que os autores não dessem pela diferença, apresentou-lhes o documento já preenchido (com excepção da assinatura daqueles, é claro), dizendo que o mesmo formalizava as negociações, o que, manifestamente, não correspondia à verdade. O certo é que os autores confiaram na palavra da ré, de que tudo estava de acordo com as negociações, preço incluído, e só por isso assinaram o contrato.
          Artifício enganatório, de um lado (informação, não condizente com a realidade, de que o texto do contrato-promessa corporizava o acordo negocial), erro, do outro (convencimento de que o documento traduzia a realidade das negociações) e duplo nexo causal (os autores só celebraram o contrato, porque convencidos de que o mesmo era o espelho fiel do negociado e, não fora isso, não o teriam realizado, nos termos, pelo menos, em que tal se verificou), eis os elementos em que se consubstancia o dolo.
          Pergunta a recorrente onde estão o erro e o dolo, se, afinal, o valor do contrato é de € 655.000,00 (cálculo efectuado com base no preço declarado no contrato-promessa – € 30.000,00 – e no pretenso valor dos 10% da construção autorizada).
          É simples a resposta: estão em € 170.000,00, diferença entre o preço acordado e o que fez constar do contrato-promessa, iludindo a boa fé dos autores; que não sendo, propriamente, uma fortuna, é uma quantia que uma substancial parte da população portuguesa jamais conseguirá reunir.
          Por muito que tente, há uma questão básica que a recorrente não logra tornear: a de que foi a sua conduta (juridicamente reprovável) que levou os autores a formalizar o negócio em termos diferentes do que ficara estabelecido.         
          Condicionou, ardilosamente, a vontade declarada dos autores, que, por via disso, celebraram um contrato que não queriam; haverá de sofrer as consequências, no caso, a anulabilidade e a redução do negócio (em relação ao preço), como decidiu o tribunal de 1.ª instância.
          Nesta parte o recurso improcede, também.

          C) A validade da procuração outorgada pelos autores à ré
         
          A sentença recorrida considerou ser nula a procuração, na parte em que concedeu à ré poderes para além dos de formular requerimentos às autoridades administrativas, e revogada no restante.
          A conclusão da nulidade (parcial) resultou de um raciocínio semelhante ao utilizado para chegar à nulidade do contrato-promessa; a ré fez crer aos autores que a procuração se destinaria à prática de meras actividades administrativas, relacionadas com a viabilidade de construção no terreno prometido comprar e vender, e acabou por conseguir a assinatura de uma procuração com poderes vastíssimos, que incluíam a venda do terreno.
          A ilação da revogação entronca, em primeira linha, na nulidade parcial (nulos os poderes concedidos no interesse do procurador, a revogabilidade é livre) e, depois, em ocorrer justa causa para a sua revogação, por não existir interesse sério na outorga de poderes que permitissem alienar o terreno.
          O menos que se pode dizer é que o raciocínio desenvolvido e as conclusões tiradas são absolutamente inatacáveis.
          Como declaração de vontade, que é, são aplicáveis à procuração os princípios vigentes em matéria de falta e vícios da vontade.
          Ora, o sócio da ré, J (…), pediu aos autores que o acompanhassem ao Notário, para aí outorgarem procuração destinada a fazer requerimentos à Câmara Municipal de ..., com vista à viabilidade das construções. Os autores outorgaram a procuração por estarem convictos de ser aquela a sua única finalidade e só mais tarde se aperceberam que a mesma tinha um alcance bem diferente e bem mais gravoso para eles, uma vez que encerrava poderes para vender o prédio (pontos 44 a 47 da matéria de facto assente).
          Chamando à colação o que se escreveu a propósito do dolo, fácil é de constatar que os autores subscreveram a procuração em erro sobre a sua finalidade, motivado pela actuação do sócio da ré; queriam conceder poderes de mera actuação administrativa e acabaram por atribuir poderes de disposição.
          Na parte em que extravasa a vontade real dos autores, não pode a procuração deixar de ser nula (artigo 254.º, n.º 1), ficando os poderes outorgados reduzidos à simples possibilidade de a ré dirigir requerimentos à Câmara Municipal, tendentes a conseguir a viabilização da construção no terreno prometido vender.
          A lógica da apelante, de que os autores quiseram outorgar a procuração tal com a mesma se acha, porque o respectivo conteúdo lhes foi lido e explicado pelo funcionário notarial, esbarra na matéria de facto (ponto 47), da qual emerge, cristalinamente, que só mais tarde (na aparência, quando consultaram advogado) perceberam o seu efectivo alcance.
          De resto, e como bem se diz na sentença, se a linguagem jurídica não é compreensível, sequer, para quem detém estudos de nível superior noutras áreas, como o poderia ser para pessoas de estrato humilde e com um nível de instrução com todo o aspecto de básico?
          A nulidade parcial implica, como, igualmente, ali se considerou, que a declaração de revogação efectuada por carta (ponto 21 da matéria de facto), tenha operado na sua plenitude, levando à extinção dos efeitos da procuração para o futuro, como ensina o Prof. Mota Pinto (obra citada, página 606).

          Mas continua a assistir razão à sentença quando considera de nenhum efeito a cláusula de irrevogabilidade, por alegado interesse da procuradora.
          De facto, e como aí se diz, o interesse do procurador que justifica a irrevogabilidade da procuração artigo 265.º, n.º 3) tem de resultar objectivamente da relação subjacente que deu origem à outorga da procuração, não podendo tratar-se de um interesse simplesmente subjectivo do procurador.
          A procuração, como qualquer outro negócio jurídico, de resto, visa a prossecução de determinado fim, havendo de ser nesse quadro que se afere o interesse do procurador.

            Como diz Pais de Vasconcelos (A Procuração Irrevogável, páginas 79 e seguintes), citado, aliás, com rigorosa proficiência, na peça impugnada, são quatro os vectores que definem o interesse do procurador na irrevogabilidade da procuração: 1) que seja um interesse próprio; 2) não, porém, qualquer interesse próprio, mas um interesse objectivo, aferido à luz da relação subjacente; 3) que seja um interesse específico na conclusão do negócio que está na base da outorga da procuração; 4) e, finalmente, que seja, também, um interesse directo nessa mesma conclusão (no sentido, também, de que o interesse do procurador tem de resultar objectivamente da relação subjacente, decidiu o acórdão do STJ, de 07.07.2009, processo n.º 63/2001.C1.S1, em www.dgsi.pt).

            Perpassando os olhos pela matéria de facto provada, não se vê que interesse próprio, objectivo, específico e directo tivesse a ré em outros poderes que não fossem os de agir no âmbito da procura de soluções para viabilizar a construção no terreno objecto do contrato-promessa.

            Se, como parece evidente, pretendia adquirir o terreno apenas para nele efectuar uma ou mais construções, o seu único interesse era o de obter junto da entidade administrativa competente a necessária autorização para o efeito.

            Vendendo o prédio, é claro que se gorava de todo a possibilidade de construir.

            Nada justificava, portanto, a vastidão dos poderes conferidos. A cláusula de irrevogabilidade é, por consequência, inadmissível e, nessa medida, não vinculativa para os autores.

            Assim, também por esta via, operaria a revogação da procuração, comunicada à ré pela carta de 2 de Abril de 2004 (ponto 21 dos factos provados).

            Diga-se, finalmente, que, no circunstancialismo verificado, não colhe a tese da recorrente de que a revogação só poderia ser feita por instrumento público e com invocação de justa causa, dada a existência da cláusula de irrevogabilidade.

            Em primeiro lugar, a revogação reporta-se, apenas, aos poderes não concedidos no interesse da ré (na parte em que os poderes foram concedidos no seu interesse, a procuração foi declarada nula), o que arreda a necessidade de invocação de justa causa (n.º 3 do artigo 265.º).

            Depois, porque a lei não impõe forma específica de levar a revogação ao conhecimento do procurador (veja-se o acórdão do STJ, de 25.03.2010, processo n.º 2122/07.8TBLLE.E1.S1, em www dgsi.pt.).

Em suma, a procuração é nula, no segmento em que confere à ré poderes que excedam os necessários para tratar da viabilização da construção no terreno prometido vender, e está revogada em relação a estes poderes.

A questão está votada à improcedência.

            D) A validade do contrato-promessa celebrado entre a ré, como procuradora dos autores, e o réu C (…)

            Quando a ré, arrogando-se representante dos autores, prometeu vender ao réu C (…) o terreno descrito nos autos (7 de Abril de 2004), não tinha poderes de representação, como acima se disse; a procuração que invocou para efectuar o negócio era, em parte, nula e, no mais, estava extinta.

            O negócio celebrado por uma pessoa em nome de outrem, sem poderes de representação, é ineficaz em relação a ela, se não for ratificado (artigo 268.º, n.º 1).

            Os autores não ratificaram o contrato-promessa; pelo menos, não foi alegado que o ratificassem, o que vale o mesmo.

            Daí que o negócio os não obrigue.

            E, com isto, naufraga o recurso na sua totalidade.

            IV. Síntese final:

            1) Não obstante a prova pericial ser apreciada livremente pelo tribunal, é ela particularmente relevante, visto os peritos disporem de conhecimentos especiais que os juízes, via de regra, não têm.

            2) O dolo, para desencadear a anulabilidade do negócio, tem de ser essencial ou determinante.

            3) Em caso de dolo incidental, o negócio é válido, mas, apenas, nos termos em que teria sido concluído sem o erro, operando, então, o fenómeno da redução, a menos que o interessado na anulação prove que o negócio não teria sido concluído sem a parte viciada.

            4) À procuração são aplicáveis as regras relativas à falta e vícios da vontade.

            5) A cláusula de irrevogabilidade da procuração só é válida se servir um interesse próprio, objectivo, específico e directo do procurador, aferido à luz da relação subjacente.

            V. Decisão:

            Nos termos e pelas razões acabadas de expor, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, por conseguinte, em confirmar a sentença apelada.

            Custas pela recorrente.