Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
125/20.6T8TND-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: ASSINATURA A ROGO
RECONHECIMENTO NOTARIAL
FORMALIDADE AD SUBSTANTIAM
Data do Acordão: 12/14/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - TONDELA - JUÍZO C. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.373 CC, 154 C NOTARIADO
Sumário: I. São requisitos legais da assinatura a rogo a leitura do documento ao rogante e que o rogo seja dado ou confirmado na presença do notário.

II. A assinatura, naqueles termos, é elemento integrante e essencial do documento particular produzido por quem não sabe ler nem escrever, não sabe ou não puder assinar.

III. A falta de demonstração do reconhecimento notarial que lhe empresta ou confere validade implica preterição de formalidade ad substantiam do documento, com a consequente nulidade da declaração negocial nele ínsita.

Decisão Texto Integral:








Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            M (…) e A (…) intentaram procedimento cautelar de arrolamento de bens contra M (…), alegando, em síntese, que são, conjuntamente com a requerida, herdeiros de A (…), a qual faleceu no dia 23-01-2020; a requerida, sem dar conhecimento aos restantes herdeiros, iniciou o procedimento de resgate das aplicações financeiras e depósitos bancários de que a falecida era titular.

Decretado o arrolamento e citada a requerida, esta veio deduzir oposição, alegando, em síntese, que a falecida lhe doou os valores que tinha numa conta bancária.

Realizado o julgamento, foi proferida decisão a alterar parcialmente a decisão inicial, determinando o levantamento do arrolamento sobre os saldos das contas n.º (…) no valor global de 159.000,00€, mantendo-se o restante arrolamento.


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Inconformados, os Requerentes recorreram e apresentam as seguintes conclusões:

1ª/ A matéria constante do facto provado nºs 11 foi incorretamente julgada, mostrando imprecisões.

2ª/ Os concretos meios de prova que impõem decisão diversa são, a prova em contrário dos documentos juntos, bem como a prova testemunhal ora transcrita.

3ª/ É desde logo notório o lapso inscrito em tal ponto quando faz menção a que o

documento data de 12-01-2019 quando deve constar 12-01-2020.

4ª/ Não obstante e sem prescindir, o referido documento é um documento particular de doação no qual se faz menção à doação à Requerida da quantia de 159.000,00€ depositada no banco (…). Tendo sido assinado a rogo por parte da referida testemunha, que terá atestado da fiabilidade das declarações prestadas por parte da falecida.

5ª/ Foi com base em tal documento e no facto de o mesmo datar de 12/1/2020, anterior ao falecimento da Sra. A (…) que o Mmo. Juiz a quo determinou o levantamento do arrolamento das contas do B (…). até à quantia de 159.000,00€, no entanto em toda a sentença não é feita qualquer análise à validade do dito documento, o

que de resto, se impunha para determinar tal decisão.

6ª/ Dispõe o artigo 940º, nº 1, que a doação “é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício de outro contraente”, acrescentando o artigo 947º, nº 2, também do CC, que “a doação de coisas móveis não depende de formalidade alguma externa, quando acompanhada de tradição da coisa doada; não sendo acompanhada de tradição da coisa, só pode ser feita por escrito”.

7ª/ Porém, tratando-se de uma alegada doação em dinheiro, enquanto bem móvel que é, só não depende de qualquer formalidade externa, desde que acompanhada de tradição da coisa doada ou do seu título representativo, sendo certo que, quando tal não aconteça, como se verificou, então, só pode ser feita por escrito, que tem de ser assinado pelo doador, ou por outrem a seu rogo, se o rogante não souber ou não puder escrever, devendo o rogo ser dado ou confirmado perante notário, depois de lido o documento ao rogante, atento o disposto pelo artigo 373º, nºs 1 e 4, do CC, o que in casu também não aconteceu, Não bastando, que a assinatura seja acompanhada da impressão digital do doador.

8ª/ A tais factos acresce ainda que nem a testemunha (…), que assinou a rogo, pela doadora falecida viu esta a apor a sua impressão digital no documento, não havendo mais ninguém no acto além dela, a doadora e a donatária, conforme declarações

prestadas pela mesma em sede de audiência de discussão e julgamento, não tendo a assinatura da testemunha devidamente reconhecida

9ª/ Maioritariamente, se entende que se a assinatura a rogo não satisfizer as formalidades nos mencionados preceitos, tal acarreta a sua invalidade. E porque a assinatura é um elemento integrante e essencial do documento particular, a falta daquelas exigências legais implica preterição de formalidade ad substantiam do documento, com a consequente nulidade da declaração negocial nele ínsita, de conhecimento oficioso (conforme aliás alegado em alegações orais finais em sede de audiência de discussão e julgamento): arts 220º e 286º do CC – cfr- Ac. da Relação do Porto de 28-06-2001, dgsi.pt, p. 0130729; Acs da Relação de Lisboa de 07-05-91 e de 27-11-2008, dgsi.pt, p.

0031511 e 9044/2008-6 e Acs do STJ de 11-05-94 e de 17-03-98, p. 085127 e 98A167.

10ª/ Nos termos do artº 289º do CC a declaração de nulidade tem efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado, ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.

11ª/ In casu, implica a invalidade das declarações patentes no referido documento com a consequente manutenção do arrolamento sobre todos os bens da falecida, in casu, dos saldos bancários das contas (…), no valor global de 159.000,00€, do Banco (…).

12ª/ Pelo que deve ser excluído tal ponto dos factos dado como provados ou a manter-se dever-se-á adicionar um novo designadamente que “o documento particular em causa é nulo por falta de reconhecimento de assinatura, não produzindo efeitos legais”.

13ª/ A razão de ser da exigência da fundamentação em geral está ligada ao próprio conceito do Estado de direito democrático, sendo um instrumento de legitimação da decisão que serve de garantia do direito ao recurso e a possibilidade de conhecimento mais autêntico pelo tribunal de recurso. Assim, a fundamentação desobedeceu a uma lógica do convencimento que permita a sua compreensão pelos destinatários, mas também ao tribunal de recurso.

14ª/ Acresce que o Mmo Juiz a quo, fez constar da motivação de facto o seguinte:

“Tais documentos foram confrontados com o depoimento de (…) bancária, funcionária do B (…) que relatou como foi contactada pela requerida e que se deslocou ao hospital – (...) , e onde, depois de conversar com a autora da sucessão, pessoa que confiava na testemunha, recolheu a sua assinatura a rogo, tendo aposto a impressão digital da falecida, uma vez que nesse momento, não obstante se encontrar lúcida, não conseguiria assinar”.

15ª/ Ora, a referida testemunha não viu nem atestou como foi efetuada a impressão

digital: (…) (Transcrição dos minutos 11:58 a 12:12 da faixa 20200907100740_3501429_2871979)

16ª/ Pelo que tal expressão deve ser retirada por não ter qualquer suporto legal.


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A Requerida contra-alegou, defendendo a correção do decidido.

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As questões a resolver são as seguintes:

A impugnação do facto assente sob o nº11;

O valor da doação assinada a rogo;

(E questões levantadas pela Recorrida/Requerida:)

A não impugnação do documento junto pela Requerida na oposição;

A tradição da coisa doada.


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O Tribunal recorrido julgou indiciariamente provados os seguintes factos:

1. No pretérito dia 23.01.2020, na freguesia e concelho de (...) , faleceu A (…) conforme assento de óbito que compõe fls. 8 que se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.

2. A (…) faleceu no estado de solteira, sem descendentes nem ascendentes vivos.

3. A falecida não deixou testamento, ou qualquer outra disposição de última vontade, deixou como herdeiros os Requerentes, seus irmãos e a Requerida, sobrinha, em

representação da pré falecida irmã A (…) conforme habilitação de herdeiros que compõe fls. 9 e verso, cujo teor se dá por reproduzido.

4. A requerente, na qualidade de cabeça-de-casal, tem vindo a desenvolver todos os esforços no sentido de obter a definição do acervo hereditário e a subsequente partilha.

5. A herança é composta pela casa onde viveu a falecida até à sua morte, sita na (…) Lajeosa, Tondela, bem como o recheio da mesma, conforme caderneta predial que compõe fls. 10 cujo teor se dá por integralmente

reproduzido.

6. Integra também a herança uma sepultura perpétua, sita no cemitério da (...) , a que corresponde o alvará n.º 223, que compõe fls. 10 cujo teor se dá por integralmente reproduzido

7. A falecida era titular de várias contas bancárias, designadamente:

- B (…) n.ºs (…), no valor global de 159.000,00€.

- B (…) – nº (…), no valor de 6. 847,91€.

8. Aquando da deslocação às entidades bancárias para comunicação do óbito, a Requerente teve conhecimento que a Requerida, sozinha, e sem ter comunicado aos demais herdeiros, havia já no dia 4/2/2020, solicitado o resgate das referidas quantias, encontrando-se tal pedido de resgate já finalizado junto das entidades bancárias, estando

assim por dias a sua disponibilização.

9. As relações entre requerentes e requerida, que já não eram boas, têm vindo a deteriorar-se desde a morte da A (…)

10. As entidades bancárias não procedem a qualquer suspensão das contas bancárias sem a presença de todos os herdeiros, sendo que a requerida não se mostra disponível a fazer qualquer tipo de diligência conjunta no que concerne ao acervo hereditário.

11. Por documento particular junto a fls. 71 a 72, datado de 12-01-2019, A (…) doou a M (…) todo o dinheiro que possui junto do B (…), no valor de €159,000,00, que foi aceite pela donatária.

12. A donatária procedeu, em 29-04-2020, ao pagamento dos tributos inerentes a tal doação.


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A impugnação do facto assente sob o nº11.

Estando discutida a doação, aquele facto (A (…) doou) tem uma natureza conclusiva.

Antes, deviam ter sido exarados os termos do documento, para análise.

A decisão não avaliou a forma como foi obtida a declaração inserta no documento referido.

A possível nulidade é de conhecimento oficioso.

Atentemos que os Recorrentes não impugnam a existência do documento, discutindo sim o valor da declaração nele inserta, por causa da sua forma.

Veremos infra o valor do rogo produzido.


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A não impugnação do documento junto pela Requerida na oposição.

Ocorre esta não impugnação porque os autos não admitem a resposta à oposição.

De qualquer maneira, a força probatória de um documento particular, tal como flui dos artigos 374 e 376 do Código Civil, só se verifica quando o documento é apresentado pelo declaratário contra o declarante, autor do documento e/ou das declarações dele constantes, não já quando o documento é apresentado a terceiros, como no caso vertente.

Aqui, cabe à Requerida a prova da declaração, pois foi quem apresentou o documento pretensamente assinado pela falecida, que não é parte nos autos, e perante os Requerentes, que não são outorgantes no documento.


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O valor da declaração assinada a rogo.

Dispõe o artigo 373, nº 4, do Código Civil: “O rogo deve ser dado ou confirmado perante o notário, depois de lido o documento ao rogante”.

A tal respeito, dispõe o artigo 154º do Código do Notariado: (1) A assinatura feita a rogo só pode ser reconhecida como tal por via de reconhecimento presencial e desde que o rogante não saiba ou não possa assinar e (2) que o rogo deve ser dado ou confirmado perante o notário, no próprio ato do reconhecimento da assinatura e depois de lido o documento ao rogante.

Assim, são requisitos legais do rogo:
(i) Que o documento seja lido ao rogante;
(ii) Que o rogo seja dado ou confirmado na presença do notário.

O documento pode ser assinado fora da presença do notário, mas depois, perante este, o rogante confirmará ter a assinatura sido feita a seu rogo.

Não basta, como na anterior legislação, que a assinatura seja acompanhada da impressão digital do rogante – cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, 2ª ed. p.306.

A assinatura a rogo é elemento integrante e essencial do documento particular produzido por quem não sabe ler nem escrever, não sabe ou não puder assinar.

A falta de demonstração do reconhecimento notarial que lhe empresta ou confere validade implica preterição de formalidade ad substantiam do documento, com a consequente nulidade da declaração negocial nele ínsita, de conhecimento oficioso (arts. 220.º e 286.º do CC).

(Ver, entre outros, acórdãos da Relação do Porto, de 10.9.2019, proc.1038/16, e de Coimbra, de 22.1.2019, proc.94/14, em www.dgsi.pt.)

No caso faltou o reconhecimento notarial, conduzindo à nulidade da declaração em análise.


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A tradição da coisa doada (no caso, móvel).

Esta entrega, quando feita em vida do doador, compensa a falta do escrito (art.947, nº 2, do Código Civil), conforme defende a Requerida.

Porém, pelo menos nesta providência, talvez fruto da simplificação, os factos assentes são insuficientes para revelar a entrega do dinheiro à Requerida, ou a entrega de um título representativo dessa disponibilidade (art.945, nº 2, do Código Civil).

O facto assente em 8 é claramente insuficiente. Refere data posterior ao óbito e nada diz sobre os termos em que se apresentou a Requerida ao Banco.

A Requerida não esclarece qual seja o dito título representativo.


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            Sendo nula a declaração da pretensa doadora, sendo as partes herdeiras da falecida, justifica-se a providência cautelar de arrolamento porque os Requerentes têm  interesse na conservação dos bens que integram o acervo hereditário, para inventário/partilha e, como já foi conferido na decisão inicial, existe justo receio de que a Requerida possa extraviar ou dissipar o dinheiro antes de estar judicialmente reconhecido, de forma definitiva, o seu direito àquele (artigos 403, 404, n.º 1 e 405, nº 1 e 2, do Código de Processo Civil).

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Decisão.

Julga-se procedente o recurso, revoga-se a decisão recorrida e mantém-se o arrolamento como inicialmente decidido.

Custas (taxa de justiça e custas de parte, sem encargos) pelos Recorridos, vencidos, nesta e na 1ª instância.

Coimbra, 2020-12-14

Fernando de Jesus Fonseca Monteiro ( Relator )

Ana Vieira

António Carvalho Martins)