Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1153/18.7PBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO NOVAIS
Descritores: DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
NOVA PRESTAÇÃO DE DEPOIMENTO
REPARAÇÃO DA VÍTIMA EM CASOS ESPECIAIS
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CONTRADITÓRIO
IRREGULARIDADE
ARGUIÇÃO
SANAÇÃO
Data do Acordão: 06/16/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE VISEU – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 82.º-A, 271.º, N.º 8, 334.º, N.º 4 E 340.º, DO CPP; ART. 21.º, N.º 2, DA LEI N.º 112/2009, DE 16-09
Sumário: I – Da disposição legal contida no n.º 8 do artigo 271.º do CPP não decorre a obrigatoriedade de nova prestação de depoimento em audiência de julgamento; a nova prestação de depoimento só deverá ser determinada caso essa repetição se torne necessária para a descoberta da verdade nos termos definidos no artigo 340.º do mesmo diploma legal.

II – Estando em causa crime de violência doméstica, a boa interpretação do n.º 2 do artigo 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16-09, implica, salvo quando exista a oposição referida no segmento final do dito normativo, por força do disposto no artigo 82.º-A do CPP, o arbitramento de indemnização à vítima.

III – Ainda que a previsão do n.º 2 do artigo 82.º-A revista, neste caso específico, duvidosa utilidade – os factos pertinentes para o arbitramento oficioso da indemnização estão contidos na acusação –, enquanto não for restringida a remissão do n.º 2 do artigo 21.º da Lei n.º 112/2009 para aquele preceito da lei adjectiva penal, mantém-se a imperiosidade de asseguramento do contraditório.

IV – A não observância do contraditório consubstancia irregularidade processual, a qual, verificando-se a situação descrita no artigo 334.º, n.º 4, do CPP, sob pena de sanação, deverá ser invocada logo após o acto de leitura da sentença.

Decisão Texto Integral:





Acórdão da 5ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I - Relatório

1.1.  A., interpôs recurso da sentença proferida pelo Juiz 1, Juízo Local Criminal de Viseu, do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, que o condenou pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º n.º 1, al. a) e n.ºs 2 al a), 4 e 5 do Cód. Penal (na pessoa de M.) na pena de 3 anos de prisão, e ainda, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º n.º 1, al. a) e n.ºs 2 al. a) do CP (na pessoa de S.) na pena de 3 anos de prisão,  e em cúmulo jurídico, na pena única de 3 anos e 8 meses de prisão, suspensa na sua execução subordinada ao regime de prova, mediante plano a elaborar pela DGRS que deverá incidir sobre a prevenção do risco de reincidência com acompanhamento/supervisão por parte dos serviços de reinserção social, adaptado à situação pessoal do arguido, tendo ainda condenado o recorrente no pagamento da quantia €2500,00 à ofendida e de €1500,00, ao ofendido, a título de indemnização arbitrada oficiosamente.

     

      1.2. No recurso em apreciação o recorrente apresentou as seguintes conclusões:

      I. Vem o presente recurso interposto do despacho de 13.07.2020, com a Ref.ª 86414797, que indeferiu a inquirição da testemunha (e ofendida) M. em audiência de julgamento, bem como da sentença, de 8 de Outubro de 2020, que condenou o ora recorrente, pela prática de dois crimes violência doméstica, p. e p. pelos artigo 152.º, n.º 1, al. a), 2, al. a), 4 e 5 do Código Penal, numa pena de prisão (em cúmulo jurídico) de 3 (três) anos e 8 (oito) meses, suspensa na sua execução por igual período e, ainda, no pagamento aos ofendidos M., das quantias de €2500,00 e €1500,00, respectivamente, a título de arbitramento oficioso;

II. O presente recurso tem por objecto:

1) A decisão de indeferimento da inquirição da testemunha (e ofendida) M., em julgamento – despacho de 13 de Julho de 2020 (cf. Ata da audiência de julgamento, com a Ref.ª 86414797);

 2) A factualidade dada como provada, com a eliminação e/ou, se assim não se entender, a alteração da mesma, designadamente dos pontos 7 a 32 e, em consequência, dos factos 35 a 46, por erro na apreciação da prova (art. 410.º n.º 2 do CPP);

3) A incorrecta qualificação jurídico-penal dos factos; e, finalmente,

 4) O arbitramento de indemnização/reparação aos ofendidos M. e S., sem prévia comunicação ao arguido, para o exercício do contraditório;

III. A inquirição da testemunha M., a quem foram tomadas declarações para memória futura, em sede de Inquérito, não é afastada ou precludida, antes expressamente prevista, quer pelos arts. 33.º, n.º 7 da Lei n.º 112/2009, de 16/09 e n.º 8 do art. 271.º do Código de Processo Penal (CPP), quer pelo Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 8/2017;

 IV. A inquirição da ofendida em julgamento, requerida pelo arguido, não consubstancia legalmente uma “repetição” da prova testemunhal, nem a sua utilidade para a defesa do arguido, pode ser aferida pelo Tribunal, após a produção da demais prova testemunhal;

V. A inquirição das testemunhas deve ser feita, sempre que possível, em audiência, ainda que ouvidas, em fase processual anterior, em declarações para memória futura, sob pena de violação dos princípios gerais de processo penal da imediação (art. 355.º do CPP), da oralidade (art. 96.º do CPP) e do direito do arguido a um processo justo e equitativo, mediante, designadamente, o cabal exercício do contraditório (cf. n.º 5 do art. 32.º da CRP);

VI. Tal indeferimento coarctou o direito de defesa do arguido e impediu a ofendida de exercer o seu direito, inalienável, de se recusar a depor (art. 134.º, n.º 1 do CPP) ou de, depondo, o poder vir a fazer em benefício do arguido (Cfr., entre outros, o Ac. STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 8/2017, Processo 895/14.0PGLSB.L1-A.S1 e Ac. TRL de 11.01.2012, Proc. n.º 689/11.5PBPDL-3, ambos disponíveis in www.dgsi.pt);

VII. Além da aludida inquirição ser possível, não decorre, de igual modo, dos autos ou da fundamentação do despacho de indeferimento, qualquer concreto perigo para a sua saúde física ou psíquica;

VIII. Para a inquirição de testemunhas em sede de julgamento não se encontra legalmente prevista a exigência de indicação dos concretos factos sobre as quais irá depor;

IX. Tal inquirição era, além do mais necessária, atenta a sua manifesta contradição, em factos essenciais (v.g. os crimes imputados ao arguido relativamente ao ofendido S. e na descrição feita dos demais factos dados como provados na sentença), com o depoimento da testemunha (e denunciante) S., no qual, de resto, o tribunal a quo sustentou a condenação do arguido;

X. Devem ser eliminados e/ou alterados os factos provados os pontos 7 a 32 e, em consequência, os “factos” 35 a 46, por insuficiência e contradição dos elementos probatórios constantes dos autos e produzidos em audiência, nos termos constantes da motivação ínsita no ponto II-A do presente recurso;

XI. Os factos 7 a 32 (à excepção dos factos 18, 27 e 32, a que a ofendida também aludiu nas suas declarações) resultam do depoimento da testemunha S., o qual, atento o seu interesse pessoal no processo (denunciante), a relação de manifesta inimizade com o arguido, as contradições patentes no seu depoimento (como resulta da audição integral do seu depoimento em que apresentou duas versões dos factos diametralmente inversas (Cfr. depoimento gravado no dia 09.03.2020, das 10:12:58 às 11:08:11 e das 11:11:59 às 12:22:05) e das incongruências do mesmo no confronto com as declarações para memória futura da ofendida, jamais poderia ter sido valorado pelo Tribunal a quo como isento, credível e fidedigno, devendo aqueles ser, por essa razão, eliminados do elenco dos factos provados;

XII. Caso assim não se entenda, sempre se impõe a alteração da matéria vertida nos pontos 14 a 17, que foram infirmados pela própria testemunha S., negando que, além da agressão do dia 28 de Agosto, tivesse presenciado qualquer outra (Cfr. depoimento gravado, em 09.03.2020, das 11:11:59 às 12:21:17, designadamente a partir do minuto 25:49);

XIII. Do ponto 14 deve ser eliminada a expressão “e que sabia que tinha dinheiro e que se não tivesse que se podia deitar debaixo de vários homens e assim arranjava dinheiro”, negada pela própria testemunha S., que presenciou aquela conversa (Cfr. depoimento gravado em 09.03.2020, das 11:11:59 às 12:21:17, designadamente a partir do minuto 9:00);

XIV. Devem ser eliminados os pontos 15 a 17, por coincidência com a factualidade descrita nos pontos 18 e seguintes, bem como os pontos 23 a 27, já que, no referido dia 28 de Agosto terá ocorrido apenas uma agressão, como afirmado quer pela ofendida, quer pela testemunha S.;

XV. Deve ser, igualmente, eliminado da factualidade provada o ponto 31, que não resultou quer das declarações para memória futura da ofendida (cf. transcrição de fls. 234 a 252 dos autos), quer do depoimento da testemunha S.;

XVI. Também o ponto 44 deve ser eliminado, já que tal “factualidade” não resulta das declarações para memória futura da ofendida, e foi negada pela testemunha S. (Cfr. depoimento gravado, no dia 09.03.2020, das 11.11:59 às 12:21:15, a partir, sensivelmente, do minuto 01:04:37);

XVII. Se procedente (ainda que apenas parcialmente) a impugnação da matéria de facto, eliminando-se ou alterando-se os factos 7 a 32, importará a este Venerando Tribunal, apreciando a globalidade, a delimitação temporal e o contexto daqueles, determinar se estes conformam ou não a prática de crimes de violência doméstica ou, ao invés, a prática de eventuais crimes de injúrias e ofensas à integridade física contra os ofendidos, conforme aduzido na motivação do presente recurso, designadamente no ponto C);

XVIII. A este propósito, convirá atentar no teor das declarações para memória futura da ofendida (de fls. 234 a 252), das quais resulta: 1) que foi vítima de duas agressões (uma em 28 de Agosto de 2018 e outra pouco tempo antes do dia 8 de Julho de 2019 – esta última, atenta a data, não incluída nos factos imputados ao arguido na acusação pública, nem aditada oficiosamente pelo Tribunal a quo, através da alteração não substancial dos factos, prévia à leitura da sentença, em 8 de Outubro de 2020; 2) que foi negada qualquer agressão pelo arguido contra o menor S. ou a ocorrência de queda deste; 3) que o arguido e a ofendida se agrediram e insultaram mutuamente e 4) que jamais presenciou qualquer agressão do arguido na pessoa do S., não tendo feito qualquer alusão a quaisquer injúrias dirigidas pelo arguido àquele;

XIX. Finalmente, também a condenação do arguido no pagamento de uma indemnização aos ofendidos, oficiosamente arbitrada pelo Tribunal a quo, configura uma autêntica decisão-surpresa;

XX. Não foi comunicada pelo Tribunal a quo ao arguido a possibilidade da sua condenação naquela indemnização, não lhe tendo sido permitido, assim, o exercício do seu direito inalienável ao contraditório, em violação flagrante do disposto no art. 82.º-A, n.º 2 do CPP (Cfr. Acórdãos do TRC de 24.04.2018, no Proc. 709/16.7PBFAR.C1 e de 22.01.2014, no proc. n.º 73/12.3PBCBR e do TRE de 28.10.2019, no proc. n.º 231/18.7PATVR.E1, todos disponíveis in www.dgsi.pt);

XXI. Nem, tão-pouco, foi aquela comunicada aos ofendidos, que não deduziram qualquer pedido de indemnização, nem estiveram presentes na audiência de julgamento, impedindo-os, assim, de, querendo, expressamente se oporem a tal arbitramento, ao abrigo do n.º 2 do art. 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16/09.

XXII. O Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, julgou, salvo o devido respeito, de forma incorrecta a prova constante dos autos e a produzida em audiência de julgamento, violando, ademais e designadamente, os arts. 82.º-A, n.º 2, 96.º, 134.º, 271.º, n.º 8, 340.º e 355.º, todos do CPP, arts. 21.º, n.º 2 e 33.º, n.º 7 da Lei n.º 112/2009, de 16/09 e, ainda, os arts. 18.º e 32.º, n.º 5, ambos da CRP;

XXIII. Deve, pois, ser revogado o despacho de 13.07.2020, determinando-se a reabertura da audiência para a inquirição da testemunha M. e/ou revogada a sentença em crise, substituindo-se por acórdão que altere os pontos 7 a 32 da matéria de facto e/ou altere a qualificação jurídica dos mesmos, absolvendo, a final, o arguido da prática dos crimes de violência doméstica e/ou revogada a condenação do arguido no pagamento da indemnização arbitrada oficiosamente, ordenando a reabertura da audiência para que seja dado cumprimento ao disposto no n.º 2 do art. 82.º-A do C.P.P., tudo com as devidas consequências legais.

 

    1.3.  O Ministério Público junto ao tribunal a quo respondeu ao recurso, rematando com as seguintes conclusões:

 1. A arguição dos vícios previstos no artigo 410.º pressupõe que estes resultem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

2.Analisado o texto da douta sentença recorrida, por si só ou conjugado com os ditames da experiência comum, não resulta a verificação dos apontados vícios, posto que daquele decorre que os factos nele considerados como provados constituem suporte bastante para a decisão a que se chegou e dele não resulta qualquer incompatibilidade entre a fundamentação e a decisão, assim como nele não se deteta qualquer equívoco ostensivo contrário a facto do conhecimento geral ou ofensivo das leis da lógica.

3.As parciais reproduções dos depoimentos que o recorrente indica, não impõem decisão diversa sobre os factos que o tribunal a quo deu como provados.

4.As razões da discordância do recorrente relativamente à forma como o tribunal recorrido decidiu a factualidade em apreço, prendem-se com a leitura que o mesmo faz de partes selecionadas dos meios de prova para, a partir de tais elementos, substituir a sua própria convicção à do tribunal a quo, concluindo pela ausência de prova suficiente quanto aos factos impugnados.

5.A prova produzida em audiência de discussão e julgamento permite claramente concluir pela verificação dos factos dados como provados, não impondo decisão diversa da recorrida.

6.A imagem global que se extrai dos factos dados como provados, é a adoção, pelo arguido, de um comportamento que de um modo geral afeta a dignidade humana, o bem estar físico, mas principalmente psíquico e emocional, em suma a dignidade pessoal das vítimas, demandando a respetiva subsunção ao crime de violência doméstica.

7. Carece de fundamento, salvo o devido respeito, dizer que é necessário que a vítima tenha de ser ouvida sobre se pretende, ou se se opõe, a que lhe seja arbitrada oficiosamente  uma indemnização, já que esta apenas não lhe é arbitrada se ela manifestar oposição, o que não sucedeu, no caso dos autos.

8. Partilhamos a posição defendida por Paulo Pinto de Albuquerque e pelos arestos mencionados nesta resposta, no sentido de que o arbitramento oficioso de indemnização, no caso de condenação por crime de violência doméstica, é sempre de atribuir, salvo se a vítima se tiver oposto (ou ela própria tiver deduzido pedido de indemnização civil).

9. No caso em apreço, o arguido tinha de saber que, caso viesse a ser condenado pelos factos que lhe eram imputados na acusação e pelos factos que lhe foram comunicados no decurso da audiência de discussão e julgamento (dos quais tinha pleno conhecimento, tendo prescindido do prazo para preparação da defesa, tendo sido respeitado o contraditório – ata de 8/10/2020), necessariamente teria de ser condenado numa indemnização arbitrada oficiosamente ás vítimas. Não foi o arguido confrontado com nenhuma decisão surpresa.

10.Nestes termos, e por tudo o exposto, o recurso interposto pelo arguido não merece provimento, devendo improceder na totalidade, mantendo-se na íntegra a douta sentença recorrida.

 

          1.4. No parecer a que alude o art. 416º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Exm.º Procurador Geral Adjunto junto a este Tribunal da Relação pronunciou-se no sentido de acompanhar a resposta apresentada pelo Ministério Público na 1ª instância, no que respeita às diversas questões suscitadas, quer em matéria de facto, quer em matéria de direito a qual, por esse motivo, aqui damos por integralmente reproduzida


***

      II -  Fundamentação de Facto

      (transcrição parcial da decisão sob recurso)

- Factos Provados:

1. O arguido A. e a ofendida M. contrariam matrimónio em 23 de Março de 2017, tendo fixado a sua residência comum na Rua (…).

2. S. nasceu a 31/10/2009, é filho da ofendida M. e de A. e padece de um nível intelectual na fronteira entre a Deficiência Mental Ligeira e a Deficiência Mental Moderada.

3. J. nasceu a 09/09/2018 e é filho do arguido A. e da ofendida M..

4. O arguido A., a ofendida M. e o ofendido S. residiam juntos na Rua (…), sendo aquela a casa de morada de família.

5. Em fevereiro de 2018, o arguido A. emigrou para Inglaterra onde esteve a trabalhar, tendo regressado no início do mês de Agosto de 2018, ficando em situação de desemprego.

6. Em data não concretamente apurada, mas desde pelo menos o mês de fevereiro de 2018 S. passou a residir também na sobredita morada com a ofendida M. e o ofendido S..

7. Desde o regresso do arguido a casa, no início de agosto de 2018, este, com regularidade diária dirigia-se à ofendida M., chamando-a de “puta”, “vaca”, “porca, dizendo-lhe “tu não vales nada” – o que acontecia normalmente ao final do dia, quando chegava a casa embriagado, sendo que, em pelo menos duas dessas ocasiões, disse-lhe que “anda com todos” (acusando-a de manter relacionamentos extraconjugais) e que o filho S. não era dele, que era um “burro”. Com isso, a ofendida, que ficava magoada, chorava.

8. Em algumas dessas ocasiões, o arguido empurrava a ofendida, fazendo com que embatesse com o corpo nas paredes.

9. Durante o mês de agosto de 2018, com uma frequência quase diária, o arguido apelidava S. de “burro”, levando-o a chorar.

10. Além disso, quando o menor S. não executava corretamente os trabalhos didáticos (que necessitava de realizar em virtude das limitações cognitivas de que padece), o arguido exaltava-se e empurrava-o, provocando no menor dores e medo. Pelo menos uma vez, o arguido disse a S. que o ia pôr no escuro junto das galinhas, o que lhe causou medo.

11. Nesse mês, o arguido pôs o S. na rua duas vezes, porque ele não queria fazer os trabalhos de casa.

12. Em data não concretamente apurada, mas após o regresso do arguido de Inglaterra, este dirigiu-se à ofendida M., que então se encontrava grávida de J. e disse “és uma puta, mato-te a ti e ao teu filho, rebento com isto tudo, levo a criança para o estrangeiro e nunca mais lhe vais por a vista em cima, estando tu ainda no hospital”.

13. Em data não concretamente apurada, mas no início do mês de agosto de 2018, no interior da residência referida supra, o arguido dirigiu-se à ofendida M. e pediu-lhe cinco euros para comprar tabaco, tendo esta recusado.

14. Desagradado pela recusa, o arguido tirou dinheiro da carteira da ofendida, dirigiu-se a esta e disse-lhe para ir pedir “àquela pessoa para lhe dar dinheiro” (insinuando que, no período em que esteve ausente, a ofendida andava com outro homem) e “que sabia que tinha dinheiro e que se não tivesse que se podia deitar debaixo de vários homens e assim arranjava dinheiro”, tendo a ofendida M. retorquido que o arguido arranjasse trabalho.

15. Em data não concretamente apurada, mas ainda durante o mês de agosto de 2018, o arguido A., por se mostrar desagradado com o facto de S. se encontrar lá em casa, manteve uma discussão com a ofendida M., no corredor da casa.

16. Na sequência dessa discussão, e porque o arguido estava exaltado, a ofendida M. saiu do corredor e dirigiu-se para a casa de banho.

17. Aí, o arguido abeirou-se desta e com as mãos puxou-lhe os cabelos e desferiu-lhe um murro na barriga e uma pancada na cara, atingindo-a num olho, provocando-lhe hematoma e dores.

18. No dia 28 de agosto de 2018, em hora não concretamente apurada, mas durante a tarde daquele dia, S., encontrava-se na sala a realizar trabalhos didáticos e o arguido, na companhia da ofendida M. e de S., encontrava-se no exterior da residência.

19. A certa altura, o arguido dirigiu-se para junto do menor S. e por se ter apercebido que não tinha ainda completado os trabalhos, deu um murro na mesa e chamou o menor de “burro”.

20. O menor S. de imediato ficou com medo e começou a chorar.

21. Em ato continuo, vendo o menor S. a chorar e assustado, o arguido dirigindo-se a este, à ofendida M. e na presença de S. referiu que o S. era um “burro”, “um deficiente”, “que precisava de ajuda para tudo”, “que não ia ser ninguém na vida” e que “o ia encaminhar para casa do pai dele”.

22. Ainda neste dia, mas depois do jantar, quando o menor S. no interior da habitação se encontrava a realizar os seus trabalhos didáticos, o arguido exaltou-se por o menor S. ter errado uma palavra, pelo que em voz alta lhe disse que “no dia seguinte ia levar o S. a casa do pai, porque não estava para o manter.”

23. Nessa sequência gerou-se outra discussão entre o arguido e a ofendida M., por esta ter dito ao menor S. para parar com os trabalhos, o que foi do desagrado do arguido, porque se sentiu desautorizado.

24. Em ato continuo, o menor S. dirigiu-se para o quarto, tendo o arguido ido atrás dele.

25. A ofendida M. com receio que o arguido atentasse contra a integridade física do menor, seu filho, seguiu os dois, o que o arguido não gostou, apelidando-a de “puta”.

26. Nessa sequência, o menor S. começou a chorar, o que fez com que o arguido tivesse ficado mais agressivo, tendo entrado novamente no quarto com o propósito de agredir o menor.

27. A ofendida M., vendo o arguido dirigir-se ao menor S. colocou-se à frente do arguido. Em ato continuo, o arguido desferiu uma bofetada na cara da ofendida M., que então mordeu o braço do arguido por forma a impedi-lo de se abeirar do menor, o que conseguiu.

28. Ainda naquele dia, o arguido, no interior da casa de banho dirigiu-se ao menor S. e disse-lhe para este ir lavar os pés.

29. Porque a ofendida M. disse que o ia ajudar, o arguido, mais uma vez desagrado pela atitude desta impediu-a pelo uso da força de entrar na casa de banho.

30. Em ato continuo, o arguido puxou o menor S. para junto de si, desferiu-lhe uma bofetada, e empurrou-o para o interior do quarto, provocando a sua queda, o que deixou S. com vermelhão e dores.

31. A ofendida M., ao ver novamente o arguido agredir o seu filho S., foi em socorro do mesmo, e ordenou que o arguido saísse de casa, que arrumasse as suas coisas e fosse embora.

32. O arguido dirigiu-se à ofendida M., disse-lhe que “era porca como o filho”, puxou-lhe o cabelo, deu-lhe murros na barriga e empurrou-a, tendo esta embatido com as costas na porta da casa de banho, provocando- lhe dores.

33. S. solicitou a intervenção das forças policiais que ocorreram ao local. 34. No dia 7 de março de 2019, o menor S. foi assistido no Hospital …, na urgência pediátrica, apresentando as seguintes lesões: “ Face: equimose de tom na orelha esquerda visível na face anterior e posterior de tom acastanhado e violáceo, na face anterior e posterior observa-se ainda uma escoriação em cada face revestidas por crosta sanguínea seca com 2 e 2 mm e com características ungueais; escoriação com 1 mm na face lateral esquerda do nariz”, que lhe determinaram 10 dias para cura, sem afetação da capacidade de trabalho geral e sem afetação da capacidade de trabalho profissional.

35. Em função destes comportamentos, do modo como foram efetuados, no contexto familiar e de coabitação em que ocorreram e do clima de intimidação que o arguido provocou, foram os mesmos idóneos a causar, como causaram, perturbação e medo nos ofendidos M. e S., inibindo-os de contrariar a vontade do arguido, com medo de novas retaliações que atentassem contra as suas integridades físicas.

36. O arguido desrespeitou os deveres de assistência e respeito para com a sua esposa, sabendo que com os comportamentos supra descritos violava a dignidade da mesma, molestando-a na sua integridade física e psíquica, dentro do refúgio do seu domicílio e da consequente fragilidade física que a mesma apresentava, uma vez que se encontrava grávida, facto esse que era do conhecimento do arguido, tornando-a mais indefesa perante tais atos.

37. O arguido bem sabia que a circunstância de praticar os factos supra descritos no interior do domicílio, com um menor e na presença do mesmo, agravava a sua responsabilidade criminal que bem sabia incorrer.

38. Sempre que o arguido se dirigiu à ofendida M. e ao ofendido S. nos termos apurados fazia-o com o intuito de os ofender na sua honra e consideração, de os humilhar e vexar, o que conseguiu.

39. Quando o arguido agrediu fisicamente a ofendida M., fê-lo com o propósito de molestar fisicamente, a sua esposa, nomeadamente de lhe causar dores, mau estar físico e lesões físicas, o que conseguiu.

40. Quando o arguido agrediu fisicamente o ofendido S., fê-lo com o propósito de molestar fisicamente, o seu enteado, menor de 8 anos, nomeadamente de lhe causar dores, mau estar físico e lesões físicas, o que conseguiu.

41. Ao atuar do modo acima descrito, o arguido quis maltratar o ofendido S., ofendendo-o na sua dignidade pessoal, humilhando-o, amedrontando-o e perturbando o seu sentimento de segurança, o que decidiu fazer no interior do domicilio comum e conseguiu, bem sabendo que, na qualidade de padrasto do ofendido e menor de 8 anos, sobre ele impendia um dever acrescido de respeito para com este, bem como de cuidar do seu bem-estar físico e psíquico.

42. O arguido bem sabia que o ofendido padecia de um défice cognitivo grave e ainda que, por força dos seus 8 anos de idade, não tinha qualquer capacidade séria de oferecer oposição à atuação do arguido, circunstância de que se aproveitou no sentido descrito.

43. Em todas as descritas ocasiões o arguido agiu com o intuito concretizado de inquietar e atemorizar os ofendidos, sua esposa e enteado, causando-lhes receio de serem fisicamente agredidos por este.

44. Ao longo do tempo a ofendida, que se encontrava grávida, foi suportando todas estas agressões, ameaças e injúrias por vergonha, por medo de represálias e com receio das consequências que uma denúncia poderia despoletar.

45. Com as condutas descritas, o arguido agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que assim causava, como causou, sofrimentos físicos e psíquicos aos ofendidos M. e S., provocando-lhes dores, ferimentos e hematomas, sentimentos de tristeza, humilhação e vexame, receio, medo e inquietação, perturbando o seu sentimento de segurança, tendo consciência de que os tratava de modo cruel, o que conseguiu.

46. O arguido sabia que os seus comportamentos eram proibidos e punidos por lei como crime.

Mais se provou que:

(….).


*

- Factos Não Provados:

(…).


*

- Motivação da Decisão de Facto:

(…).

- Enquadramento Jurídico-Penal

(…).


*

- Escolha e determinação da medida da pena

(…).

Arbitramento oficioso de indemnização à vítima de crime de violência doméstica

De acordo com o n.°1, do artigo 21.°, do Regime Jurídico Aplicável à Prevenção da Violência Doméstica, à Proteção e à Assistência das suas Vítimas, aprovado pela Lei n.° 112/ 2009, de 16 de Setembro “À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável”, acrescentando o n.° 2 que “Para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.° -A do Código de Processo Penal, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser”.

Assim, praticado o crime de violência doméstica, a lei impõe o arbitramento de indemnização à vítima, presumindo a existência de particulares exigências da sua proteção, só assim não sendo quando a ele se oponha a vítima

No presente caso, os ofendidos não se opuseram expressamente a que lhes fosse arbitrada uma quantia a título de indemnização. Pelo que, tendo-se concluído pela prática, pelo arguido, dos crimes de violência doméstica, impõe-se o arbitramento de indemnização aos ofendidos M. e S..

Verificaram-se na esfera jurídica dos ofendidos danos morais (a dor, a humilhação, a tristeza, o medo e a limitação da liberdade em razão deste), que se imputam objetivamente ao comportamento do arguido, nos termos do disposto no artigo 563º do Código Civil. A propósito da fixação do “quantum” indemnizatório, cumpre assinalar que “deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito” (artigo 496º, n.º1, do CPC) – à luz deste preceito legal, a doutrina e a jurisprudência, quase unanimemente, limitam a indemnização àqueles casos que tenham efetiva relevância ética e moral por ofenderem profundamente a personalidade física ou moral, designadamente as ofensas à honra, à reputação, à liberdade pessoal, aos demais direitos de personalidade (cf. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, v.1, p.572; Ac. STJ de 12-10-73, BMJ, 230.º, 107; Ac. STJ de 26-6-91, BMJ 408.º, 538; Vaz Serra, Reparação do dano não patrimonial, BMJ, 83.º, 69 sgs), sendo que a gravidade do dano mede-se por um padrão objetivo, embora atendendo às particularidades de cada caso, e não à luz de fatores subjetivos (como uma sensibilidade exacerbada ou requintada), e tudo segundo critérios de equidade (cfr A. Varela, ob. cit., pag 576; Vaz Serra, RLJ, ano 109.º, p. 115), devendo ter-se ainda em conta a comparação com situações análogas decididas em outras decisões judiciais (Acs do STJ de 2-11-76, de 23-10-79, de 22-1-80, de 13-5-86, in BMJ 261.º-236, 290.º-390, 239.º-237, 357.º-399).

Os danos não patrimoniais abrangem os prejuízos (como as dores físicas, os desgostos morais, os vexames, a perda de prestígio ou de reputação e os complexos de ordem estética) que, não sendo suscetíveis de avaliação pecuniária apenas podem ser compensados com obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo mais uma satisfação do que uma indemnização.

Os danos sofridos pelos ofendidos são, à luz de um padrão objetivo (como se exige) suficientemente graves para merecerem a tutela do direito, pois que atingiram a personalidade e, por essa via, a sua dignidade humana, o que não pode deixar de ser juridicamente protegido.

Nos termos dos artigos 496º, n.º 1 e n.º 3, 1º parte e 494º, ambos do Código Civil, o montante da indemnização por danos não patrimoniais é fixado equitativamente pelo Tribunal, tendo em atenção a gravidade e extensão dos prejuízos, o grau de culpabilidade do lesante, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso – cf. Galvão Telles, Direito das Obrigações, Coimbra Editora, 4ª edição, 1982, pág. 304. Além disso, deve ter-se em conta que a indemnização não deve ser miserabilista, devendo assumir, não só o papel de compensação da dor, mas também a função de sanção para a conduta do lesante – neste sentido, que subscrevemos, se tem pronunciado a generalidade da doutrina e da jurisprudência (cf., designadamente, A. Varela, ob. cit., p. 529 e 534; Ac STJ de 26-6-91, BMJ, 408.º, 538).

Ora, ponderando as referidas circunstâncias, designadamente a natureza do dano moral sofrido pelos ofendidos, atingidos no seu bem-estar físico e psíquico, e na sua liberdade, por uma conduta diária ao longo de pelo menos um mês – contemplando injúrias, violência verbal e física, causadoras de dor, humilhação e medo –, o grau de culpa do lesante, e a sua situação pessoal (encontra-se a trabalhar em Espanha), entende-se adequado condenar o arguido / demandado no pagamento: à vítima M. da quantia de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) e à vítima S. da quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) – sendo que a diferenciação no valor fixado se funda, não na menor gravidade dos danos cometidos na pessoa de S., mas na idade do mesmo.


***

       III -  Fundamentação de Direito

       Apreciando e decidindo

       a) O objecto do recurso encontra-se limitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo da necessidade de conhecer oficiosamente a eventual ocorrência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410º do Código de Processo Penal (jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ n.º 7/95, publicado no DR, I Série-A, de 28.12.1995);

       b) Como o recorrente sintetiza, são as seguintes as questões a apreciar neste recurso:

       i) A decisão de indeferimento da inquirição da testemunha (e ofendida) M., em julgamento despacho de 13 de Julho de 2020 (cf. Acta da audiência de julgamento, com a Ref.ª 86414797);

       ii) A factualidade dada como provada, com a eliminação e/ou, se assim não se entender, a alteração da mesma, designadamente dos pontos 7 a 32 e, em consequência, dos factos 35 a 46, por erro na apreciação da prova (art. 410.ºn. º 2 do CPP);

       iii) A incorrecta qualificação jurídico-penal dos factos;

       iv) O arbitramento de indemnização/reparação aos ofendidos M. e S., sem prévia comunicação ao arguido, para o exercício do contraditório;

       c) Relativamente à primeira questão, insurge-se o recorrente contra o despacho proferido em 13 de Julho de 2020, mediante o qual o tribunal a quo indeferiu a inquirição da testemunha M., a quem já tinham sido anteriormente tomadas declarações para memória futura, alegando que essa possibilidade de inquirição, não é afastada ou precludida, quer pelos arts. 33.º, n.º 7 da Lei n.º 112/2009, de 16/09 e pelo n.º 8 do art. 271.º do Código de Processo Penal (CPP), quer pelo Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 8/2017.

       Apreciando, refira-se que a recolha de declarações para memória futura foi inicialmente pensada pelo legislador português como meio preventivo de recolha de prova susceptível de perder-se ou inviabilizar-se antes do julgamento, tendo, contudo, sido ampliado o respectivo âmbito para protecção das vítimas; passou a constituir um instrumento de protecção das próprias vítimas de determinados crimes – cf. Paulo Dá Mesquita, Comentário Judiciário do C.P.P., Tomo III, anotação ao art 271º, ed Almedina.

       A Lei nº 112/2009, de 16-09 regula autonomamente as declarações para memória futura das vítimas de violência doméstica.

       Também a Lei n° 130/2015, de 4 de Setembro - Estatuto da Vítima - prevê o direito das vítimas especialmente vulneráveis à prestação de declarações para memória futura, nos termos previstos no artigo 24.°.

          Nos termos previstos no nº 3 do art 67-A do CPP “As vítimas de criminalidade violenta e de criminalidade especialmente violenta são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1.”

          Estando em causa um crime de violência doméstica, previsto no art.° 152. °, n.º 1, do C. Penal, punido com pena de prisão de um a cinco anos de prisão, é certo que integra a noção de criminalidade violenta, definida no art.°- 1. °, alínea j), do C.P.P. 

          

          d)    Estabelecida, no caso por força da lei, a condição de especial vulnerabilidade da vítima, o citado artigo 271º n.º 8 preceitua que a tomada de declarações para memória futura não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento “sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar”.

          Deste normativo não resulta, todavia, como pretende o recorrente, uma obrigatoriedade de nova prestação do depoimento em audiência de julgamento; a nova aprestação de depoimento só deverá ser determinada caso essa repetição se torne necessária para a descoberta da verdade material nos termos do art 340º do C.P.P. – cf. Paulo Pinto Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, anotação 26 ao art 271º, 3ª edição, Ed. Universidade Católica. No fundo estamos perante uma situação semelhante a reinquirição e uma testemunha já ouvida em julgamento; poderá ser novamente ouvida, mas essa nova inquirição tem quer ser necessária para a descoberta da verdade

          E essa exigência de a repetição ser avaliada como necessária resulta evidente; caso contrário estaremos perante a mera reiteração de um depoimento já prestado, perante uma pessoa a quem a lei considera como especialmente vulnerável, redundando ainda na prática de uma um acto inútil, o que a nossa lei proíbe – art 130º CPC, ex vi do art 4º do C.P.P.

          No caso, apresentado requerimento por parte do arguido a solicitar a reinquirição da ofendida, o tribunal a quo relegou a sua apreciação para momento posterior à produção de toda a prova. E essa decisão justifica-se plenamente, porque só nesse momento se poderia aquilatar da necessidade de fazer comparecer em julgamento a vítima do crime, nos termos do art 271º n.º 8 do C.P.P. Ora o tribunal recorrido concluiu que não ocorria essa necessidade, nesse momento indeferindo a pretensão do requerido na repetição da inquirição.

          Decisão que não pode deixar de se aceitar, uma vez que o arguido, no requerimento que solicitou a repetição das declarações anteriormente prestadas em sede do instituto de prestação de declarações para memória futura, não apresentou motivos válidos para que se determinasse a repetição do depoimento já prestado, designadamente nunca esclarecendo porque razão a repetição de um depoimento já prestado revestiria alguma utilidade para a descoberta da verdade. É certo - como refere o recorrente nas suas motivações - que a lei não exige a indicação dos concretos pontos à qual a testemunha iria ser inquirida, mas tem que ser apresentada alguma justificação válida e convincente para que o tribunal conclua pela imprescindibilidade da repetição de um acto já praticado, sob pena da exposição desnecessária de uma pessoa que a lei considera particularmente vulnerável, com a finalidade de praticar um acto aparentemente inútil.

          Recusa-se ainda que a não repetição da diligência tenha coartado o direito de defesa do arguido, uma vez que nas declarações para memória futura é obrigatória a presença do defensor (como no caso sucedeu); assim como que se refuta que a não presença da ofendida a tenha impedido de exercer o seu direito de se recusar a depor, nos termos do art. 134.º, n.º 1, al. b) do C.P.P., uma vez que tal faculdade também lhe assistia no momento da prestação de declarações para memória futura.

          Não se aceita ainda a argumentação do recorrente, no sentido de que o indeferimento da prestação de depoimento em julgamento pela ofendida, impediu o esclarecimento das incongruências entre as declarações daquela e o depoimento da testemunha S.. Desde logo, porque o tribunal assinalou essas incongruências e decidiu em sede de motivação dos factos provados, no sentido de se considerar o depoimento da testemunha S. como credível no campo em que colidia com as declarações da ofendida. E assim sendo, não se percebe o que iria a nova inquirição da ofendida adiantar nesse aspeto; ou mantinha a versão já apresentada nas declarações de memória futura – e então a repetição da sua inquirição nada adiantaria – ou alteraria a versão no sentido do conteúdo do depoimento da testemunha S., o que apenas reforçaria a conclusão do tribunal a quo.

          Por último, a pretendida imprescindibilidade da repetição da inquirição da ofendida “para a descoberta da verdade material e para a boa decisão da causa”, não colhe. Trata-se de uma alegação genérica e imprecisa, ainda por cima provinda do sujeito processual – o arguido – que se remeteu ao silêncio no decurso do julgamento. Sendo direito que legalmente lhe assistia, estranha-se que alguém que se remete ao silêncio, não contribuindo assim minimamente para o esclarecimento dos factos, venha depois arvorar-se em paladino da “verdade material e da boa decisão da causa”.

 (…)

          n) Nas conclusões finais (XIX e ss), insurge-se o recorrente contra a circunstância de a condenação do arguido no pagamento de uma indemnização aos ofendidos, oficiosamente arbitrada pelo Tribunal a quo, configurar uma decisão-surpresa, por não ter sido comunicada ao arguido a possibilidade da sua condenação naquela indemnização, sem o exercício do direito ao contraditório.

          Apreciando, considere-se que nos termos do artº 82º-A n.º 1 e 2, do CPP, não tendo sido deduzido pedido de indemnização pela vítima, «o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham», acrescentando o n.º 2 da mesma norma que “no caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório”.

          Face ao sentido expresso desta norma, a nossa doutrina (cf. Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário ao C.P.P. ed. 3ª, 232)) e jurisprudência (cf.  os Acórdãos deste tribunal da Relação de Coimbra de 24.04.2018, no Proc. 709/16.7PBFAR.C1 e de 22.01.2014, no processo n.º 73/12.3PBCBR.C1) têm defendido que em nenhuma circunstância o tribunal pode proceder ao arbitramento oficioso da indemnização, sem antes ouvir o responsável civil.

          É certo, como nota o Ministério Público, que estando em causa o crime de violência doméstica, a boa interpretação do n.º 2 do artigo 21º da Lei n.º 112/2009, implica que a indemnização à vítima daquele crime deve ser sempre arbitrada, assim o defendendo a maioria da nossa doutrina e jurisprudência - cf. alguns exemplos dessa posição, citados pelo Ministério Público junto do tribunal a quo, que concluem por essa obrigatoriedade.

          E assim sendo, poderia defender-se que a fixação da indemnização oficiosa nos casos de violência doméstica não surgirá propriamente como inesperada para o autor daquele crime.

          Todavia, o certo é que o citado n.º 2 do artigo 21º da Lei n.º 112/2009, estatui que “há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal”, ou seja, remete para o regime desta norma em bloco, assim abrangendo também os 3 números desse mesmo art 82-A, incluindo o n.º 2 onde se estabelece a referida obrigatoriedade de observância do contraditório.  

          Ainda que o conteúdo desse contraditório revista muito duvidosa utilidade (uma vez que os factos já constarão da acusação, e como se referiu a condenação naquela indemnização é obrigatória, salvo oposição do ofendido), enquanto não for restringida a referida remissão do n.º 2 do artigo 21º da Lei n.º 112/2009, para o art 82-A do C.P.P.

o) No caso, constata-se que nem o despacho de acusação de 12-11-2019 (ref. 85176377), nem o despacho que recebeu a acusação de 6-1-2020 (ref. 85466670) fazem qualquer referência à possibilidade de condenação na referida indemnização.

Não foi assim cumprido o estatuído no nº 2 do art. 82º-A do C.P.P.

Nos termos do art. 118º, nº 1, do C.P.P. «a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada», e acrescenta o n.º 2 da mesma norma que os casos em que não seja cominada a nulidade o acto ilegal será irregular.

O art. 82º-A do C.P.P., que ordena o cumprimento do princípio do contraditório, não identifica qual o vício gerado quando isso não ocorra, e a mesma  omissão também não integra o elenco dos art. 119º e 120º do C.P.P., que enumeram as nulidades não expressamente referidas como tal em outras disposições legais.
            Resta assim  a irregularidade, do nº 1 do art. 123º do C.P.P., que estabelece que «
qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado».

No caso, o arguido não esteve presente na sessão de julgamento que ocorreu no dia 8-10-2020, no decurso da qual foi lida a sentença contendo a condenação do arguido na indemnização civil às vítimas.

            Todavia, essa ausência foi pedida pelo próprio arguido, mediante requerimento apresentado no dia 28-9-2020, justificando-a pela circunstância de se encontrar a trabalhar em Espanha.

           Esse requerimento não mereceu oposição do Ministério Público, tendo nessa mesma sessão de julgamento do dia 28-9-2020, sido proferido despacho, deferindo “o requerido julgamento na ausência do arguido ao abrigo do artigo 334º, nº 2 do CPP, ficando o mesmo para todos os efeitos notificado na pessoa do sua ilustre defensora, nos termos do artigo 334º, nº 4, do CPP .

           Assim, a defensora oficiosa, presente nessa audiência de julgamento, representou o arguido nos termos do art 334º n.º 4 do C.P.P.

             E por isso, tendo a representante do arguido adquirido nesse momento conhecimento da condenação oficiosa do arguido em indemnização civil às vítimas, deveria invocar nesse acto a referida irregularidade consistente na preterição do contraditório.

             Não o tendo feito (nem aliás, nos 3 dias subsequentes), considera-se sanada essa irregularidade sanada, atento o regime do citado artigo 123º do C.P.P.

               O recurso improcede assim na sua totalidade


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  IV – Dispositivo

             Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar totalmente improcedente o recurso interposto por A., confirmando na íntegra a sentença proferida. 

             Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 3 U.C.´s.

Coimbra, 16 de Junho de 2021

João Novais (relator)

               

Elisa Sales (adjunta)