Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1801/08.7TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS GIL
Descritores: EMPREITADA
DESPACHO SANEADOR
CONHECIMENTO NO SANEADOR
Data do Acordão: 01/26/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.483, 486, 496 DO CC, 264 308, 467, 510 DO CPC
Sumário: I – A dedução de pedido de condenação no montante que o Tribunal equitativamente vier a fixar por danos não patrimoniais equivale a falta de pedido, gerando a ineptidão da petição inicial no segmento referente a tal pedido.

II - O conhecimento directo do pedido na fase do despacho saneador pressupõe que estejam assentes todos os factos necessários para o efeito de acordo com as diversas soluções plausíveis das questões de direito que importa resolver.

II - É juridicamente plausível que a omissão de cumprimento dos deveres de fiscalização por parte do director técnico de obra particular contratado pela empreiteira o constitua na obrigação de indemnizar o dono da obra relativamente aos danos decorrentes dessa omissão seja com base em responsabilidade civil por facto ilícito fundada na violação de normas legais do direito da construção que visam tutelar o dono da obra ou com fundamento na violação de deveres profissionais seja ainda com fundamento em responsabilidade contratual decorrente de contrato com eficácia de protecção de terceiros ou em contrato com encargo de terceiro.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            1. Relatório

            A 29 de Dezembro de 2008, A.... instaurou nas Varas Mistas do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra acção declarativa sob forma ordinária contra B..... pedindo que este seja condenado a pagar-lhe a quantia de € 71.554,20 e ainda o valor que o tribunal vier a fixar equitativamente pelos danos não patrimoniais descritos sob os artigos 45 a 50 da petição inicial, tudo acrescido de juros de mora, à taxa legal, a partir da citação.

            Para fundamentar as suas pretensões o autor alega, em síntese:

            - que em 05 de Janeiro de 2005 celebrou com a sociedade de construções C...... um contrato para construção de uma moradia, com demolição, no prédio misto sito no ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz urbana sob o artigo ...º e na matriz rústica sob o artigo ..., imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...;

            - que para o efeito entregou à sociedade de construções C.... os projectos de Arquitectura e Especialidades, designadamente, o de Estruturas e a respectiva Memória Descritiva e Justificativa, onde se encontravam especificados os materiais e respectivas características técnicas e regulamentares a utilizar na obra, nomeadamente, o betão B 25/C20;

            - que na sequência do processo de licenciamento da obra foi emitido pela Câmara Municipal de ... o Alvará de Licença de Construção nº 87/05, iniciando-se a obra em Janeiro de 2005;

            - que após uma visita à obra, aquando dos trabalhos de preparação da colocação da laje do tecto do primeiro andar, o autor apercebeu-se que a estrutura dos pilares, vigas e vigotas já edificados e os materiais utilizados na respectiva construção não revestiam as características constantes dos projectos, pelo que solicitou uma peritagem à obra, nomeadamente, ao betão;

            - que das peritagens efectuadas bem como dos ensaios laboratoriais ao betão aplicado na obra resultaram diversas desconformidades relativamente ao que constava dos projectos, nomeadamente, não aplicação de betão B 25/C20, construção de vigas e vigotas com dimensões inferiores às constantes do projecto, estalamento de algumas vigas, com fissuras a meio dos vão, quando ainda não tinham qualquer carga sobre si, aplicação das vigotas da laje do tecto do rés-do-chão com orientação contrária à que constava do projecto e espessura inferior de todas as lajes e espaçamento das vigotas superior relativamente ao especificado no projecto;

            - que nos relatórios periciais se concluiu que a demolição das partes da obra já edificada era a solução prática mais económica, facto que levou a que a construtora da obra parasse os trabalhos de construção;

            - que mediante declaração datada de 10 de Janeiro de 2005, no exercício da sua actividade profissional de engenheiro civil, o réu assumiu toda a responsabilidade pela direcção técnica da obra, nela se incluindo a fiscalização da obra, a qualidade dos materiais empregues e a sua conformidade com as especificações técnicas e regulamentares constantes dos projectos aprovados;

            - que em 04 de Janeiro de 2006, no local da obra, decorreu uma reunião em que estiveram presentes o autor, o réu, na qualidade de director técnico, o gerente da sociedade de construções C.... e o engenheiro responsável pelas peritagens efectuadas, procedendo-se à inspecção da obra e à verificação das desconformidades existentes, sendo por todos reconhecido que a solução técnica mais económica para remoção das desconformidades era a demolição parcial e a posterior reconstrução de acordo com as especificações constantes do projecto, lavrando-se acta dessa reunião e assumindo o gerente da sociedade construtora o compromisso de agendar para breve o início dos trabalhos de demolição, o que, apesar das insistência do autor, nunca veio a suceder;

            - que por essa razão, o autor recorreu a juízo para fixação judicial de prazo, sendo na sequência dessa procedimento judicial, a 11 de Janeiro de 2007, resolvido o contrato que o autor havia celebrado com a sociedade de construções C.... a 05 de Janeiro de 2005;

            - que os trabalhos necessários para remoção das desconformidades existentes na obra resultaram da omissão de fiscalização da obra por parte do réu e que o seu custo total é de € 71.554,20, tendo o autor suportado desses trabalhos o valor de € 33.394,20;

            - que por causa da omissão de fiscalização da obra por parte do réu o autor despendeu mais de 150 horas do seu tempo pós-laboral, vivenciou transtornos pessoais e familiares, tensões com alguns familiares, vizinhos e colegas da empresa onde trabalha, períodos de desânimo e irritabilidade e noites mal dormidas que o levaram a receber tratamento médico e falta de produtividade no emprego que até determinou uma chamada de atenção da sua chefia.

            O réu foi citado por carta registada com aviso de recepção para, querendo, contestar, com a legal cominação.

            O réu contestou impugnando parte da factualidade articulada pelo autor na petição inicial, negando que não tenha acompanhado a execução da obra e concluindo pela total improcedência da acção invocando para o efeito, em síntese:

- a prescrição da obrigação de indemnizar accionada pelo autor em virtude do autor ter tido conhecimento das desconformidades que estribam as suas pretensões indemnizatórias entre Janeiro e Maio de 2005;

 - que alertou o empreiteiro para a existência de diversas desconformidades relativamente ao projecto, respondendo este que tais alterações tinham sido da responsabilidade do engenheiro autor do projecto;

- que manifestou a opinião técnica de que a obra não obedecia aos requisitos legais e regulamentares concordando com as conclusões dos relatórios periciais apresentados pelo autor, sugerindo e convencendo o empreiteiro a demolir o edificado e a erigir nova estrutura;

- que o autor renunciou a eventual direito de indemnização contra o réu ao optar pela via da responsabilidade contratual e restauração natural, que a presente demanda depois do autor ter optado expressamente pela via da restauração natural por parte do empreiteiro constitui abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium;

- que no caso em apreço não se preenche o requisito da ilicitude do facto e que o réu nunca atestou que as obras se encontravam em conformidade com as normas legais e regulamentares em vigor;

- que as normas legais que poderiam ser eventualmente violadas com a conduta do réu apenas tutelam interesses públicos ao nível de urbanismo, da higiene e da segurança, não tutelando o interesse do autor;

- que falta o requisito do nexo de causalidade.

            O autor replicou alegando que só a 04 de Janeiro de 2006 ficou a saber que as desconformidades de que suspeitava eram reais, que a acta subscrita pelo réu a 04 de Janeiro de 2006 tem efeito interruptivo da prescrição, que a aceitação do desempenho das funções de responsável técnico por parte do réu implica a garantia perante o dono da obra, a entidade licenciadora, a Ordem dos Engenheiros e quaisquer outras entidades intervenientes no processo de licenciamento a conformidade da construção com as especificações do projecto aprovado e as normas legais e regulamentares aplicáveis, concluindo pela improcedência das excepções arguidas pelo réu.

            A 23 de Abril de 2009, a pretexto de a acção ter por base uma relação obrigacional, declarou-se a incompetência relativa da Vara Mista de Coimbra, determinando-se a remessa dos autos para o Tribunal Judicial da Comarca de Cantanhede, tribunal do lugar da residência do réu.

            Recebidos os autos no Tribunal Judicial da Comarca de Cantanhede, a 23 de Junho de 2009, rectius a 24 de Junho de 2009, foi proferida decisão julgando a acção improcedente por não se verificar o pressuposto ilicitude do facto, em sede de responsabilidade extracontratual e, no quadro da responsabilidade contratual, por o eventual incumprimento das funções de direcção técnica por parte do réu responsabilizarem a sociedade empreiteira, ex vi artigo 800º do Código Civil, não tendo o autor direito de acção contra o réu.

            Inconformado com a decisão de improcedência da acção, o autor interpôs recurso de apelação contra a mesma, no qual formulou as seguintes e extensas conclusões:

            “1ª)- Contrariamente ao sustentado na sentença recorrida, não é o incumprimento do contrato de empreitada, celebrado com terceiro e já resolvido à data da instauração da acção, invocado na p.i. para enquadramento circunstancial do comportamento omissivo do Réu, que está em causa na presente acção;

            2ª)- O direito ao abrigo do qual o Autor pretende ser ressarcido dos prejuízos sofridos não é resultante da relação estabelecida com a empreiteira, não configurando o direito a qualquer prestação decorrente da empreitada;

            3ª)- Tais prejuízos não ocorreram em virtude da execução e, muito menos da posterior resolução daquele contrato;

            4ª)- A resolução do aludido contrato de empreitada ocorrido antes da propositura da presente acção, como alegado sob os artºs 31º e 32º da p.i., e comprovado pelos docs. 1 e 2 ora juntos, apenas permitiria exigir da empreiteira, que aqui não é parte, e não do Réu que naquele não outorgou, a restituição do que lhe foi pago uma indemnização pelo chamado interesse contratual negativo ou de confiança, nos termos do preceituado nos artºs 289º, nº 1, 433º, 801º, nº 2 e 808º, nº 1, do Código Civil,

            5ª)- o que manifestamente não aconteceu nos presentes autos.

            6ª)- Traduzindo-se a resolução na “destruição da relação contratual”, e sendo, quanto aos seus efeitos, equiparada à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico (cfr. artº 433º do CC.), é manifesto que o autor não poderia fazer valer na presente acção quaisquer direitos decorrentes do incumprimento do contrato de empreitada, ou exigir qualquer prestação suportada nos seus termos, e, muito menos, invocar a relação jurídica que lhe era subjacente, estabelecida com a sociedade empreiteira;

            7ª)- Como resulta da factualidade alegada na p.i., designadamente, sob os artºs 3º, 4º, 5º, 8º, 9º, 12º, 13º, 15º, 16º, 17º, 18º, 19º, 20º, 21º, 22º, 23º, 24º, 25º, 26º, 27º, 33º, 34º, 35º, 36º, 37º, 38º, 39º, 40º, 41º, 42º, 43º, 44º, 45º, 46º, 47º, 48º, 49º, e 50º,

            8ª)- o que o Autor peticiona é exclusivamente o ressarcimento dos danos directamente resultantes da omissão, por parte do réu, dos deveres de acompanhamento e fiscalização técnica das específicas partes da obra discriminadas sob o artigo 3º da p.i..

            9ª)- Sendo que tais danos só ocorreram, como resulta do alegado nos artºs 17º a 27º, 37º a 39º, e 43º da p.i., e é reconhecido pelo próprio Réu no documento de fls. 74, porque o Réu não estava presente a fiscalizar e dirigir, como devia, enquanto responsável pela direcção técnica da obra, a elaboração do betão e o enchimento dos pilares.

            10ª)- É esta factualidade concreta, e não o contrato de empreitada, celebrado com terceiro e já resolvido, que integra a causa de pedir na presente acção,

            11ª)- restringindo-se o pedido à indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais estritamente ocasionados pela violação, pelo Réu, dos deveres de acompanhamento e fiscalização técnica das específicas partes da obra discriminadas sob o artº 3º da p.i., decorrentes das normas legais a cujo cumprimento estava adstrito e, bem assim, da relação obrigacional, espelhada no documento de folhas 72, que, por intermédio da empreiteira, estabeleceu com o Autor.

            12ª)- Ao assim não entender, o Tribunal recorrido mal interpretou os factos alegados e documentados nos autos, violando o disposto no artº 264º, nº 2, e 664º do CPC.

            13ª)- Por outro lado, invocou o recorrente, como fundamento da sua pretensão, num primeiro plano, a responsabilidade civil extracontratual, resultante de violação pelo Réu, por omissão, dos deveres decorrentes:

            - do termo de responsabilidade que assinou no âmbito das suas formalmente assumidas funções de responsável pela direcção técnica da obra, em cumprimento do exigido pelo artº 76º, nº 1, do D.L. 555/99, de 16 de Dezembro, na redacção que lhe foi conferida pelo D.L. nº 177/2001, de 4 de Junho, e pelos artºs 3º, nº 1, alínea c), e 8º da Portaria 1105/2001, de 18 de Setembro, então aplicáveis;

            - do preceituado no do artº 15º do RGEU; e

            - do disposto nos artºs 86º, nº 5, e 87º, nº 2, do Estatuto da Ordem dos Engenheiros, aprovado pelo D.L. 119/92, de 30 de Junho.

            14ª)- Rejeitou-o a Mª Juiz recorrida por considerar que ao comportamento do Réu falta o requisito da ilicitude a “…ancorar o direito de indemnização peticionado, a título de responsabilidade civil extracontratual”

            15ª)- É sabido que a ilicitude civil, pode revestir, à luz do artº 483º, nº 1, do C. Civil, uma de duas modalidades:

            a) – a violação do direito de outrem, abrangendo esta forma de ilicitude, os direitos subjectivos absolutos, definindo-se estes “…como o poder jurídico (reconhecido pela ordem jurídica a uma pessoa) de livremente exigir ou pretender de outrem um comportamento positivo (acção) ou negativo (omissão) ou de por um acto de livre vontade, só de per si ou integrado por um acto de uma autoridade pública, produzir determinados efeitos jurídicos que inevitavelmente se impõem a outra pessoa (contraparte ou adversário).” (cfr. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição Actualizada, Coimbra Editora, pág. 169, sombreado nosso);

            b)- a violação de norma destinada a proteger interesses alheios ou disposição legal de protecção, tratando-se, nesta modalidade, da infracção “…das leis que, embora protejam interesses particulares, não conferem aos respectivos titulares um direito subjectivo a essa tutela (1); e de leis que, tendo também ou até principalmente a protecção de interesses colectivos, não deixam de atender aos interesses particulares subjacentes (de indivíduos ou de classes ou grupos de pessoas)”, aqui se integrando, desde logo, as normas penais que tutelam interesses particulares ou valores “como a vida, a integridade física, a honra, a saúde, a liberdade, a autenticidade dos documentos e das assinaturas”, as que protegem “interesses particulares, mas sem conceder ao respectivo titular um direito subjectivo, só porque um outro interesse particular mais forte se lhe sobrepõe”, e, por fim, as normas de direito económico, administrativo, fiscal ou contra-ordenacional sempre que visem “proteger interesses dos particulares, sem lhes conferir um verdadeiro direito subjectivo” (cfr. A. Varela, Das Obrigações Em Geral, Almedina 2ª Edição, Vol. I, pág. 414 a 416),

            16ª)- Sendo que, nos casos deste segundo tipo de ilicitude, para que o lesado tenha direito à indemnização, torna-se necessário que:

            a) – à lesão dos interesses do particular corresponda a violação de uma norma legal, compreendendo-se nesta expressão, em termos amplos, à luz do preceituado no artº 1º, nº 2, do C.C., todas as disposições genéricas provindas dos órgãos estaduais competentes;

            b) – a tutela dos interesses particulares figure, de facto, entre os fins da norma violada, isto é, que não seja por simples reflexo da tutela de interesses gerais indiscriminados que a respectiva protecção ocorre; e, por último,

            c) – o dano se tenha registado no círculo de interesses privados que a lei visa tutelar, ou seja, que se produza no próprio bem jurídico ou interesse privado que a lei protege.

            17ª)- Ora, o comportamento omissivo do recorrido consubstanciou tanto a violação de um direito subjectivo do recorrente, como a violação de disposições legais de protecção ao abrigo das quais o interesse particular deste se pode acolher para desencadear a obrigação de indemnização peticionada.

            18ª)- Com efeito, das normas invocadas pelo Autor, tanto as dos artigos 3º, nº 1, al. c), e 8º da Portaria nº 1105/2001, de 18 de Setembro, e respectivo Anexo, criadas por imperativo dos artºs 74º r 76º, nº 1, do D.L. 555/99, de 16 de Dezembro, na redacção que lhe foi dada pelo D.L. nº 177/2001, de 4 de Junho, então aplicáveis, que estão na génese do termo de responsabilidade assinado pelo Réu, junto a fls. 72, como as dos artºs 86º, nº 5, e 87º, nº 2, do Estatuto da Ordem dos Engenheiros, aprovado pelo D.L. 119/92, de 30 de Junho,

            19ª)- conferem ao recorrente um direito subjectivo absoluto consubstanciado no poder jurídico de legitimamente exigir do recorrido um comportamento fiscalizador positivo conforme aos deveres de direcção técnica da obra que assumiu, na qualidade de Engenheiro Civil, titular de Cédula Profissional emitida pela Ordem dos Engenheiros, que não conduza, por omissão, à deterioração do seu direito de propriedade sobre a obra em construção.

            20ª)- Tal direito subjectivo nasceu para o recorrente no momento em que o recorrido, na referida qualidade, entregou devidamente assinado o referido termo de responsabilidade, com as exactas especificações exigidas pelo artº 8º da Portaria nº 1105/2001, de 18 de Setembro, e definidas no Anexo que dela faz parte integrante, onde “para os devidos efeitos” assumiu a responsabilidade pela direcção técnica da obra de construção, com demolição, da moradia do Autor, requerente da aprovação do competente licenciamento.

            21ª)- Esta norma legal (artº 8º da Portaria nº 1105/2001, de 18 de Setembro, e Anexo), ao definir como especificações do referido termo de responsabilidade a identificação do local da obra e o nome do requerente, não pode deixar, sob pena de inutilidade do preceito, de conferir a esse requerente, como primeiro destinatário da declaração vinculativa contida nesse termo, o poder de exigir do respectivo declarante um comportamento técnico directivo daquela obra que assegure a observância das melhores leges artis da construção civil e as legais condições de segurança, com a diligência, o cuidado e a qualidade profissionais que a inscrição na Ordem dos Engenheiros, e os deveres especialmente consagrados nos artºs 86º, nº 5 e 87º, nº 2, do respectivo Estatuto, tornam legitimamente expectáveis e produtores de efeitos, legalmente atendíveis, na esfera jurídica do recorrente.

            22ª)- Ao especificar nessa norma (artº 8º da Portaria nº 1105/2001, de 18 de Setembro, e Anexo) o conteúdo do termo de responsabilidade o legislador manifestamente visou vincular quem o subscreve à realização dos competentes actos de direcção técnica da obra que concretamente aí é identificada.

            23ª)- Por outro lado, nenhum princípio jurídico, ou interesse relevante de gestão urbanística ou territorial, justifica que o dono da obra, requerente do alvará do licenciamento, seja excluído de poder exigir de quem assumiu a responsabilidade pela direcção técnica da obra o comportamento correcto inerente a tal actividade,

            24ª)- e que apenas a entidade a quem é requerida a emissão daquele possa beneficiar dessa assumpção vinculativa de responsabilidade, constante do termo que, por força do citado artº 3º, nº 1, al. c), da Portaria nº 1105/2001, obrigatoriamente tem de instruir o pedido de emissão daquele alvará.

            25ª)- O referido termo de responsabilidade consubstancia, assim, uma verdadeira declaração de aceitação, por parte do Réu, da prestação de um serviço de direcção técnica da obra de construção da propriedade do Autor, por este encomendado àquele, com a mediação da sociedade empreiteira, cujo incumprimento, por parte do Réu, a par da responsabilidade contratual que desencadeia e adiante se tratará, traduz uma violação do direito de propriedade do Autor.

            26ª)- Mal andou, assim a Mª Juiz recorrida ao considerar que o referidos normativos não conferem ao Autor qualquer direito subjectivo que possa conduzir, no caso dos autos, à verificação do requisito da ilicitude previsto no citado artº 483º, nº 1, 1ª parte,

            27ª)- Deste modo violando o disposto neste normativo legal.

            28ª)- Mas ainda que assim se não entendesse, o que só por hipótese de raciocínio se coloca, também a sentença sob recurso andou mal ao não considerar as normas invocadas pelo Autor como destinadas a proteger interesses alheios, na previsão da 2º parte do citado artº 483º, nº 1 do C.C..

            29ª)- Como refere Sinde Monteiro: “Na maior parte das vezes, as pretensões indemnizatórias por violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios coexistem com as derivadas da lesão de direitos absolutos.” (Cfr. cit. Responsabilidade Por Conselhos Recomendações ou Informações, Colecção Teses, Almedina, 1989, pág. 238).

            30ª)- É exactamente esse o caso de que nos ocupamos.

            31ª)- Com efeito, contrariamente ao sustentado na sentença recorrida:

            - da conjugação dos artºs 76º, nº 1, do D.L. nº 177/2001, de 4 de Junho, e do 3º, nº 1, al. c) e 8º da Portaria 1105/2001, de 18 de Setembro, então aplicáveis aos factos em causa, não “resulta apenas a necessidade do requerimento de licenciamento de obras ser instruído com um termos de responsabilidade pela direcção técnica da obra” (sic – cfr. fls. 8, último §, da sentença, sombreado nosso);

            - também o RGEU, e, designadamente, o respectivo artº 15º, tem um alcance que ultrapassa, em muito, o genérico “dever de observância das regras de construção em todas as obras” (sic – cfr. fls. 9, 1º §, da sentença);

            - por último, os artºs 86º, nº 5, e 87º, nº 2, do Estatuto dos Engenheiros, aprovado pelo D.L. 119/92, de 30 de Junho, ao consagrarem deveres dos engenheiros para com a comunidade e os clientes, tutelam interesses mais vastos que o interesse público na organização de uma actividade profissional socialmente relevante, ou os interesses individuais dos profissionais àquele sujeitos.

            32ª)- Em suma, contrariamente ao sustentado na sentença recorrida, os preceitos invocados pelo Autor constituem verdadeiras normas destinadas a proteger interesses alheios, tutelando, a par de interesses públicos colectivos, também por essa via, a pretensão indemnizatória que o Autor pretende acautelar através da presente acção.

            33ª)- Com efeito, todas as normas invocadas como tendo sido violadas pelo Réu (artºs 76º, nº 1, do D.L. nº 177/2001, de 4 de Junho, e do 3º, nº 1, al. c) e 8º da Portaria 1105/2001, de 18 de Setembro; artº 15º, do RGEU; e, por fim, artºs 86º, nº 5, e 87º, nº 2, do Estatuto dos Engenheiros, aprovado pelo D.L. 119/92, de 30 de Junho),

            34ª)- são provenientes dos “órgãos estaduais competentes” pelo que, à luz do artº 1º, nº 2, do C.C., constituem “disposições legais” para os efeitos previstos no artº 483, nº 1.

            35ª)- Por outro lado, no que respeita às disposições dos artºs 76º, nº 1, do D.L. 555/99, na redacção que lhe foi conferida pelo D.L. nº 177/2001, de 4 de Junho, e do 3º, nº 1, al. c) e 8º da Portaria 1105/2001, de 18 de Setembro,

            36ª)- Importa realçar que o artº 74º do D.L. 555/99, inserido na Subsecção III, da Secção IV, sob as epígrafes, respectivamente, “Alvará de Licença ou autorização” e “Validade e eficácia dos actos de licenciamento ou autorização”, preceitua que a emissão do alvará de licenciamento ou autorização de operações urbanísticas é condição de eficácia da licença ou autorização,

            37ª)- E que, por esse motivo, prescreve aquele artº 76º nº 1, que o interessado deve requerer a emissão do respectivo alvará apresentando para o efeito os elementos que vieram a ser definidos no citado artº 3º da Portaria nº 1105/2001, no que respeita a obras de edificação.

            38ª)- Por seu turno, na alínea a), do nº 1, deste artº 3º, é exigido como elementos instrutor do requerimento, um “Termo de responsabilidade assinado pelo técnico responsável pela direcção técnica da obra;”,

            39ª)- o qual é especialmente regulamentado, quanto ao conteúdo, no artº 8º da mesma Portaria nº 1105/2001 e respectivo Anexo.

            40ª)- No mesmo D.L. 555/99 é previsto, sob o artºs 63º, nº 1, um outro termo de responsabilidade, igualmente subscrito pelo responsável pela direcção técnica da obra, destinado a instruir, no final da construção, o requerimento de licença ou autorização de utilização prevista na al. f), do nº 3, do artº 4 e no artº 62º, nº 2, no qual aquele deve declarar que a obra foi executada de acordo com o projecto aprovado e com as condições da licença de construção.

            41ª)- Este termos de responsabilidade, a subscrever pelo responsável pela direcção técnica da obra na fase final do iter procedimental administrativo de edificação, pode, à luz do disposto no artº 98º, nº 1, al. e), quando sejam falsas as declarações de conformidade com o projecto aprovado e com as condições da licença de construção nele consignadas, dar origem a contra-ordenação, sem prejuízo da responsabilidade civil, criminal ou disciplinar do seu autor,

            42ª)- integrando tais falsas declarações, nos termos do preceituado no artº 100º, nº 2, o crime de falsificação de documento previsto no artº 256º do Código Penal.

            43ª)- Interpretando o conjunto destas normas à luz dos princípios consagrados no artº 9º, do C.C., não pode deixar de concluir-se que o termo de responsabilidade pela direcção técnica da obra exigido pelo artº 3º, nº 1, al. c), com as especificações do artº 8º, da Portaria nº 1105/2001, de 18 de Setembro, e seu Anexo, para a emissão do alvará de licença de construção,

            44ª)- está intrinsecamente ligado ao outro termo de responsabilidade previsto no artº 63º, nº 1, em que o mesmo responsável pela direcção técnica da obra declara ter sido esta executada em conformidade com o projecto aprovado e com as condições fixadas naquela licença de construção.

            45ª)- Na verdade, sendo manifesto que a maior parte dos elementos físicos da construção de um edifício (fundações, estruturas, paredes, canalizações, etc.) se apresenta, no final da mesma, encoberta pelos revestimentos (pinturas, azulejos, telhado, jardim, etc.),

            46ª)- só é lógica e materialmente possível ao responsável pela direcção técnica da obra atestar que a execução da mesma (facto continuado no tempo) decorreu em conformidade com o projecto aprovado e as condições fixadas na licença de construção,

            47ª)- se esse mesmo responsável, por força do termo de responsabilidade que subscreveu para ser obtido o indispensável alvará de licenciamento da construção, nos termos do citados artºs 3º, nº 1, al. c), e artº 8º, da Portaria nº 1105/2001, de 18 de Setembro, e seu Anexo, levou realmente a cabo, desde o início da construção, as acções de acompanhamento e direcção técnica da obra que assumiu neste primeiro termo de responsabilidade.

            48ª)- É assim que o primeiro termo de responsabilidade pela direcção técnica da obra, apresentado por exigência dos artºs 74º, 76º, nº 1, e artº 3º, nº 1, al. c), com as especificações do artº 8º da Portaria 1105/2001, de 18 de Setembro, e seu anexo, é condição de credibilização ou validação do termo responsabilidade exigido pelo artº 63º para o licenciamento da utilização do edifício construído,

            49ª)- Pelo que, à luz dos mencionados critérios interpretativos e à semelhança do que acontece com esta última norma (artº 63º) – para cuja infracção são estabelecidas as concretas sanções dos citados artºs 98º, nº 1, al. f) e 100º, nº 2 –

            50ª)- não pode deixar se concluir que os interesses particulares do dono da obra, requerente dos dois licenciamentos (para construção e utilização),

            51ª)- traduzidos na legítima e juridicamente atendível expectativa de um comportamento técnico directivo da obra que assegure a observância das melhores legis artes da construção civil e as legais condições de segurança desde o respectivo início, com a diligência, o cuidado e a qualidade profissionais que supõe a inscrição do responsável na Ordem dos Engenheiros,

            52ª)- igualmente figuram entre os fins tutelados pelos normativos supra indicados sob a Conclusão 34ª.

            53ª)- Pelos mesmos motivos, parece claro que, com os aludidos termos de responsabilidade, as citadas normas do D.L. 555/99 e da Portaria nº 1105/2001, de 18 de Setembro, e seu Anexo, além de tutelarem interesses colectivos ligados à segurança da comunidade,

            54ª)- visam, também, proteger o dono da obra de edificação do prejuízo que, segundo as regras da experiência e o pensamento do legislador, seguramente advirá para o seu direito de propriedade da falta de qualificada direcção técnica que acompanha a realização da obra desde o seu licenciamento inicial e ateste, no final, a conformidade da mesma com o projecto aprovado e as condições daquele.

            55ª)- Pelo que igualmente sem de concluir que os danos alegados no próprio bem jurídico ou interesse privado (o direito de propriedade do recorrente) que, a par do interesse público da segurança, essas mesmas normas também quiseram proteger.

            56ª)- Saliente-se, por fim, para melhor compreensão do sentido evolutivo da mens legislatoris, que o que supra se sustentou nas conclusões 16ª a 25ª quanto à atribuição de um direito subjectivo ao recorrente pelos normativos invocados e aplicáveis à altura dos factos, e a respectiva qualificação como disposições legais destinadas a proteger interesses alheios (Conclusões 27ª a 54ª),

            57ª)- tem hoje consagração positiva expressa no nosso ordenamento jurídico, onde, após a publicação da Lei nº 31/2009, de 3 de Julho, especificamente se encontram definidas as funções do “Director de fiscalização de obra” e do “Director de obra” (cfr. artº 3º als. D) e e)), postulados os respectivos deveres funcionais (cfr. artºs 14º e 15º, instituída a responsabilidade civil dos técnicos (cfr. artº 19º) e confirmado o termo de responsabilidade como instrumento indispensável à prossecução de tal desiderato.

            58ª)- Por outro lado, também a tutela dos interesses particulares figura entre os fins da invocada norma do artº 15º do RGEU, e os danos alegados pelo Autor se registaram no círculo de interesses privados que a mesma visa tutelar.

            59ª)- Com efeito, na linha da doutrina do citado Acórdão da Relação de Lisboa de 14/11/1996, in CJ, Ano XXI, 1996, Tomo V, página 101, onde se sumariou que “II- Aquelas normas (do R.G.E.U.), tutelando interesses públicos, protegem também interesse privados, podendo a sua violação, com base em responsabilidade civil extra-contratual, conduzir à adopção de medidas repressivas e a indemnização.” (sombreado nosso),

            60ª)- Do preceituado no artº 15º do RGEU, conjugado com outras disposições do mesmo, designadamente, a do artº 128º, perpassa a ideia que, como normativo, o mesmo se não destina apenas à definição de um dever geral de observância das regras de construção, susceptível de verificação pelos serviços do Estado e demais entidades administrativas obrigadas à salvaguarda dos interesses da comunidade, ou com vista a ser cumprido pelos técnicos a quem caiba projectar e/ou executar as edificações,

            61ª)- mas também a habilitar os particulares que recorram à edificação com um instrumento de referência construtiva que lhes permita exigir dos intervenientes com quem se relacionem para o efeito (engenheiro, arquitectos, empreiteiros, entidades licenciadoras, vizinhos, etc.) um comportamento conforme a tal dever.

            62ª)- Resulta, assim, claro que o REGEU, e designadamente, a norma do artº 15º, tem entre os seus fins a tutela dos interesses de todos os que, como o Autor, necessitem de recorrer à edificação urbana,

            63ª)- permitindo, também, que nela se ancore a pretensão indemnizatória decorrente de danos ocasionados na esfera jurídica daqueles, directamente resultantes da inobservância das regras de construção nele fixado, como aconteceu no caso dos autos. (neste sentido, o citado Acórdão do STJ de 22/10/1987, in BMJ 370º, pág. 533 e 534; com referência a um diploma similar (Regulamento de Segurança de Elevadores Eléctricos), o acórdão do STJ de 5/12/1991, in BMJ 412º, pág. 438; o Acórdão da Relação de Guimarães, CJ, Ano XXVII, 2002, Tomo Iv, págs. 273 a 277; e o Acórdão do STJ de 6/01/1988 in BMJ 373º, pág. 499 a 505).

            64ª)- Por último, também quanto às normas dos artºs 86º, nº 5, e 87º, nº 2, do Estatuto da Ordem dos Engenheiros, aprovado pelo D.L. 119/92, de 30 de Junho, se tem de concluir que a tutela dos interesses particulares figura entre os fins dessas normas e que os prejuízos reclamados na p.i. se registaram no círculo de interesses privados que as mesmas visam tutelar.

            65ª)- Com efeito, tendo-se escrito no preâmbulo do D.L. 119/92, de 30/06, que aprovou os Estatutos da Ordem dos Engenheiros, que:

            “Na elaboração do novo Estatuto ponderou-se, fundamentalmente, a necessidade de uma harmoniosa articulação entre os interesses profissionais dos engenheiros e o interesse público na melhoria da sua intervenção, não só no plano técnico, como também nas vertentes éticas e científicas.”

            E que:

            “No novo Estatuto foi também incluído um conjunto de normas de conduta que constituem um verdadeiro código deontológico e que procuram estreitar ainda mais o vínculo que necessariamente se estabelece entre o engenheiro e a sociedade em que se integra.”

            66ª)- E estatuindo o artº 86º, nº 5, o dever do engenheiro em “procurar as melhores soluções técnicas”, designadamente, nas obras que dirigir, e o artº 87º, nº 2, o de o engenheiro “prestar os seus serviços com diligência e pontualidade, de modo a não prejudicar o cliente nem terceiros, nunca abandonando, sem justificação, os trabalhos que lhe foram confiados ou os cargos que desempenhar.”

            67ª)- Forçoso é concluir que para além de estabelecerem evidentes regras de conduta, dirigidas aos engenheiros membros daquela ordem profissional, com a imediata finalidade de estes as respeitarem no exercício da sua actividade profissional,

            68ª)- tais normas não podem deixar de criar na pessoa que estabeleça relação jurídico profissional com um engenheiro a legítima expectativa de um comportamento profissional pautado pelos valores que integram tais regras de conduta.

            69ª)- Na verdade, não sendo automática a atribuição do título de engenheiro a um licenciado em engenharia, nem condição de exercício de determinadas actividades profissionais a inscrição na Ordem dos Engenheiros,

            70ª)- o traço diferenciador da actividade de um engenheiro é exactamente a sujeição deste aos deveres concretamente definidos no respectivo Estatuto, designadamente, os dos citados artºs 86º, nº 5, e 87º, nº 2.

            71ª)- É a estatuição legal de tais deveres, designadamente, os de procurar as melhores soluções técnicas nas obras que dirigir e de actuar com diligência de modo a não prejudicar o cliente ou terceiros,

            72ª)- que assegura ao interessado particular que estabeleça relação jurídico-profissional com um engenheiro, que, no desenvolvimento da sua actividade, este está vinculado a um determinado e expectável comportamento,

            73ª)- conferindo àquele interessado o direito de exigir daquele uma actuação conforme a tais deveres.

            74ª)- Não pode assim deixar de concluir-se que tais normas, a par do interesse público que encerram, visam também proteger o património de todos aqueles que, como o Autor, sejam intervenientes em relação jurídico-profissional estabelecida com um licenciado em Engenharia enquanto engenheiro inscrito na Ordem dos Engenheiros.

            75ª)- Do mesmo modo se tem de concluir que os danos produzidos, designadamente, no direito de propriedade do Autor sobre a construção em causa, por violação dos deveres consignados nos referidos artºs 86º, nº 5, e 87º, nº 2, em virtude do comportamento omissivo do Réu,

            76ª)- integram também o escopo destas normas que, assim, não podem deixar de se considerarem de protecção nos termos e para os efeitos do artº 483º, no 1, última parte do C.C..

            77ª)- Também por esses motivos, mal andou a sentença recorrida ao considerar não existir o requisito da ilicitude indispensável à verificação do primeiro dos fundamentos da pretensão indemnizatória do recorrente: a responsabilidade civil extracontratual ou delitual do recorrido,

            78ª)- Nela se violando, assim, o disposto no citado artº 483º, no 1, última parte do C.C..

            79ª)- Por último, no que respeita o segundo fundamento em que assenta a pretensão do Autor (a responsabilidade civil contratual do Réu), rejeitou-o a Mª Juiz “a quo” por considerar que:

            1º- “…as funções de direcção técnica se encontravam reservadas à empreiteira (cfr. facto provado nº 2)…

            2º- …não tendo sequer sido alegada a existência de nenhuma relação contratual estabelecida (pelo menos “directamente”) entre autor e réu.” (cfr. fls. 10, 1º §, da sentença, sombreado nosso);

            3º- a intervenção do réu foi apenas a de “auxiliar da empreiteira” no cumprimento da obrigação de direcção técnica por esta assumida (cfr. fls. 12, 3º §, da sentença, sombreado nosso);

            4º- o que está em causa nos presentes autos é “…o incumprimento do contrato de empreitada..” (sic - cfr. fls. 9, último §, da sentença, sombreado nosso);

            5º- “é o direito à prestação..” resultante da relação estabelecida com o empreiteiro que o autor pretende ver ressarcido (sic - cfr. fls. 10, 2º §, última parte da sentença, sombreado nosso).

            6º- em suma, o que o autor pretende “é que o réu seja condenado a indemnizá-lo pelos danos que sofreu em virtude da execução e posterior resolução” do contrato de empreitada  (sic - cfr. fls. 10, 7º §, da sentença, sombreado nosso).

            80ª)- Ora, salvo melhor opinião, também nesta parte da sentença, Mº Juiz “quo” andou mal já que os pressupostos supra referenciados, de onde partiu para rejeitar o fundamento da responsabilidade civil contratual, estão material e processualmente errados, como se passará a demonstrar.

            81ª)- Com efeito, foi dado como assente na sentença recorrida, e levado com o nº 2 aos “Factos Provados”, que a empreiteira, C...., se comprometeu “a assumir a direcção técnica pela execução da obra…(cfr. alínea a) do doc. de fls. 11 a 22).” (cfr.fls. 4 da sentença).

            82ª)- Tal asserção, como consta da “Motivação” de fls. 6 da mesma sentença, resultou para a Mª Juiz recorrida “da admissão por acordo das partes, em conjugação com a análise dos documentos de fls. 11 a 22(quanto aos factos nºs 1, 2 e 3)” (cfr. fls. fls. 6 da sentença) e levou-a a concluir, nos termos supra explicitados sob os pontos 1º, 2º, e 3º, que:

            - as funções de direcção técnica se encontravam reservadas à empreiteira;

            - e dado que não foi alegada a existência de relação contratual entre autor e réu;

            - a intervenção deste foi apenas a de mero auxiliar da empreiteira.

            83ª)- Ora, a circunstância de na al. a) do contrato de empreitada, celebrado em 05/01/2005, entre o recorrente e a sociedade empreiteira (fls. 11 dos autos), constar o compromisso desta em assumir “a direcção técnica pela execução da obra” não legitima aquelas conclusões da Mª Juiz “quo”.

84ª)- Desde logo porque comprometer-se a assumir a direcção técnica não significa necessariamente que a haja, na realidade, assumido, e, muito menos, que tal direcção estivesse reservada à empreiteira e vedada a outros.

85ª)- Depois, porque não figurando a sociedade empreiteira, declarante de tal compromisso no referido contrato de empreitada, como parte nos presentes autos, nunca em benefício do recorrido que naquele não outorgou, se poderia atribuir, como aliás este não fez, força probatória plena a tal documento.

86ª)- Como é pacífico na doutrina e na jurisprudência, não é possível atribuir força probatória a um documento particular da autoria de terceiro (cfr. v.g., Ac. Rel Coimbra de 30/03/1993, in BMJ, 425º, pág. 633 e o Ac. Rel. Coimbra de 4/11/1992 in BMJ, 421º, pág. 512)

87ª)- Assim, não tendo o contrato de empreitada junto a fls. 11 a 22, como documento particular outorgado entre o Autor e terceiro, força probatória plena entre as partes no presente processo, à luz do preceituado no artº 376º, nº 2, do C. Civil,

88ª)- só o que dele fosse alegado pelo Autor e admitido pelo Réu, com interesse para a decisão da causa, poderia a Mª Juiz levar aos Factos Provados.

89ª)- Ora, do clausulado de tal contrato de empreitada, o Autor, por evidente necessidade de enquadramento circunstancial do comportamento omissivo do Réu, verdadeira causa de pedir na presente acção, como supra explanado sob o ponto III,

90ª)- apenas extraiu e alegou o que consta dos artºs 1º, 2º e 3º da p.i. e foi aceite sob o artº 15º da contestação,

91ª)- Sendo que, sobre a assumpção da responsabilidade pela direcção técnica da obra, e não obstante a redacção da al. a) daquele contrato, aquilo que o Autor alegou sob os artºs 17º e 18º da p.i., sufragado no documento, não impugnado, que constitui fls. 72 dos autos, e o Réu expressamente admitiu como verdadeiro no artº 15º da sua contestação,

92ª)- é que foi o Réu quem assumiu toda a responsabilidade pela direcção técnica da obra de construção da moradia do Autor, objecto daquele contrato.

            93ª)- Era, pois, esta factualidade, admitida por acordo das partes, que a Mª Juzi “a quo” deveria ter levado, como assente, aos Factos Provados,

            94ª)- sendo manifesto o erro de que enferma a conclusão extraída na sentença recorrida de que o Réu actuou como mero auxiliar da empreiteira.

            95ª)- Por outro lado, como supra se demonstrou (cfr. precedente ponto III) não é o incumprimento do contrato de empreitada, nem o direito à prestação resultante da relação estabelecida com o empreiteiro, nem o ressarcimento dos danos decorrentes da inexecução e posterior resolução do contrato de empreitada, que está em causa na presente acção que, relembre-se, foi instaurada contra o Réu e não contra a sociedade empreiteira.

            96ª)- O contrato de empreitada não constitui ====== nem nunca poderia constituir, posto que foi objecto de resolução – cfr. artºs 31º e 32º da p.i. ====== a causa de pedir na presente acção,

            97ª)- Como referido, esta é composta pela factualidade relativa ao comportamento omissivo do Réu, ocorrido nas circunstâncias de modo, tempo e lugar alegadas nos artºs 17º a 27º, 37º a 39º, e 43º da p.i.,

            98ª)- corresponderia o pedido exclusivamente ao ressarcimento dos danos directamente resultantes desse comportamento violador dos deveres de acompanhamento e fiscalização técnica das específicas partes da obra discriminadas sob o artº 3º da p.i.,

99ª)- e não quaisquer outros danos emergentes ou lucros cessantes que legalmente poderiam ser exigíveis se em causa estivesse, que não está, o incumprimento ou a inexecução do contrato.

100ª)- Por último, não é verdade que nos autos não esteja alegada a existência de uma relação contratual estabelecida entre Autor e o Réu.

101ª)- Com efeito, basta atentar no alegado sob os artºs 17º, 18º, 19º, 20º, 37º, 38º e 39º da p.i. e os artºs 25º, 26º, 27º,, 28º 29º, 30º, 31º, 32º e 34º da réplica, e no conteúdo da Declaração de Responsabilidade que constitui fls. 72,

102ª)- para se concluir que nos autos se encontra alegada uma relação intersubjectiva que atribui ao Autor o direito a uma prestação do Réu, qual seja a de uma actuação conforme aos deveres de direcção técnica a que se vinculou.

103ª)- Na verdade, tal documento de fls. 72, subscrito pelo Réu enquanto Engenheiro Civil titular da Cédula Profissional nº ..., em data posterior à do contrato de empreitada, a solicitação do Autor que nele é devidamente referenciado, evidencia a aceitação, por parte daquele, da prestação de uma actividade profissional de direcção técnica na concreta obra de construção da moradia propriedade do Autor.

104ª)- Tal documento, conjugado com a factualidade, designadamente, dos citados artºs 25º, 26º, 27º, 28º 29º, 30º, 31º, 32º e 34º da réplica, é salvo melhor opinião, bastante para que o autor pudesse exigir a responsabilização do Réu pelos prejuízos decorrentes da violação, por omissão, dos deveres daquele emergentes.

105ª)- E se o Tribunal recorrido tivesse considerado insuficiente ou imprecisa a afirmação, feita no artº 29º da réplica, de que o Réu foi contratado pelo Autor com a mediação da sociedade empreiteira,

  106ª)- bastaria que, se assim o entendesse, lançasse mão do mecanismo de clarificação previsto no artigo 508º, nº 3, do CPC.

107ª)- Desse modo não incorreria a Mª Juiz “a quo” no manifesto erro de interpretação da factualidade alegada e documentada nos autos em que incorreu,

108ª)- ao concluir “tout court” que porque “as funções de direcção técnica se encontravam reservadas à empreiteira” ====== como vimos, com base na ilegal fixação, como Facto Provado nº 2, do compromisso de assumpção de direcção técnica por parte da empreiteira mencionado na al. a) do contrato de empreitada ====== não foi sequer alegada “a existência de nenhuma relação contratual estabelecida (pelo menos “directamente”) entre autor e réu.”.

109ª)- Mal andou, pois também aqui a Mª Juiz “a quo” ao considerar não existir, no caso dos autos, responsabilidade civil contratual do Réu,

110ª)- resultante da violação, por omissão, dos deveres decorrentes da relação jurídica que estabeleceu com Autor, espelhada no documento de fls. 72, e que constitui o segundo fundamento da pretensão indemnizatória do Autor.

111ª)- Verifica-se, assim, que o estado do processo não permitia à Mª Juiz “a quo” conhecer logo no saneador do mérito da presente causa e que, tendo-o feito, mal andou tanto na interpretação dos factos alegados e documentados nos autos ao direito, como na aplicação deste,

112ª)- O que, salvo melhor opinião, deverá conduzir à revogação da sentença sob recurso,

113ª)- Por nela se mostrar violado o disposto nos artºs 483º, nº 1, 376º, nº 2, e 798º, do C. Civil, e nos artºs 264º, nº 2, 510º, nº 1, al. b), 659º, nº 3, e 664º do C. P. Civil.”

O recorrido apresentou contra-alegações em que pugna pela prolação de convite ao recorrente para em cinco dias sintetizar as suas conclusões, sob pena de se não conhecer do recurso e, sem prejuízo de tal convite, sustenta a total improcedência do recurso.

As partes foram convidadas a, querendo, pronunciarem-se sobre a eventual ineptidão da pretensão do autor de uma compensação, a título de danos não patrimoniais, sendo o recorrente convidado a sintetizar as suas conclusões.

O autor pronunciou-se sobre a questão suscitada por este tribunal, sustentando que o pedido referente à compensação por danos não patrimoniais é um pedido genérico de acordo com o previsto no artigo 471º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, concluindo por isso pela inverificação de ineptidão parcial da petição inicial e ofereceu novas conclusões do seguinte teor:

“1ª)- Contrariamente ao sustentado na sentença recorrida, não é o incumprimento do contrato de empreitada, celebrado com terceiro e já resolvido à data da instauração da acção, invocado na p.i. para enquadramento circunstancial do comportamento omissivo do Réu, que está em causa na presente acção;

            2ª)- Como resulta da factualidade alegada na p.i., designadamente, sob os artºs 3º, 4º, 5º, 8º, 9º, 12º, 13º, 15º, 16º, 17º, 18º, 19º, 20º, 21º, 22º, 23º, 24º, 25º, 26º, 27º, 33º, 34º, 35º, 36º, 37º, 38º, 39º, 40º, 41º, 42º, 43º, 44º, 45º, 46º, 47º, 48º, 49º, e 50º,

            3ª)- o que o Autor peticiona é exclusivamente o ressarcimento dos danos directamente resultantes da omissão, por parte do réu, dos deveres de acompanhamento e fiscalização técnica das específicas partes da obra discriminadas sob o artigo 3º da p.i..

            4ª)- decorrentes das normas legais a cujo cumprimento estava adstrito e, bem assim, da relação obrigacional, espelhada no documento de fls. 72, que, por intermédio da empreiteira, estabeleceu com o autor.

            5ª)- Ao assim não entender, o Tribunal recorrido mal interpretou os factos alegados e documentados nos autos, violando o disposto no artº 264º, nº 2, e 664º do CPC.

            6ª)- Por outro lado, invocou o recorrente, como fundamento da sua pretensão, num primeiro plano, a responsabilidade civil extracontratual, resultante de violação pelo Réu, por omissão, dos deveres decorrentes:

            - do termo de responsabilidade que assinou no âmbito das suas formalmente assumidas funções de responsável pela direcção técnica da obra, em cumprimento do exigido pelo artº 76º, nº 1, do D.L. 555/99, de 16 de Dezembro, na redacção que lhe foi conferida pelo D.L. nº 177/2001, de 4 de Junho, e pelos artºs 3º, nº 1, alínea c), e 8º da Portaria 1105/2001, de 18 de Setembro, então aplicáveis;

            - do preceituado no do artº 15º do RGEU; e

            - do disposto nos artºs 86º, nº 5, e 87º, nº 2, do Estatuto da Ordem dos Engenheiros, aprovado pelo D.L. 119/92, de 30 de Junho.        

7ª)- Rejeitou-o a Mª Juiz recorrida por considerar que ao comportamento do Réu falta o requisito da ilicitude.

            8ª)- à luz do artº 483º, nº 1, do C. Civil, a ilicitude civil pode consistir na violação:

            a) – do direito de outrem, abrangendo esta forma de ilicitude, os direitos subjectivos absolutos;

            b)- de norma destinada a proteger interesses alheios ou disposição legal de protecção,

9 ª)- Sendo que, nos casos deste segundo tipo de ilicitude, para que o lesado tenha direito à indemnização, torna-se necessário que:

            a) – à lesão dos interesses do particular corresponda a violação de uma norma legal, compreendendo-se nesta expressão, em termos amplos, à luz do preceituado no artº 1º, nº 2, do C.C., todas as disposições genéricas provindas dos órgãos estaduais competentes;

            b) – a tutela dos interesses particulares figure, de facto, entre os fins da norma violada, isto é, que não seja por simples reflexo da tutela de interesses gerais indiscriminados que a respectiva protecção ocorre; e, por último,

            c) – o dano se tenha registado no círculo de interesses privados que a lei visa tutelar, ou seja, que se produza no próprio bem jurídico ou interesse privado que a lei protege.

            10ª)- Ora, o faltoso comportamento do recorrido traduziu-se, desde logo, na violação de um direito subjectivo do recorrent,.

            11ª)- surgido na sua esfera jurídica, ao abrigo das normas identificadas sob a precedente conclusão 6ª, no momento em que aquele, na qualidade de Engenheiro Civil, entregou devidamente assinado o referido termo de responsabilidade

12ª)- com as exactas especificações exigidas pelo artº 8º da Portaria nº 1105/2001, de 18 de Setembro, e definidas no Anexo que dela faz parte integrante.

            13ª)- Direito esse consubstanciado no poder jurídico do recorrente exigir do recorrido um comportamento fiscalizador positivo conforme aos deveres de direcção técnica da obra que assumiu,

            14ª)- que não conduzisse, por omissão, a deterioração do seu direito de propriedade sobre a obra em construção.

            15ª)- Ao especificar nessa norma (artº 8º da Portaria nº 1105/2001, de 18 de Setembro, e Anexo) o conteúdo do termo de responsabilidade o legislador manifestamente visou vincular quem o subscreve à realização dos competentes actos de direcção técnica da obra que concretamente aí é identificada,

16ª)- Sendo que, nenhum princípio jurídico, ou interesse relevante de gestão urbanística ou territorial, justifica que o dono da obra, requerente do alvará do licenciamento, seja excluído de poder exigir de quem assumiu a responsabilidade pela direcção técnica da obra o comportamento correcto inerente a tal actividade,

            17ª)- e que apenas a entidade a quem é requerida a emissão daquele possa beneficiar dessa assumpção vinculativa de responsabilidade, constante do termo que, por força do citado artº 3º, nº 1, al. c), da Portaria nº 1105/2001, obrigatoriamente tem de instruir o pedido de emissão daquele alvará.

            18ª)- O referido termo de responsabilidade consubstancia, assim, uma verdadeira declaração de aceitação, por parte do recorrido, da prestação de um serviço

19ª)- cujo incumprimento, a par da responsabilidade contratual que desencadeia, traduz uma violação do direito de propriedade do Autor.

            20ª)- Mal andou, assim a Mª Juiz recorrida ao considerar que o referidos normativos não conferem ao Autor qualquer direito subjectivo que possa conduzir, no caso dos autos, à verificação do requisito da ilicitude previsto no citado artº 483º, nº 1, 1ª parte,

            21ª)- Deste modo violando o disposto neste normativo legal.

            22ª)- Mas ainda que assim se não entendesse, o que só por hipótese de raciocínio se coloca, também a sentença sob recurso andou mal ao não considerar as normas invocadas pelo Autor como destinadas a proteger interesses alheios, na previsão da 2º parte do citado artº 483º, nº 1 do C.C..

            23ª)- Com efeito,  todas as normas invocadas como tendo sido violadas pelo recorrido elencadas na precedente conclusão 8ª),

            24ª)- são provenientes dos “órgãos estaduais competentes” pelo que, à luz do artº 1º, nº 2, do C.C., constituem “disposições legais” para os efeitos previstos no artº 483, nº 1.

            25ª)- Por outro lado, as disposições dos artºs 76º, nº 1, do D.L. 555/99, na redacção que lhe foi conferida pelo D.L. nº 177/2001, de 4 de Junho, e do 3º, nº 1, al. c) e 8º da Portaria 1105/2001, de 18 de Setembro,

            26ª)- interpretadas, à luz dos princípios consagrados no artº 9º, do C.C., em conjunto com as normas dos artºs 4º, nº 3, al. f), 62º, nº 2, 63º, nº 1, 74º, 98º, nº 1, al. e), e 100º, nº 2, do D.L. 555/99, e do artº 256º do Código Penal,

27ª)- impõem a conclusão que o termo de responsabilidade pela direcção técnica da obra exigido pelo artº 3º, nº 1, al. c), com as especificações do artº 8º, da Portaria nº 1105/2001, de 18 de Setembro, e seu Anexo, para a emissão do alvará de licença de construção,

            28ª)- está intrinsecamente ligado ao outro termo de responsabilidade previsto no artº 63º, nº 1, do D.L. 555/99, de 16/12, em que o mesmo responsável pela direcção técnica da obra declara ter sido esta executada em conformidade com o projecto aprovado e com as condições fixadas naquela licença de construção.

            29ª)- Sendo que aquele primeiro termo de responsabilidade pela direcção técnica da obra, apresentado por exigência dos artºs 74º, 76º, nº 1, e artº 3º, nº 1, al. c), com as especificações do artº 8º da Portaria 1105/2001, de 18 de Setembro, e seu anexo,

30ª)- é condição de credibilização ou validação do termo responsabilidade exigido pelo artº 63º para o licenciamento da utilização do edifício construído,

            31ª)- Deste modo, à luz dos mencionados critérios interpretativos e à semelhança do que acontece com esta última norma (artº 63º) – para cuja infracção são estabelecidas as concretas sanções dos citados artºs 98º, nº 1, al. f) e 100º, nº 2 –

            32ª)- não pode deixar se concluir que os interesses particulares do dono da obra, requerente dos dois licenciamentos (para construção e utilização),

            33ª)- traduzidos na legítima e juridicamente atendível expectativa de um comportamento técnico directivo da obra que assegure a observância das melhores legis artes da construção civil e as legais condições de segurança desde o respectivo início, com a diligência, o cuidado e a qualidade profissionais que supõe a inscrição do responsável na Ordem dos Engenheiros,

            34ª)- igualmente figuram entre os fins tutelados pelos normativos supra indicados sob a Conclusão 8ª.

            35ª)- Pelos mesmos motivos, parece claro que, com os aludidos termos de responsabilidade, as citadas normas do D.L. 555/99 e da Portaria nº 1105/2001, de 18 de Setembro, e seu Anexo, além de tutelarem interesses colectivos ligados à segurança da comunidade,

            36ª)- visam, também, proteger o dono da obra de edificação do prejuízo que, segundo as regras da experiência e o pensamento do legislador, seguramente advirá para o seu direito de propriedade da falta de qualificada direcção técnica que acompanha a realização da obra desde o seu licenciamento inicial e ateste, no final, a conformidade da mesma com o projecto aprovado e as condições daquele.

            37ª)- Pelo que igualmente sem de concluir que os danos alegados no próprio bem jurídico ou interesse privado (o direito de propriedade do recorrente) que, a par do interesse público da segurança, essas mesmas normas também quiseram proteger.

            38ª)- Por outro lado, também a tutela dos interesses particulares figura entre os fins da invocada norma do artº 15º do RGEU, e os danos alegados pelo Autor se registaram no círculo de interesses privados que a mesma visa tutelar.

            39ª)- Com efeito, na linha da doutrina do citado Acórdão da Relação de Lisboa de 14/11/1996, in CJ, Ano XXI, 1996, Tomo V, página 101, onde se sumariou que “II- Aquelas normas (do R.G.E.U.), tutelando interesses públicos, protegem também interesse privados, podendo a sua violação, com base em responsabilidade civil extra-contratual, conduzir à adopção de medidas repressivas e a indemnização.” (sombreado nosso),

            40ª)- Do preceituado no artº 15º do RGEU, conjugado com outras disposições do mesmo, designadamente, a do artº 128º, perpassa a ideia que, como normativo, o mesmo se não destina apenas à definição de um dever geral de observância das regras de construção, susceptível de verificação pelos serviços do Estado e demais entidades administrativas obrigadas à salvaguarda dos interesses da comunidade, ou com vista a ser cumprido pelos técnicos a quem caiba projectar e/ou executar as edificações,

            41ª)- mas também a habilitar os particulares que recorram à edificação com um instrumento de referência construtiva que lhes permita exigir dos intervenientes com quem se relacionem para o efeito (engenheiro, arquitectos, empreiteiros, entidades licenciadoras, vizinhos, etc.) um comportamento conforme a tal dever.

            42ª)- Resulta, assim, claro que o REGEU, e designadamente, a norma do artº 15º, tem entre os seus fins a tutela dos interesses de todos os que, como o Autor, necessitem de recorrer à edificação urbana,

            43ª)- permitindo, também, que nela se ancore a pretensão indemnizatória decorrente de danos ocasionados na esfera jurídica daqueles, directamente resultantes da inobservância das regras de construção nele fixado, como aconteceu no caso dos autos.

            44ª)- Por último, também quanto às normas dos artºs 86º, nº 5, e 87º, nº 2, do Estatuto da Ordem dos Engenheiros, aprovado pelo D.L. 119/92, de 30 de Junho, se tem de concluir que a tutela dos interesses particulares figura entre os fins dessas normas e que os prejuízos reclamados na p.i. se registaram no círculo de interesses privados que as mesmas visam tutelar.

            45ª)- Com efeito, tendo-se escrito no preâmbulo do D.L. 119/92, de 30/06, que aprovou os Estatutos da Ordem dos Engenheiros, que:

            “Na elaboração do novo Estatuto ponderou-se, fundamentalmente, a necessidade de uma harmoniosa articulação entre os interesses profissionais dos engenheiros e o interesse público na melhoria da sua intervenção, não só no plano técnico, como também nas vertentes éticas e científicas.”

            E que:

            “No novo Estatuto foi também incluído um conjunto de normas de conduta que constituem um verdadeiro código deontológico e que procuram estreitar ainda mais o vínculo que necessariamente se estabelece entre o engenheiro e a sociedade em que se integra.”

            46ª)- E estatuindo o artº 86º, nº 5, o dever do engenheiro em “procurar as melhores soluções técnicas”, designadamente, nas obras que dirigir, e o artº 87º, nº 2, o de o engenheiro “prestar os seus serviços com diligência e pontualidade, de modo a não prejudicar o cliente nem terceiros, nunca abandonando, sem justificação, os trabalhos que lhe foram confiados ou os cargos que desempenhar.”

            47ª)- Forçoso é concluir que para além de estabelecerem evidentes regras de conduta, dirigidas aos engenheiros membros daquela ordem profissional, com a imediata finalidade de estes as respeitarem no exercício da sua actividade profissional,

            48ª)- tais normas não podem deixar de criar na pessoa que estabeleça relação jurídico profissional com um engenheiro a legítima expectativa de um comportamento profissional pautado pelos valores que integram tais regras de conduta.

            49ª)- Na verdade, não sendo automática a atribuição do título de engenheiro a um licenciado em engenharia, nem condição de exercício de determinadas actividades profissionais a inscrição na Ordem dos Engenheiros,

            50ª)- o traço diferenciador da actividade de um engenheiro é exactamente a sujeição deste aos deveres concretamente definidos no respectivo Estatuto, designadamente, os dos citados artºs 86º, nº 5, e 87º, nº 2.

            51ª)- É a estatuição legal de tais deveres, designadamente, os de procurar as melhores soluções técnicas nas obras que dirigir e de actuar com diligência de modo a não prejudicar o cliente ou terceiros,

            52ª)- que assegura ao interessado particular que estabeleça relação jurídico-profissional com um engenheiro, que, no desenvolvimento da sua actividade, este está vinculado a um determinado e expectável comportamento,

            53ª)- conferindo àquele interessado o direito de exigir daquele uma actuação conforme a tais deveres.

            54ª)- Não pode assim deixar de concluir-se que tais normas, a par do interesse público que encerram, visam também proteger o património de todos aqueles que, como o Autor, sejam intervenientes em relação jurídico-profissional estabelecida com um licenciado em Engenharia enquanto engenheiro inscrito na Ordem dos Engenheiros.

            55ª)- Do mesmo modo se tem de concluir que os danos produzidos, designadamente, no direito de propriedade do Autor sobre a construção em causa, por violação dos deveres consignados nos referidos artºs 86º, nº 5, e 87º, nº 2, em virtude do comportamento omissivo do Réu,

            56ª)- integram também o escopo destas normas que, assim, não podem deixar de se considerarem de protecção nos termos e para os efeitos do artº 483º, no 1, última parte do C.C..

            57ª)- Também por esses motivos, mal andou a sentença recorrida ao considerar não existir o requisito da ilicitude indispensável à verificação do primeiro dos fundamentos da pretensão indemnizatória do recorrente: a responsabilidade civil extracontratual ou delitual do recorrido,

            58ª)- Nela se violando, assim, o disposto no citado artº 483º, no 1, última parte do C.C..

            59ª)- Por último, no que respeita o segundo fundamento em que assenta a pretensão do Autor (a responsabilidade civil contratual do Réu), também a Mº Juiz “quo” andou mal já que os pressupostos supra referenciados, de onde partiu para rejeitar o fundamento da responsabilidade civil contratual, estão material e processualmente errados.

            60ª)- Com efeito, foi dado como assente na sentença recorrida, e levado com o nº 2 aos “Factos Provados”, que a empreiteira, C...., se comprometeu “a assumir a direcção técnica pela execução da obra…(cfr. alínea a) do doc. de fls. 11 a 22).” (cfr.fls. 4 da sentença).

            61ª)- Tal asserção, como consta da “Motivação” de fls. 6 da mesma sentença, resultou para a Mª Juiz recorrida “da admissão por acordo das partes, em conjugação com a análise dos documentos de fls. 11 a 22 (quanto aos factos nºs 1, 2 e 3)” (cfr. fls. fls. 6 da sentença) e levou-a a concluir que:

            - as funções de direcção técnica se encontravam reservadas à empreiteira;

            - e dado que não foi alegada a existência de relação contratual entre autor e réu;

            - a intervenção deste foi apenas a de mero auxiliar da empreiteira.

            62ª)- Ora, a circunstância de na al. a) do contrato de empreitada, celebrado em 05/01/2005, entre o recorrente e a sociedade empreiteira (fls. 11 dos autos), constar o compromisso desta em assumir “a direcção técnica pela execução da obra” não legitima aquelas conclusões da Mª Juiz “quo”.

63ª)- Desde logo porque comprometer-se a assumir a direcção técnica não significa necessariamente que a haja, na realidade, assumido, e, muito menos, que tal direcção estivesse reservada à empreiteira e vedada a outros.

64ª)- Depois, porque não figurando a sociedade empreiteira, declarante de tal compromisso no referido contrato de empreitada, como parte nos presentes autos, nunca em benefício do recorrido que naquele não outorgou, se poderia atribuir, como aliás este não fez, força probatória plena a tal documento.

65ª)- Assim, não tendo o contrato de empreitada junto a fls. 11 a 22, como documento particular outorgado entre o Autor e terceiro, força probatória plena entre as partes no presente processo, à luz do preceituado no artº 376º, nº 2, do C. Civil,

66ª)- só o que dele fosse alegado pelo Autor e admitido pelo Réu, com interesse para a decisão da causa, poderia a Mª Juiz levar aos Factos Provados.

67ª)- Ora, do clausulado de tal contrato de empreitada, o Autor, por evidente necessidade de enquadramento circunstancial do comportamento omissivo do Réu, verdadeira causa de pedir na presente acção, como supra explanado sob o ponto III,

68ª)- apenas extraiu e alegou o que consta dos artºs 1º, 2º e 3º da p.i. e foi aceite pelo Réu sob o artº 15º da contestação,

69ª)- Sendo que, sobre a responsabilidade pela direcção técnica da obra, e não obstante a redacção da al. a) daquele contrato, aquilo que o Autor alegou sob os artºs 17º e 18º da p.i., sufragado no documento, não impugnado, que constitui fls. 72 dos autos,

70ª)- é que foi o Réu quem a assumiu em plenitude.

            71ª)- Era, pois, esta factualidade, admitida por acordo das partes, que a Mª Juzi “a quo” deveria ter levado, como assente, aos Factos Provados,

            72ª)- Por outro lado, como supra se demonstrou (cfr. precedente capítulo  III) não é o incumprimento do contrato de empreitada, nem o direito à prestação resultante da relação estabelecida com o empreiteiro, nem o ressarcimento dos danos decorrentes da inexecução e posterior resolução do contrato de empreitada, que está em causa na presente acção que, relembre-se, foi instaurada contra o Réu e não contra a sociedade empreiteira.

73ª)- Basta atentar no alegado sob os artºs 17º, 18º, 19º, 20º, 37º, 38º e 39º da p.i. e os artºs 25º, 26º, 27º,, 28º 29º, 30º, 31º, 32º e 34º da réplica, e no conteúdo da Declaração de Responsabilidade que constitui fls. 72,

74ª)- para se concluir que nos autos se encontra alegada uma relação intersubjectiva que atribui ao Autor o direito a uma prestação do Réu, qual seja a de uma actuação conforme aos deveres de direcção técnica a que se vinculou.

75ª)- E se o Tribunal recorrido tivesse considerado insuficiente ou imprecisa a afirmação, feita no artº 29º da réplica, de que o Réu foi contratado pelo Autor com a mediação da sociedade empreiteira,

  76ª)- bastaria que, se assim o entendesse, lançasse mão do mecanismo de clarificação previsto no artigo 508º, nº 3, do CPC.

77ª)- Desse modo não incorreria a Mª Juiz “a quo” no manifesto erro de interpretação da factualidade alegada e documentada nos autos em que incorreu,

78ª)- ao concluir que “as funções de direcção técnica se encontravam reservadas à empreiteira”, que não foi sequer alegada “a existência de nenhuma relação contratual estabelecida (pelo menos “directamente”) entre autor e réu.” E que o Réu actuou como mero “auxiliar da empreiteira”.

79ª)- Mal andou, pois também aqui a Mª Juiz “a quo” ao considerar não existir, no caso dos autos, responsabilidade civil contratual do Réu,

80ª)- resultante da violação, por omissão, dos deveres decorrentes da relação jurídica que estabeleceu com Autor, espelhada no documento de fls. 72, e que constitui o segundo fundamento da pretensão indemnizatória do Autor.

81ª)- Verifica-se, assim, que o estado do processo não permitia à Mª Juiz “a quo” conhecer logo no saneador do mérito da presente causa e que, tendo-o feito, mal andou tanto na interpretação dos factos alegados e documentados nos autos ao direito, como na aplicação deste,

82ª)- O que, salvo melhor opinião, deverá conduzir à revogação da sentença sob recurso,

83ª)- Por nela se mostrar violado o disposto nos artºs 483º, nº 1, 376º, nº 2, e 798º, do C. Civil, e nos artºs 264º, nº 2, 510º, nº 1, al. b), 659º, nº 3, e 664º do C. P. Civil.”

Colhidos os vistos legais, na ausência de qualquer questão que obste ao conhecimento do recurso, cumpre apreciar e decidir.

2. Questões a decidir

As questões a decidir, ordenadas por ordem lógica, e delimitadas pelas conclusões do recurso (artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 3, ambos do Código de Processo Civil) e sem prejuízo do conhecimento das questões de conhecimento oficioso, com respeito do princípio da proibição das decisões-surpresa (artigos 3º, nº 3, 664º e 713º, nº 2, todos do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos), são as seguintes:

1ª- admissibilidade legal de dedução de um pedido de condenação por danos não-patrimoniais em montante que o Tribunal equitativamente vier a fixar;

2ª- indevida fixação da factualidade vertida no ponto nº 2 dos factos provados;

3ª- preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito;

4ª- existência de uma vinculação contratual do réu ao autor e consequente responsabilidade contratual por violação, por omissão, das obrigações assumidas.

 3. Da regularidade da instância

Enunciou-se como primeira questão a decidir, a questão da admissibilidade legal da dedução de um pedido de condenação por danos não-patrimoniais em montante que o Tribunal equitativamente vier a fixar.

Nos termos do disposto no artigo 467º, nº 1, alínea e), do Código de Processo Civil, na petição, com que propõe a acção, deve o autor, formular o pedido.

O pedido formulado pelo autor (ou reconvinte, se tiver sido deduzida reconvenção), delimita a actividade de cognição do tribunal na fase da sentença (artigo 661º, nº 1, do Código de Processo Civil), já que não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que tiver sido peticionado.

No entanto, nalguns casos, a lei permite a dedução de pedidos genéricos, isto é, pedidos em que não vem ainda concretizado o quantitativo exacto peticionado, o qual se definirá em incidente ulterior à prolação da sentença, nos termos previstos no artigo 378º do Código de Processo Civil (artigo 471º do Código de Processo Civil). Porém, só existe pedido genérico quando é formulado pedido de condenação à entrega de universalidade de facto ou de direito ou ao pagamento de montante, tudo a liquidar em momento ulterior.

A falta de formulação de pedido determina a ineptidão da petição inicial (artigo 193º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Civil), vício insanável, em princípio, com excepção dos casos previstos no nº 3 do artigo 193º do Código de Processo Civil e de conhecimento oficioso já que determina a nulidade de todo o processo (artigos 193º, nº 1 e 288º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil). 

A formulação de um pedido pela parte que demanda a tutela jurídica constitui um meio de garantir a imparcialidade do tribunal, já que, doutro modo, seria o tribunal a proceder à definição da tutela jurídica aplicável, sem que a parte interessada nisso interessada tomasse posição.

Nesse contexto, poderia a parte contrária duvidar do estatuto de imparcialidade do tribunal, na medida em que seria este a proceder à definição da tutela aplicável e independentemente de uma qualquer pretensão da parte interessada. Daí que, só em casos contados, em matéria de direito civil, o tribunal tenha poderes para não se cingir aos meios de tutela concretamente formulados e isso apenas na tutela cautelar e nos casos dos denominados processos de jurisdição voluntária (vejam-se os artigos 392º, nº 3 e 1410º, ambos do Código de Processo Civil).

No caso dos autos, coloca-se a questão de saber se existe pedido de condenação do réu no pagamento de uma compensação a título de danos não patrimoniais.

Nos termos do disposto no artigo 496º, nº 3, do Código Civil, o montante da compensação por danos não patrimoniais será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º.

No entanto, a circunstância da fixação da compensação por danos não patrimoniais resultar de uma fixação equitativa pelo tribunal, não dispensa o titular do direito a tal compensação de formular essa pretensão de modo líquido ou ilíquido.

Ora, no caso dos autos, o autor limitou-se a formular a sua pretensão remetendo para a formulação legal do nº 3 do artigo 496º do Código Civil, sem manifestar qualquer delimitação quantitativa dessa pretensão e sem tão pouco revelar que com recurso a tal formulação apenas pretende remeter para momento ulterior a liquidação de tal compensação.

Atente-se ainda que, ao arrepio do disposto no artigo 308º, nº 4, do Código de Processo Civil, o autor não atribuiu valor a tal pedido, nem alegou a impossibilidade de no momento da propositura da acção proceder à quantificação do montante da compensação por danos não patrimoniais. Aliás, se bem se atentar nos danos invocados para estribar a compensação peticionada, constata-se que já se acham todos consumados, não havendo qualquer alegação de que os mesmos se continuam a verificar, pelo que por este prisma, nem se divisa qualquer razão que obste à sua imediata liquidação na acção declarativa.

A pretensão do autor de que o tribunal lhe arbitre uma compensação por danos não patrimoniais fixando-a equitativamente configura-se assim como um pedido de condenação vago e abstracto gerador de ineptidão[1].

Na verdade, neste circunstancialismo, tudo se passa como se o autor não tivesse formulado um pedido, sendo o pedido de condenação, sem especificação da prestação líquida ou ilíquida visada com a condenação, equivalente a uma total falta de pedido, pois não tem aptidão para delimitar objectivamente a actividade cognitiva e decisória do Tribunal.

É que um pedido como o ora em apreciação, não permite sequer aferir da existência de sucumbência do autor e coloca o tribunal na posição de determinar uma compensação por danos não patrimoniais sem que a parte interessada tome uma efectiva e concreta posição sobre o montante que reputa adequado para compensação dos danos cujo reconhecimento judicial peticiona.

A ineptidão da petição inicial gera a nulidade de todo o processo, como já antes referimos. Esta estatuição resulta do legislador apenas ter previsto as situações de unidade de pedido ou de pluralidade de pedidos que mutuamente se repelem (os casos de incompatibilidade substancial de pedidos). Porém, no caso dos autos, existe uma cumulação real de pedidos (artigo 470º do Código de Processo Civil), sendo que a outra pretensão indemnizatória deduzida pelo autor não enferma do vício que se detecta relativamente à pretensão de compensação por danos não patrimoniais.

Neste contexto, afigura-se-nos que a nulidade legalmente cominada na lei para o vício de falta de formulação de pedido apenas atinge o pedido que se concluiu estar viciado, bem como a fundamentação aduzida exclusivamente para sustentar esta pretensão.

Assim, face ao exposto, em virtude do pedido formulado pelo autor e referente a compensação por danos não patrimoniais não obedecer aos requisitos legais deve o tribunal abster-se de conhecer de tal pedido, absolvendo-se o réu da instância no que tange esta pretensão e declarando-se a nulidade do processo, neste segmento.

4. Fundamentos

4.1 Supressão do facto provado nº 2

O autor insurge-se nas suas alegações de facto contra o facto provado na decisão sob censura sob o nº 2.

O recorrente fundamenta a sua insatisfação na alegação de que o documento em que se firmou a fixação de tal factualidade não tem força probatória plena por ter sido outorgado pelo autor e por um terceiro, pelo que só o que dele fosse alegado pelo autor e admitido pelo réu, com interesse para a decisão da causa, poderia a Sra. Juíza levar aos factos provados.

Os documentos são meios de prova mas, apesar dessa natureza, admite-se que por si próprios constituam forma válida de alegação de factos[2].

No caso dos autos, o autor ofereceu para instruir a sua petição inicial um contrato por si celebrado com uma sociedade comercial. Essa prova documental oferecida pelo autor não sofreu qualquer impugnação por parte do réu e, ao invés, resulta do artigo 15º da contestação que expressamente admitiu o documento como genuíno, bem como o seu conteúdo.

Apesar do autor ter extractado na petição apenas parte das declarações contidas nesse documento, o certo é que o mesmo corporiza um acto negocial incindível. Por isso, salvo melhor opinião, o autor não pode pretender aproveitar-se apenas dos segmentos desse documento que lhe interessam, olvidando os que lhe são adversos e pretender com tal procedimento impedir que a parte contrária ou o tribunal, no exercício dos seus poderes (artigo 264º, nº 2, do Código de Processo Civil), conheçam de todos os factos que resultam do oferecimento de tal prova documental.

Na medida em que desse documento constem factos relevantes para a justa composição do litígio, pode e deve o tribunal tomá-los em conta.

A factualidade que o autor pretende ver suprimida consta da alínea a) do ponto A do contrato de empreitada oferecido pelo autor.

Nessa cláusula, a sociedade C...., entre outros compromissos, obrigou-se a assumir a direcção técnica da obra e o fornecimento do plano de segurança, saúde e higiene da obra.

A assunção deste compromisso, na data da celebração do contrato de empreitada, tal como refere o recorrente, não obsta a qualquer outro ajuste posterior.

No entanto, o que parece líquido é que na data da conclusão do negócio entre o autor e a sociedade construtora foi este o acordo quanto a esta matéria e o sentido da matéria assente é apenas este.

Assim, face ao exposto, atenta a admissão pelo réu do conteúdo do documento oferecido pelo autor e a sua pertinência para o objecto destes autos, deve manter-se a factualidade assente sob o ponto nº 2 da decisão sob censura.

4.2 Fundamentos de facto resultantes da decisão da matéria de facto proferida pela primeira instância que este tribunal decidiu manter, pelas razões que precedem e porque os elementos do processo não impõem decisão diversa, nem foi admitido documento superveniente com virtualidade para infirmar aquela decisão (artigo 712º, nº 1, do Código de Processo Civil) e dos documentos supervenientes oferecidos pelo recorrente e não impugnados pelo recorrido


4.2.1

            A 05/01/2005, o autor celebrou com a Sociedade de Construções C...., com sede na ..., NIPC ... matriculada na Conservatória do Registo Comercial de ... sob o nº ..., com o capital social de 25.000,00 €, um acordo para construção de uma moradia, com demolição, no prédio misto sito no ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz dessa freguesia sob os artigos ...º - urbano, e ...º - rústico, e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ....

4.2.2

            Através do referido acordo, a sociedade C.... comprometeu-se, entre o mais, a executar todos os serviços com materiais, de acordo com a identificação descrita nas fases de execução enunciadas no referido acordo, bem como, com o projecto de arquitectura e especialidades, aprovado pela Câmara Municipal de ..., cumprindo o prazo de execução estabelecido no acordo, mais se comprometendo a assumir a direcção técnica pela execução da obra e o fornecimento do plano de segurança, saúde e higiene da obra.

4.2.3

            Foi ainda convencionado entre o autor e a referida sociedade C.... que esta procederia, entre outros, aos seguintes trabalhos:

            “(…)

            5 – Edificação das paredes exteriores da cave, por um pano de betão armado e blocos de cimento pré-fabricados, 50x20x28 de caixa de ar, de acordo com o projecto de estrutura e arquitectura.

            6 – Colocação da laje de tecto da cave e terraços à cota da cave, composta por vigotas pré-esforçado abobadilhas de barro, de acordo com os projectos de estrutura. (…)

            8 – Edificação das paredes exteriores e interiores, do r/chão, alvenaria de tijolo de acordo com o prescrito em projecto.

            9 – Colocação de laje de tecto do r/chão, composta por vigotas pré-esforçado abobadilhas de barro, de acordo com os projectos de estrutura.

            10 – Construção das escadas exteriores e interiores de acesso ao 1º andar, e betonagem da laje juntamente com a escada e respectiva estrutura, de acordo com os projectos de estrutura.

            (…)

            12 – Colocação da laje de tecto do 1º andar composta por vigotas pré-esforçado abobadilhas de barro, e betonagem da estrutura e laje de acordo com os projectos de estrutura.

13 – Edificação das paredes da caixa do vão do sótão, e muretes das platibandas das coberturas horizontais, alvenaria de tijolo de acordo com o prescrito em projecto.

(...)

15 – Constituição das paredes exteriores, por dois panos de tijolo 30x20x11 com caixa de ar intermédia, e isolamento térmico composto por placas de poliuretereno , C de 0,03 cm de espessura....

16 – Constituição das paredes interiores, por um pano simples de tijolo 30x20x11, 30x20x15 e 30x20x20.


4.2.4

            A obra foi iniciada em Janeiro de 2005.

4.2.5

            Em Maio, Setembro e no final de Dezembro de 2005, verificou-se a existência de deficiências na obra já executada, designadamente:

            - não aplicação de betão B 25/C20, como impunha o projecto de estruturas, mas betão feito em obra, com menos cimento e areia que não é a tecnicamente recomendada e de qualidade e resistência muito inferiores àquele (isto é, o betão devia ter no mínimo 25 MPa e, nalguns casos, tinha apenas 2 MPa;

            - as vigas e vigotas construídas apresentavam dimensões inferiores às constantes do projecto (deveriam ter 45 cms. de largura e apenas tinham 30 cms., o que equivale a uma diminuição da resistência na ordem dos 70 %);

            - algumas dessas vigas já se encontravam estaladas na parte inferior, com fissuras a meio dos respectivos vãos, quando, sobre elas, ainda não estavam edificadas quaisquer paredes;

            - as vigotas da laje de tecto do R/C encontravam-se aplicadas contrariamente ao projecto, com orientação perpendicular à definida neste;

- a espessura de todas as lajes era inferior e o espaçamento das vigotas era inferior ao especificado no projecto.


4.2.6

            A resolução mais prática e com menores custos das deficiências referidas em 4.2.5, consistia na demolição das partes da obra já edificadas e a sua subsequente reconstrução.

4.2.7

            O réu elaborou e assinou uma declaração de responsabilidade, datada de 10/01/2005, no exercício da sua actividade profissional de Engenheiro Civil, sendo titular da Cédula Profissional nº ..., pela direcção técnica da obra objecto do acordo identificado em 4.2.1.

4.2.8

            Em 4 de Janeiro de 2006, no local da obra referida em 4.2.1, realizou-se uma reunião em que estiveram presentes o autor, o réu, na qualidade de director técnico, o gerente da sociedade C.... – Senhor M.....– e o Engenheiro N...., como responsável pelas peritagens efectuadas.

4.2.9

            Em tal reunião, foi conjuntamente inspeccionada a obra e verificada a existência das deficiências mencionadas em 4.2.5.

4.2.10

            Segundo o gerente da sociedade C.... as deficiências mencionadas teriam ocorrido em virtude de ter deixado no local 26 sacos de cimento apenas para alguns pilares e o subempreiteiro ter dividido o cimento pelos pilares todos.

4.2.11

            Pelos presentes na referida reunião foi concluído que a obra em causa tinha de ser demolida pelo menos até ao nível da laje da cave e, posteriormente, reconstruída.

4.2.12

            O sócio gerente da C...., M..., assumiu o compromisso de agendar data breve para o início dos trabalhos de demolição.

4.2.13

            Os trabalhos de demolição e os de reconstrução não foram efectuados.

4.2.14

            A... instaurou contra C...., no Tribunal Judicial da Comarca de Cantanhede, acção especial para fixação de prazo que sob o nº 974/06.8TBCNT veio a correr no 2º juízo daquele tribunal, tendo sido proferida sentença a 30 de Novembro de 2006 e transitada em julgado a 16 de Dezembro de 2006, na qual foi fixado o prazo de trinta dias para os trabalhos de demolição identificados nos artigos 4º e 16º da petição inicial.

4.2.15

            A 09 de Julho de 2007, por via postal registada, A... remeteu a M... carta do seguinte teor:

            “Exmº Senhores:

            Tendo decorrido o prazo de 30 dias fixado na sentença proferida em 30/11/2006, no processo epigrafado [processo nº 974/06.8TBCNT, do 2ª juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Cantanhede], sem que essa empresa tivesse procedido aos trabalhos de demolição identificados nos artigos 4º e 16º da Petição Inicial daquela Acção. constituiu-se a mesma em mora no cumprimento dessa obrigação contratual.

            Assim, venho por este meio conceder um prazo suplementar até ao p.f. dia 24 de Janeiro de 2007 para que essa empresa realize os trabalhos de demolição acima mencionados, sob pena de, não o fazendo, se considerar resolvido para todos os efeitos legais o contrato de empreitada supra identificado.”

            5. Fundamentos de direito

            5.1 A decisão sob censura foi proferida na fase do despacho saneador, sem que se tenha iniciado a fase processual da instrução.

            O conhecimento directo do pedido em tal fase processual é viável sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória (artigo 510º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil).

            Na nossa perspectiva, o normativo que se acaba de citar deve ser conjugado com o disposto no artigo 511º, nº 1, do Código de Processo Civil e de acordo com o qual a selecção da matéria de facto relevante para a decisão da causa, deve ser efectuada tendo em atenção as várias soluções plausíveis da questão de direito.

Neste termos, afigura-se-nos que o conhecimento directo do pedido na fase da prolação do despacho saneador apenas é lícito se a factualidade assente for suficiente tendo em conta as diversas soluções plausíveis da questão de direito.

Assim, nessa fase, ainda que a factualidade já assente seja suficiente para conhecer directamente do pedido, de acordo com a perspectiva jurídica do juiz do processo, deve este abster-se de tal conhecimento se acaso subsistir factualidade controvertida e outras soluções jurídicas forem plausíveis, não sendo os factos já assentes bastantes para decidir de acordo com tais outras perspectivas[3]. É que, a proceder de outro modo, podem os factos já assentes ser insuficientes para o julgamento do caso de acordo com outra perspectiva jurídica, em sede de recurso.

Esta interpretação é a que mais se coaduna com o conteúdo do direito fundamental de acesso ao direito na vertente de processo equitativo e também é a que evita retrocessos processuais causados pela necessidade ulterior de ampliação da base de facto.

            Por isso, neste momento, não há que tomar uma posição definitiva sobre o direito material aplicável, mas apenas ajuizar se além da posição jurídica seguida na decisão sob censura, outras são plausíveis. Nesta última eventualidade, se acaso os factos necessários para o conhecimento directo do pedido de acordo com tal ou tais perspectivas ainda não se mostrarem assentes, deverão os autos prosseguir os seus termos.

            Nas suas alegações de recurso, o recorrente identifica duas fontes em concurso que estribariam as suas pretensões indemnizatórias: de um lado a responsabilidade por facto ilícito; de outro lado, a responsabilidade contratual.

            Na petição inicial, pelos fundamentos jurídicos invocados pelo autor, parece que apenas se enquadrou o caso no domínio da responsabilidade extracontratual, não sendo a mera referência à violação do dever de direcção técnica bastante para considerar uma alusão à responsabilidade contratual, na medida em que configurada a situação como de responsabilidade por omissão é imprescindível a identificação de um dever legal ou negocial que haja sido violado (artigo 486º do Código Civil).

            Porém, na réplica, o autor esboçou uma ampliação da causa de pedir, rectius uma cumulação sucessiva de outra causa de pedir, ao menos na sua vertente estritamente jurídica, ensaiando o enquadramento do caso também no seio da responsabilidade contratual (vejam-se os artigos 31º e 34º da réplica).

              Antes de mais, analisemos se é plausível a responsabilização do réu por conduta omissiva e ao abrigo do instituto da responsabilidade civil por factos ilícitos.
O artigo 483º, nº 1, do Código Civil prescreve que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”
“As simples omissões dão lugar à obrigação de reparar os danos, quando, independentemente dos outros requisitos legais, havia, por força da lei ou do negócio jurídico, o dever de praticar o acto omitido” (artigo 486º do Código Civil).

Na classificação do Professor Antunes Varela, os pressupostos da obrigação de indemnizar com base em facto ilícito são:

a) o facto (facto humano controlável ou dominável pela vontade);

b) a ilicitude do facto (nas modalidades de violação de direitos subjectivos ou de disposições legais destinadas a tutelar interesses alheios);

c) o nexo de imputação do facto ao agente (que coenvolve a imputabilidade e a culpa);

d) o dano;

e) o nexo causal entre o facto e o dano.

No caso concreto, a questão coloca-se com acuidade no que respeita o preenchimento do requisito da ilicitude do facto, não se questionando o preenchimento do primeiro pressuposto da obrigação de indemnizar com base em facto ilícito, ou seja o facto, enquanto facto humano controlável ou dominável pela vontade.

            A ilicitude do facto pode resultar da violação de um direito subjectivo absoluto ou da violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios.

            O recorrente sustenta nas suas alegações que ambas as modalidades de ilicitude do facto se verificam no caso em apreço.

Quanto à primeira modalidade da ilicitude do facto, o recorrente afirma que ela resulta de o réu, por omissão do dever de fiscalização que sobre ele impendia, ter violado o seu direito de propriedade, direito real oponível a todos e por isso absoluto.

            A factualidade já assente permite concluir que o réu assumiu a responsabilidade pela direcção técnica da obra de construção de moradia com demolição, sita no ..., ..., concelho de ... e cuja aprovação foi requerida por A....

Mais resulta da factualidade assente que a construção da morada se efectivaria com materiais fornecidos pela sociedade construtora em prédio da propriedade do autor.

            Neste contexto, há que chamar à colação o nº 2 do artigo 1212º do Código Civil, normativo que prescreve que “no caso de empreitada de construção de imóveis, sendo o solo ou a superfície pertença do dono da obra, a coisa é propriedade deste, ainda que seja o empreiteiro quem fornece os materiais; estes consideram-se adquiridos pelo dono da obra à medida que vão sendo incorporados no solo.”

            Na versão do autor, se acaso o réu tem cumprido o seu dever de fiscalização, não teria sido executada a obra de modo defeituoso, ter-se-ia impedido a efectivação das obras com as desconformidades apontadas.

Porém, se assim é, a omissão de fiscalização imputada ao réu ocorreu no momento em que as coisas foram sendo incorporadas no prédio de que o autor é dono. Tal momento, se bem pensamos, é logicamente anterior ao da própria incorporação dos materiais no solo propriedade do autor, pois que doutro modo não se vê como poderia a fiscalização exercida pelo réu obstar à execução da obra em desconformidade com o acordado e projectado. E, nesse momento, anterior à incorporação dos materiais no solo propriedade do autor, não se pode configurar uma violação do direito de propriedade do autor por força da alegada omissão de fiscalização por parte do réu.

            O instituto da responsabilidade civil, na tutela de posições jurídicas absolutas é um mecanismo de tutela estático, no sentido de visar a tutela de posições jurídicas já existentes: um imóvel com certa configuração, um certo direito de personalidade.

            No caso dos autos, o ataque ao direito de propriedade que o autor imputa ao réu consiste na efectivação de uma construção desconforme com o contratado e projectado em virtude do réu não ter exercido os seus deveres de direcção técnica da obra.

            Assim, nesta perspectiva, não existe uma conduta omissiva do réu violadora do direito de propriedade do autor, na medida em que o direito de propriedade do autor sobre as coisas executadas em desconformidade só surge após a alegada violação do dever de fiscalização por parte do réu.

            Do que precede, resulta que não se preenche a primeira modalidade de ilicitude do facto, na vertente de violação de um direito de outrem, mais propriamente o direito de propriedade do autor.

            Analisemos agora se estão reunidos no caso dos autos, em termos da requerida plausibilidade jurídica, dos requisitos da segunda modalidade de ilicitude do facto.

Nesta modalidade de ilicitude do facto requer-se a violação de uma disposição legal destinada à protecção de interesses alheios, desde que a lesão se verifique no círculo dos bens que a lei visou tutelar[4].

             Na petição inicial, o autor apenas indicou normas do Código Civil para fundamentar juridicamente a sua pretensão.

Na réplica, o autor veio indicar como sustentáculo jurídico das suas pretensões os artigos 76º, nº 1, do decreto-lei nº 555/99, de 16 de Dezembro, na redacção que lhe foi dada pelo decreto-lei nº 177/2001, de 4 de Junho, os artigos 3º, nº 1, alínea c) e 8º, da Portaria nº 1105/2001, de 18 de Setembro, o artigo 15º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas e os artigos 86º, nº 5 e 87º, nº 2, do Estatuto da Ordem dos Engenheiros, aprovado pelo decreto-lei nº 119/92, de 30 de Junho.

Nas alegações de recurso, o autor mantém as referências normativas indicadas na réplica e indica ainda como elemento confortador da sua argumentação o regime emergente da Lei nº 31/2009, de 3 de Julho.

            Antes de avançar na identificação dos interesses protegidos pelas normas indicadas pelo recorrente, recordemos cada uma das citadas previsões legais.

            Nos termos do disposto no artigo 76º do decreto-lei nº 555/99, de 16 de Dezembro, na redacção introduzida pelo decreto-lei nº 177/2001, de 04 de Julho, “o interessado deve, no prazo de um ano a contar da data da notificação do acto de licenciamento ou autorização, requerer a emissão do respectivo alvará, apresentando para o efeito os elementos previstos em portaria aprovada pelo Ministro do Ambiente e do Ordenamento do Território.”

            Por seu turno, de acordo com o previsto no artigo 3º, nº 1, alínea c), da Portaria nº 1105/2001, de 18 de Setembro, “o pedido de emissão de alvará de licenciamento ou de autorização de obras de edificação deve ser instruído com os seguintes elementos:

            c) Termo de responsabilidade assinado pelo técnico responsável pela direcção técnica da obra”, termo de responsabilidade que obedece às especificações definidas no anexo à citada portaria (artigo 8º, da Portaria nº 1105/2001, de 18 de Setembro).

            Nos termos do artigo 15º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo decreto-lei nº 38382, de 07 de Agosto de 1951, “todas as edificações, seja qual for a sua natureza, deverão ser construídas com perfeita observância das melhores normas da arte de construir e com todos os requisitos para que lhes fiquem asseguradas, de modo duradouro, as condições de segurança, salubridade e estética mais adequadas à sua utilização e às funções educativas que devem exercer.”

            No preâmbulo do decreto-lei nº 38382, de 07 de Agosto de 1951, refere-se que o Regulamento Geral das Edificações Urbanas “interessa, em primeiro lugar, aos «serviços do Estado e dos corpos administrativos» - a estes em especial -, pela função directiva e disciplinadora que, através daquele instrumento legal, lhes cabe exercer sobre as actividades relacionadas com as diferentes espécies de edificações, salvaguardando os interesses da colectividade, impondo respeito pela vida e haveres da população e pelas condições estéticas do ambiente local, criando novos motivos de beleza e preservando ou aperfeiçoando os já existentes, tudo de modo a tornar a vida da população mais sadia e agradável e a dar aos núcleos urbanos e rurais um desenvolvimento correcto, harmonioso e progressivo.”

Nos termos do disposto no artigo 86º, nº 5, do Estatuto da Ordem dos Engenheiros, aprovado pelo decreto-lei nº 119/92, de 30 de Junho, “o engenheiro deve procurar as melhores soluções técnicas, ponderando a economia e a qualidade da produção ou das obras que projectar, dirigir ou organizar.”

“O engenheiro deve prestar os seus serviços com diligência e pontualidade, de modo a não prejudicar o cliente nem terceiros, nunca abandonando, sem justificação, os trabalhos que lhe forem confiados ou os cargos que desempenhar” (artigo 87º, nº 2, do Estatuto da Ordem dos Engenheiros).

As duas previsões legais que se acabam de citar inserem-se no Capítulo III, do Estatuto da Ordem dos Engenheiros, capítulo intitulado “deveres decorrentes do exercício da actividade profissional”.

Rememorados os normativos que o recorrente invoca como sustentáculo das suas pretensões indemnizatórias, cumpre agora identificar os interesses que tais normativos visam tutelar.

Uma das tarefas fundamentais do Estado é o de assegurar um correcto ordenamento do território (artigo 9º, alínea e), da Constituição da República Portuguesa), tarefa que se projecta nos direitos sociais de habitação e urbanismo (artigo 65º da Constituição da República Portuguesa) e no direito do ambiente (artigo 66º, nº 2, alínea b) e e), da Constituição da República Portuguesa). Logo no plano constitucional é visível o entrecruzar de interesses públicos e de carácter colectivo com interesses particulares dos interessados, beneficiados ou afectados pelas operações de ordenamento do território.

O direito da construção, enquanto segmento normativo do direito da edificação contém “prescrições de direito público relativas à criação de novas edificações e das suas vicissitudes, segundo critérios de segurança, durabilidade estética, qualidade, salubridade, conforto, reserva da intimidade privada, funcionalidade e economia de recursos energéticos”[5].

“Todos os factos relevantes relativos à execução de obras licenciadas ou autorizadas devem ser registados pelo respectivo director técnico no livro de obra, a conservar no local da sua realização para consulta pelos funcionários municipais responsáveis pela fiscalização de obras” (artigo 97º, nº 1, do decreto-lei nº 555/99, de 16 de Dezembro), fiscalização que se destina a “assegurar a conformidade das operações urbanísticas com as disposições legais e regulamentares aplicáveis e a prevenir os perigos que da sua realização possam resultar para a saúde e segurança das pessoas” (artigo 97º, nº 1, do decreto-lei nº 555/99, de 16 de Dezembro).

Os normativos que se acabam de citar evidenciam de forma clara que a intervenção do director técnico visa garantir que a execução da obra obedece aos projectos apresentados e às exigências impostas pela administração. Dentre os diversos projectos que instruem o processo de licenciamento das obras de edificação deve destacar-se pela sua pertinência com o caso dos autos o projecto de estabilidade (veja-se o artigo 11º, nº 5, alínea a), da Portaria nº 1110/2001, de 19 de Setembro).

A fiscalização exercida pelo director técnico da obra, no que respeita o projecto de estabilidade, visa não só garantir a conformidade da obra executada com o projecto, mas também, necessariamente, garantir condições de segurança para os que trabalham na obra, para os que poderão vir a ocupar a obra, nomeadamente o seu dono e para todos aqueles que possam vir a achar-se em contacto com o edifício construído. O cumprimento do projecto de estabilidade dá garantias de que a construção não virá pôr em perigo todos aqueles que podem vir a ter contacto com a obra ou a estar nas suas proximidades.

Assim, afigura-se-nos que as normas relativas ao regime jurídico de urbanização e aos deveres impostos ao director técnico da obra têm carácter bifronte, na medida em que visam tutelar interesses de ordem pública e colectiva, mas também interesses particulares. Não por acaso, o Sr. Professor Antunes Varela indicava como exemplo de norma de protecção relevante para a modalidade de ilicitude consistente na violação de lei que protege interesses alheios, certas infracções da construção civil[6]. Por isso, ao invés do sustentado na decisão sob censura, afigura-se-nos sustentável juridicamente a afirmação da existência de ilicitude na conduta omissiva imputada ao réu.

Esta conclusão prejudica a análise do escopo de protecção das normas do Estatuto dos Engenheiros invocadas pelo autor, bem como da verificação dos pressupostos do nascimento da obrigação de indemnizar com base em responsabilidade contratual.

Ainda assim, sempre se dirá que as normas citadas do Estatuto dos Engenheiros são claras na afirmação de que a imposição dos deveres de diligência e que visam a tutela não só do cliente mas também de terceiros, pelo que também por este prisma, se acaso se confirmar a violação de deveres profissionais por parte do réu, o terceiro prejudicado poderá com tal fundamento normativo intentar a responsabilização do engenheiro incumpridor.

Finalmente, no que respeita a responsabilidade contratual, que o próprio autor parece admitir que possa pecar de alguma insuficiência fáctica (vejam-se as conclusões 75ª e 76ª lipoaspiradas, aliás sintetizadas), sempre seria caso, ao menos, de ponderar a eventual existência de um contrato com eficácia de protecção de terceiros[7] ou de um contrato com encargo para terceiro[8].

Por tudo quanto precede, conclui-se que é prematura a decisão final do caso na fase do despacho saneador e com os fundamentos aduzidos, já que é juridicamente plausível o entendimento do autor de que, a provarem-se os factos por si alegados, a omissão do réu foi ilícita. Por isso, deve a decisão sob censura ser revogada, prosseguindo os autos, salvo no que tange a pretensão de compensação por danos não patrimoniais, com condensação da factualidade relevante, isto sem prejuízo de outro obstáculo a tal prosseguimento que venha a ser identificado e que exorbite do objecto desta decisão.

6. Dispositivo

Pelo exposto, julgando parcialmente procedente o recurso de apelação interposto nestes autos pelo autor, acordam os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível deste Tribunal da Relação de Coimbra no seguinte:

a) em declarar a ineptidão do pedido formulado pelo autor de compensação por danos não patrimoniais, bem como a nulidade do processo no segmento referente a tal pedido, absolvendo-se o réu da instância, nesta parte;

b) em revogar totalmente a decisão proferida com data de 24 de Junho de 2009, determinando-se que os autos prossigam com a condensação da factualidade relevante para a boa decisão da causa, de acordo com as soluções plausíveis das questões de direito, salvo se outro obstáculo a tal prosseguimento for identificado e que exorbite do objecto desta decisão;

c) custas do recurso de apelação na proporção de um terço para o autor e de dois terços para o réu, fixando-se o valor tributário da compensação por danos não patrimoniais em quinze mil euros.


[1] Veja-se Temas da Reforma do Processo Civil, I Volume (2ª ed. revista e ampliada), Almedina 1998, António Santos Abrantes Geraldes, páginas 127 e 128. Referindo que no caso de acção de condenação deve especificar-se a prestação que o réu tem de satisfazer veja-se Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 2ª, Coimbra 1945, Prof. José Alberto dos Reis, página 361
[2] Sobre esta questão vejam-se, Temas da Reforma do Processo Civil, I Volume (2ª ed. revista e ampliada), Almedina 1998, António Santos Abrantes Geraldes, página 201, nota 353 [refira-se que a remissão para o volume II do Código de Processo Civil Anotado da autoria do Professor Alberto dos Reis, página 353 parece dever-se a lapso, devendo, salvo melhor opinião entender-se como referida ao volume 2ª do Comentário ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora 1945, da autoria do mesmo Professor, página 364, em nota] e Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora 1979, Manuel A. Domingues de Andrade, com a colaboração do Prof. Antunes Varela, nova edição revista e actualizada pelo Dr. Herculano Esteves, página 145, quando admite a contestação por mera junção de documentos.
[3] Neste sentido, na doutrina, veja-se, Temas da Reforma do Processo Civil, II Volume (2ª edição revista e ampliada), Almedina 1999, António Santos Abrantes Geraldes, páginas 135 a 137 e na jurisprudência, por todos, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14 de Dezembro de 2006, relatado pela Sra. Juíza Desembargadora Fátima Galante, no processo nº 9662/2006-6.
[4] Vejam-se sobre a matéria, em sentidos não totalmente coincidentes: Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, Almedina 1995, Fernando Pessoa Jorge, páginas 304 a 307; Responsabilidade Civil, Quid Juris, 2009, José Alberto González, páginas 100 a 101; Direito das Obrigações, Volume I, 7ª edição, Almedina 2008, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, páginas 298 a 300; Das Obrigações em Geral, Volume I, 6ª edição, Almedina 1989, João de Matos Antunes Varela, páginas 505 a 508.
[5] Citação extraída de Curso de Direito da Urbanização e da Edificação, Coimbra Editora 2007, André Folque, página 11.
[6] Veja-se, Das Obrigações em Geral, Volume I, 6ª edição, Almedina 1989, João de Matos Antunes Varela, páginas 503 a 508.
[7] Sobre esta figura vejam-se, Cessão da Posição Contratual, Colecção Teses, Almedina 1982, Carlos Alberto da Mota Pinto, páginas 419 a 426 e Contratos II, Almedina 2007, Carlos Ferreira de Almeida, páginas 57 e 58.
[8] Sobre esta figura veja-se, Contratos II, Almedina 2007, Carlos Ferreira de Almeida, páginas 58 e 59.