Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
219/07.3TAMLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: DEFICIENTE GRAVAÇÃO DA PROVA
PERDA DA EFICÁCIA DA PROVA PRODUZIDA
Data do Acordão: 01/18/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA MEALHADA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.ºS 363º, 364º E 328º, N.º 6, DO C. PROC. PENAL
Sumário: Ainda que se entenda que uma actuação prudente implicará a verificação imediata da qualidade da gravação, pretendendo o recorrente impugnar a matéria de facto, não lhe é exigível que proceda à audição dos respectivos suportes magnéticos, no prazo de 10 dias a contar da data em que lhe foi entregue a cópia dos CDs pelo Tribunal, podendo fazê-lo dentro do prazo da apresentação da motivação do recurso.

E, confirmando-se, em sede de recurso, não ser perceptível a gravação da prova, mostrando-se já excedido o prazo de 30 dias previsto no art.º 328º, n.º 6, do C. Proc. Penal, independentemente de algumas declarações e depoimentos serem perceptíveis, perdeu eficácia a prova produzida, devendo proceder-se a novo julgamento e não apenas à repetição da prova inaudível.
Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO

No processo comum n.º 219/07.3TAMLD do Tribunal Judicial da Mealhada, após a realização da audiência de julgamento, foi proferida sentença que decidiu condenar:

a) a arguida “W..., Lda.”, pela prática de um crime continuado de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelos artigos 7.º e 107.º, n.º1 e 2 e 105.º, n.os 1, 2, 3, 4 e 5 do Regime Geral das Infracções Tributárias (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho) e artigo 30º, n.º 2 do Cód. Penal, na pena de 280 dias de multa, à taxa diária de € 12, perfazendo o montante global de € 3.360;

b) o arguido A... pela prática, em co-autoria, de um crime continuado de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelos artigos 7.º e 107.º, n.º1 e 2, e 105.º, n.os 1, 2, 3, 4 e 5 do Regime Geral das Infracções Tributárias e artigo 30º, n.º 2 do Cód. Penal, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 10, perfazendo o montante global de € 2.000;

c) o arguido B... pela prática, em co-autoria, de um crime continuado de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelos artigos 7.º e 107.º, n.º1 e 2, e 105.º, n.os 1, 2, 3, 4 e 5 do Regime Geral das Infracções Tributárias e artigo 30º, n.º 2 do Cód. Penal, na pena de 130 dias de multa, à taxa diária de € 10, perfazendo o montante global de € 1.300;

d) o arguido C... pela prática, em co-autoria, de um crime continuado de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelos artigos 7.º e 107.º, n.º1 e 2, e 105.º, n.os 1, 2, 3, 4 e 5 do Regime Geral das Infracções Tributárias e artigo 30º, n.º 2 do Cód. Penal, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 12, perfazendo o montante global de € 1.440;

e,

e) Condenar solidariamente os demandados A… e C... a pagarem ao demandante Instituto da Segurança Social, a quantia de € 159.355,63 (cento e cinquenta e nove mil trezentos e cinquenta e cinco euros e sessenta e três cêntimos), condenando-se de igual forma o demandado B… mas somente até perfazer a quantia de € 142.550,11 (cento e quarenta e dois mil quinhentos e cinquenta euros e onze cêntimos, a título de indemnização por danos patrimoniais, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal prevista no art. 1º e 3º do DL n.º 73/99, de 16 de Março, e contados da data de vencimento de cada uma das contribuições não entregues, até cabal pagamento;

f) Absolver os demandados do demais pedido civil.


*

O arguido C..., discordando da decisão proferida, interpôs o presente recurso, tendo extraído da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1- O presente recurso tem por objecto a matéria de facto e de direito vertidas no douto acórdão recorrido, motivo pelo qual o ora recorrente requereu e lhe foi disponibilizada, em 12/04/2011, cópia da gravação da prova produzida em Audiência de Discussão e Julgamento, a fim de ver a mesma reapreciada, como é seu direito.

2- Em 19/05/2011, ao ouvir pela primeira vez a gravação da prova, a fim de poder dar cumprimento ao artigo 412º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal, apercebeu-se o recorrente, através do seu mandatário, de que a gravação do seu depoimento, bem como do depoimento das testemunhas, são, total ou parcialmente, imperceptíveis, cheias de interferências de outros ruídos, tornando impossível a sua clara apreensão e perfeito conhecimento.

3- Tais depoimentos, quer das testemunhas, quer das declarações do ora recorrente, são essenciais, na óptica do ora recorrente, para fundamentar decisão diversa da tomada pelo douto tribunal a quo, motivo pelo qual a sua audição em perfeitas condições se impunha e impõe.

4- A impossibilidade de ver reapreciada a prova produzida, consubstancia uma grave violação do direito de defesa do arguido, designadamente, o direito ao recurso, consagrado no artigo 32°, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e traduz-se na preterição do direito ao duplo grau de jurisdição em matéria de facto, penal e constitucionalmente consagrado.

5- Consubstancia ainda uma nulidade processual (e material), nos termos do artigo 363º do Código de Processo Penal, nulidade essa que é arguível durante o prazo disponível para o recurso, como é entendido pela esmagadora maioria da jurisprudência, e que ora expressamente se invoca para todos os devidos e legais efeitos.

6- Deve, pois, proceder a arguida nulidade, sendo declarada a invalidade do julgamento, bem como da sentença dele dependente.

7- Caso assim se não entenda - o que se não aceita e apenas por mera hipótese de trabalho se considera - sempre se dirá que a prova produzida em Audiência de Discussão e Julgamento, não permite dar como provados, relativamente ao ora recorrente, os factos constantes dos pontos 3., 4., 7. e 11.

8- Resulta dos depoimentos das testemunhas que estas depuseram de forma "lógica" e "coerente", designadamente, explicando de quem recebiam ordens, quem efectuava os pagamentos e a quem se dirigiam quando tinham problemas a resolver no trabalho, o que, na sua perspectiva, traduzia o "patronato", o que nada tem de subjectivo, mas de perfeitamente objectivo, sendo clara e perfeitamente perceptível a sua "razão de ciência": eu "acho" que alguém não é patrão, porque não dá ordens, nada decide, não está presente.

9- Aliás, o próprio co-arguido, B..., perguntado directamente se, em concreto, o ora recorrente tinha algum "papel activo, decisório, quanto à opção de não pagar à Segurança Social", em detrimento dos salários e dos fornecedores, este responde que não (Audiência de 28/02/2011, depoimento B..., de 18:20 a fim gravação 19:20)

10- Da acta de fls. 902 resulta claramente que se tratava de uma Assembleia Geral de Sócios - e não de gerência, que o sócio C… (ora recorrente), não esteve presente na anterior Assembleia Geral de Sócios, desconhecendo, em 29/07/2005, o que aí dito ou decidido e que foi deliberado pelos sócios que, a partir desse dia 29/07/2009, a sociedade W... passou a ter como único gerente o Dr. A....

11- Ou seja, o ora recorrente, em 29/07/2005 voltou, oficial e formalmente, a ser o que, na prática e na realidade, sempre e só até aí fora: sócio da sociedade W... - o que tanto basta para contrariar o constante do ponto 2. da matéria de facto provada.

12- Para que um gerente possa ser responsabilizado pelo tipo de crime em análise, é necessário que o mesmo exerça a gerência de facto não bastando a gerência de direito, isto é, que o mesmo "conste" formalmente como gerente.

13- Não explicitando a lei no que consiste a gerência, vem a doutrina e a jurisprudência referindo que, como tal, se deve considerar aquela em que os gerentes praticam actos de disposição ou de administração, de acordo com o objecto social da sociedade, em nome e representação desta, vinculando-a perante terceiros, atento os contornos normativos que dela é feita nos artigos 252°, 259°. 260º e 261º do Código das Sociedades Comerciais (cfr. entre outros, os Acs. do STA de 4-2-81, in AD 236°, ­de 3-10-85, in AD 237º e Acs. T. T 2a Instância de 12-11-91, in CTF 365°, pág. 259 e de 24-5-94, in CTF 376°, pág.257).

13- É certo que o ora recorrente assinou documentos, designadamente, assinou a acta de 29/07/2005 e avalizou letras, mas fê-lo como sócio da sociedade, e não na qualidade de gerente da mesma.

14- E quanto aos cheques assumidamente por si assinados, os mesmos foram assinados "de cruz", sem qualquer domínio ou sequer conhecimento sobre a sua proveniência e destino, maioritariamente sem que os mesmos se encontrassem sequer preenchidos (em branco) e sem qualquer carácter regular - tal resultou provado do depoimento de todos os arguidos e da testemunha D....

15- O ora recorrente era e sempre foi, alheio ao exercício da gerência da sociedade, desconhecendo os seus clientes, os seus fornecedores, os seus trabalhadores e, principalmente e no que ora interessa, os seus credores, não participando no dia-a-dia da sociedade e nada decidindo relativamente ao que quer que fosse, desconhecendo que a sociedade - na pessoa dos seus gerentes: Dr. A... e Dr. B... não entregava as contribuições devidas à Segurança Social.

16- O ora recorrente não cometeu o crime por que vinha acusado e foi condenado, motivo pelo qual deve ser absolvido da sua prática e, consequentemente, absolvido, em conformidade, do pedido de indemnização civil em que foi condenado.

17- Ao decidir da forma constante na douta sentença recorrida, violou o douto tribunal a quo, entre outros, os artigos 7° e 107°, n.ºs 1 e 2 e 1050, n.ºs 1, 2, 3, 4 e 5 do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05/06, e artigo 30° do Código Penal e os princípios penal e constitucionalmente consagrados da legalidade, da tipicidade, do acusatório e da livre apreciação da prova.

Termos em que e nos mais de direito, deve o presente recurso ser julgado provado e procedente, e, consequentemente, proceder a nulidade arguida, declarando-se a invalidade da Audiência de Discussão e Julgamento e da sentença dela dependente, ou, a douta sentença recorrida revogada e substituída por outra, que absolva o ora recorrente do crime e pedido de indemnização civil por que foi condenado.


*

Respondeu a Magistrada do MºPº junto do Tribunal a quo defendendo a procedência do recurso quanto à invocada nulidade (não serem completa e perfeitamente audíveis e perceptíveis as declarações do arguido/recorrente e os depoimentos das testemunhas indicadas, prestados em audiência de julgamento), tendo como consequência a repetição da prova inaudível. E, para a hipótese de não se considerar verificada a aludida nulidade, quanto ao demais alegado defende a improcedência do recurso.

Nesta instância também a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso quanto à invocada nulidade, devendo “ordenar-se a reparação das falhas de gravação da prova constatadas, anulando-se parcialmente o julgamento, no que respeita a essa prova, cujas gravações se mostram inaudíveis, determinando-se a sua repetição e, consequente repetição dos restantes actos que dessa prova dependem, ficando, no mais, prejudicada a apreciação do recurso”.

Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do CPP, não foi produzida qualquer resposta.

Os autos tiveram os vistos legais.


***

II- FUNDAMENTAÇÃO

Da sentença recorrida consta o seguinte (por transcrição):

--- Discutida a causa e produzida a prova, resultam assentes os seguintes factos:-----

--- Da acusação - -----;

---1. A arguida W..., Lda é uma sociedade por quotas e tinha sede no Parque Industrial…., na Mealhada,

---2. O arguido B... foi gerente da sociedade arguida desde 02.03.1998 até 24.08.2005 e os arguidos A… e C… de 02.03.1998 sócios gerentes até à declaração da insolvência da sociedade em 28.03.2007.

---3. Enquanto sócios e gerentes incumbia aos arguidos B..., A… e C…, a decisão sobre a vida e o destino financeiro da sociedade, a gestão dos pagamentos aos seus trabalhadores e membros dos órgãos estatutários, bem como efectuar o desconto das quotizações mensais devidas à Segurança Social, entregar as declarações respectivas e efectuar o pagamento mensal daquelas contribuições que tinham previamente descontado nas instituições da Segurança Social.----

---4. Por esse motivo, os arguidos, enquanto sócios e gerentes da sociedade arguida, efectuaram o desconto das quotizações mensais devidas à Segurança Social pelos trabalhadores ao seu serviço nos vencimentos mensais efectivamente pagos a esses trabalhadores durante os períodos de Janeiro de 2000 a Junho de 2001 e de Agosto de 2001 a Junho de 2006, no montante global de €159.355,63, quotizações calculadas mediante a aplicação da taxa de 11% às remunerações base de incidência e procederam à entrega das declarações de remunerações dos trabalhadores ao serviço do sociedade arguida nas instituições de segurança social, onde constam esses descontos.----

---5. Nos valores que a seguir se discrimina:

DataContribuiçãoRegime
2000-01€1.014,80Trabalhadores por conta de outrem
2000-02€1.088,09Trabalhadores por conta de outrem
2000-03€1.252,84Trabalhadores por conta de outrem
2000-04€1.041,53Trabalhadores por conta de outrem
2000-05€1.090,62Trabalhadores por conta de outrem
2000-06€1.073,56Trabalhadores por conta de outrem
2000-07€909,54Trabalhadores por conta de outrem
2000-08€984,34Trabalhadores por conta de outrem
2000-09€988,04Trabalhadores por conta de outrem
2000-10€1.323,46Trabalhadores por conta de outrem
2000-11€1.282,92Trabalhadores por conta de outrem
2000-12€1.367,50Trabalhadores por conta de outrem
2001-01€1.411,01Trabalhadores por conta de outrem
2001-02€1.412,65Trabalhadores por conta de outrem
2001-03€1.564,96Trabalhadores por conta de outrem
2001-04€1.975,60Trabalhadores por conta de outrem
2001-05€2.228,95Trabalhadores por conta de outrem
2001-06€1.955,89Trabalhadores por conta de outrem
2001-08€2.349,86Trabalhadores por conta de outrem
2001-09€2.344,54Trabalhadores por conta de outrem
2001-10€1.971,98Trabalhadores por conta de outrem
2001-11€2.282,05Trabalhadores por conta de outrem
2001-12€3.813,68Trabalhadores por conta de outrem
2002-01€2.020,88Trabalhadores por conta de outrem
2002-02€2.261,04Trabalhadores por conta de outrem
2002-03€2.008,47Trabalhadores por conta de outrem
2002-04€2.135,04Trabalhadores por conta de outrem
2002-05€2.537,61Trabalhadores por conta de outrem
2002-06€2.408,95Trabalhadores por conta de outrem
2002-07€2.358,86Trabalhadores por conta de outrem
2002-08€3.996,73Trabalhadores por conta de outrem
2002-09€2.364,51Trabalhadores por conta de outrem
2002-10€2.682,82Trabalhadores por conta de outrem
2002-11€4.370,57Trabalhadores por conta de outrem
2002-12€2.547,98Trabalhadores por conta de outrem
2003-02€2.210,40Trabalhadores por conta de outrem
2003-03€2.458,20Trabalhadores por conta de outrem
2003-04€2.469,27Trabalhadores por conta de outrem
2003-05€2.282,72Trabalhadores por conta de outrem
2003-06€2.298,34Trabalhadores por conta de outrem
2003-07€2.259,93Trabalhadores por conta de outrem
2003-08€2.163,81Trabalhadores por conta de outrem
2003-09€2.267,55Trabalhadores por conta de outrem
2003-10€2.471,00Trabalhadores por conta de outrem
2003-11€2.253,43Trabalhadores por conta de outrem
2003-12€6.426,61Trabalhadores por conta de outrem
2004-01€2.569,34Trabalhadores por conta de outrem
2004-02€2.276,52Trabalhadores por conta de outrem
2004-03€2.250,75Trabalhadores por conta de outrem
2004-04€2.384,71Trabalhadores por conta de outrem
2004-05€2.267,61Trabalhadores por conta de outrem
2004-06€2.423,18Trabalhadores por conta de outrem
2004-07€2.437,56Trabalhadores por conta de outrem
2004-08€4.142,92Trabalhadores por conta de outrem
2004-09€1.687,60Trabalhadores por conta de outrem
2004-10€1.922,81Trabalhadores por conta de outrem
2004-11€2.065,35Trabalhadores por conta de outrem
2004-12€3.526,45Trabalhadores por conta de outrem
2005-01€1.946,13Trabalhadores por conta de outrem
2005-02€1.949,32Trabalhadores por conta de outrem
2005-03€1.865,50Trabalhadores por conta de outrem
2005-04€1.708,78Trabalhadores por conta de outrem
2005-05€1.498,20Trabalhadores por conta de outrem
2005-06€1.837,06Trabalhadores por conta de outrem
2005-07€2.126,43Trabalhadores por conta de outrem
2005-08€1.680,76Trabalhadores por conta de outrem
2005-09€1.389,03Trabalhadores por conta de outrem
2005-10€1.431,10Trabalhadores por conta de outrem
2005-11€1.463,59Trabalhadores por conta de outrem
2005-12€3.923,02Trabalhadores por conta de outrem
2006-01€1.355,07Trabalhadores por conta de outrem
2006-02€1.348,68Trabalhadores por conta de outrem
2006-03€1.295,15Trabalhadores por conta de outrem
2006-04€1.547,34Trabalhadores por conta de outrem
2006-05€1.479,91Trabalhadores por conta de outrem
2006-06€1.572,63Trabalhadores por conta de outrem
TOTAL€159.355,63

--- 7. Apesar de os arguidos, em representação da sociedade arguida, terem procedido ao desconto destas quantias nos vencimentos dos seus trabalhadores, não as entregaram em nenhuma instituição da Segurança Social, mensalmente, até ao 15 dia do mês seguinte àquele a que respeitam, como sabiam ser sua obrigação, nem posteriormente, nos 90 dias subsequentes ao termo desse prazo, integrando aquelas quantias no seu património.----

---8. A sociedade arguida foi notificada na pessoa do seu administrador de insolvência em 25.11.2008 para, no prazo de 30 dias, proceder ao pagamento da quantia referida e dos respectivos juros, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.º, n.º 4, alínea b) do R.G.I.T.

---9. Os arguidos A…, B... e C... foram notificados pessoalmente, os dois primeiros em 09.10.2007 e o 3.º em 17.03.2008 para, no prazo de 30 dias, procederem ao pagamento da quantia referida e dos respectivos juros, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.º, n.º 4, alínea b) do R.G.I.T.----

---10. No entanto, esse pagamento nunca foi efectuado.---

---11. Os arguidos actuaram de forma livre, voluntária e consciente, em nome e no interesse da sociedade arguida, bem como no seu próprio interesse, com o propósito, conseguido, de não entregar aquela quantia relativa aos descontos efectivamente efectuados no vencimento dos seus trabalhadores à Segurança Social, como sabiam estar obrigados, quantias que integraram no seu património, bem sabendo que tal montante não lhes pertencia e que actuando desse modo prejudicavam o Estado que não o pode utilizar para as finalidades previstas na legislação da Segurança Social e obtinham uma vantagem patrimonial a que não tinham direito.

---12. Mais sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.---


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--- Mais se apurou que:-----

---13. O arguido A...encontra-se desempregado e não aufere subsídio de desemprego; ---

---14. Vive com a sua mulher, professora universitária, e 5 filhos menores de idade; ---

---15. É dono de uma apartamento tipo T2 em Coimbra, que se encontra arrendado pelo montante de € 350 mensais, quantia essa que está penhorada à ordem de um processo executivo; ---

---16. É licenciado em gestão de empresas; ---

---17. O arguido B... trabalha por conta própria como TOC/consultor financeiro, declarou auferir em média € 600/700 mensais de retribuição, e vive sozinho. Não possui encargos extraordinários, designadamente com o pagamento de créditos bancários; ---

---18. Tem como habilitações literárias a licenciatura em controlo de gestão;  ---

---19. O arguido C... encontra-se reformado, tendo trabalhado na indústria da cerâmica durante 44 anos, aufere € 2.000 de reforma (1/3 está penhorado); ---

---20. Vive com a sua mulher e um filho, em casa própria, que se encontra penhorada; ---

---21. Possui uma viatura automóvel da marca VW Bora, com cerca de 10 anos de idade; ---

---22. Possui o curso de agente técnico agrícola;---

---23. Os arguidos B...e C... não possuem antecedentes criminais registados.

---24. O arguido A...foi condenado por sentença transitada em 25.07.2006, proferida no proc. 577/05.4 TAAVR, do 2º Juízo Criminal de Aveiro, pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, na pena de 280 dias de multa, à razão diária de € 6, por factos praticados em 2004, julgada extinta pelo cumprimento. ----

---25. A sociedade arguida tinha um capital social de € 400.000,00 e empregava em média cerca de 30 trabalhadores. ---

---26. A sociedade arguida foi declarada insolvente. ----


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--- Do pedido de indemnização civil -----

--- Para além dos factos acima descritos, provou-se que: ---

---27. Os demandados não procederam à entrega à Segurança Social da quantia de € 159.355,63, correspondente às quotizações retidas nas remunerações efectivamente pagas aos trabalhadores, no âmbito do Regime dos trabalhadores por conta de outrem (Janeiro de 2000 a Junho de 2001 e de Agosto de 2001 a Junho de 2006), do Regime Geral dos trabalhadores por conta de outrem. ----


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--- 2.2. Factos não provados -----

--- Com interesse para a decisão da causa, não se provou que:

---a) Para além disso, os arguidos, enquanto sócios-gerentes da sociedade arguida, efectuaram o desconto das quotizações mensais devidas à Segurança Social pelos membros dos seus órgãos estatutários nos vencimentos mensais efectivamente pagos a esses membros durante os períodos de Janeiro de 2000 a Junho de 2001 e de Agosto de 2001 a Maio de 2004, no montante global de €10.266,75 quotizações calculadas mediante a aplicação da taxa de 10% às remunerações base de incidência.


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--- 2.3. Motivação da decisão de facto -----

--- A convicção do tribunal quanto à prova da matéria de facto fundou-se, por um lado, nas declarações dos arguidos A… e B..., no que concerne aos factos a si imputados, uma vez que admitiram a entrega das declarações mas não os respectivos meios de pagamento, pese embora declarando que o dinheiro não entregue se destinou a pagar remunerações de trabalhadores e outras despesas, necessidade que decorreu das dificuldades financeiras da empresa. Já quanto à participação do arguido C... os demais arguidos assumiram posturas diferentes. A..., filho, tendeu para excluir o pai das decisões da vida da sociedade, ao passo que o arguido B..., assumindo claramente uma postura mais espontânea e coerente, asseverou que o arguido C... tinha perfeito conhecimento e participava na vida da empresa. E foi precisamente neste sentido que se formou a convicção do tribunal em face da demais prova produzida, analisada criticamente, conforme infra se constatará. ---

--- Para prova da factualidade apurada fundou o tribunal a sua convicção nos depoimentos das testemunhas: ---

--- …., funcionária da Segurança Social, que confirmou a entrega das declarações e a falta de pagamento das quotizações devidas; ---

--- …, que trabalhou na área comercial da sociedade arguida entre 2002 e 2005, afirmou peremptoriamente que o arguido C... ia à empresa todas as semanas e perguntava-lhe regularmente sobre a situação em que se encontravam as exportações; ---

--- D..., trabalhadora da administração, relatou também que era habitual o mesmo arguido assinar cheques da empresa, inclusivamente na sua presença, sem questionar. ---

--- As mencionadas testemunhas depuseram de forma lógica e coerente, merecendo credibilidade. -

--- Ora, sendo o arguido C..., pessoa com dezenas de anos de experiência na indústria da cerâmica, com nome criado na praça, sócio gerente da sociedade arguida, assinando cheques e avalizando letras, frequentando a sociedade, tomando conhecimento da situação da mesma, participando nos actos respeitantes à vida societária (como é disso exemplo a acta de fls. 902), é de acreditar que o mesmo foi parte integrante do processo de formação de vontade da mesma, ainda que desempenhando uma actividade menos intensa que os demais co-arguidos, mas nem por isso irrelevante. Daí que não convenceram as suas declarações que se traduziram em defender que as suas idas à empresa eram meramente lúdicas e que a assinatura de cheques e outros documentos era baseada numa confiança cega que tinha no seu filho. ---

--- Os depoimentos das testemunhas acima mencionadas foram conjugados com os documentos constantes de fls. 30 a 34, 37 a 44, 192 a 195, 204 a 238, 245 a 266, 268 a 491, 502 a 523, 533 a 602, 621 a 633, bem como, as notificações de fls. 46 a 72, 124 a 127, 134 a 137, 161 a 165 e 605 a 607 dos autos.-----

--- Quanto aos depoimentos das demais testemunhas, acabaram por enfermar subjectivismo já que, para além de afirmarem que recebiam instruções dos arguidos A... e B...(o que é admissível face às funções que desempenhavam na sociedade), opinaram sobre quem mandava na empresa sem se quer possuírem razão de ciência para tal, nem explicaram satisfatoriamente as conclusões que anunciavam. Pois referiam que o pai (C...) não era o patrão, apenas porque recebiam ordens dos demais.

--- Enfim tal dose de subjectivismo e de juízos opinativos inquinou os depoimentos não colhendo os mesmos crédito nessa parte.

--- Aliás, diversos outros factos apontam em sentido diverso, como já se deixou consignado. ---

--- Por outro lado, a gestão efectiva de uma empresa, ao nível dos órgãos decisórios, faz-se também com a repartição de tarefas sem que isso exclua as responsabilidades efectivas de cada um dos gerentes ou administradores. Por outras palavras, para serem considerados gerentes efectivos nem todos precisam de executar o mesmo tipo de tarefas. Basta que participem, expressa ou tacitamente, no processo de formação da vontade da empresa. E neste processo isso ficou claramente provado. --

--- A factualidade relativa ao pedido civil resultou provada com base na prova pessoal e documental acima aludida e ainda na certidão de fls. 846 e ss e no parecer de fls. 772 e ss .

--- Os factos relativos à situação pessoal e económica dos arguidos resultaram provados com base nas suas próprias declarações. ---

--- Os antecedentes criminais resultaram dos CRC´s juntos a fls. 898, 897 e 922.-----


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--- Não se provou que os arguidos tenham efectivamente auferido as retribuições que declararam à segurança Social, enquanto membros dos órgãos estatutários, porquanto dos arguidos negaram peremptoriamente tal facto e nenhum outro meio de prova foi produzido quanto a essa matéria. ---


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APRECIANDO

Perante as conclusões da motivação do recurso, as questões submetidas à apreciação deste tribunal são:

- a nulidade da produção de prova e da prova gravada, produzida em audiência (face à imperceptibilidade das declarações do arguido/recorrente e do depoimento das testemunhas, com a consequente repetição do julgamento;

- a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, considerando o recorrente ter sido efectuada errada apreciação da prova produzida em julgamento, pugnando pela sua absolvição do crime e do pedido de indemnização civil por que foi condenado.


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Da deficiente gravação da prova (imperceptibilidade das declarações do arguido/recorrente e do depoimento das indicadas testemunhas)

Na motivação do recurso que apresentou, como Questão Prévia, alega o recorrente:

O presente recurso tem – ou, mais exactamente, pretende ter – por objecto a matéria de facto e de direito vertida no douto acórdão recorrido.

Requerida e disponibilizada a cópia da gravação das declarações prestadas oralmente em audiência (…), ao ouvir pela primeira vez a gravação da prova, a fim de dar cumprimento ao artigo 412º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal, apercebeu-se de que a gravação do seu depoimento, bem como do depoimento das testemunhas, são total ou parcialmente, imperceptíveis, cheias de interferências de outros ruídos, tornando impossível a sua clara apreensão e perfeito conhecimento.

Tais depoimentos, quer das testemunhas, quer das declarações do ora recorrente, são essenciais, na óptica do ora recorrente, para fundamentar decisão diversa da tomada pelo douto tribunal a quo (…) motivo pelo qual a sua audição em perfeitas condições se impunha e impõe.

Dada a deficiência da gravação, aparentemente causada por interferências de outros aparelhos eléctricos e electrónicos ligados nas imediações do sistema de gravação do Tribunal, confronta-se o ora recorrente com a impossibilidade de impugnar, como era e é sua intenção, a decisão proferida sobre a matéria de facto, por motivo que lhe não é imputável.

Tal impossibilidade consubstancia uma grave violação do direito de defesa do arguido, designadamente, o direito ao recurso, consagrado no artigo 32º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e traduz-se na preterição do direito ao duplo grau de jurisdição em matéria de facto, penal e constitucionalmente consagrado. (…).

Conclui pela procedência da arguida nulidade, devendo, em consequência, ser declarada a invalidade do julgamento, bem como da sentença dele dependente.


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Conforme o estabelecido nos n.ºs 3 e 4 do art. 412º do CPP «Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) as provas que devam ser renovadas e, Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação».

E, nos termos do disposto no artigo 363º do CPP (com a alteração introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29-8) «As declarações prestadas oralmente em audiência são sempre documentadas na acta, sob pena de nulidade», estando a forma da documentação descrita no artigo 364º.

Assim, quer a omissão total ou parcial da gravação, quer a sua imperceptibilidade (quando esse segmento da prova for essencial ao apuramento da verdade) constitui nulidade, a qual tem influência na decisão da causa, na medida em que o recorrente fica impossibilitado de cumprir o ónus de especificação previsto no citado artigo 412º ([1]).

Não constando esta nulidade do elenco das nulidades insanáveis (art. 119º do CPP), está a mesma dependente de arguição. Contudo, também esta nulidade não está especialmente prevista e sujeita ao prazo de arguição a que alude o n.º 3 do artigo 120º do CPP, afigurando-se-nos que não tem de ser aplicado o prazo geral de arguição de 10 dias (a contar da entrega dos suportes técnicos pois, a partir da entrega tomou conhecimento da deficiência da gravação) do artigo 105º, n.º 1 do CPP.

Como se observa na sentença recorrida (concretamente da Motivação da decisão da matéria de facto), no que respeita à participação do arguido C..., ora recorrente, o tribunal formou a sua convicção, essencialmente, com base nas declarações do arguido B...e no depoimento das testemunhas (depoimentos que foram conjugados com documentos constantes nos autos). Quanto ao depoimento das demais testemunhas, indicou o tribunal porque não lhes conferiu credibilidade.

Em contrapartida, considera o recorrente que a maioria das testemunhas cujo depoimento não foi considerado convincente pelo tribunal, assim como as testemunhas  … e D..., são essenciais para fundamentar decisão diversa da tomada pelo tribunal a quo.

Assim sendo, com o presente recurso, visando o recorrente a reapreciação da matéria de facto, a gravação perceptível de tais depoimentos (e, das declarações do recorrente) é essencial para o apuramento da verdade, tal como foi alegado.

Efectivamente, com o novo regime da documentação das declarações prestadas em audiência, a prova deixou de ser transcrita e, sendo impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, o tribunal procede à audição ou à visualização da gravação magnetofónica ou audiovisual (art. 412º, n.º 6 do CPP).

Como sabemos, a gravação dos depoimentos orais prestados em audiência destina-se, para além do mais, a habilitar o tribunal de recurso a apreciar se a matéria de facto foi julgada em conformidade com a prova produzida.

Ora, sendo um funcionário judicial que procede à gravação da prova e, sendo os meios técnicos utilizados do próprio tribunal, quando um sujeito processual solicita cópia da gravação tendo em vista o recurso, confia que a gravação da prova está em perfeitas condições técnicas e que o registo magnético é totalmente perceptível.

Ainda que se entenda que uma actuação prudente implicará a verificação imediata da qualidade da gravação, afigura-se-nos que pretendendo o recorrente impugnar a matéria de facto, não lhe é exigível que proceda à audição dos respectivos suportes magnéticos no prazo de 10 dias a contar da data em que lhe foi entregue a cópia dos CDs pelo Tribunal, podendo fazê-lo dentro do prazo da apresentação da motivação do recurso. Neste sentido, entre outros, os Acórdãos da RC de 1-7-2008, de 15-4-2008 e da RP de 5-5-2009, ambos disponíveis em www.dgsi.pt e, ainda os acórdãos da RC por nós relatados em 2-6-2009, no proc. 2489/06.5TALRA.C1 e, em 27-4-2011 no proc. 114/09.1GCSEI.C1.

Perante a arguição do ora recorrente, procedemos à audição das suas declarações e do depoimento das testemunhas indicadas, onde verificámos que, sendo as declarações do recorrente na sua quase totalidade perceptíveis, já quanto ao depoimento das testemunhas (exceptuando o da test. …, cujo depoimento é perceptível) o ruído é constante, impossibilitando a audição, ou a perceptibilidade da audição dos mesmos ([2]).

Nos termos expostos, na situação dos autos, não sendo perceptível a gravação da prova, ficou inviabilizado o recurso do recorrente e a apreciação da prova pelo Tribunal ad quem, e consequentemente foram lesados os direitos de defesa do arguido/recorrente garantidos pelo artigo 32º, n.º 1 da CRP, como alega o recorrente.

Procede, assim, a arguida nulidade.

A propósito da regra da continuidade da audiência de julgamento, do adiamento não poder exceder 30 dias e da perda da eficácia da prova já realizada, o STJ fixou jurisprudência, no Acórdão n.º 11/2008 ([3]), de 29-10-2008, no sentido de que “a perda da eficácia da prova ocorre independentemente da existência de documentação a que alude o artigo 363º do CPP e, mostrando-se excedido o prazo de 30 dias previsto no n.º 6 do artigo 328º do CPP, deverá proceder-se a novo julgamento”.

De igual modo, no caso vertente, face ao lapso de tempo decorrido sobre a audiência de julgamento (independentemente de algumas declarações e depoimentos serem perceptíveis), perdeu eficácia a prova entretanto produzida, devendo proceder-se a novo julgamento (e não apenas à repetição da prova inaudível).

Em consequência, ficam prejudicadas as demais questões suscitadas no recurso.


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III- DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- Julgar procedente o recurso e, em consequência, declarar a invalidade do julgamento, bem como da sentença dele dependente, determinando-se a realização de novo julgamento.

Sem tributação.


*****                                                                             

Elisa Sales (Relatora)

Paulo Valério


[1] - Anteriormente, o STJ havia fixado jurisprudência no acórdão n.º 5/2002, de 27-6, publicado no DR, I-A Série, de 17-7-2002, de que «A não documentação das declarações prestadas oralmente em audiência de julgamento, contra o disposto no artigo 363º do Código de Processo Penal, constitui irregularidade, sujeita ao regime estabelecido no artigo 123º do mesmo diploma legal, pelo que uma vez sanada o tribunal já dela não pode conhecer».

[2] - Desconhece-se se o Tribunal Judicial da Mealhada estará apetrechado com os meios técnicos idóneos a assegurar a reprodução das declarações prestadas oralmente em audiência, ou se existirá outro tipo de deficiências, porquanto a questão ora suscitada já se verificou também num outro processo – cfr. Ac. da RC, por nós relatado em 12-10-2011, no 518/09.0GAMLD.C1.

[3] - Publicado no DR 239, Série I, de 11-12-2008.