Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
49/15.9T8SEI.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
Data do Acordão: 01/21/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - J.C. GENÉRICA - SEIA - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 235º E 239º DO CIRE.
Sumário: 1. Na determinação do rendimento disponível deve buscar-se um ponto de equilíbrio entre os interesses dos credores a verem os seus créditos satisfeitos e o direito do insolvente e do seu agregado familiar a ter um sustento que lhe permita viver com uma mínimo de dignidade.

2. Na ausência de interposição de recurso dos despachos de indeferimento do pedido de aumento do valor indisponível, tem de ter-se por assente que a insolvente se encontrava obrigada à entrega ao fiduciário dos rendimentos mensais que ultrapassassem o montante determinado pelo tribunal.

3. A alegação de que o montante indisponível que lhe foi fixado é insuficiente para a insolvente e o seu agregado familiar viverem condignamente, não serve de justificação para a total falta de entrega de rendimentos, quer dos montantes resultantes do critério fixado pelo tribunal, quer de quaisquer outros, ao fiduciário, durante mais de dois anos.

Decisão Texto Integral:










Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

Declarada a insolvência de G..., e decretado o encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa insolvente nos termos dos artigos 230º, nº 1, al. d), 232º, e 233º do CIRE (por despacho de 30-04-2015), foi, por despacho de 08 de junho de 2015, admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, determinando que o rendimento disponível que a insolvente viesse a auferir,  montante correspondente a um salário mínimo e meio, se considerava concedido ao fiduciário.

A 27 de junho de 2016 veio o Fiduciário apresentar Relatório nos termos do artigo 240º CIRE, informando que dos elementos que lhe foram fornecidos pela insolvente pode afirmar que a mesma não tem qualquer montante objeto de cessão a entregar, em virtude de auferir rendimentos mensais inferiores ao valor fixado em sede de exoneração do passivo restante, aguardando pela nota de liquidação de IRS de 2015, para confirmar tal situação.

A 20 de Julho de 2017 o Fiduciário apresentou novo Relatório informando:

- a insolvente permitiu acesso a documentos comprovativos da sua situação desde o início da cessão de rendimentos até maio de 2016, período até ao qual não havia qualquer quantia a ceder;

- nos meses de Novembro e Dezembro de 2016 a insolvente transferiu para a conta bancária da massa insolvente a quantia total de 1.537,87€, faltando permitir o acesso a documentos comprovativos da sua situação relativos ao período entre maio de 2016 e a presente data.

Por requerimento de 19 de setembro de 2017 veio a insolvente – alegando ter-se separado do companheiro, residindo consigo dois filhos um de 20 anos e outro com 8 anos, alegando despesas fixas em relação a ambos os filhos e a ausência de pagamento de qualquer pensão de alimentos pelo progenitor; tendo começado a trabalhar na X... em julho de 2016, com o valor bruto mensal de 1.780,00€, fazendo cerca de 200 km diários, sobre carregando o seu orçamento em cerca de 200€, só em combustível; alega ainda a ocorrência de uma série de despesas extraordinárias, juntando os respetivos comprovativos –, pedir:

- que o montante do rendimento indisponível seja aumentado para 2,5 ordenados mínimos;

- que lhe seja concedido o direito a não entregar a diferença de ordenado/sentença atribuída desde julho de 2016;

- que lhe seja concedido o direito de usufruir parte do subsídio de férias do ano de 2017;

comprometendo-se a regularizar os valores no prazo que lhe for concedido.

O Credor C... e o Fiduciário deduziram oposição ao requerido.

Por despacho de 8 de janeiro de 2018 foi indeferido na totalidade, o requerido pela insolvente.

A 5 de março de 2018 veio a insolvente reiterar o seu pedido de alteração do rendimento indisponível para o montante equivalente a 2,5 salários mínimos, invocando ser o seu agregado composto por 3 elementos desde 16 de fevereiro de 2015, encontrando-se a trabalhar na X... desde julho de 2016, a uma distância de 67 km do local onde habita.

Por despacho de 8 de março de 2018 foi inferido o requerido com fundamento em que se encontrava esgotado o poder jurisdicional do juiz.

A 2 de outubro de 2018 o Fiduciário apresenta novo Relatório, informando que:

- a insolvente permitiu o acesso a cópias de recibos de vencimento relativos a 2017, bem como a declaração de IRS do referido período;

- não foi enviado qualquer documento relativo aos valores auferidos no ano de 2018;

- pela análise dos documentos cedidos, apurou uma quantia em dívida de 5.893,41€;

- foram cedidos os valores de 2.040,73€, durante o 2º ano.

O Fiduciário veio, a 24 de junho de 2019, apresentar novo Relatório Anual, informando:

- a insolvente apresentou todos os elementos respeitantes a 2017 e 2018, continuando apenas em falta os elementos respeitantes ao período entre junho de 2016 a dezembro de 2016;

- pela análise dos documentos cedidos apurou-se uma quantia em dívida de 20.417,42 €;

não houve lugar à entrega de quaisquer rendimentos.

O credor C..., S.A., veio requerer a declaração de cessação antecipada da exoneração do passivo restante, nos termos do artigo 243º, nº 1, al. a), do CIRE, por violação dolosa da obrigação contida no artigo 239º, nº 4, al. c), do CIRE.

O Fiduciário veio, a 6 de agosto de 2019, informar que, por comunicação eletrónica, a insolvente lhe remeteu cópia dos recibos de vencimento relativos ao período entre julho e dezembro de 2016, faltando ainda o do mês de junho de 2016, concluindo ter-se apurado um valor em dívida de 24.397,01€.

A 19 de setembro de 2019 o Fiduciário vem informar que pela insolvente não lhe foi prestada qualquer informação adicional, nem efetuou qualquer transferência para conta bancária da massa insolvente.

A 23 de setembro de 2019 o Fiduciário vem informar ter recebido, entretanto, os recibos referentes a junho, julho e Agosto de 2019, não juntando recibo relativamente a junho de 2016 por ter começado a relação laboral e 01-07-2016, não tendo aferido rendimentos em junho de 2016. Conclui que, face aos novos elementos, o valor em dívida atinge o montante de 27.206,75€.

Por despacho de 1 de outubro de 2019 foi recusada a exoneração do passivo restante, determinando a cessação antecipada do procedimento de exoneração.

Inconformada com tal decisão, a Insolvente dela interpôs recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões[1]:
1- (…).

2- Atenta a informação anual do Sr. Fiduciário, veio a credora reclamante C..., S.A., requerer o decretamento da cessação antecipada do benefício de exoneração do passivo restante, nos termos do disposto nos artigos 239º, nº4, alínea c), aplicável ex vi artigo 243º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, não oferecendo qualquer prova.

3- Regularmente notificada para juntar aos autos os documentos referentes aos rendimentos relativos ao período compreendido entre Junho a Dezembro de 2016, e para prestar os esclarecimentos que se impõem relativamente ao valor em dívida e pronunciar-se, ainda, quanto à cessação antecipada da exoneração do passivo restante requerida, a insolvente não emitiu qualquer pronuncia nos autos, tendo, contudo, remetido e-mail dirigido ao Sr. Fiduciário, datado de 22 de Setembro de 2019 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, mais enviando ao Sr. Fiduciário os elementos em falta.

4- Entendeu o Tribunal Recorrido que houve, por parte da recorrente, violação das obrigações a que ficou sujeita durante o período de cessão, mais concretamente, que a insolvente violou o dever de informar o Sr. Fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado e o dever de entrega imediata ao fiduciário, quando por si recebida, da parte dos seus rendimentos objeto de cessão, prejudicando, com o seu comportamento, de forma clara a satisfação dos créditos sobre a insolvência.

(…).

6- Ora, cumpre referir, que a devedora recorrente, aquando do despacho de admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante, proferido a 8 de Junho de 2015, se encontrava desempregada, auferindo, a título de subsídio por cessação de atividade, o valor mensal de €295,20 e, por celebração de contrato de emprego-inserção, auferia ainda uma bolsa complementar na quantia mensal de €185,75.

7- A devedora tinha dois filhos a seu cargo, B... e L..., com 18 e 6 anos de idade, respetivamente, sendo que o agregado familiar vivia em casa arrendada e pagava €250,00 mensais de renda.

8- Às despesas correntes de todo e qualquer agregado familiar, como sejam água, luz, gás, vestuário, calçado, alimentação, saúde e educação, acrescendo ainda as despesas necessárias para o exercício da atividade profissional da devedora.

9- Factos que, embora não devidamente concretizados em termos de valor no requerimento inicial, não foram devidamente ponderados na fixação do rendimento disponível da devedora, porquanto no despacho inicial de exoneração apenas se excluiu do rendimento disponível o que se entendeu ser razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno da devedora e do seu agregado familiar.

10- Sucede que, mais tarde, a devedora separou-se do então companheiro e passou a ter todas as despesas do agregado a seu cargo, e pese embora, também posteriormente, tenha passado a dispor de mais rendimento disponível, passou ainda a ter mais despesas, com deslocações e outras, todas elas necessárias ao exercício da sua atividade profissional.

11- De tudo isto deu conhecimento ao Sr. Fiduciário e requereu ao Tribunal Recorrido, por diversas vezes, o aumento do seu sustento minimamente digno e do seu agregado familiar, pedindo a fixação do valor equivalente a 2,5 salários mínimos nacionais, solicitação que foi recusada em ambas as vezes que o requereu.

12- Além disso, comunicou, via correio eletrónico e por telefone, ao Sr. Fiduciário as suas dificuldades económicas em cumprir o disposto no despacho inicial de exoneração no que respeita à cessão do seu rendimento disponível, tal como se reconheceu, aliás, no despacho de que se recorre, onde invocou o agravamento da sua situação económica, concretamente, a doença dos seus progenitores, o pagamento da prestação relativa à aquisição de um veículo automóvel, alegadamente utilizado para se deslocar para o trabalho e o pagamento do ATL do filho mais novo, mas cuja situação sempre deu conhecimento ao longo de todo o processo e não apenas no último ano.

13- E, como se disse, requerendo a alteração do montante a excluir do rendimento disponível, em Setembro de 2017 e em Março de 2018 (com prolação de decisão de indeferimento a 8 de Janeiro e a 8 de Março de 2018), sendo que 1,5 salário mínimo nacional era insuficiente para fazer face às despesas correntes da devedora e dos seus 2 filhos.

14- Em consequência, era e é igualmente insuficiente para custear as despesas necessárias ao exercício da sua atividade profissional, sendo que, de facto, as circunstâncias do caso concreto e a realidade social e económica atual impunham a exclusão de um valor superior ao inicialmente fixado, uma vez que é escasso, como se disse, para fazer face ao sustento da devedora e do seu agregado e, bem assim, para manter o exercício da sua atividade profissional.

(…).

16- Porém, o ressarcimento dos credores há de verificar-se em função da cláusula de razoabilidade e do princípio da proibição do excesso consignados no CIRE, mais propriamente no seu artigo 239.º, n.º 3, al. b) (i) e (ii), na medida em que exclui do rendimento disponível do devedor o valor considerado necessário ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar e, bem assim, o necessário para o exercício da sua atividade profissional.

17- Assim, a devedora deve retribuir os credores proporcionalmente às suas capacidades económicas e ao que necessite para sobreviver condignamente, o mesmo será dizer que o deverá fazer sem quebra do que se considera o sustento minimamente digno da própria devedora e do seu agregado familiar, mas também sem quebra da possibilidade de exercer a sua atividade profissional, sob pena de não poder gerar rendimentos para satisfazer os credores por via da exoneração do passivo restante.

18- Assim, no regime de exoneração do passivo restante e para efeitos do disposto no artigo 239.º nº 3 b) (i) e (ii) do CIRE, deveria ter-se considerado excluído do rendimento disponível o montante razoavelmente necessário para o sustento da devedora e do seu agregado familiar e do necessário para o exercício da sua atividade profissional.

19- E, não tendo ocorrido inicialmente, deveria tê-lo sido posteriormente, atentas as novas circunstâncias de vida da devedora, cujo apuramento do montante deveria ter envolvido um juízo e ponderação especificada relativamente à situação concreta da devedora.

(…).

21- Ao não atender ao alegado pela insolvente, impôs-se, em consequência, à recorrente que apenas podia dispor do valor mensal de 1,5 salários mínimos, quantia com a qual tem que sobreviver condignamente, pagando renda de casa, luz, água, gás, vestuário, alimentação e despesas de saúde e educação, a que acrescem as despesas com o desenvolvimento da sua atividade profissional, não inferiores a metade daquele valor, não sendo a decisão equitativa e não teve em consideração as despesas acrescidas com a continuação da atividade profissional da devedora.

22- E, atenta a situação concreta da devedora, não se concebe como se possa sobreviver condignamente com 1,5 salários mínimos nacionais, sobretudo se considerarmos que a devedora não tem casa própria e que o agregado é composto por 3 pessoas.

23- Com efeito, além das despesas comuns inerentes a qualquer outra pessoa, tem ainda que suportar, obrigatoriamente, despesas acrescidas para poder desenvolver a sua atividade profissional e, tendo como rendimento disponível de 1,5 salários mínimos, a cumprir o determinado no despacho inicial, a devedora estaria destinada, forçosamente, à indigência, situação que a lei claramente pretende afastar, pois de outro modo não estabeleceria que deve ser excluído do rendimento disponível o indispensável ao sustento digno do devedor e do seu agregado, bem como o valor necessário para desenvolver a sua atividade profissional.

24- Era, pois, impossível à recorrente e ao respetivo agregado familiar viver dignamente apenas com o valor determinado no despacho recorrido, pelo que, nos termos do artigo 239.º n.º 3, al. b) (i) e (ii) do CIRE, deveria o despacho inicial de exoneração do passivo restante ter sido ser revogado e substituído por outro que, tendo presente o princípio da equidade e dos interesses em causa, decretando como rendimento disponível do devedor insolvente a quantia mensal auferida superior a, pelo menos, 2 salários mínimos nacionais.

25-Ainda para mais, sabendo-se que este mesmo Tribunal recorrido já assim o decidiu noutros processos de exoneração do passivo, em que a dívida aos credores ascendia a milhões de euros, o rendimento era aproximado ao da aqui recorrente, o agregado familiar mais reduzido e sem despesas para o exercício da profissão.

26- Sem prescindir, não tendo sido atendidas as pretensões da devedora no que respeitava ao aumento do valor mínimo indispensável, não se pode deixar de entender que a devedora apresentou justificação idónea para não ter efetuado a cessão decretada no despacho inicial.

27-Assim, ter-se-á que concluir que a devedora não agiu dolosamente ou com grave negligência, pois não deixou de informar a sua situação económica e não omitiu em momento algum os seus rendimentos, cooperando naquilo que lhe foi sendo solicitado.

28- E também não se pode afirmar que a satisfação dos créditos sobre a insolvência tenha ficado prejudicada, na medida em que houve uma cessão, ainda que parcial, mas dentro das suas reais possibilidades, e, também, porque grande parte dos créditos reclamados são, na sua grande maioria, igualmente da responsabilidade do seu ex-companheiro e que estão reclamados no processo de insolvência que corre termos sob o número ..., do Tribunal de Seia, Juiz 1.

29- Tal factualidade permite-nos, ao invés do decidido, afirmar que a devedora cumpriu, minimamente, com as suas obrigações do dever de informar o Sr. Fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe foi requisitado e que entregou ao fiduciário a parte dispensável dos seus rendimentos ao seu sustento digno e do seu agregado familiar, justificando a razão de não ter cedido toda a quantia objeto de cessão, sem que tenha prejudicado, com o seu comportamento, de forma clara e grave a satisfação dos créditos sobre a insolvência.

30- Em face do exposto entende a devedora, na sua modesta opinião e com o devido respeito por parecer contrário, ser ainda merecedora da manutenção do benefício que lhe estava a ser concedido, por justificada a sua conduta, importando, pois, revogar o despacho que recusou a exoneração do passivo restante e, consequentemente, ser aquele despacho substituído por outro que mantenha a decisão inicial de exoneração.

Não foram apresentadas contra-alegações.
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº 4 do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr. artigos 635º e 639º do Novo Código de Processo Civil –, a questão a decidir é uma só:
1. Se é de alterar a decisão recorrida que declarou a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Não tendo a decisão recorrida fixado separadamente quais os factos a atender para a apreciação da questão em apreço, seleciona este tribunal os seguintes factos, dentro dos elementos disponíveis nos autos:
1) A insolvência da Apelante foi declarada por sentença de 10 de fevereiro de 2015;
2) À data da sua declaração de insolvência a Apelante vivia em união de facto com R..., desde 1 de dezembro de 1996;
3) De tal relação existem dois filhos, B... e L..., nascidos em 21 de março de 1997 e em fevereiro de 2009, respetivamente;
4) A tal data encontrava-se a insolvente desempregada, auferindo um total de 480,95 € a título de subsidio por cessação da atividade e uma bolsa complementar resultante de um contrato de emprego-inserção;
5) O seu companheiro era mediador de seguros, trabalhando por conta própria, auferindo então rendimentos mensais na ordem dos 600,00€ mensais;
6) O valor mensal de todas as prestações assumidas pela insolvente e pelo seu companheiro perante as instituições financeiras, ascendiam à quantia mensal de, aproximadamente, 2.162,00€;
7) Foram relacionados créditos no valor de 34.568,80 €, acrescidos de juros no montante de 2.199,80€;
8) O processo de insolvência foi declarado encerrado a 30 de abril de 2015, por inexistência de bens;
9) Admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, por decisão de 8 de agosto de 2015, foi-lhe fixado um rendimento disponível equivalente a 1,5 salário mínimo;
10) Durante o primeiro ano e até junho de 2016 a insolvente remeteu todos os meses os comprovativos dos valores auferidos, sem que houvesse algum montante a entregar em virtude de auferir rendimentos inferiores ao rendimento indisponível fixado;
11) Em julho de 2016 começa a trabalhar na Associação G..., com um vencimento bruto mensal de 1.780€;
12) Residindo em ..., tal trabalho obriga-a a deslocações diárias de ... para a ...;
13) Nos meses de novembro e dezembro de 2016 a insolvente transferiu para a conta da massa a quantia de 1.537,87 €M;
14) No segundo ano, a insolvente transferiu ainda a quantia de 2.043,73 € para a conta da massa;
15) A 17 de setembro de 2017 formula, entre outras pretensões, a alteração do valor indisponível para o montante equivalente a 2,5 o salário mínimo, o que lhe foi indeferido;
16) A 5 de março de 2018 a insolvente reitera o seu pedido de alteração do montante indisponível para o equivalente a 2,5 salário mínimo, o que lhe volta a ser indeferido.
17) A insolvente entregou todos os elementos respeitantes a 2017 e 2018, embora com algum atraso;
18) Só em julho de 2019 a insolvente enviou os elementos em falta relativos a julho a dezembro de 2019.
19) À data de 23 de setembro de 2019, e considerando-se o valor do rendimento indisponível a requerida deveria ter entregado ao Fiduciário a quantia total de 30.752,98 €, da qual entregou apenas o montante global de 3.546,23 €, encontrando-se por entregar a quantia de 27.206,75.
20) Correu termos igual processo de insolvência relativamente ao companheiro da devedora, aqui insolvente, sob o nº ...[2].

*
O artigo 235º do CIRE (Código de Insolvência e Recuperação de Empresas)[3] atribui ao devedor que seja uma pessoa singular a possibilidade de lhe vir a ser concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
Ou seja, em linguagem comum, como afirma Assunção Cristas, “apurados os créditos da insolvência e uma vez esgotada a massa insolvente sem que tenha conseguido satisfazer totalmente ou a totalidade dos credores, o devedor pessoa singular fica vinculado ao pagamento aos credores durante cinco anos, findos os quais, cumpridos certos requisitos, pode ser exonerado pelo juiz do cumprimento do remanescente[4]”.
Trata-se, assim, de uma “versão bastante mitigada”[5] do modelo do fresh start, na medida em que, a seguir à liquidação, decorre um “período probatório” de cinco anos, durante o qual o devedor deverá afetar o seu rendimento disponível ao pagamento das dívidas aos credores que não foram integralmente satisfeitas no processo de insolvência. Só depois de decorrido tal período e se a sua conduta tiver sido exemplar, poderá o devedor requerer a exoneração, obtendo, assim, o remanescente não pago.
Como consta do Preâmbulo não publicado do Decreto-Lei que aprova o Código da Insolvência[6], “A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o credor permaneça, durante um período de cinco anos – designado período de cessão – ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume entre várias outras obrigações a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (…), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, e tendo o devedor adoptado um comportamento liso para com os credores, cumprindo todos os deveres que sob ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor de eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento”.
Tratando-se de um benefício concedido pelo legislador, o devedor terá de se esforçar por merecer a concessão do mesmo – perdão total das dívidas não integralmente satisfeitas – e aquela dependerá da efetiva cedência do “rendimento disponível”, tal como se acha definido no nº 3 do art. 239º do CIRE, durante o período de cinco anos posterior ao encerramento do processo de insolvência.
A concessão de tal benefício surge como a contrapartida do sacrifício do devedor que, durante o período de cessão se encontra sujeito, entre outras, à obrigação de “exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado” e à obrigação de “entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão” – als. b) e c), do nº 4 do art. 239º.
Expostos os motivos e objetivos que subjazem à consagração de tal instituto, passemos à análise da concreta questão objeto do presente recurso, respeitante à determinação sobre se o comportamento da insolvente, ao longo do tempo recorrido desde o início do período da cessão, justifica a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante.
Dispõe o nº 1 do artigo 243º do CIRE, sobre a “Cessação antecipada do procedimento de exoneração”, que, antes de terminado o período da cessão, o juiz deve recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência ou do fiduciário, caso se verifique alguma das circunstâncias previstas numa das alíneas a) a c) de tal norma.
A cessação antecipada do procedimento foi requerida nos autos pelo credor C..., ao abrigo do disposto na al. a) do nº 1 do art. 243º do CIRE, com fundamento na violação dolosa da obrigação prevista na al. c) do nº 4 do art. 239º.
Segundo a invocada alínea a) do nº 1 do artigo 243º, a cessação poderá ser declarada se “o devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência.”
No caso em apreço, a cessação foi requerida com um fundamento único: na violação da obrigação prevista na al. c) do nº 4 do artigo 239º, que impende sobre o devedor de, durante o período da cessão, “entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão”.
O despacho recorrido veio a decretar a cessação antecipada da exoneração do passivo restante, com a seguinte fundamentação:
“Compulsados os autos, mormente o Relatório (e tabela) junto pelo Sr. Fiduciário a 28 de Junho de 2019, complementado pelo Relatório/informação (e tabela) junto pelo Sr. Fiduciário a 23 de Setembro de 2019, verifica-se que a Insolvente não remeteu ao Sr. Fiduciário documentos referentes aos rendimentos relativos ao período compreendido entre Junho a Dezembro de 2016 (apenas o tendo feito posteriormente, já após a apresentação do Relatório a que alude o artigo 240º, nº2, do CIRE e apenas após notificada pelo Tribunal – por duas vezes – para o efeito).
Mais se verifica que, após a consulta dos elementos juntos aos autos pela Insolvente na sequência de determinação do Tribunal, foi possível aferir quais os rendimentos mensais auferidos pela Insolvente, constatando-se que, desde o início o período de exoneração esta deveria ter entregado o montante global de 30.752,98 tendo entregado somente a quantia 3.546,23€, estando, pois, em dívida a quantia de 27.206,75 euros
Verifica-se, pois, que desde o início do período de exoneração do passivo restante (há pouco mais de dois anos de meio), a Insolvente entregou apenas o montante de 3.546,23€, quando deveria ter entregado o montante de 27.206,75 euros
De salientar, que o montante entregue pela Insolvente corresponde a pouco mais de 10% da quantia que deferia ter sido efectivamente entregue ao Sr. Fiduciário.
Decorre do exposto que a insolvente violou o dever de informar o Sr. Fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado e o dever de entrega imediata ao fiduciário, quando por si recebida, da parte dos seus rendimentos objecto de cessão.
Com efeito, como supra explanado, os deveres acessórios elencados no nº4 do artigo 239º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas vinculam o devedor durante todo o período de cessão, isto é, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, ficando o insolvente vinculado a tais deveres, sem necessidade de qualquer comunicação por parte do fiduciário.
No que concerne, por seu turno, ao invocado agravamento da situação económica da Insolvente, desde o inicio do corrente ano (concretamente, a doença dos seus progenitores, o pagamento da prestação relativa à aquisição de um veículo automóvel, alegadamente utilizado para se deslocar para o trabalho, e o pagamento do ATL do filho mais novo), importa notar que o último requerimento dirigido aos autos pela Insolvente, requerendo a alteração do montante a excluir do rendimento disponível, data do ano de 2017 e de 5 de Março de 2018 (com prolação de decisão de indeferimento a 8 de Janeiro e a 8 de Março de 2018), optando a Insolvente, desde então, por nada dizer quer ao Tribunal, quer ao Sr. Fiduciário
Ademais, não pode o Tribunal olvidar a significativa diferença entre a quantia que a Insolvente entregou e a quantia que deveria ter sido entregue pela mesma.
Tal factualidade permite-nos afirmar que a devedora - ciente das obrigações a que estava adstrita, as quais foram expressamente consignadas no despacho inicial de exoneração do passivo restante - incumpriu, pelo menos com grave negligência, as obrigações de dever de informar o Sr. Fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado e de entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão, prejudicando, com o seu comportamento, de forma clara a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
Neste conspecto, demonstrou a devedora não ser merecedora da manutenção do benefício que lhe está a ser concedido, importando, pois, recusar a exoneração do passivo restante nos termos e para os efeitos do disposto no nº 1 do artigo 243º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.”
Constata-se, assim, que a cessão foi decretada, não só, com o fundamento invocado pelo Credor C... – incumprimento do dever de entrega do rendimento disponível, constante do art. 239º, nº 4, al. c) –, mas, ainda, por violação do “dever de informar sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo que lhe seja requisitado”.
Ao conhecer de um fundamento não invocado de cessação antecipada do procedimento, o tribunal recorrido incorreu na nulidade prevista no artigo 615º, nº1, al. d), do CPC, pelo que o mesmo não será aqui apreciado enquanto fundamento da decretada cessação.
Vejamos, então, o único fundamento que nos resta para suportar a declaração de cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante:  a violação da obrigação de entrega ao fiduciário dos rendimentos objetos da cessão.
Tendo sido determinado pelo tribunal, por despacho de 8 de junho de 2015, que a Insolvente se encontrava obrigada a entregar ao Fiduciário, durante o período da cessão, todo o rendimento disponível que a Insolvente viesse a auferir mensalmente em montante superior ao equivalente a 1,5 salários mínimos, a Insolvente procedeu unicamente às seguintes entregas:
- até junho de 2016 não procedeu a qualquer entrega por não ter auferido rendimentos superiores ao rendimento considerado indisponível;
- tendo celebrado um contrato de trabalho sem termo em julho de 2016, contrato que se mantém em vigor até hoje, desde Julho de 2016 até Setembro de 2019, a Insolvente auferiu rendimentos num total de 68.519,00€, dos quais 30.752,98 € excedem o equivalente a 1,5 salário mínimo mensal, dos quais entregou, unicamente:
          - no final de 2016 a quantia de 1.537,87 €;
          - em 2017, a quantia de 2.008,36 €.
Ou seja, de um rendimento “disponível” de 30.752,98€, a Insolvente depositou na conta da massa unicamente a quantia de 3.546,23€, o que foi considerado na decisão recorrida – “o montante entregue corresponde a pouco mais de 10% da quantia que deveria ter sido entregue ao Fiduciário” – como integrando um incumprimento com, pelo menos, grave negligência, de entregar imediatamente ao fiduciário, os rendimentos objeto da cessão.
Insurge-se a Insolvente/Apelante contra o decidido, invocando a alteração de circunstâncias – separação do seu companheiro, ter começado a trabalhar o que embora lhe tenha aumentado o rendimento disponível a levou a ter mais despesas relacionadas com a sua atividade profissional – e alegando que, por duas vezes, deu conhecimento de tal situação ao tribunal, pedindo a fixação do valor equivalente a 2,5 salários mínimos nacionais, solicitação que lhe foi recusada de ambas as vezes; mais alega ter comunicado ao Fiduciário, mais recentemente o agravamento dificuldades económicas, concretamente com a doença dos seus progenitores.
Reitera que, tal como comunicou ao Tribunal, em setembro de 2017 e em março de 2018, um montante equivalente a 1,5 salário mínimo nacional era insuficiente para fazer face ao sustento da devedora e dos seus dois filhos.
Tal como a jurisprudência[7] e a doutrina[8] vêm entendendo, a remuneração mínima garantida, contendo em si ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência do devedor, por ser concebida como o “mínimo dos mínimos”, deverá ser tida como referencial mínimo na determinação de qual o montante a reservar para o sustento do devedor/insolvente e seu agregado familiar.
Assim sendo, a margem de manobra do tribunal situar-se-á, em regra, entre o montante equivalente a um salário mínimo e um limite máximo de três salários mínimos [artigo 239º, nº 3, al. b), i)] – limite este que poderá ser ultrapassado por “decisão fundamentada do juiz em contrário”, prevendo-se ainda a possibilidade de excluir do rendimento a ceder “outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor” [alínea iii) da alínea b) da citada norma].
E se alguma jurisprudência tem enveredado pela aplicação da escala de Oxford para a determinação da capitação dos rendimentos de um agregado familiar – índice 1 para o primeiro adulto do agregado familiar, o índice 0,7 para os restantes e 0,5 para as crianças -, a jurisprudência vem-se afastando de tal orientação, no sentido de uma avaliação mais casuística desta norma[9].
Por outro lado, no procedimento conducente à exoneração do passivo restante são também tidos em consideração os interesses dos credores a verem os seus créditos satisfeitos, buscando-se um ponto de equilíbrio entre tais interesses e o direito do insolvente e do seu agregado a ter um sustento que lhe permita viver com um mínimo de dignidade[10].
Ponderando o montante global dos créditos a satisfazer (no valor global de 34.568,80€, acrescido de 2.199,8€ de juros vencidos), o sacrifício imposto à insolvente pela fixação de um rendimento indisponível de 1,5 salários e meio (fixado pelo mínimo dos mínimos, para um agregado formado por um adulto e dois menores e que foi mantido, mesmo quando um dos filhos atingiu a maioridade e a insolvente se separou do companheiro) –, implicando a cedência à massa de um valor global de 30.752,75€, no período de três anos da cessão, afigura-se-nos excessivo.
Com efeito, da análise da tabela de rendimentos junta a fls. 230 do processo físico, constata-se que do rendimento mensal por si auferido – rondando entre os 1.300/1.350 € mensais – e face ao rendimento indisponível fixado pelo tribunal –, a Insolvente seria obrigada a entregar ao Fiduciário mensalmente uma média de 500€, sendo que nos meses em que lhe foram pagos subsídios de férias, de Natal ou reembolsos de IRS, os montantes mensais a entregar para a massa chegaram a atingir, por ex., em maio de 2017, o valor de 2.595,14€, atribuindo-se à Insolvente o direito a reter unicamente a quantia de 835,50€.
Por outro lado, encontrando-se em causa a satisfação de créditos pelos quais é igualmente responsável o ex-companheiro da insolvente, também ele declarado insolvente, não há nos autos qualquer referência a se tais créditos terão sido objeto de satisfação, ainda que parcial, por essa via.
Podemos, assim, afirmar ter ocorrido alguma inércia por parte do Fiduciário na indagação das condições económicas da autora e alguma insensibilidade, quer por sua parte, quer por parte do Tribunal a quo, perante as alterações supervenientes nas condições socio-económicas da insolvente posteriormente ao despacho que determinou a cessão de todo o rendimento disponível superior a 1,5 a remuneração mínima garantida.
Assim como se nos afigura ser de ponderar que se a insolvente tivesse cumprido ou viesse a cumprir as entregas nos termos fixados pelo tribunal, ao fim dos cinco anos da cessão, os créditos encontrar-se-iam satisfeitos na sua totalidade (ou quase).
Como tal, entendemos que, no confronto entre os interesses dos credores na satisfação dos seus créditos e o direito do insolvente a uma vida digna, o tribunal poderia ter, de facto, sido mais flexível na apreciação da situação socioeconómica da insolvente, e na fixação do seu rendimento disponível, sobretudo na medida em que, tendo o progenitor sido objeto de igual declaração de insolvência, há grande probabilidade de a insolvente ter vindo a sustentar na íntegra os seus filhos, tal como o por si alegado.
Contudo, há aqui um outro fator a ter em consideração. Embora a insolvente tenha vindo, por duas vezes, requerer a alteração do montante do rendimento disponível, a insolvente não interpôs recurso de qualquer um dos despachos de indeferimento que, como tal, transitaram em julgado.
Assim sendo, ficou decidido, com trânsito em julgado, que a insolvente tinha efetivamente de entregar ao Fiduciário todos os seus rendimentos mensais que excedessem o equivalente a 1,5 da remuneração mínima mensal garantida – e, assim sendo, o valor em dívida ascende já a 27.206,75€.
E a insolvente nada mais entregou posteriormente a Julho de 2017. Nem os valores que resultaram do critério fixado pelo tribunal, nem sequer o valor que, em seu entender, poderia dispor mensalmente: embora a insolvente sustente que para o seu sustento e do seu agregado familiar necessitaria o equivalente a 2,5 salários mínimos (o que daria o valor de 1.400,00€ para 2019, valor superior ao por si auferido mensalmente), sempre poderia ter depositado o excedente nos meses em que auferiu os subsídios de natal, de férias e reembolsos de IRS, e não o fez.
A argumentação da insolvente – de que, não tendo sido atendidas as pretensões da devedora no que respeitava ao aumento do valor mínimo indispensável, não se pode deixar de entender que a devedora apresentou justificação idónea para não ter efetuado a cessão decretada no despacho inicial –, serviria como justificação para a insolvente vir a ceder mensalmente montantes inferiores aos que resultariam do montante indisponível fixado pelo tribunal. Mas já não se pode afirmar que possa constituir causa de exculpação suficiente para a omissão de entrega de qualquer quantia posteriormente a meados de 2017 e até 23 de setembro de 2019.
Por outro lado, encontrando-se decidido, a título definitivo, que, pelo menos até momento da decisão recorrida, a insolvente se encontrava obrigada a entregar todo e qualquer rendimento mensal que excedesse o equivalente a 1,5 salários mínimos, e ascendendo os montantes a ceder ao Fiduciário o valor total de 27.206,75 €, não se vislumbra, sequer, qual o interesse da insolvente na manutenção do período da cessão até final (junho de 2020)[11], sendo que, ainda que viesse a conseguir que, para o futuro, o tribunal lhe subisse o valor do rendimento mensal indisponível, e viesse a cumprir as entregas estipuladas, tal cumprimento não teria força para compensar o incumprimento do dever de entrega dos rendimentos disponíveis desde meados de 2017 a setembro de 2019, dos quais resultou a acumulação de rendimentos não entregues à massa no montante global de 27.206,75 €.
Confirmamos, assim, o juízo de existência de dolo ou, pelo menos, grave negligência, na omissão de entrega do rendimento disponível durante, pelo menos, os últimos dois anos que antecedem o despacho recorrido.
Concluindo, a apelação é de improceder.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordando os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a suportar pela insolvente, sem prejuízo do disposto no artigo 248º CIRE.

                                                                Coimbra, 21 de janeiro de 2020

V – Sumário elaborado nos termos do artigo 663º, nº 7 do CPC.

1. Na determinação do rendimento disponível deve buscar-se um ponto de equilíbrio entre os interesses dos credores a verem os seus créditos satisfeitos e o direito do insolvente e do seu agregado familiar a ter um sustento que lhe permita viver com uma mínimo de dignidade.

2. Na ausência de interposição de recurso dos despachos de indeferimento do pedido de aumento do valor indisponível, tem de ter-se por assente que a insolvente se encontrava obrigada à entrega ao fiduciário dos rendimentos mensais que ultrapassassem o montante determinado pelo tribunal.

3. A alegação de que o montante indisponível que lhe foi fixado é insuficiente para a insolvente e o seu agregado familiar viverem condignamente, não serve de justificação para a total falta de entrega de rendimentos, quer dos montantes resultantes do critério fixado pelo tribunal, quer de quaisquer outros, ao fiduciário, durante mais de dois anos.

 


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[1] Que aqui se reproduzem por súmula, face ao incumprimento do dever de sintetizar os fundamentos do recurso em violação do nº1 do artigo 639º CPC (a Apelante limitou-se a reproduzir o por si alegado no corpo das alegações de recurso, numerando a sua alegação).
[2] Cfr. informação aposta pela Secção na conclusão aberta ao juiz a 10-02-2015.
[3] Código a que pertencerão todas as disposições citadas sem menção de origem.
[4] Assunção Cristas, “Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante”, in THEMIS 2005, Edição especial, “Novo Direito da Insolvência”, Almedina, pág. 167.
[5] Na expressão de Maria Manuel Leitão Marques e Catarina Frade, “Regular o sobreendividamento”, in “Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas, Comunicações sobre o Anteprojecto do Código”, Ministério da Justiça – Gabinete da Justiça e Planeamento, Coimbra Editora, Outubro de 2004, pág. 94.
[6] Da autoria de Osório de Castro, e que se mostra publicado in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Comunicações Sobre o Anteprojecto de Código”, Ministério da Justiça – Gabinete de Justiça e Planeamento, Coimbra Editora, Outubro de 2004, pág. 233.
[7] Cfr., entre muitos outros, Acórdão do STJ de 02-02-2016, relatado por Fonseca Ramos, disponível in www.dgsi.pt.
[8] Entre outros, José Gonçalves Ferreira, “A exoneração do passivo restante”, Coimbra Editora, p.94.
[9] Cfr., Luís Menezes Leitão, “A Recuperação Económica dos Devedores”, Almedina, p. 135, citando Acórdãos do TRG de 17-05-2018, relatado por António Barroca Penha, e do TRL de 27-09.2018, relatado por António Santos, disponíveis in www.dgsi.pt.
[10] Cfr., Mafalda Bravo Correia, “Critérios de Fixação do rendimento disponível no âmbito do procedimento de exoneração o passivo restante na Jurisprudência e sua conjugação com o dever de prestar alimentos.”, in Julgar – nº 31- 2017, p.118. A razão de ser da exclusão de certos rendimentos [como é o caso da prevista na al. i)] assenta na designada função interna do património (base ou suporte de vida do seu titular) e na sua prevalência sobre a função externa (garantia geral dos credores) Cfr., neste sentido, Lectícia Marques, “Fresh Start: a exoneração do passivo restante ou uma nova oportunidade concedida a pessoas singulares”, 2009, pág. 19, disponível in www.repositório-aberto.up.pt., e José Gonçalves Ferreira, “A Exoneração do Passivo Restante”, Coimbra Editora, p. 91, e quanto à distinção entre a função interna e a função externa do património, cfr. Luís Carvalho Fernandes, “Exoneração do Passivo Restante na Insolvência das Pessoas Singulares no Direito Português”, in Coletânea de Estudos sobre a Insolvência”, QUID JURIS, p. 295. No sentido da inexistência de qualquer inconstitucionalidade material na ponderação dos interesses em jogo do devedor insolvente e dos credores na previsão do instituto da exoneração do passivo restante, se pronunciou Paulo Mota Pinto, “Exoneração do passivo restante: Fundamento e constitucionalidade”, in “III Congresso de Direito da Insolvência”, Coord. Catarina Serra, Almedina, pp.175-195.
[11] Para além da óbvia vantagem de manutenção de sustação das ações executivas pendentes e de proibição de instauração de novas execuções.