Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1434/10.2T8CVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MÁRIO RODRIGUES DA SILVA
Descritores: ADMINISTRAÇÃO DO CONDOMÍNIO
DEVER DE VIGILÂNCIA DAS PARTES COMUNS RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS CAUSADOS
PRIVAÇÃO DO USO DE VEÍCULO
EQUIDADE
Data do Acordão: 11/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO – JUÍZO LOCAL CÍVEL DA COVILHÃ – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 493º, Nº 1, 562º, 566º, Nº 3, 1430º, Nº 1, E 1436º DO C. CIVIL .
Sumário: 1. Atento o dever de vigilância que recai sobre o administrador do condomínio quanto às partes comuns do edifício em propriedade horizontal, é aplicável o regime do artigo 493º, n.º 1, do Código Civil, por força do qual “quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar” responde pelos danos causados pela coisa, “salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua”.

2. A privação do uso do veículo constitui um dano indemnizável, por se tratar de uma ofensa ao direito de propriedade e caber ao proprietário optar livremente entre utilizá-lo ou não, porquanto a livre disponibilidade do bem é inerente àquele direito constitucionalmente consagrado (art.º 62.º da CRP).

3. Concluindo-se pelo dano e não sendo possível quantificá-lo em valores certos face aos factos provados, o tribunal deverá recorrer à equidade para fixar a indemnização, nos termos previstos no artigo 566º, nº 3 do Código Civil.

Decisão Texto Integral:               








  Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

RELATÓRIO

J... intentou a presente ação declarativa com processo comum contra D... – Administração de Condomínios, Lda., pedindo a condenação desta a pagar-lhe:

a) - A quantia de €3.677.60, a título de indemnização pelos danos havidos no seu automóvel;

b) A quantia de €1.680,00, a título de indemnização pela privação do uso do veículo;

c)  Os juros legais, contados desde a data da citação até integral pagamento.

Para o efeito, alegou em síntese:

-é proprietário do veículo de marca Mercedes-Benz, classe A, 200 CDI, com a matrícula ...;

-no ano de 2018 emprestou-o ao seu filho, P..., que estava a usá-lo para as suas deslocações diárias para o Hospital da ..., onde trabalhava como médico;

-Em 01 de janeiro de 2019 o seu filho P... iniciou o arrendamento da fração autónoma correspondente ao 3º-A do prédio urbano sito na Av. ..., correspondente a um T2 e lugar de estacionamento, sito no rés-do-chão, delimitado por linhas demarcadas no chão, onde guardava o referido veículo;

-a ré era a empresa responsável pela administração do condomínio;

-o chão da garagem em que se situava o aludido estacionamento existiam várias aberturas redondas, com cerca de 15 centímetros de diâmetro, que permitiam a ligação ao exterior do prédio, aparentemente destinadas a escoamento de águas, as quais se encontravam sem qualquer tampa, rede ou filtro;

-no dia 20 de janeiro de 2019, quando o seu filho circulava com o veículo matricula ..., à saída da garagem da fração de que era arrendatário, deu conta de o carro demonstrar um comportamento anormal, nomeadamente com a perda do líquido do “limpa para brisas” e dureza e grande resistência no pedal do travão, que impedia a realização de travagens e a normal utilização do veículo;

-chamou a Assistência em Viagem, que enviou um técnico/mecânico ao local, o qual verificou, após abrir o capot do carro, que se encontravam roídos por roedores o tubo de vácuo do servofreio à bomba de vácuo e diversos cabos/tubos, em face do que o mecânico procedeu à substituição dos “cabos dos travões”, de molde a permitir que o filho do autor pudesse chegar ao seu local de trabalho;

-no dia 24 de janeiro de 2019 o filho do autor, igualmente à saída da garagem quando se dirigia para o Hospital, notou novamente grande dureza no pedal do travão, grande dificuldade em efetuar travagens, concluindo que o automóvel não apresentava condições de circulação em segurança:

-telefonou de novo para o serviço de Assistência em Viagem, o qual enviou, de imediato, um reboque, tendo sido o automóvel transportado para a oficina C..., S.A.,onde foi realizado o diagnóstico completo dos problemas que o automóvel apresentava, tendo sido novamente detetados vários componentes do automóvel roídos por roedores, designadamente o tubo de vácuo do travão e componentes no interior do capot;

-carecendo o veículo de reparação, foi solicitado à oficina em causa um orçamento que na data de 31 de janeiro de 2019 era de €6.352,38, impossibilitando tais danos a circulação do veículo;

-o veículo em causa esteve imobilizado desde 24 de janeiro de 2019 até maio de 2019, altura em que o autor entregou o veículo na oficina para reparação, tendo o conserto tido um custo de €3.677,60.

-o veículo ficou reparado em 18 de maio de 2019 (data da entrega do veículo ao autor), pelo que a privação do uso do veículo deverá ser calculada durante esse período a €15,00/dia:

-o autor foi obrigado a pedir a um familiar um automóvel emprestado que substituísse aquele, já que a reparação que era necessária obrigava a um dispêndio monetário de que o autor não dispunha de imediato, o que lhe provocou ansiedade, desgaste emocional, irritação e incomodo;

-os ratos que provocaram os citados danos no veículo do autor entraram para o interior da garagem do prédio através das aberturas suprarreferidas, existentes no chão da garagem, provenientes do exterior, ao que se supõe na sequência do início de obras em terrenos contíguos, uma vez que foram avistados vários ratos a circular nas garagens em causa, bem como fezes desses animais, designadamente, junto a essas aberturas, quer em momento anterior ao surgimento dos problemas no carro do autor, quer ainda em dias seguintes a tais ocorrências, tendo sido roídos - para além dos componentes do veículo do autor - bens de outros condóminos, nomeadamente roupas, peças de mobiliário, produtos de limpeza e garrafões de água, existentes nas garagens;

-embora tenha sido advertida, de imediato, da situação, apenas no mês de fevereiro de 2019, a ré procedeu à colocação de tampas metálicas perfuradas e ajustadas com silicone em todas as aberturas de escoamento de água existentes na garagem, assim impedindo a entrada de animais através dos sobreditos buracos, tendo igualmente procedido à colocação, em determinados pontos da garagem, de caixas próprias para desratização;

Concluiu, dizendo que a ré declinou qualquer responsabilidade pelo sucedido, pese embora fosse à mesma que incumbisse a administração do prédio e, consequentemente, a tapagem ou proteção das aludidas aberturas, em momento anterior ao surgimento dos problemas aqui em apreço, o que não fez, numa atitude culposamente negligente, para além de que, pese embora os roedores tenham-se manifestado no mês de janeiro de 2019, apenas em fevereiro desse ano procedeu à tapagem dos buracos por onde os mesmos se introduziram, o que é, igualmente, evidenciador da sua conduta negligente.

A ré contestou sustentando em síntese que:

-pese embora tenha sido contactada pelo filho do autor sobre a matéria em apreço na petição inicial, declinou a sua responsabilidade pelo sucedido por entender que essa responsabilidade não recai sobre ela,

- já que, por um lado, o prédio em apreço nos autos está edificado em conformidade com as normas legais e regulamentares vigentes;

- por outro lado, nunca nenhum dos condóminos se havia manifestado quanto à falta de tapagem das aberturas em causa, até às circunstâncias verificadas em janeiro de 2019;

- sendo que tais aberturas se destinam ao escoamento de águas (nomeadamente de águas de lavagem das garagens), sendo vulgar não se encontrarem tapadas, sob pena de não realizarem adequadamente a função a que se destinam;

- para além de que o prédio em causa se situa em plena zona urbana consolidada da cidade da Covilhã, não sendo de representar como um evento normal, provável e previsível a existência de grandes quantidades de roedores em tal zona, pelo que nunca as aludidas aberturas foram configuradas como uma fonte de perigo; por fim,

- não se verifica o pressuposto da culpa da ré pelo sucedido, uma vez que não é possível imputar a entrada de ratos na garagem a qualquer comportamento da ré, muito menos a qualquer comportamento ilícito, atendendo a que foram as diversas obras em terrenos próximos do prédio em apreço nos autos que terão estado na origem do surgimento de uma quantidade inusitada e imprevisível de roedores, pelo que não era previsível a entrada dos roedores na garagem, reconduzindo-se a mesma a um acontecimento fortuito, inesperado e alheio ao comportamento da ré.

- a tapagem dos aludidas aberturas não corresponde a um acto de conservação ou manutenção das garagens, sendo que logo que teve conhecimento da possibilidade de estarem a entrar roedores pelas aberturas em apreço a ré cuidou de resolver, ou pelo menos de acautelar, tal possibilidade, tendo solicitado a deslocação ao local de uma empresa especializada em serviços de desinfestação que, de imediato, levou a cabo uma desratização em 24 de janeiro de 2019.

- a ré procedeu de imediato à tapagem das aberturas com uma rede, ainda que de carácter provisório, e que se revelou ser a solução possível no momento pois os fornecedores que contactou para o efeito não tinham tampas e grelhas metálicas disponíveis nessa ocasião, as quais vieram a ser fornecidas e colocadas em fevereiro,

- participou ainda nesse dia a situação à seguradora com quem o condomínio celebrou contrato de seguro tendo por objeto o prédio em apreço nos autos,  a qual não assumiu a responsabilidade pelo sucedido por considerar, por um lado, que os danos então invocados pelo filho do autor estavam excluídos das garantias da apólice e, por outro lado, por não se verificar igualmente qualquer responsabilidade por parte do condomínio, em virtude do sucedido resultar de um acontecimento exterior e alheio ao comportamento do mesmo.

- a quantia peticionada pelo autor, a título de indemnização por alegada privação do uso do veículo, sempre teria que ser desconsiderada, uma vez que foi o filho do autor que sofreu com a privação do mesmo, por ser ele que utilizava a viatura, pelo que apenas este teria legitimidade para formular tal pedido ou, caso assim não se entenda, sempre teria a mesma de ser reduzida por absoluta falta de fundamento, por não terem sido alegados factos que permitam aferir o montante diário peticionado de 15,00€, tal como também não foram alegados pelo autor quaisquer motivos para não ter reparado de imediato o veículo, para além de que a ré só foi interpelada pelo filho do autor em 25 de março de 2019, pelo que o período de privação invocado não poderia ser atendido.

Concluiu pugnando pela improcedência da ação, com a absolvição da ré dos pedidos, em virtude de a ré não ser responsável pela ocorrência dos danos que o autor invoca, quer porque não violou qualquer norma nem obrigação, quer porque não omitiu qualquer comportamento devido, quer ainda porque o sucedido deveu-se a um acontecimento fortuito, anómalo e imprevisível e cuja verificação não resulta de qualquer comportamento da ré.

Foi elaborado despacho saneador, no qual se identificou o objeto do litígio e se procedeu à enunciação dos temas da prova.

Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, tendo na sequência da mesma, sido proferida sentença que julgou a presente ação improcedente e, em consequência, absolveu a ré dos pedidos formulados pelo autor.

Inconformado com o decidido, o autor interpôs recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
...
1. Deve a sentença em crise ser revogada, substituindo-a por outra que dando procedência aos pedidos formulados pelo Recorrente, condene a Recorrida a pagar o valor de 3.677,60 € a título de danos patrimoniais respeitantes à reparação do veículo, e ainda na condenação dos danos causados pela imobilização do veículo entre os dias 24 de Janeiro e 18 de Maio de 2020, a liquidar em execução de sentença.
2. A sentença em crise violou os artigos: 493º, 1420º, 1424º, 1427º e 1430º do CCivil; nº 1 art.º 259º e 260º do Decreto-Regulamentar nº 23/95, de 23 de Agosto, e 92º do REGEU.
TERMOS EM QUE DEVE SER REVOGADA A SENTENÇA EM CRISE, SUBSTITUINDO-A POR OUTRA QUE DÊ PROCEDÊNCIA AOS PEDIDOS FORMULADOS PELO RECORRENTE, CONDENANDO-SE A RECORRIDA NO PAGAMENTO DA QUANTIA DE 3.677,60 € DE DANOS PATRIMONIAIS RESPEITANTES À REPARAÇÃO DO VEÍCULO DO RECORRENTE E, AINDA, NO PAGAMENTO DOS DANOS DECORRENTES DA IMOBILIZAÇÃO ENTRE 24 DE JANEIRO E 18 DE MAIO, NO VALOR DE 1.680,00 € OU EM MONTANTE A LIQUIDAR EM EXECUÇÃO DE SENTENÇA.
O recorrido apresentou contra-alegações, sustentando em síntese que deve o presente recurso ser julgado improcedente, devendo, em consequência, manter-se a sentença recorrida.
O recurso foi admitido.

OBJETO DO RECURSO
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as questões a decidir são as seguintes:
1. Se verificam os pressupostos da responsabilidade por facto ilícito.
2. Obrigação de indemnização: danos emergentes e indemnização pela privação de uso.

FUNDAMENTAÇÃO

Na sentença recorrida foi fixada a matéria de facto da seguinte forma que se reproduz:

                A) Factos provados

...

B) Factos não provados
...

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1. Se verificam os pressupostos da responsabilidade por facto ilícito.

Na sentença recorrida conclui-se da seguinte forma: “não era exigível à ré qualquer outra atuação no que diz respeito à tapagem prévia das aberturas (i. e, sem denúncia de qualquer problema relacionado com as mesmas e sem a solicitação/deliberação dos condóminos nesse sentido); por outro lado, também não era exigível à ré qualquer outra atuação para além daquela que adotou quando o sucedido com o veículo do autor que lhe foi comunicado.

Em face do exposto, não existiu qualquer atuação que a ré estivesse obrigada, a fim de evitar o sucedido ao veículo do autor.

Mesmo que assim não se entendesse, nunca a omissão da ré lhe seria imputável a título de culpa, nos termos supra expostos, uma vez que não lhe era exigível outro tipo de atuação, não sendo, dessa forma, censurável qualquer postura adotada por aquela.

Assim, em nosso juízo, e em vista da matéria de facto dada como provada- e malgrado as consequências que advieram para o veículo automóvel do autor - tal factualidade não inculca a verificação dos pressupostos da responsabilidade extracontratual por parte da ré, por não se lhe poder imputar qualquer responsabilidade na produção do resultado danoso.

A ação será assim julgada improcedente, devendo, em consequência, a ré ser absolvida dos pedidos formulados pelo autor nestes autos, o que se determinará a final”.

Sustenta o recorrente que os factos apurados pelo Tribunal a quo permitem e impõem a conclusão pela violação do dever de vigilância das partes comuns sob a sua administração por parte da recorrida, nos termos do nº 1 do artigo 493º do C.Civil e pela não elisão da presunção de culpa que sobre si recai, por não ter dado cumprimento ao disposto no nº 1 do art.º 259º e 260º do Dec-Reg. nº 23/95.

Vejamos o direito aplicável.

Emana do disposto no artigo 1430.º, n.º 1 do Código Civil que administração das partes comuns de um edifício constituído em propriedade horizontal cabe à assembleia de condóminos e a um administrador eleito por aquela.

A assembleia de condóminos dispõe de poderes para controlar, aprovar e decidir todos os actos de administração, competindo ao administrador – que pode ser por aquela exonerado e a quem presta contas (artigo 1435.º n.º 1, do Código Civil) – dar execução às deliberações da assembleia e, bem assim, tomar todas as providências necessárias e adequadas à conservação do edifício sempre na perspetiva do interesse comum de todos os condóminos.

O artigo 1436.º do citado código comete ao administrador, além de outras que lhe sejam atribuídas pela assembleia, um vasto leque de funções próprias das quais importa aqui destacar as de: (i) realizar os atos conservatórios dos direitos relativos aos bens comuns (al. f)).

Por atos conservatórios podem entender-se os adequados a evitar a degradação ou destruição do conjunto de elementos que integram as suas partes comuns do edifício constituído em propriedade horizontal, entendidas na aceção do artigo 1421º do Código Civil.

Conforme é referido no Ac. do TRE de 11-05-2006[1] “Ao administrador de condomínio compete, nos termos do disposto no artigo 1430º, n.º1 CC, a administração das partes comuns do edifício, o que pressupõe zelar pelo seu bom funcionamento e praticar todos os actos de conservação e manutenção das partes comuns. Daqui decorre para o administrador do condomínio um dever de vigilância sobre as partes comuns do edifício que, como quaisquer outras coisas, são sempre susceptíveis de provocar danos”.

O administrador do condomínio tem assim o dever de vigiar o estado de conservação das partes comuns do condomínio de sorte a impedir que nele se ocasionem focos danosos, sendo certo que as referidas aberturas se presumem partes comuns do edifício (art.º 1421º, nº 1, al. d), do Código Civil).

In casu está, pois, em causa a responsabilidade civil do administrador do condomínio pelos danos causados ao recorrente, por não ter aquele procedido de forma antecipada, colocando grelhas perfuradas nas aberturas circulares com cerca de 15 cm de diâmetro existentes em vários pontos das garagens, destinadas ao escoamento de águas de lavagem de pavimentos, que permitiam a ligação da garagem ao exterior do prédio, de modo a impedir a entrada de roedores que roeram os componentes do automóvel do recorrente causando a este danos.

Perante a factualidade provada coloca-se a questão de saber se deve aplicar-se ao caso a norma do art.º 493º, nº 1, do CC, que dispõe o seguinte:

Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido, ainda que não houvesse culpa sua”.

Conforme referem PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA[2] “Estabelece-se neste artigo … a inversão do ónus da prova, ou seja uma presunção de culpa por parte de que tem a seu cargo a vigilância de coisas ou animais ou exerce uma atividade perigosa. Abre-se mais uma excepção à regra do nº 1 do artigo 487º, mas não se altera o principio do artigo 483º de que a responsabilidade depende da culpa. Trata-se, portanto, de responsabilidade delitual e não de responsabilidade pelo risco ou objetiva.

Segundo o Ac. do STJ de 10-12-2013[3] “Estabelecendo esta norma uma presunção de culpa que em bom rigor é simultaneamente uma presunção de ilicitude, de tal modo que, face à ocorrência de danos, se presume ter existido incumprimento do dever de vigiar”.

Por conseguinte, em conformidade com a regra geral do artigo 342º, nº 1, do CC, cabe ao lesado demonstrar apenas o dano e o respetivo nexo causal entre o facto (ação ou omissão do lesante) e o dano, presumindo-se, salvo prova em contrário, a cargo do lesante, a ilicitude (omissão do dever de vigilância) e a culpa (diligência na vigilância), enquanto actuação negligente ou imprevidente do obrigado à guarda da coisa, à luz do critério de um “bonus pater famílias” (artigo 487º, nº 2, do CC).

No caso presente o autor/lesado conseguiu provar de que pelas aberturas destinadas ao escoamento de água, existentes na garagem do prédio, entraram os ratos que roeram os componentes do automóvel de que é proprietário, causando-lhe danos.

Na situação em apreço admite-se a exclusão da responsabilidade mediante a prova de factos que traduzam ou ausência de culpa, na modalidade de imprevidência, inconsideração ou negligência ou uma situação de inevitabilidade (caso de força maior), em que os danos se produziriam mesmo sem qualquer culpa do proprietário da coisa de que naturalisticamente decorrem os danos para terceiros.

Neste sentido, e conforme é posição maioritária da doutrina e da jurisprudência, a parte final do nº 1 do artigo 493º do CC estabelece um caso de relevância negativa da causa virtual do dano, ao isentar o agente de responsabilidade se este provar que os danos causados pela coisa que lhe cabia vigiar sempre se teriam produzido ainda que não houvesse culpa sua. A causa virtual pode definir-se como o facto, real ou hipotético, que tenderia, segundo as regras da normalidade e da experiência, a produzir determinado dano, se este não tivesse sido causado por outro facto, ao qual se dá o nome de causa rela.

(…)

Em suma, em razão do antes exposto, à luz do artigo 493º, nº 1, pode-se concluir, em primeiro lugar, que na ausência de prova de factos que afastem a presunção de culpa (e ilicitude) prevista no nº 1 do artigo 493º do CC, o … ou o obrigado à vigilância da coisa (…) responde pelos danos causados ao lesado pela coisa, pois que, em tal hipótese, concorrem todos os pressupostos da responsabilidade aquiliana, ou seja o facto, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano sobrevindo.

Em segundo lugar, não estando em causa uma situação de responsabilidade objetiva ou pelo risco, pode-se também concluir que a dita presunção de ilicitude e de culpa é uma presunção ilidível ou iuris tantum, que pode ser excluída por parte do obrigado à vigilância da coisa - e a quem cabe o respetivo ónus de prova (artigo 342º, nº 2 e 350º, nº 2, ambos do CC)- incumbindo-lhe, assim, neste contexto, demonstrar que nenhuma culpa houve da sua parte, ou seja, demonstrar uma situação de força maior, em que mesmo cumprindo os seus deveres de vigilância e guarda sobre a coisa, o dano sempre se produziria por emergir de um facto natural ou humano que, ainda que previsível, não poderia ser evitado, nem em si mesmo, nem nas suas consequências.[4]

Seguindo o Ac. do STJ de 7-2-2017[5], “para afastar a presunção legal de culpa, de acordo com o disposto pelo artigo 493º, nº 1, parte final, do CC, importa que o demandado demonstre a presença e atenção continuadas que o conceito de vigilância pressupõe, não bastando a prática de quaisquer actos genéricos realizados antecipadamente”, “mas não exige ao lesante, para se exonerar da responsabilidade, como acontece com os danos causados no exercício de actividades perigosas, a que se reporta o respetivo nº 2, que demonstre que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias para o evitar”.

Em suma, a pessoa responsável nos termos do artigo 493º, nº 1, do CC pode isentar-se da obrigação de indemnizar contra si presumivelmente instituída por dois modos:

-provando ter cumprido o dever de vigilância que ao caso cabia (ilidindo, assim, a presunção de culpa);

-demonstrando que os danos se teriam produzido igualmente anda que ele tivesse sido observado (relevância negativa da causa virtual).

Como acima já se referiu, para efeitos de ilisão de presunção de culpa prevista no artigo 493º, nº 1, do CC, para além da hipótese de causa de força maior, que não é aplicável ao presente caso, incumbe ao lesante demonstrar que nenhuma culpa lhe pode ser assacada ao nível da vigilância das aberturas em causa, ou seja, que a sua conduta é aquela que teria sido adoptada por “um bónus pater famílias”, ou seja, de um cidadão medianamente previdente, cuidadoso e diligente, sem se exigir, pois, uma atuação humana excepcional ou anormal, em face das circunstâncias concretas do caso.

Neste sentido, e como é pacifico, a culpa, seja ela sob a forma de dolo ou de negligência, exprime um juízo de reprovabilidade pessoal da conduta do agente: o lesante, em face das circunstâncias concretas do caso, podia e devia agir de outro modo, evitando, assim, através dessa conduta que lhe era exigível, a produção do dano em causa.

Sustenta a recorrente que estava “o condomínio recorrido vinculado ao dever de manter, conservar e reparar as zonas comuns do edifício, designada e concretamente a conduta de escoamento de águas, competindo-lhe a colocação de grelha ou ralo, obrigação imposta nos termos do nº 1 do art.º 259º do Dec-Reg. nº 23/95- Regulamento Geral dos Sistemas Públicos e Prediais de Distribuição de Água e de Drenagem de águas-residuais”.

Sustenta o recorrido, nas contra-alegações, que não está assente nenhum facto nos autos que permita afirmar que, após alcançarem o exterior, as águas de lavagem do pavimento da garagem são conduzidas por um coletor ou um ramal público e que entram no sistema de drenagem de águas residuais que aquele Decreto regula.

O artigo 3º do Regulamento n.º 26/2011[6]   (em vigor à data dos factos) que tem por objeto os sistemas de distribuição pública e predial de água do concelho da Covilhã, remete para o Decreto-Regulamentar n.º 23/95, de 23 de agosto (que aprovou o Regulamento Geral dos Sistemas Públicos e Prediais de Distribuição de Água e de Drenagem de Águas Residuais).

Vejamos agora as normas deste regulamento com relevância para esta questão.

Artigo 205º- Sistemas de drenagem de águas residuais domésticas

1-            Todas as águas residuais recolhidas acima ou ao mesmo nível do arruamento onde está instalado o coletor púbico em que vão descarregar devem ser escoadas para este coletor, por meio de ação da gravidade.

2-            As águas residuais recolhidas abaixo do nível do arruamento, como é o caso das caves, mesmo que localizadas acima do nível do coletor público, devem ser elevadas para um nível igual ou superior ao do arruamento, atendendo ao possível funcionamento em carga do coletor público, com o consequente alagamento das caves.

3-            Em casos especiais, a aplicação de soluções técnicas que garantam o não alagamento das caves pode dispensar a exigência do número anterior.

4-            Para prevenção da contaminação deve observar-se o estipulado no artigo 85º.

Artigo 207º - Sistemas de águas residuais domésticas onde não exista drenagem pública

Os sistemas prediais de águas residuais domésticas, quando não exista drenagem pública, devem obedecer a todas as disposições do presente Regulamento, até à câmara do ramal de ligação.

Artigo 257º - Ralos

Os ralos são dispositivos providos de furos ou fendas, com a finalidade de impedir a passagem de matérias sólidas transportadas pelas águas residuais, devendo estas matérias ser retiradas periodicamente.

Artigo 259º - Implantação dos ralos

1-            É obrigatória a colocação de ralos nos locais de recolha de águas pluviais e de lavagem de pavimentos e em todos os aparelhos sanitários, com exceção das bacias de retrete.

2-            Onde se preveja grande acumulação de areias deve usar-se dispositivos retentores associados aos ralos.

3-            Os ralos de lava-louças devem ser equipados com cestos retentores de sólidos.

Artigo 260º - Natureza dos materiais dos ralos

Os ralos podem ser de ferro fundido, latão ou outros materiais que reúnam as necessárias condições de utilização.

Encontra-se assente no ponto 7 dos factos provados que “No chão da garagem em que se situa o estacionamento existem várias aberturas redondas, de forma circular, com cerca de 15 cm de diâmetro, que permitem a ligação ao exterior público, destinadas ao escoamento de águas, as quais estiveram sem qualquer tampa, rede ou filtro, desde a conclusão do prédio até data não concretamente apurada, mas após o dia 24 de janeiro de 2019,

Decorre destes preceitos que, independentemente de as águas de lavagem do pavimento da garagem serem ou não conduzidas, no exterior do edifício, por um coletor ou um ramal público, as aberturas em causa deviam ter ralos ou tampas como as que foram posteriormente colocadas.

Defende a recorrente que a finalidade da colocação de ralos e em determinados casos de os dotar de dispositivos retentores, não é a de impedir a entrada de animais, mas sim evitar a passagem de matérias sólidas para os ramais de descarga das águas residuais.

Com efeito, o escopo dos artigos 257º, 258º, 259º e 260º do regulamento em causa é o de impedir a passagem de matérias sólidas transportadas pelas águas residuais. Mas não deixa de ser verdade  que a colocação dos ralos ou tampas teria impedido a passagem dos roedores do exterior para os lugares de estacionamento.

A ré, para afastar a sua culpa, alega que o prédio foi vistoriado nas condições em que se encontrava à data dos factos alegados pelo autor (no que se inclui as aberturas redondas com cerca de 15 cms de diâmetro existentes no chão das garagens) e foi considerado apto a ser utilizado, pelo que foi emitido alvará de utilização.

Resultou provado que em 20 de abril de 2010 foi emitido o alvará de autorização de utilização nº 99/10, que titula a aprovação de utilização do edifício.

A licença de utilização é, pois, um documento administrativo a emitir pela respetiva autoridade municipal, que certifica a conformidade da construção com o respetivo projeto, mas obviamente não isenta a administração do condomínio do dever de vigilância.

Referiu ainda que foram realizadas 11 assembleias gerais de condomínio, sendo que em nenhuma delas alguma vez foi colocada a questão da necessidade de tapagem das aberturas e nunca chegou ao seu conhecimento que tivessem sido avistados ratos nas garagens do prédio, nem sequer sinais da sua presença.

Resultou provado que em nenhuma assembleia de condóminos foi colocada a questão da necessidade de tapagem das aberturas, nem nunca foi deliberada/aprovada/solicitada pelos condóminos a colocação de grelhas de proteção nas aludidas aberturas nem denunciado qualquer problema com as mesmas até ao sucedido; o prédio situa-se na zona urbana da cidade da Covilhã e que desde 1/11/2011 até janeiro de 2019 nunca foram avistados roedores nas garagens do prédio, nem sinais da sua presença como, por exemplo, excrementos.

O facto de a questão nunca ter sido levantada anteriormente não isenta a administração do condomínio do dever de vigilância.

Por fim, refere que a tapagem das aberturas não constitui um acto de conservação nem de manutenção da parte comum do prédio em apreço (as garagens) a cujo cumprimento a ré estivesse adstrita, mas sim uma inovação, a qual tem que ser solicitada e aprovada pela assembleia de condóminos,  o que nunca sucedeu;

Estabelece o art.º 1425° do C. Civil que:

"1. As obras que constituam inovações dependem da aprovação da maioria dos condóminos, devendo essa maioria representar dois terços do valor total do prédio.

2.            Nas partes comuns do edifício não são permitidas inovações capazes de prejudicar a utilização, por parte de algum dos condóminos, tanto das coisas próprias como das comuns.

Conforme referem PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA[7], no “conceito de inovação (…) cabem tanto as alterações introduzidas na substância ou na forma da coisa (…), como as modificações estabelecidas na afetação ou destino da coisa.

Tanto constitui inovação a construção de uma nova garagem ou a demolição dum terraço, como a instalação de um para-raios, de um sistema de ar condicionado, de um ascensor, de uma piscina, ou a afectação de um pátio a um lugar de acesso ao cinema instalado numa das fracções autónomas.

A realização das obras que constituem inovação está sujeita a aprovação de uma maioria especial qualificada”.

No caso dos autos é manifesto que a colocação de tampas perfuradas e ajustadas com silicone em todas as aberturas de escoamento de água, existentes na garagem do prédio, não pode ser qualificada como inovação.

Na verdade, em face das circunstâncias do caso concreto exigia-se que a ré tivesse atuado de outra forma, nomeadamente colocando ralos ou tampas em todas as aberturas de escoamento de água, existentes na garagem do prédio, tal como veio posteriormente a fazer em fevereiro de 2019, em que procedeu à colocação de tampas perfuradas e ajustadas com silicone em todas as aberturas de escoamento de água, existentes na garagem do prédio.

Na verdade, a recorrida nem sequer alegou que encetou quaisquer medidas cautelares idóneas à não produção do dano.

Em face da factualidade dada como assente não resulta, pois, provada a elisão da aludida presunção, nem que os danos teriam ocorrido, mesmo sem culpa sua, pelo que se impõe a responsabilização da ré pela reparação dos danos causados ao autor.

Logo, há culpa presumida e, portanto, responsabilidade civil pelo facto ilícito (com o concurso dos demais requisitos: art.º 483º, 1, do Código Civil).


2. Obrigação de indemnização: danos emergentes e indemnização pela privação de uso.
O autor peticionou a quantia de €3.677,60, a título de indemnização pelos danos que sofreu no seu veículo ...

O artigo 483º do Código Civil estabelece que “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes dessa violação”.

Segundo o artigo 563º do mesmo Código “A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”.

Decorre do artigo 562º do Código Civil que o obrigado deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.

Assim, o montante da indemnização deve corresponder aos danos causados.

Em caso de indemnização em dinheiro deverá atender-se à medida que o artigo 566º, nº 2, do Código Civil estabelece: a da diferença entre a situação do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data, se não existissem danos, considerando ainda os demais critérios que os artigos 564º e 566º do Código Civil estabelecem.

O dano indemnizável compreende, nos termos do artigo 564º do Código Civil, quer os danos emergentes (perda ou diminuição de valores já existentes no património do lesado) quer os lucros cessantes (acréscimo patrimonial que o lesado deixou de obter por causa do facto ilícito, mas a que, ainda não tinha direito à data da lesão.[8]
Assim sendo deve a ré ser condenada a pagar ao autor a quantia de €3.677,60, correspondente ao custo de reparação do seu veículo ... (cf. 27) dos factos provados).

                                                                                              x

O autor peticionou a quantia de €1.680,00, a título de indemnização pela privação de uso do seu veículo ...

Conforme refere ABRANTES GERALDES[9] “Ainda que o direito de indemnização pela simples privação do uso em consequência de facto ilícito encontre nos sinistros rodoviários a sua principal fonte geradora, os mesmos argumentos e os mesmos valores ou interesses justificam o seu reconhecimento noutras situações”.

Conforme refere este autor[10], nos casos em que a utilização de um veículo constitui um simples meio de transporte para a efetivação de quaisquer deslocações, mesmo de lazer, não está afastada, à partida, a ressarcibilidade do dano emergente da privação do uso do veículo, havendo, quanto aos lucros cessantes, que apurar se a paralisação determinou algum ou nenhum prejuízo, pela existência de alternativas menos onerosas ou com semelhante comodidade ou caso se demonstre que o veículo danificado- não era habitualmente utilizado.

Com efeito “(…) o direito de propriedade integra, como um dos seus elementos fundamentais, o poder de exclusiva fruição, do mesmo modo que confere ao proprietário o direito de não usar. A opção pelo não uso ainda constitui uma manifestação dos poderes do proprietário, também afectada pela privação bem. Neste contesto, sendo a disponibilidade material dos bens um dos principais reflexos do direito de propriedade, apenas excecionalmente, perante um quadro factual mais complexo, será possível afirmar que a paralisação não foi causa adequada de danos significativos merecedores da ajustada indemnização”.[11]

Neste sentido escreveu-se no Ac. do STJ de 12-01-2020[12] que “O proprietário privado por terceiro do uso de uma coisa tem, por esse simples facto e independentemente da prova cabal da perda de rendimentos que com ela obteria, direito a ser indemnizado por essa privação, indemnização essa a suportar por quem leva a cabo a privação em causa. A privação do uso do veículo constitui um dano indemnizável, por se tratar de uma ofensa ao direito de propriedade e caber ao proprietário optar livremente entre utilizá-lo ou não, porquanto a livre disponibilidade do bem é inerente àquele direito constitucionalmente consagrado (art.º 62º da CRP)”.

Conforme se refere no Ac. do TRE de 14-02-2008[13] “os tempos que correm, em que a possibilidade de usar automóvel faz parte daquilo a que vulgarmente se chama qualidade de vida, já não se pode defender, em termos de razoabilidade, que os incómodos derivados da privação do veículo constituem dano não tutelado pelo direito. O direito tem destinatários concretos e não se compadece com uma visão abstracta da vida.

O dono do veículo, ao ser-lhe tornada impossível a utilização desse veículo durante o período em causa, sofre uma lesão no seu património, uma vez que deste faz parte o direito de utilização das coisas próprias. E essa lesão é avaliável em dinheiro, uma vez que a utilização de um veículo automóvel no comércio implica o dispêndio de uma quantia em dinheiro. A medida do dano é, assim, definida pelo valor que tem no comércio a utilização desse veículo, durante o período em que o dono está dele privado.

O dano produzido atinge, neste caso, a propriedade – direito que tem como manifestações, entre outras, a possibilidade de utilizar a coisa e a capacidade de dispor materialmente dela; possibilidade e capacidade que são retiradas ao proprietário durante o tempo em que, por via do dano produzido, está privado do veículo. E a perda da possibilidade de utilização do veículo quando e como lhe aprouver tem, claramente, valor económico, e não apenas quando outro veículo é alugado para substituir o danificado”.

Ficou demonstrado que o autor é proprietário do veículo de marca Mercedes Benz, classe A, 200 CDI, matrícula ...; em janeiro de 2019 este veículo encontrava-se a ser usado por P..., filho do autor, nas deslocações daquele entre Amarante/Covilhã-Covilhã/Amarante (ao fim de semana), bem como nas suas deslocações diárias desde o edifico do condomínio, até ao Hospital ..., onde trabalhava como médico (e vice-versa);  o veículo do autor esteve imobilizado desde janeiro de 2019 até maio de 2019; apenas no mês de maio de 2019 o autor entregou o seu veículo na oficina para reparação, atenta a sua indisponibilidade financeira, até esse momento para custear a reparação do veículo; a reparação do veículo teve um custo de €3.677,60; em virtude do referido em 25) pediu a um familiar um automóvel emprestado que substituísse a sua viatura (factos provados em 1), 3), 25), 26), 27) e 28)).

Em face do exposto entendemos que pese embora o autor não tenha logrado provar que esta privação tenha importado algum dispêndio, o facto de ter privado do uso do seu veículo, desde 24 de janeiro de 2019 até 18 de maio de 2019, traduziu-se numa diminuição patrimonial que cumpre reparar.

Concluindo-se pelo dano e não sendo possível quantificá-lo em valores certos face aos factos provados, o tribunal deverá recorrer à equidade para fixar a indemnização, nos termos previstos no artigo 566.º, n.º 3, do Cód. Civil.[14]

O autor calculou em €15,00 o valor diário, durante o tempo em que esteve provado do seu veículo, o que perfaz o montante total de €1.680,00.

“Na fixação do valor do dano segundo juízos de equidade, na falta de outros elementos, é admissível recorrer aos parâmetros que a jurisprudência tem considerado em situações algo semelhantes, pois a ponderação prudencial inerente à equidade também é sensível ao estabelecimento de critérios jurisprudenciais actualizados e generalizantes, de forma a não pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio de igualdade.”[15]

No que respeita aos automóveis de uso particular e com vista à fixação da indemnização pela privação do uso, a jurisprudência tem considerado atualmente valores à volta dos €10,00 por cada dia de paralisação.[16]

Assim sendo, e com recurso à equidade, afigura-se ser razoável atribuir ao autor o quantitativo diário de €10,00 desde 24 de janeiro de 2019 até 18 de maio de 2019.

Fixa-se esta indemnização no valor de €1.150,00 (€10,00 x 115 dias).

Nestes termos, procede parcialmente a apelação, razão pela qual se substitui por outra, em que se condena a ré a pagar ao autor a quantia total de €4.827,60 (quatro mil, oitocentos e vinte e sete euros e sessenta cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efetivo pagamento.

Sumário (artigo 663º, nº 7, do CPC):
1. Atento o dever de vigilância que recai sobre o administrador do condomínio quanto às partes comuns do edifício em propriedade horizontal, é aplicável o regime do artigo 493º, n.º 1, do Código Civil, por força do qual “quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar” responde pelos danos causados pela coisa, “salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua”.
2.  A privação do uso do veículo constitui um dano indemnizável, por se tratar de uma ofensa ao direito de propriedade e caber ao proprietário optar livremente entre utilizá-lo ou não, porquanto a livre disponibilidade do bem é inerente àquele direito constitucionalmente consagrado (art.º 62.º da CRP).
3. Concluindo-se pelo dano e não sendo possível quantificá-lo em valores certos face aos factos provados, o tribunal deverá recorrer à equidade para fixar a indemnização, nos termos previstos no artigo 566º, nº 3 do Código Civil.

DECISÃO

Com fundamento no atrás exposto, acordam os Juízes desta Secção Cível em julgar parcialmente procedente a apelação, revogando a decisão recorrida, que se substitui por esta outra, de condenação da ré a pagar ao autor a quantia total de €4.827,60 (quatro mil, oitocentos e vinte e sete euros e sessenta cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efetivo pagamento.

Custas pela recorrente e recorrida na proporção dos respetivos decaimentos.

                                                                                              Coimbra, 9 de novembro de 2021

Mário Rodrigues da Silva- relator

Cristina Neves- adjunta

Jaime Ferreira- adjunto


[1] Proc. 676/06-3, relator BERNARDO DOMIGOS, www.dgsi.pt.

[2] Código Civil Anotado, Volume I, 4ª edição, p. 495.
[3] Ac. do STJ, de 10-12-2013, proc.  68/10.1TBFAG.C1.S1, relator NUNO CAMEIRA, www.dgsi.pt.
[4] Ac. do TRP, de 1-07-2019, proc. 19413/18.5T8PRT.P1, relator JORGE SEABRA, www.dgsi.pt.
[5] Proc. 4444/03.8TBVIS.C1.S1, relator HÉLDER ROQUE, www.dgsi.pt.

[6] Publicado no Diário da República n.º 8/2011, Série II de 2011-01-12.
[7] Código Civil Anotado, 2ª edição, Coimbra Editora, p. 434.
[8] ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 1994, p. 610.
[9] Indemnização do Dano da Privação do Uso, pp. 54-55.
[10] Temas da Responsabilidade Civil, Vol I - Indemnização do Dano da Privação do Uso, p. 57.
[11] ABRANTES GERALDES, obra citada, pp. 57-58.
[12] Proc. 314/06.6TBCSC.S1, relator PAULO SÁ, www.dgsi.pt.
[13] Proc. 2574/07-3, relator PIRES ROBALO, www.dgsi.pt.

[14] Ac. do TRC, de 6-02-2018, proc. 189/16.7T8CDN.C1. relator FALCÃO DE MAGALHÃES, www.dgsi.pt.
[15] Ac. do TRG, de 27-02-2020, proc. 272/18.4T8VPA.G1, relator JOAQUIM BOAVIDA, www.dgsi.pt.
[16] Cf. Neste sentido, entre outros os Acórdãos do TRP, de 28-05-2020, proc. 289/19.1T8MCN.P1, relator FILIPE CAROÇO e do TRG, de 11-07-2017, proc. 833/14.0T8VNF.G1, relatora MARIA DOS ANJOS NOGUEIRA e de 11-07-2017, proc. 2093/14.4TBBRG.G1, relatora ELISABETE VALENTE, www.dgsi.pt.

Texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, respeitando-se, no entanto, em caso de transcrição, a grafia do texto original