Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4064/14.1T8VIS.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO ( PER)
PLANO DE RECUPERAÇÃO
AVALISTA
MORATÓRIA
Data do Acordão: 03/08/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - VISEU - INST. CENTRAL - SEC.COMÉRCIO - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 17-A, 195, 196, 215, 217 CIRE
Sumário: 1.O plano de recuperação que, além do mais, contém uma moratória a favor de terceiros avalistas não deve ser recusado por isso.

2.Mesmo que se entenda que a referida moratória é contrária ao preceituado no art. 217º, nº4, do CIRE, o plano não deve ser objecto de recusa de homologação por isso, por enfermar de mera ineficácia relativa aos credores com créditos sobre os terceiros avalistas, valendo no demais.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I (…) S.A., requereu a sua revitalização nos termos dos arts. 17º-A e seguintes do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE).

Findas as negociações, aquela apresentou para homologação um plano de recuperação que consta de fls. 758 a 819. 4.

O tribunal decidiu recusar a homologação deste plano.


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Inconformada, a “I (…)” recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

I. O Processo Especial de Revitalização (artº. 17º-A a 17º-I do CIRE) adota um regime marcadamente voluntário e extrajudicial que propicia uma ampla liberdade de negociação tendente ao sucesso da recuperação da empresa;

II. Dando-se primazia à vontade dos intervenientes, estes gozam da liberdade na estipulação das cláusulas e condições do Acordo com os Credores vertido no Plano de Recuperação.

III. A Cláusula ou Condição constante do Plano de Recuperação que reafirma que as garantias prestadas tocantes aos créditos em referência se mantém plenamente em vigor; e que as garantias pessoais prestadas pelos acionistas e administradores C (..) e L (…) a favor da Devedora I (…)verão, com a homologação judicial do PER (querendo dizer-se Plano de Recuperação), a sua eficácia suspensa enquanto o plano de recuperação for cumprido, constitui uma cláusula ou condição legal e validamente assumida pela vontade dos intervenientes no PER, pela Devedora e pelos seus Credores que possam beneficiar deste tipo de garantias pessoais.

IV. Esta Cláusula ou Condição ou Convenção não viola qualquer norma imperativa suscetível de obstar à homologação do Plano de Recuperação.

V. Acresce que, da homologação de medida que estabelece uma simples moratória no pagamento da dívida pelos avalistas e em que se convenciona que estes acompanharam “pari passu” o cumprimento do Plano, não decorre violação do nº 4 do artº. 217º do CIRE.

VI. Desde logo porque esta medida ou convenção não afeta a existência nem o montante dos direitos dos credores da Devedora contra os condevedores ou os terceiros garantes da obrigação (como ainda recentemente decidiu o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, no seu Acórdão de 8/janeiro/2015 – proc. 703/14.2TBBRG.G1).

VII. Por outro lado, o nº 4 do artº. 217º do CIRE, inserido no capítulo dos efeitos da sentença de homologação do Plano, não regula a matéria do conteúdo do Plano (como o Mmo. Juiz “a quo” menos bem interpretou).

VIII. O disposto no nº 4 do artº. 217º do CIRE pressupõe mesmo que o Plano tenha sido homologado por Sentença.

IX. E, sendo-o, se contiver uma “providência” ou “medida” com incidência na existência ou no montante dos direitos dos credores contra os condevedores ou os terceiros garantes da obrigação, tal “providência” ou “medida” não é eficaz a favor destes; isto é, os terceiros garantes da obrigação da Devedora não podem opor aos credores que beneficiem destas garantias, as modificações ou alterações dos créditos sobre a Devedora, operadas por efeito da homologação do Plano de Recuperação.

X. Salvo se os credores beneficiários destas garantias concordarem com a convenção “pari passu” isto é, que a eficácia dos direitos de ação contra os garantes fique dependente do (in) cumprimento do Plano de Recuperação.

XI. Trata-se de uma questão de suspensão de eficácia ou (in) oponibilidade e não de convenção contrária a norma imperativa ou não negligenciável aplicável ao conteúdo do plano (como o Mmo. Juiz “a quo” menos bem interpretou).

XII. No caso sub júdice, os credores que votaram favoravelmente o plano de recuperação, manifestaram também o seu acordo a favor da convenção segundo a qual os credores que fossem titulares de garantias pessoais sobre os acionistas e

administradores da Devedora I (...) aceitavam não usar de prorrogativa de os acionar para cumprimentos autónomo da obrigação garantida, enquanto o Plano de Recuperação estiver a ser cumprido.

XIII. Os credores em referência era inteiramente livres para aprovar esta convenção, como conteúdo do Plano.

XIV. Sendo certo que, uma vez homologado por Sentença o Plano, esta convenção nele contida podia não ser oponível àqueles credores que: (i) não votaram favoravelmente o plano; (ii) não manifestaram por qualquer outro modo a sua adesão a esta convenção; (iii) fossem titulares de títulos de garantia com a caraterística de autonomia (e não acessoriedade), suscetíveis de servirem de base à ação direta contra os garantes.

XV. A douta Sentença recorrida ao coartar a liberdade de convenção das Partes no prumo de negociações no âmbito do PER, vetando uma convenção querida pelas Partes e que não constitui violação de qualquer norma imperativa “não negligenciável” aplicável ao conteúdo do Plano, extravasou os limites do conhecimento jurisdicional no âmbito do Processo Especial de Recuperação.

XVI. A douta Sentença recorrida, importando para a avaliação do conteúdo do Plano uma norma que trata dos efeitos subsequentes da Sentença Homologatória do Plano, não fez boa interpretação do disposto nos artºs. 215º e 217º, nº 4 do CIRE.


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            Não foram apresentadas contra-alegações.

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As questões a decidir são as seguintes:

A cláusula do plano infra exarada viola o preceituado no art.217º, nº4, do CIRE?

Ocorrendo a violação, ela é motivo de recusa de homologação do plano?


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A cláusula do plano em análise é a seguinte:

“1. As garantias prestadas tocantes aos créditos em referência mantêm-se plenamente em vigor. / 2. As garantias pessoais prestadas pelos accionistas e C (…) e L (…) a favor da Devedora I (…), verão, com a homologação judicial do PER, a sua eficácia suspensa enquanto o plano de recuperação for cumprido. / 3. Não haverá distribuição de dividendos/resultados enquanto decorrer pelo menos os primeiros cinco anos do plano de pagamentos.”


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                O juiz decide se deve homologar o plano de recuperação ou recusar a sua homologação, aplicando com as necessárias adaptações, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 215º e 216º (art. 17º-F, nº5, do CIRE).

O art. 192º, nº 2, desta lei, estabelece que “o plano só pode afectar por forma diversa a esfera jurídica dos interessados (…) na medida em que tal seja expressamente autorizado neste título ou consentido pelos visados”.

O art. 195º da mesma lei versa sobre o conteúdo do plano de insolvência. Este deve indicar claramente as alterações dele decorrentes para as posições jurídicas dos credores da insolvência e a indicação dos preceitos legais derrogados e do âmbito dessa derrogação.

O seu art. 196º diz-nos que o plano pode proceder à modificação dos prazos de vencimento dos créditos.

O já referido art. 215º dispõe que “o juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza (…)».

A decisão recorrida entendeu que a cláusula supra exarada, constante do plano, viola normas de conteúdo que não são negligenciáveis, pois afetam os direitos dos credores na sua relação com terceiros, não vinculados pelo plano, dizendo:

“Ora, nos termos do nº1 do art. 195º “O plano de insolvência deve indicar claramente as alterações dele decorrentes para as posições jurídicas dos credores da insolvência.” Credores da insolvência (ou do Devedor, no caso do PER) são os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o Devedor ou garantidos por bens integrantes do seu património – art. 47º, nº1 do CIRE. O âmbito do plano de recuperação não compreende a introdução de alterações na posição jurídica dos credores dos co-obrigados ou dos terceiros garantes das obrigações do Devedor. Qualquer alteração da posição jurídica dos credores do Devedor quanto à relação jurídica existente com estes últimos significa uma violação das normas relativas à delimitação dos temas sobre os quais a proposta deve versar e, portanto, uma violação de normas aplicáveis ao seu

conteúdo. O disposto no nº4 do art. 217º do CIRE vem confirmar esta asserção ao estabelecer que “As providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afetam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os condevedores ou os terceiros garantes da obrigação, …”.

Em função deste entendimento, a decisão recorrida recusou a homologação do plano.

A Recorrente entende que a homologação não deve ser recusada por causa disso, não só porque o disposto no art. 217º, nº4, do CIRE não é violado como, ocorrendo violação, ela não deve atingir o plano, mas apenas a sua eficácia.

Vejamos se assim é.

A cláusula em causa é justificada do seguinte modo:

Os credores que aprovaram a proposta manifestaram também o seu acordo no sentido de que, enquanto o plano estiver a ser cumprido, não exigiriam o pagamento aos terceiros garantes das obrigações da devedora, tanto mais que os únicos terceiros garantes são precisamente os únicos dois acionistas e administradores daquela, com quem os credores contam para executarem o plano de recuperação.

A cláusula constitui uma moratória a favor dos terceiros garantes.

O nº 4 do artº. 217º do CIRE dispõe:

“As providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afetam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os condevedores ou os terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas poderão agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele os seus direitos”.

Esta disposição insere-se no Capítulo relativo à “Execução do Plano de insolvência e seus Efeitos.”

Nesse sentido, parece que esta norma não atinge o valor do plano, mas apenas o limita em sede de execução, dispondo sobre a eficácia do mesmo contra os credores de condevedores ou de terceiros garantes da obrigação.

A respeito desta norma, Catarina Serra (“Nótula sobre o artº. 217º, nº 4, do CIRE”, “Estudos Dedicados ao Prof. Dr. Luís A. Carvalho Fernandes”, Rev. Direito e Justiça, Vol.I, página 377), distinguindo as garantias reais das pessoais, defende que “…a tutela conferida pelo artigo 217º, nº 4, do CIRE é uma tutela excepcional e restrita aos casos de extinção do crédito e de redução do seu montante, não se aplicando, por exemplo, em situações de mera modificação de prazos de vencimento.”

A Autora apoia-se ainda no argumento do aval em questão ser uma obrigação (pessoal) de garantia (do avalizado a revitalizar).

(Neste sentido, também o acórdão da Relação de Guimarães, de 24 de abril de 2012 (proc. 1248/10); contra, porque o aval é uma obrigação autónoma, acórdãos da Relação de Guimarães, de 05 de dezembro de 2013 (proc. 2088/12), da Relação de Coimbra, de 01 de julho de 2014 (proc. 1355/13) e da Relação do Porto, de 16 de setembro de 2014 (proc. 1527/13), todos em www.dgsi.pt.)

            Literalmente, a norma protege a existência e o montante dos direitos, já não se preocupa com o vencimento ou a exigibilidade destes.

Nessa medida, o plano pode dispor sobre a moratória em questão.

Mesmo que não se entenda assim, alargando a imperatividade da norma, não só à existência e montante dos créditos, também aos seus prazos, efeito legal que decorre de se tratar de um processo apenas relativo ao devedor a revitalizar (C. Fernandes, J. Labareda, CIRE Anotado, 2ª edição, página 839, nota 14, admitindo, porém, a consideração de “condutas impróprias” do credor), com a dita cláusula, o plano apenas é afetado parcialmente, em questão relativa a parte da sua oponibilidade, mantendo valor e eficácia relativos àquele devedor.

Em questão relativamente paralela, a da inderrogabilidade das normas respeitantes a créditos tributários, o Supremo Tribunal de Justiça disse-nos já que “o plano de insolvência, assente numa ampla liberdade de estipulação pelos credores do insolvente, constitui um negócio atípico, sendo-lhe aplicável o regime jurídico da ineficácia.” (Acórdão de 18.2.2014, no proc.1786/12, no sítio digital já citado.)

Considerando as finalidades e os princípios subjacentes ao processo de revitalização (a recuperação da empresa ainda viável), por um lado, e a limitação de eficácia imposta pelo art.217º do CIRE (intangibilidade dos créditos sobre terceiros), por outro, entendemos que não devemos afastar a possibilidade daquela recuperação. Balanceando adequadamente os interesses em jogo, o regime jurídico da ineficácia permite a viabilização da empresa nos termos do plano acordado pela maioria dos credores, ao mesmo tempo que afirma este inoponível aos créditos sobre condevedores ou sobre terceiros garantes, sem prejuízo da consideração de “condutas impróprias”  destes credores. (Só em concreto se apurará destas, dependendo da avaliação da votação favorável à moratória e de outras circunstâncias.)

No caso, não tendo votado favoravelmente o plano, sem prejuízo da consideração de outras circunstâncias, o reclamante “Banco B (…)”, sendo titular de garantias sobre os identificados C (…) e L (…) poderá estar em condições de acionar estes, repudiando a moratória.


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            Decisão.

            Julga-se o recurso procedente, revoga-se a decisão recorrida e homologa-se o plano de recuperação da identificada I (…) S.A., junto a fls.758 e seguintes, sem prejuízo da sua ineficácia relativa aos créditos sobre seus condevedores ou sobre terceiros garantes da sua dívida.

            Custas na 1ª instância pela I (…)(art.17º-F, nº7, do CIRE); nesta 2ª instância pelo apelado “Banco B (…)”.

Coimbra, 2016-03-08

Fernando Monteiro ( Relator)

Carvalho Martins

Carlos Moreira