Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3234/09.9T2AGD-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: ACÇÃO EXECUTIVA
PENHORA
LIMITES
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
IMPUGNAÇÃO
Data do Acordão: 04/16/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE EXECUÇÃO DE ÁGUEDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 4º, Nº 3, 821º E 863º-A DO CPC; 601º, 817º DO C. CIVIL.
Sumário: I – A acção executiva visa assegurar ao credor a satisfação da prestação que o devedor não cumpriu voluntariamente, seja através do produto da venda executiva de bens ou direitos patrimoniais daquele devedor ou da realização, por terceiro devedor, em favor da execução, da prestação (artºs 4 nº 3 do CPC e 817 do Código Civil).

II - Com esse objectivo e dado que o património do executado constitui a garantia geral das suas obrigações, procede-se à apreensão de bens ou direitos patrimoniais do executado ou à colocação à ordem da execução dos créditos daquele sobre terceiros, de modo a que se proceda, ulteriormente, à venda executiva daqueles bens e direitos patrimoniais ou à realização, a favor da execução, das prestações de que são devedores aqueles terceiros (artºs 601 do Código Civil e 821 nº 1 do CPC).

III - O acto de penhora pode, porém, mostrar-se objectiva ou subjectivamente excessivo.

IV - A penhora é objectivamente excessiva quando atinge bens ou direitos que, embora pertencentes ao executado, não devam responder pela satisfação do crédito exequendo; a penhora é subjectivamente excessiva quando tiver por objecto bens ou direitos que não são do executado. No primeiro caso, a penhora é objectivamente ilegal; no segundo é-o apenas subjectivamente.

V - A impugnação da penhora fundamenta-se num vício que afecta esse acto e, caso seja julgada procedente, importa o levantamento, no todo ou em parte, dessa penhora.

VI - A oposição à penhora constitui o meio específico de oposição à penhora objectivamente ilegal (artºs 863-A nº 1 do CPC).

VII - A oposição à penhora constitui um incidente da execução e baseia-se sempre num fundamento que releva da violação dos limites objectivos desse acto (artº 863-A, nº 1 do CPC).

VIII - O acto de constituição da garantia patrimonial em que a penhora se resolve está submetido a um princípio estrito de proporcionalidade.

IX - De harmonia com o princípio da proporcionalidade devem ser penhorados apenas os bens suficientes para satisfazer a prestação exequenda e das despesas previsíveis da execução, cujo valor de mercado permita a sua satisfação (artºs 821 nº 3, 822 c), 828 nº 7, 834 nº 2, 835 nº 1 do CPC).

X - O excesso de penhora só é admitido se esta diligência tiver começado pelos depósitos bancários, de rendas, abonos, vencimentos, salários ou outros créditos, títulos e valores mobiliários, bens móveis registáveis ou quaisquer outros bens cuja valor pecuniário seja de fácil realização; se a penhora tiver desde logo sido realizada sobre bem imóvel, o princípio da proporcionalidade volta a valer por inteiro, tornando inadmissível a penhora de outros bens que não sejam necessários para assegurar o pagamento da dívida exequenda e das despesas previsíveis da execução.

XI - O artº 834 nº 2 do CPC, que admite a penhora de um imóvel ou de um estabelecimento comercial, ainda que o valor dos bens exceda o montante do crédito exequendo, por não garantir com segurança que a penhora do imóvel permitirá a satisfação da dívida exequenda num prazo inferior a seis meses, está implicitamente sujeita a uma condição impossível e, por isso, o mesmo nunca pode encontrar aplicação prática.

XII - Dado que o ónus da prova do excesso de penhora vincula o executado, deve ser-lhe reconhecido um direito à prova, excepto se, de harmonia com o princípio da utilidade dos actos processuais, for possível, independentemente do exercício da prova, a formulação de um juízo seguro e consciencioso, sobre a proporcionalidade da penhora.

XIII - É indiferente, para o juízo sobre a proporcionalidade da penhora, o carácter rústico ou urbano do prédio penhorado.

XIV - Ignorando-se o valor da quota-parte da compropriedade sobre um prédio rústico, objecto da penhora, é inadmissível, por recurso a uma simples presunção judicial, concluir pela proporcionalidade daquela diligência executiva.

XV - Tendo-se requerido, na instância recorrida, a perícia singular, é inadmissível a formulação, na instância de recurso, o pedido de realização dessa mesma perícia em moldes colegiais.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

A executada M… deduziu, na execução para pagamento de quantia certa que corre termos no Juízo de Execução de Águeda, da Comarca do Baixo Vouga – contra o exequente, Banco …, SA, e os executados R…, I…, J…, A…, T… e C…, Lda., oposição à penhora, pedindo o seu levantamento no tocante à fracção autónoma, letra E, destinada a habitação, com garagem na cave, correspondente ao 2º andar esquerdo do prédio urbano sito na Rua …, bem como da renda recebida sobre esse artigo urbano, sendo a quantia exequenda, honorários e despesas de solicitar e custas em dívida a juízo suportadas pela penhora já efectuada sobre o artigo rústico, sito em … por suficiente, ou caso assim se não entenda, através também da efectivação da penhora sobre a parte da propriedade da oponente neste prédio artigo rústico, com a descrição … e inscrição ...

 Fundamentou a oposição no facto de, na execução, se ter penhorado aquela fracção autónoma e a respectiva renda, no valor de € 375,00, e ao executado J… 1/3 do prédio rústico sito em …, e de este imóvel, que é também sua propriedade, naquela proporção, ter sido avaliado em € 530.000,00, pelo que existe manifesto excesso de penhora para garantir as custas prováveis, honorários e despesas de solicitadora, bem como quantia exequenda e juros.

A executada produziu prova documental e propôs-se produzir prova testemunhal e requereu, para o caso de a avaliação que juntou vir a ser impugnada ou não aceite, e em medida que não garanta e comprove o exposto, se procedesse a perícia, na modalidade singular, ao prédio rústico sito em ...

O exequente, na contestação, alegou a intempestividade da oposição à penhora, impugnou o documento oferecido com ela - por parecer que o valor alcançado não é mais do que um estimativa em virtude de uma previsão de alteração de um PDM – e afirmou que a extensão das penhoras não pode considerar-se excessiva e que, de harmonia com a documentação junta, a opoente é tão-somente casada com o executado J…, não se podendo inferir que é igualmente proprietária do prédio rústico, seja em que proporção for.

Por decisão de 5 de Dezembro de 2012 – e sem que tenha sido produzida a prova proposta pela opoente – o Sr. Juiz de Direito considerou tempestiva a oposição a presente oposição à execução, e depois de observar que o relatório da avaliação junto pela opoente em que o prédio rústico é avaliado em 530.000,00 se baseia na revisão do PDM de Águeda que torna tal terreno apto para construção, mas que este é referenciado nas Finanças e na Conservatória do Registo Predial como rústico e que o ISSS já reclamou créditos sobre os mesmos e que dificilmente o mesmo será adquirido, por não se encontrar penhorado na sua totalidade, mas apenas 1/3 do mesmo, acrescendo a crise que o sector imobiliário atravessa, que a penhora das rendas é insuficiente para satisfação do crédito no prazo de seis meses e quanto á fracção autónoma já foi reclamado o crédito do Banco …, garantido por hipoteca, no valor de € 105.451,96 – julgou a oposição à penhora improcedente.

É justamente esta decisão que a opoente impugna no recurso ordinário de apelação, tendo extraído da sua alegação, estas conclusões:

Na resposta, o exequente concluiu, naturalmente, pela improcedência do recurso.

2.1. Factos provados.

… 

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

A decisão impugnada, sem que tenham sido produzidas as provas constituendas propostas pela executada, ordenadas para a demonstração do valor do prédio, atingido em parte, pela diligência executiva de penhora, indeferiu o pedido desta de levantamento da penhora sobre uma fracção autónoma de edifício e sobre a respectiva renda, com fundamento em que a garantia patrimonial constituída sobre aquele prédio presumivelmente não será suficiente para satisfazer o crédito da exequente.

Em face do conteúdo da decisão recorrida são patentes duas coisas: o desconhecimento do valor daquele prédio e correspondente da quota-parte da compropriedade dele, atingida pela penhora; a ignorância do valor mesmo do crédito do exequente. Apesar disso, e declaradamente por recurso a uma presunção, a decisão impugnada concluiu, terminantemente, pela proporcionalidade da penhora.

A recorrente discorda e pede, no recuso, que se revogue esta decisão e se ordene o prosseguimento da instância do incidente de oposição à penhora de modo a que seja produzida a prova pericial que propôs com vista à determinação do valor do prédio atingido, em parte, pela penhora.

Nestas condições, a questão concreta controversa que importa resolver não é a de saber se deve ou não ordenar-se o levantamento da penhora sobre a fracção autónoma de edifício e os frutos que produz – mas limitadamente se deve determinar-se o prosseguimento do incidente, com a produção das provas propostas pela opoente, de modo a que aquela questão só seja decidida, depois de produzidas estas provas.

A resolução deste problema vincula naturalmente ao exame, ainda que breve, de um dos princípios estruturantes da penhora - o princípio da proporcionalidade[1] – e do processo civil – o do direito à prova. Complementarmente ponderar-se-á o conteúdo do princípio da utilidade dos actos processuais e a actuação da prova por presunção.

3.2. Princípio da proporcionalidade.

A acção executiva visa assegurar ao credor a satisfação da prestação que o devedor não cumpriu voluntariamente, seja através do produto da venda executiva de bens ou direitos patrimoniais daquele devedor ou da realização, por terceiro devedor, em favor da execução, da prestação (artºs 4 nº 3 do CPC e 817 do Código Civil).

Com esse objectivo e dado que o património do executado constitui a garantia geral das suas obrigações, procede-se à apreensão de bens ou direitos patrimoniais do executado ou à colocação à ordem da execução dos créditos daquele sobre terceiros, de modo a que se proceda, ulteriormente, à venda executiva daqueles bens e direitos patrimoniais ou à realização, a favor da execução, das prestações de que são devedores aqueles terceiros (artºs 601 do Código Civil e 821 nº 1 do CPC).

O acto de penhora pode, porém, mostrar-se objectiva ou subjectivamente excessivo.

A penhora é objectivamente excessiva quando atinge bens ou direitos que, embora pertencentes ao executado, não devam responder pela satisfação do crédito exequendo; a penhora é subjectivamente excessiva quando tiver por objecto bens ou direitos que não são do executado. No primeiro caso, a penhora é objectivamente ilegal; no segundo é-o apenas subjectivamente.

A impugnação da penhora fundamenta-se num vício que afecta esse acto e, caso seja julgada procedente, importa o levantamento, no todo ou em parte, dessa penhora. A oposição à penhora constitui o meio específico de oposição à penhora objectivamente ilegal (artºs 863-A nº 1 do CPC).                A oposição à penhora constitui um incidente da execução e baseia-se sempre num fundamento que releva da violação dos limites objectivos desse acto (artº 863-A nº 1)[2].

A violação dos limites objectivos da penhora pode decorrer, desde logo, da violação do princípio da proporcionalidade a que esse acto está submetido, i.e., da apreensão de mais bens do executado do que os necessários para assegurar o pagamento da divida exequenda e das despesas prováveis da execução. A prova dessa violação, por se tratar de facto constitutivo do direito do executado ao levantamento da penhora, vincula o opoente (artº 342 nº 1 do Código Civil).

Realmente, o acto de constituição da garantia patrimonial em que a penhora se resolve está submetido a um princípio estrito de proporcionalidade.

A penhora pressupõe uma adequação entre meios e fins, o que significa que não devem ser penhorados mais bens do que os necessários para a satisfação da pretensão exequenda.

A agressão do património do executado só é permitida numa medida que seja adequada e necessária para a satisfação da pretensão do exequente, o que impõe a indispensável ponderação dos interesses do exequente na realização da prestação e do executado na salvaguarda do seu património. Essa ponderação conduz a que a natural e indispensável prevalência dos interesses do exequente não pode fundamentar uma completa indiferença pelos do executado, dado que a posição jurídica do credor, embora prevalecente, não pode ser considerada absoluta[3].

O princípio da proporcionalidade possui, de resto, uma nítida raiz constitucional.

A faculdade de penhorar bens do devedor – ou de terceiros – representa uma agressão a um património alheio e, portanto, a um direito de propriedade constitucionalmente consagrado, pelo que uma interpretação constitucionalmente conforme, impõe o respeito do princípio constitucional da proporcionalidade referido às restrições aos direitos, liberdades e garantias (artºs 817, 818 e 821 do Código Civil, 18 nº 2 e 62 nº 1 da Constituição da República Portuguesa Constituição da República Portuguesa). Em qualquer caso, à actividade dos tribunais – particularmente aquela que possui carácter executivo – é aplicável, ao menos por analogia, o princípio da proporcionalidade imposto aos órgãos e agentes administrativos (artºs 10 do Código Civil e 266 nº 2 da Constituição da República Portuguesa).

O princípio da proporcionalidade não pode, porém, fundamentar a não realização coactiva da prestação, i.e., não pode por em causa a realização da prestação que documentada no título executivo, conclusão que vale mesmo para o caso em que o valor do crédito exequendo seja diminuto.

De harmonia com o princípio da proporcionalidade devem ser penhorados apenas os bens suficientes para satisfazer a prestação exequenda e das despesas previsíveis da execução, cujo valor de mercado permita a sua satisfação (artºs 821 nº 3, 822 c), 828 nº 7, 834 nº 2 835 nº 1 do CPC).

Se, porém, houver lugar à intervenção dos credores do executado – embora só daqueles que sejam titulares de uma garantia real sobre os bens penhorados ou do exequente que tenha obtido uma segunda penhora sobre esses bens numa outra execução, a suficiência – rectior, a proporcionalidade - da penhora para a satisfação da quantia exequenda e das despesas previsíveis da execução deve, evidentemente, ser aferida tendo em conta as causas de preferência no pagamento de que beneficiam os credores reclamantes (artºs 834 nº 3 a) e b), 864 nº 3 b), 865 nºs 1 e 5 e 871 nº 1 do CPC).

A penhora é, portanto, orientada pelo princípio regulativo da proporcionalidade. O princípio não é, porém, absoluto, dado que a lei, ela mesma, lhe introduz, embora em casos contados, verdadeiras excepções.

Havendo vários bens ou direitos susceptíveis de penhora, há que proceder à escolha daqueles que vão ser efectivamente penhorados. Para o efeito, a lei define ao agente de execução um critério, ainda que meramente preferencial, que este deve utilizar na escolha dos bens a penhora, i.e., um ordem de realização dessa penhora.

Assim a penhora deve começar, sucessivamente, pelos depósitos bancários, de rendas, abonos, vencimentos, salários ou outros créditos, títulos e valores mobiliários, bens móveis registáveis e quaisquer outros bens cujo valor pecuniário seja de fácil realização (artº 834 nº 1 a) a e) do CPC).

Se, dentre estes bens, nenhum deles assegurar a satisfação integral do crédito ou presumivelmente não a permitir no prazo de seis meses, é admissível – diz o artº 834 nº 2 do CPC – a penhora de um imóvel ou de um estabelecimento comercial, ainda que o valor dos bens exceda o montante do crédito exequendo. Portanto, neste caso, o princípio da proporcionalidade cede perante o princípio da satisfação em tempo razoável do crédito exequendo. Simplesmente, porque se não pode garantir, com segurança, que a penhora do imóvel vai permitir a satisfação da dívida exequenda num prazo inferior a seis meses, o preceito está implicitamente sujeita a uma condição impossível e, por isso, o mesmo nunca pode encontrar aplicação prática[4].

Realmente, o executado pode ser penalizado com a penhora de bens de valor elevado, quando nada pode assegurar que o objectivo de uma mais rápida satisfação do crédito do exequente venha a ser efectivamente atingido. Neste contexto há que entender que, como nunca pode ser assegurado que, sendo penhorado um bem imóvel ou o estabelecimento comercial, o crédito exequendo é efectivamente satisfeito num prazo de seis meses, aquela disposição nunca pode ser aplicada.

Em todo o caso, o excesso de penhora, só é admitido se esta diligência tiver começado pelos depósitos bancários, de rendas, abonos, vencimentos, salários ou outros créditos, títulos e valores mobiliários, bens móveis registáveis ou quaisquer outros bens cuja valor pecuniário seja de fácil realização; se a penhora tiver desde logo sido realizada sobre bem imóvel, o princípio da proporcionalidade volta a valer por inteiro, tornando inadmissível a penhora de outros bens que não sejam necessários para assegurar o pagamento da dívida exequenda e das despesas previsíveis da execução.

Todavia, o princípio da proporcionalidade não se projecta, exclusivamente, na constituição da garantia patrimonial, i.e., na efectivação penhora. Ele vale, igualmente, para o momento da satisfação dos créditos, designadamente através da venda executiva.

Realmente, é o princípio da proporcionalidade que justifica que, no processo executivo, não devam ser vendidos mais bens dos que os estritamente necessários para proceder à liquidação das despesas da execução, da dívida do executado e dos credores com garantia real sobre os bens já vendidos – princípio da instrumentalidade da venda (artº 886-B nº 1 do CPC)[5]. A mesma razão justifica que, tendo havido fraccionamento do prédio penhorado, o executado possa requerer que a venda se inicie por alguns dos prédios resultantes da divisão, cujo valor seja suficiente para o pagamento (artº 886-B nº 3 do CPC). Esse mesmo princípio da proporcionalidade deve também ser observado sempre que seja necessário arrombar portas ou vencer resistência para obter a posse dos bens penhorados (artº 840 nºs 1 a 3 do CPC).

A violação do princípio da proporcionalidade justifica a oposição do executado (artº 863-A, a) do CPC). Esta oposição é instrumentalizada de um incidente a que são aplicáveis as disposições gerais relativas aos incidentes da instância (artº 863-B nº 1 do CPC). Entre essas regras avulta, no tocante à indicação meios de prova de que o autor do incidente pretende fazer uso, a da concentração ou da preclusão: todas as provas hão-de ser produzidas ou propostas logo no requerimento em que se suscita o incidente, pelo que fica irremediavelmente precludida a produção ou a proposição ulterior de qualquer prova que o não foi naquele requerimento (artº 303 nº 1 do CPC).

Regra geral, o problema da proporcionalidade da penhora coloca-se relativamente a bens pertencentes a um mesmo executado. Mas ele vale – dado o seu fundamento final – para os casos de pluralidade de executados em que tenham sido penhorados a alguns deles bens que sejam suficientes para satisfação do crédito exequendo e das despesas da execução. Nesta hipótese, qualquer executado pode opor-se à penhora dos seus bens com fundamento no excesso da penhora já realizada em bens de outro ou outros executados. Quando isso suceda, pode dar-se o caso de apenas o património de um dos executados ser sacrificado para satisfação do direito do exequente: nesse caso, o problema deve ser resolvido de harmonia com o título que pauta as relações internas entre os executados. Se estes forem, por exemplo, devedores solidários, o executado cujo património tenha sido sacrificado para satisfação da totalidade do crédito, goza de direito de regresso, contra os outros, na parte que a estes compete (artº 524 do Código Civil).

3.3. Direito à prova.

                A prova é, consabidamente, a actividade destinada à formação da convicção do tribunal sobre a realidade dos factos controvertidos, actividade que incumbe à parte onerada, que não obterá uma decisão favorável se não satisfizer esse ónus (artºs 341, 342 e 346 do Código Civil e 516 do CPC).

Para cumprir um tal ónus, a parte tem de utilizar um dos meios de prova legalmente ou contratualmente admitidos ou não excluídos por convenção das partes (artº 345 do Código Civil).

Dada a importância do cumprimento do ónus de prova para o proferimento de uma decisão favorável – e acentuando os deveres correlativos que decorrem desse ónus – fala-se de um direito à prova, que constitui uma dimensão ineliminável do direito constitucional a um processo equitativo (artº 20 nº 4 da Constituição da República Portuguesa). Como é claro, o direito à prova não se esgota no direito à sua proposição – antes se concretiza, sobretudo no tocante às provas constituendas, no direito à sua produção.

Todavia, os actos relativos à produção da prova, como qualquer outro acto processual, estão submetidos, por inteiro, a um princípio da utilidade ou de economia: no processo não podem ser praticados actos, pelas partes ou pelo tribunal, actos inúteis, i.e., que sejam desnecessários para a tutela da situação jurídica invocada em juízo (artºs 137 e 448 nº 1, 1ª parte, e 2 do CPC). Assim, no incidente da oposição à penhora não haverá lugar ao exercício da prova se, independentemente desse exercício for possível, a formulação de um juízo seguro e consciencioso, sobre a proporcionalidade da penhora.

As presunções são ilações que a lei ou julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (artº 349 do Código Civil). As presunções podem ser legais, se estabelecidas pela lei, ou judiciais. Estas últimas – únicas que para decisão do recurso interessam – dizem-se também de facto ou hominis ou simples.

                As presunções hominis são afloramento nítido do princípio da livre apreciação da prova e o facto de só serem possíveis nos casos em que é admissível a prova testemunhal, mostra a fragilidade com que as ilações em que se resolvem são encaradas pela lei (artº 351 do Código Civil). O juiz, na base do id quod plerumque accidit – do que normalmente sucede – ou prima facie – na primeira aparência – infere conexões normais ou sequências típicas de factos.

                Mais precisamente, a presunção é a inferência ou processo lógico, mediante o qual, por via de uma regra de experiência - id quod plerumque accidit – se conclui, verificado certo facto, a existência de outro facto que, em regra, é consequência necessária daquele. O facto conhecido, de que se infere o outro, é a base da presunção.

                As presunções judiciais, de facto ou hominis ou simples presunções são afinal o produto de regras de experiência: o juiz valendo-se de certo facto e de regras de experiência, conclui que aquele denuncia a existência de outro facto. Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede, então, mediante presunção ou regra de experiência ou, se se quiser, vale-se de uma prova de primeira aparência[6].

                As regras de experiência são normas para a apreciação de factos e, com isso, para a aquisição deles, permitindo concluir de um facto pela existência de outro. A cada passo, o juiz tem de socorrer-se de regras de experiência para a fixação do factos ou da conexão causal entre dois eventos, sem as quais, portanto, lhe seria impossível decidir a questão de direito.

                No seu funcionamento, a presunção produz um efeito materialmente idêntico à exclusão do ónus da prova, embora se não confunda com este. Na verdade, a presunção não fornece a demonstração do facto, mas dá por admitida a sua realidade antes de toda e qualquer demonstração, com base na experiência comum de como certos factos normalmente se verificam – quod plerumque accidit – sem esperar o exercício da prova. Justamente no valor de credibilidade que, de per se, apresenta a regra de experiência está o fundamento racional da presunção e na medida desse valor assenta o seu grau de rigor.

                A presunção pode, assim, ser o único meio em que o juiz baseia a sua convicção, podendo até fazer prevalecer a presunção em detrimento de outras provas produzidas e mesmo recorrer a ela ainda que o facto questionado possa ser apurado por outro meio relativamente mais seguro.

                De outro aspecto, nada exclui que na base da presunção se situe um único facto: o que é necessário é que ele seja inequívoco, i.e., que faça aparecer como necessária a existência do facto desconhecido. Porém, para que a presunção se aplique é indispensável a prova do facto que constitui a sua base. É indispensável, portanto, a coerência ou a congruência da presunção judicial com o facto conhecido que deve estar demonstrado.

                As presunções sejam judiciais ou de facto ou legais, não são, propriamente, meios de prova – mas somente meios lógicos ou mentais de descoberta de factos e firmam-se mediante regras de experiência. Rigorosamente são, portanto, operações probatórias, tendo por base as regras de experiência resultantes do curso normal dos factos[7].

3.3. Concretização.

A penhora pode, evidentemente, incidir sobre um bem indiviso, i.e., sobre uma quota-parte numa compropriedade (artºs 58 nº 1 c), 275 nº 5 e 826 nº 1 do CPC). Neste caso, a penhora não incide sobre uma parte especificada do bem indiviso (artº 826 nº 1 do CPC).

O bem que, segundo a recorrente é suficiente para garantir a satisfação do crédito exequendo e as despesas da execução não é, rigorosamente, portanto, o prédio rústico localizado em …, dado que não foi este bem que foi atingido pela diligência executiva da penhora – mas a quota-parte de um executado nessa compropriedade.

O primeiro argumento utilizado pela decisão impugnada para fazer naufragar a pretensão da recorrente respeita à qualidade – segundo a própria terminologia – daquele prédio: segundo a alegação da recorrente o prédio é terreno apto para construção, mas de harmonia com a inscrição matricial e registal, o prédio é referenciado como prédio rústico.

Este argumento é de nenhum valor. Por duas razões, aliás.

A distinção entre prédios urbanos e prédios rústicos é pouca precisa dando, por isso, lugar, muitas vezes, a espinhosos problemas de qualificação (artºs 202 nº 1 e 204 nºs 1, a) e nº 2 do Código Civil). Para este efeito é, porém, indiferente o tipo de inscrição matricial, dada a diversa intencionalidade dos critérios fiscais, bem como o tipo de descrição predial, não se admitindo, para efeitos de direito civil, o conceito de prédio misto[8]. Prédio rústico é o terreno ainda que com construções, desde que estas não tenham autonomia económica; prédio urbano é um edifício com o logradouro. Por defeito, os prédios são rústicos: não sendo possível qualificá-los como um edifício, ainda que com logradouro, há que assinalar-lhe uma natureza rústica. Dito doutro modo: não se provando factos que permitam qualificar o prédio como urbano, ele deve ser tido por rústico[9].

Portanto, o prédio – de que uma quota-parte da compropriedade sobre ele – foi atingido pela penhora, é, para a lei civil – um prédio rústico.

Todavia, o que é relevante, para a discussão do problema da proporcionalidade da penhora, não é o carácter urbano ou rústico do prédio – mas o seu valor de mercado. Valor que é dado, designadamente, pela sua destinação efectiva e, designadamente, pela sua capacidade edificativa ou ius aedificandi.

O argumento fundado na reclamação pela Segurança Social do seu crédito tem o mesmo valor do anterior: i.e. nenhum. Por duas razões, também.

Em primeiro lugar, porque no mesmo momento em que o argumento foi aduzido se recusou àquele credor reclamante o reconhecimento do seu crédito. Face a essa recusa – de que decorre, evidentemente, a impossibilidade de ele ser satisfeito na execução – é claro que a reclamação não interfere com o problema da suficiência ou da proporcionalidade da penhora.

Depois, porque aquela reclamação foi deduzida contra a recorrente e – tanto quanto decorre dos elementos de prova disponibilizados pelo processo do recurso – a quota-parte na compropriedade daquele prédio não se encerra na titularidade da recorrente – mas de outro co-executado, pelo que tal direito nunca responderia pela satisfação do crédito reclamado.

O argumento extraído da excepção ao princípio da proporcionalidade da penhora também não tem no caso qualquer préstimo. É que, no caso, o problema da sobrepenhora coloca-se no tocante à penhora de um bem imóvel depois de já se mostrar penhorado direito referido a bem da mesma espécie.

Ponderosas são, sim, as considerações relativas à dificuldade da venda daquela quota-parte resultante, por um lado, da indivisão do prédio, e, por outro, da depressão do mercado imobiliário. A estas considerações bem pode ainda adicionar-se uma outra: o carácter ruinoso da venda executiva.

 Realmente, como mostra a simples observação do quotidiano judiciário, a venda executiva é, em regra, ruinosa, i.e., é realizada por um preço muito aquém do valor real dos bens. A esta regra de experiência – derivada id quod plerumque accidit, daquilo que normalmente sucede – soma-se, de um aspecto, o facto notório da contracção violenta da actividade económica, designadamente no sector imobiliário, resultado directo de uma política pública deliberadamente orientada para a desvalorização social e salarial, que traz consigo, como consequência irrecusável, uma drástica depreciação do valor dos prédios rústicos e urbanos, e, de outro, o facto da indivisão do prédio e os consequentes inconvenientes da propriedade em comum, que tornam menos atractiva a aquisição da uma quota do prédio em compropriedade.

Simplesmente, estas considerações – em si mesmas exactas – não são suficientes para inculcar, para além de qualquer a dúvida que se tenha por razoável, que, realmente, é altamente improvável que o produto da venda executiva da apontada quota se mostre suficiente para solver o crédito exequendo e as despesas da execução e, portanto, para presumir que a penhora da quota-parte na compropriedade não irá satisfazer o crédito exequendo, o mesmo é dizer, que a penhora de bens da recorrente não foi realizada com infracção do indicado princípio da proporcionalidade.

Embora não resulte da decisão impugnada, o crédito exequendo tem o valor de capital de € 33.394,16, a que acrescem juro vencidos no valor de € 1.630,19 e vincendos, à taxa anual de 4%; o prédio de que foi penhorada a quota-parte correspondente a 1/3, vale, no mercado, segundo a recorrente, 530.000,00; aritmeticamente, o valor daquela quota é, assim, de € 176.666,66, portanto, mais de cinco vezes o valor da dívida objecto da execução.

Embora a um tal valor haja que descontar, evidentemente, a depreciação resultante da indivisão do prédio e da venda executiva será desrazoável supor, mesmo num contexto de recessão do mercado imobiliário, que o valor real de tal bem seja cinco vezes inferior ao que lhe é atribuído pela recorrente.

Ainda que este juízo – de pura prognose - não seja exacto o que decerto não é admissível é a resolução do problema por recurso a presunções, por falta da prova do facto que está no sopé da presunção: o valor exacto actual da apontada quota-parte.

A conclusão do carácter excessivo – ou não - da penhora exige, portanto, a prova do valor de mercado do bem que, segundo a recorrente, é suficiente para garantir a satisfação da dívida exequenda e das despesas previsíveis da execução.

Ora, este facto – que é controvertido - bem pode ser estabelecido através da produção de uma das provas propostas pela recorrente: a diligência de avaliação, no qual o perito não deixará de entrar em linha de conta, na determinação do valor real actual da quota-parte penhorada, designadamente, com a conjuntura recessiva do mercado imobiliário, e com a circunstância de aquele bem se destinar a ser vendido executivamente.

Convém que a decisão do incidente seja célere; mas é também conveniente que seja justa.

De resto, a manutenção da penhora cujo levantamento é pedido pela recorrente, de pouco servirá, eventualmente, ao exequente, dada a existência de um credor graduado antes dele, por um crédito de valor muito elevado, e que, portanto, o preferirá no pagamento pelo produto da respectiva venda executiva.

Nestas condições, há que reconhecer razão à recorrente, devendo, por isso, revogar-se a decisão recorrida e ordenar a sua substituição por outra que ordene a diligência pericial requerida pela apelante.

A perícia será, porém, realizada por um único perito, e não por um colégio de peritos. È que, caso a recorrente pretendesse a realização de perícia colegial deveria tê-la requerido logo no requerimento em que deduziu o incidente e pediu a realização da perícia (artºs 569 nº 1 b) e 577 nº 1 do CPC). Como nesse requerimento, a recorrente pediu a realização da perícia singular, ficou irremediavelmente precludida a possibilidade de requerer posteriormente – e muito menos na instância do recurso, na qual, comprovadamente, não é admissível formulação de pedidos novos – a realização da diligência por um colégio de peritos.

Expostos todos os argumentos, afirma-se, em síntese, que:

a) O acto de constituição da garantia patrimonial em que a penhora se resolve está submetido a um princípio estrito de proporcionalidade;

b) O artº 834 nº 2 do CPC, que admite a penhora de um imóvel ou de um estabelecimento comercial, ainda que o valor dos bens exceda o montante do crédito exequendo, por não garantir com segurança, que a penhora do imóvel permitirá a satisfação da dívida exequenda num prazo inferior a seis meses, está implicitamente sujeita a uma condição impossível e, por isso, o mesmo nunca pode encontrar aplicação prática.

c) Dado que o ónus da prova do excesso de penhora vincula o executado, deve ser-lhe reconhecido um direito à prova, excepto se, de harmonia com o princípio da utilidade dos actos processuais, for possível, independentemente do exercício da prova, a formulação de um juízo seguro e consciencioso, sobre a proporcionalidade da penhora;

d) É indiferente, para o juízo sobre a proporcionalidade da penhora, o carácter rústico ou urbano do prédio penhorado;

e) Ignorando-se o valor da quota-parte da compropriedade sobre um prédio rústico, objecto da penhora, é inadmissível, por recurso a uma simples presunção judicial, concluir pela proporcionalidade daquela diligência executiva;

f) Tendo-se requerido, na instância recorrida, a perícia singular, é inadmissível a formulação, na instância de recurso, o pedido de realização dessa mesma perícia em moldes colegiais.

As custas deste recurso deverão ser satisfeitas pela parte que, a final do incidente, nele sucumba (artº 446 nºs 1 e 2 do CPC). Dada a simplicidade dos respectivos termos, a taxa de justiça do recurso deve ser fixada de harmonia com a Tabela I-B que integra o RCP (artº 6 nº 2).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, revoga-se a decisão impugnada e determina-se a sua substituição por outra que ordene a produção da prova pericial, por único perito, requerida pela recorrente.

As custas deste recurso serão satisfeitas pela parte que, a final do incidente, nele sucumba, devendo a respectiva taxa de justiça ser fixada de harmonia com a Tabela I-B, que integra o RCP.

                                                                                                                            

                                                                                                                             Henrique Antunes (Relator)

                                                                                                                             José Avelino Gonçalves

                                                                                                                             Regina Rosa

                 


[1] Também denominado princípio da adequação da penhora: Lebre de Freitas/Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, volume III, Coimbra Editora, 2003, pág. 341.
[2] J.P. Remédio Marques, A Penhora e Reforma do Processo Civil, em especial a penhora de depósitos bancários e do estabelecimento, Lex, 2000, pág. 106.
[3] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, págs. 641 e 642, e Acção Executiva Singular, Lisboa, Lex, 1998, págs. 33 e 34.
[4] Miguel Teixeira de Sousa, A Reforma da Acção Executiva, Lisboa, Lex, 2004, pág. 140.

[5] A pessoa directamente interessada na observância do princípio da proporcionalidade é, claro, o executado. Mas isso não impede que o agente de execução, logo que reconheça que os bens já vendidos são suficientes para o pagamento das custas e dos créditos, faça cessar, ex-officio, a venda dos bens penhorados.

[6] Vaz Serra, Provas, BMJ nº 110, pág. 190.

[7] João de Castro Mendes, Do Conceito de Prova, 1961, pág. 251. Duvidoso é também saber se a presunção é uma indução ou uma dedução. Sustentando que se trata de prova por indução, cfr. Manuel de Andrade Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra editora, 1976, pág. 215.
[8] Acs. RC de 22.01.91, CJ, XVI, I, 54, RL 07.06.90, BMJ nº 398, pág. 572 e do STJ de 01.07.86, BMJ nº 359, pág. 661.
[9] António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo II, Coisas, Almedina, Coimbra, 2000, págs. 123 e 124