Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3322/06.3TBAGD-I.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: INVENTÁRIO
RECLAMAÇÃO DE BENS
INSTRUMENTOS DE TRABALHO
REGIME DE BENS
Data do Acordão: 10/21/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE OLIVEIRA DO BAIRRO.
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 1348º CPC/61; 1723º E 1724º DO C.CIVIL.
Sumário: 1.- Perante o incidente de reclamação de bens, a lei (art. 1348º e segs. CPC/61) prevê que o tribunal possa tomar uma das seguintes soluções: (1) decisão incidental definitiva, (2) decisão incidental provisória ou (3) remessa dos interessados para os meios comuns.

2.- O incidente da reclamação comporta dois articulados, o requerimento inicial e a resposta, nos quais devem ser indicadas as provas, por se tratar de um incidente.

3.- No regime de comunhão de adquiridos, aos instrumentos de trabalho de cada um dos cônjuges são aplicáveis as normas que regulam a distribuição dos bens pelas categorias de bens próprios ou de bens comuns.

4. Por isso, são bens próprios se tiverem sido levados pelo cônjuge para o casal ou se por ele forem adquiridos por sucessão, doação ou nos termos do art. 1723º CC. São bens comuns se tiverem sido adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, a título oneroso (art. 1724º CC), mas, neste caso, por força do art. 1731º CC atribui-se ao cônjuge o direito de ser neles encabeçado na altura da partilha.

5.- Não se apurando (por ausência de prova) se os bens foram ou não adquiridos pelo casal (logo, na constância do matrimónio), opera a presunção legal de comunicabilidade, prevista no art. 1725º do CC, precisamente devido às dúvidas sobre a natureza.

6.- O caso julgado de uma sentença não abrange a decisão de facto.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO


            1.1.- A requerente – S… – instaurou na Comarca de Águeda (Baixo Vouga) inventário para separação de meações, com forma de processo especial, contra o requerido – A...

            1.2.- O cabeça de casal, A…, apresentou a relação de bens.

            1.3.- A requerente reclamou acusando a falta de relacionação, além do mais, das verbas:

            53 – Carrinha Mitsubishi L400 …-IB - € 2.000,00

            60 – Batoneira eléctrica  - € 150,00

            69 – Todas as máquinas e ferramentas de trabalho da actividade do cabeça de casal que laborava como empresário em nome individual € 5.000,00.

            1.4.- Respondeu o cabeça de casal, alegando, em síntese:

            A carrinha Mitsubishi inexiste por haver sido transaccionada a terceiro ainda na pendência do casamento (4/2006).

            As verbas 60 e 69 integram ferramentas de trabalho do requerido que sempre usou no seu trabalho de carpinteiro, pelo que não podem, nem devem ser relacionadas e porque, sem elas, não pode prover à sua subsistência.

            1.5.- Após inquirição de testemunhas, por sentença de 21/6/2013 decidiu-se julgar improcedente a reclamação relativamente à falta das referidas verbas.

            1.6.- Inconformada, a requerente/reclamante S… recorreu de apelação, com as seguintes conclusões:

            Não foram apresentadas contra-alegações.


II - FUNDAMENTAÇÃO

            2.1.- O objecto do recurso

            A questão submetida a recurso, delimitado pelas respectivas conclusões, consiste, no essencial, em saber se as verbas nºs 53, 60 e 69 devem ser aditadas à relação de bens.

            2.2. – O mérito do recurso

O processo de inventário para partilha de bens comuns subsequente ao divórcio está previsto no art.1404 do CPC/1961, sendo um processo especialíssimo em relação ao processo especial de inventário, para o qual remete. Por força do art.463 nº1 CPC, o processo regula-se, em primeiro lugar, pelas disposições que lhe são próprias, em segundo lugar, pelas disposições gerais e comuns e, em tudo o que não estiver previsto numas e outras, pelas disposições do processo ordinário.

No processo de inventário, apresentada a relação de bens pelo cabeça de casal (arts.1345, 1346 e 1347 do CPC), os interessados são notificados para dela reclamar, no prazo de dez dias, podendo acusar a falta de bens que devam ser relacionados e/ou requerer a exclusão de bens indevidamente relacionados (art.1348 nº1 do CPC).

Deduzida a reclamação contra a relação de bens, não confessando o cabeça de casal o seu dever de os relacionar, produzida a prova, segue-se a decisão do juiz sobre a pertinência ou não da relacionação dos bens cuja falta foi acusada (art.1349 nº2 e 3 do CPC).

Porém, quando a complexidade da matéria de facto subjacente às questões suscitadas tornar inconveniente a decisão incidental da reclamação, deve o juiz, por um lado, abster-se de decidir e, por outro, remeter os interessados para os meios comuns (art.1350 nº1 do CPC ), não sendo incluídos no inventário os bens cuja falta foi acusada, ou a exclusão (art.1350 nº2 do CPC).

Pode também o juiz, com base na apreciação sumária das provas produzidas, deferir provisoriamente a reclamação, com ressalva do direito às acções competentes (art.1350 nº3 do CPC). Ambas as soluções (decisão provisória ou remessa para os meios comuns) pressupõem que a complexidade da matéria de facto subjacente à questão a dirimir torne inconveniente a decisão incidental no inventário, por implicar a redução das garantias das partes (art.1336 nº2, 1350 nº1 e 3 do CPC).

Em resumo, perante o incidente de reclamação de bens, a lei prevê que o tribunal possa tomar uma das seguintes soluções: (1) decisão incidental definitiva, (2) decisão incidental provisória ou (3) remessa dos interessados para os meios comuns.

O incidente da reclamação comporta dois articulados, o requerimento inicial e a resposta, nos quais devem ser indicadas as provas, por se tratar de um incidente (art.303 nº1) e por remissão do art. 1349 nº3 para o 1344 nº2 CPC .

            Nos termos do art.1349 nº1 do CPC, deduzida reclamação, é notificado o cabeça-de-casal para relacionar os bens em falta ou para se pronunciar sobre a matéria da reclamação, no prazo de dez dias. O DL nº 227/94 de 8/9, por razões de simplificação processual ( conforme se afirma no preâmbulo) reuniu no art.1349 o regime, anteriormente disperso, nos arts.1342, 1343 e 1344 CPC.

            Verbas nºs 60 e 69

            A decisão recorrida julgou não provados os factos alegados nas respectivas verbas, ou seja, que os bens pertencessem ao casal (que foram casados em regime da comunhão de adquiridos) como bens comuns (é, pelo menos, este o sentido que se extrai do texto da decisão).

            Conforme fundamentação, o tribunal justificou com a ausência de prova “segura“ e “consistente”, explicitando que “no que se às ferramentas, apesar do cabeça de casal ter admitido a sua existência não confirmou que os mesmos tivessem sido adquiridos pelo casal”.

            Em contrapartida, sustenta a recorrente que os bens são comuns, e como tal devem ser relacionados, porque a reclamante beneficia da presunção de comunicabilidade (art. 1725 CC), que o cabeça de casal não ilidiu.

            Aos instrumentos de trabalho de cada um dos cônjuges são aplicáveis as normas que regulam a distribuição dos bens pelas categorias de bens próprios ou de bens comuns.

            Nesta medida, são bens próprios se tiverem sido levados pelo cônjuge para o casal ou se por ele forem adquiridos por sucessão, doação ou nos termos do art. 1723 CC. São bens comuns se tiverem sido adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, a título oneroso (art. 1724 CC), mas, neste caso, por força do art. 1731 CC atribui-se ao cônjuge o direito de ser neles encabeçado na altura da partilha.

            É ponto assente que ambos os interessados admitem (por acordo) a existência dos bens e que estão afectos à actividade laboral do requerido A… (empresário em nome individual ).

            Contrariamente ao alegado pelo cabeça de casal, na resposta à reclamação, não é pelo facto de tais bens integrarem ferramentas do seu trabalho que devem ser excluídos, como já se observou, visto contender com a respectiva qualificação e essa afectação, por si só, não os torna bens próprios.

            Não se apurando (por ausência de prova) se os bens foram ou não adquiridos pelo casal (logo, na constância do matrimónio), opera a presunção legal de comunicabilidade, prevista no art. 1725 do CC, precisamente devido às dúvidas sobre a natureza.

            Em comentário, exemplificam P.Lima/A.Varela ( Código Civil Anotado, IV, 2ª ed., pág. 429 ): “Quanto aos próprios móveis, como no texto legal expressamente se afirma, a presunção (de comunicabilidade) só se aplica quando haja dúvidas sobre a sua natureza. Não se sabe, por exemplo, se determinadas peças de prata foram levadas pela mulher para o casal ou foram por ela compradas, já depois de casada. Ou ignora-se se as acções foram por ele adquiridas, depois do casamento, como protesta a mulher “.

E cabia ao cabeça de casal a prova do contrário, ou seja, ilidir a presunção, de que os bens eram próprios, o que não fez, limitando-se a dizer que por serem instrumentos de trabalhos não podiam ser relacionados. Ora, os instrumentos de trabalho não cabem no art. 1733 nº1 CC, pois não são objecto de “uso pessoal”, mas profissional e, por isso, não são incomunicáveis por força de lei.

            Deste modo, impõe-se a inclusão das verbas nº 60 e 69.

Verba nº 53

O tribunal julgou não provado que o bem (veículo automóvel) pertencesse ao casal, justificando assim - “no que concerne ao veículo indicado na reclamação de bens sob a verba nº 53, foi a própria que admitiu que o veículo foi transferido em dação em pagamento em data em que ainda se encontrava casada com o cabeça de casal”.

            A recorrente sustenta ter ficado com a convicção de que houvera efectiva dação, que posição das partes no processo impõe decisão diversa, tanto que de acordo com documento junto (com as alegações de recurso) se prova, não a dação, mas a venda pelo cabeça de casal na pendência do casamento, e como tal, também pela presunção de comunicabilidade, deve ser relacionado como bem comum.

            Por sentença de 12/4/2011 que B… instaurou contra S… e A…, foram condenados a restituir ao Autor a quantia de € 8.000,00, acrescida de juros de mora.

            Nela deu-se como provado, além o mais, que “o requerido emitiu factura recibo nº061/A, em 11 de Setembro de 2006, a favor do requerente B…, relativa a uma viatura usada marca Mitsubishi, matrícula …-OR, no valor de € 2.500”, e como não provado que “o requerente não pagou qualquer quantia monetária ao requerido pela entrega da carrinha, limitando-se a recebê-la como forma der pagamento do dinheiro emprestado ao casal”.

            Convirá sublinhar, desde já, que o caso julgado desta sentença não abrange a decisão de facto, ou seja, “os fundamentos de facto não adquirem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, o valor de caso julgado“ ( M Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 577),  ou seja, “os factos considerados como provados nos fundamentos da sentença não podem considerar-se isoladamente cobertos pela eficácia do caso julgado, para o efeito de se extrair deles outras consequências, além das contidas na decisão final” ( A. Varela, Manuel de Processo Civil, 1984, pág. 697), posição seguida na jurisprudência ( cf., por ex., Ac STJ 2/3/2010 ( proc. nº 690/09.9 ), em www dgsi.pt ). Sendo assim, tanto basta para que o documento ( supervenientemente apresentado) não implique, sem mais, decisão diversa.

            Por outro lado, dela não resulta sequer que o veículo tivesse sido efectivamente vendido, pois não obstante a venda ser consensual (visto que o registo é declarativo) em parte alguma se comprova o contrato de compra e venda.

            Acresce, pela ausência de dúvida fundada, a inaplicabilidade da presunção legal de comunicabilidade.

            2.3. – Síntese conclusiva

1.- Perante o incidente de reclamação de bens, a lei (art. 1348 e segs. CPC/61) prevê que o tribunal possa tomar uma das seguintes soluções: (1) decisão incidental definitiva, (2) decisão incidental provisória ou (3) remessa dos interessados para os meios comuns.

2.- O incidente da reclamação comporta dois articulados, o requerimento inicial e a resposta, nos quais devem ser indicadas as provas, por se tratar de um incidente.

3.- No regime de comunhão de adquiridos, aos instrumentos de trabalho de cada um dos cônjuges são aplicáveis as normas que regulam a distribuição dos bens pelas categorias de bens próprios ou de bens comuns.

            4. Por isso, são bens próprios se tiverem sido levados pelo cônjuge para o casal ou se por ele forem adquiridos por sucessão, doação ou nos termos do art. 1723 CC. São bens comuns se tiverem sido adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, a título oneroso ( art. 1724 CC), mas, neste caso, por força do art. 1731 CC atribui-se ao cônjuge o direito de ser neles encabeçado na altura da partilha.

5.- Não se apurando (por ausência de prova) se os bens foram ou não adquiridos pelo casal (logo, na constância do matrimónio), opera a presunção legal de comunicabilidade, prevista no art. 1725 do CC, precisamente devido às dúvidas sobre a natureza.

            6.- O caso julgado de uma sentença não abrange a decisão de facto.


III – DECISÃO

            Pelo exposto, decidem:

1)

            Julgar parcialmente procedente a apelação e revogando-se, em parte, a sentença, deferir parcialmente a reclamação, determinando-se o aditamento à relação de bens das verbas nºs 60 e 69, confirmando-se o demais decidido.

2)

Condenar a recorrente nas custas, na proporção do decaimento.

            Coimbra, 21 de Outubro de 2014.


Jorge Arcanjo (Relator)

Teles Pereira

Manuel Capelo