Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
207/22.0T8FND-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO FRANCISCO SANTOS
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE ACORDO DE PAGAMENTO
RECUSA DE HOMOLOGAÇÃO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
DESPROPORÇÃO INJUSTIFICADA
Data do Acordão: 05/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DO FUNDÃO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 194.º, N.º 1, 215.º E 216.º DO CIRE
Sumário: I – Competindo ao juiz a decisão sobre a homologação do acordo de pagamento, cabe-lhe a avaliação última da igualdade material em cada situação, âmbito em que na aferição da legitimidade da discriminação dos credores intervém o princípio da proporcionalidade, fazendo apelo às ideias de necessidade, adequação e proporcionalidade das medidas discriminatórias.

II – Um acordo de pagamento que prevê a redução do valor do capital dos créditos comuns em 99%, o perdão dos respetivos juros vencidos e vincendos e o pagamento da 1.ª prestação no último dia útil do sexto mês seguinte ao do trânsito em julgado, enquanto para os créditos garantidos prevê o pagamento integral do capital em dívida, bem como dos juros de mora vencidos e vincendos, e o início do prazo de pagamento no mês seguinte ao da prolação da sentença homologatória do acordo, enferma de clara discriminação negativa, não justificada no acordo, quanto aos créditos comuns, violando, assim, o princípio da igualdade material dos credores e justificando a sua não homologação.

Decisão Texto Integral:
Processo n.º 207/22.0T8FND-B.C1

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

AA e BB, residentes na Rua ..., ... ..., recorreram ao processo especial de acordo de pagamento, a fim de estabelecerem negociações com os respectivos credores de modo a concluir com estes acordo de pagamento. Para o efeito alegaram que se encontravam em situação económica difícil, na medida em enfrentavam sérias dificuldades para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por falta de liquidez e por não conseguirem obter crédito.

O requerimento foi recebido e foi nomeado administrador judicial provisório.

Findo o prazo das negociações, os devedores remeteram para o tribunal acordo de pagamento.

No decurso do prazo de votação do acordo, o Instituto da Segurança Social I.P. – Centro Distrital ... e a C..., S.A. solicitaram a não homologação do acordo.

Após a remessa ao tribunal do documento com o resultado da votação, o Meritíssimo juiz do tribunal a quo recusou a homologação do acordo.

Os devedores não se conformaram com a decisão e interpuseram o presente recurso de apelação, pedindo a revogação e a substituição da decisão recorrida por decisão que homologasse o acordo de pagamento.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. O recurso tem por objecto a douta decisão de não homologação do acordo de pagamento apresentado pelos requerentes/devedores e versa matéria de direito.
2. Tem fundamento na violação ou incorreta aplicação do disposto nos arts. 215.º e 216.º do CIRE (principalmente art. 215.º), ambos aplicáveis ex vi art. 222.º-F, n.º 5 do mesmo diploma, uma vez que, ao contrário do entendimento veiculado na decisão impugnada, não houve violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo.
3. Os requerentes negociaram e apresentaram à votação proposta de acordo de pagamento das respetivas dívidas, totalizando estas o valor total de 7.564.439,06 eur.
4. Da proposta de pagamento, os requerentes fizeram constar rendimentos mensais de 5.350,00 euros (sendo 4.750,00 euros correspondentes a rendimentos de trabalho e 600,00 euros resultantes de rendas) e património com o valor de aproximado de 312.339,26 euros (sendo 45.000,00 euros correspondentes aos imóveis que servem de morada de família).
5. Como resulta do plano, os devedores nasceram em 1969 e 1972, contando 53 e 50 anos, sendo certo que o plano conta ser cumprido ao longo de 13 anos.
6. O plano de regularização de dívida prevê pagamentos mensais de 5.009,10 euros, 5.231,47 euros e, no ano 13.º, 2.283,12 eur.
7. Perante os dados financeiros do plano, é objectivamente impossível gerir a dívida dos requerentes numa perspectiva de pagamento total ou aproximado do total, o que significa que o objectivo de recuperação, no sentido de ser minimamente realista, se cumpre necessariamente mediante perdão de capital e juros, isto é, mediante sacrifício muito significativo dos credores.
8. O plano apresentado não ofende o princípio da igualdade pela forma como trata de modo diferentes credores de classes diferentes até porque confere exactamente o mesmo tratamento a credores integrados em cada um dos grupos de credores públicos, credores garantidos e credores comuns.
9. Mas também não ofende o princípio da proporcionalidade, ainda que imponha um perdão total de juros aos credores comuns, acrescido de perdão de 99% do capital.
10. De acordo com o plano, os devedores procedem ao pagamento da quantia global de 778.061,07 euros.
11. Assumindo um período de pagamento de cerca de 13 anos (ou 144 meses), este valor implica entregas mensais de 5.403,20 euros, ou seja, representa a cessão do limite das possibilidades dos requerentes/devedores, quando confrontados os respectivos rendimentos, pouco superiores a 5.000,00 euros.
12. Os devedores abdicam da totalidade dos respectivos rendimentos mensais ao longo do período de cumprimento do acordo.
13. O princípio da proporcionalidade não é colocado em causa se se conclui (i) que o sacrifício dos devedores é também muitíssimo relevante (de tal modo que o sacrifício dos credores comuns não é “caprichoso” ou fútil), (ii) que não há solução alternativa susceptível de conduzir à recuperação dos devedores e (iii) que no cenário alternativo da liquidação dos activos a posição dos credores comuns seria ainda mais sacrificada.
14. O processo especial para acordo de pagamento visa proporcionar a recuperação económica do devedor, assumindo a necessidade de colaboração dos credores que partilham, com o sacrifício do seu interesse colectivo/interesses individuais o alcançar desse objectivo.
15. Nisso se traduz o designado princípio da prioridade na recuperação económica do devedor.
16. In casu, a recuperação dos devedores não seria possível se se assumisse o compromisso de pagamento de uma parcela significativa dos créditos comuns, considerando que o desiderato, até à luz da perspetiva de recuperação, é fazer assentar o cumprimento do acordo nos rendimentos mensalmente auferidos pelos devedores.
17. No cumprimento do plano os devedores, actualmente com cerca de 50 anos, colocam à disposição dos credores o valor limite de todos os seus rendimentos ao longo de um período que se considera razoável, ou seja, 13 anos.
18. Por outro lado, no cenário da liquidação dos activos em processo de insolvência, a comparação do valor de mercado dos bens dos devedores com o quantitativo de dívidas patenteado no processo, tornam absolutamente seguro que os credores comuns não receberiam qualquer valor e que aquele que lhes estaria destinado seria afectado ao pagamento dos próprios encargos da acção.
19. Finalmente, é relevante que o plano tenha obtido o consentimento (mediante apresentação de voto favorável) do credor quantitativamente mais relevante de entre os comuns, ou seja, de entre os mais expostos aos sacrifícios exigidos pelo plano.

A C..., S.A. respondeu ao recurso, sustentando a manutenção da decisão recorrida.


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Síntese das questões suscitadas pelo recurso

Saber se, ao recusar oficiosamente a homologação do acordo, a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 215.º e 216.º do CIRE.


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Não tendo havido impugnação da decisão relativa à matéria de facto, consideram-se provados os seguintes factos discriminados na sentença recorrida:
1. Foram reconhecidos créditos num valor total de € 7.564.439,06 assim discriminados:
· Autoridade Tributária e Aduaneira, no valor global de 865.872,01 Euros, classificados como comuns;
· B..., S.A., no valor de 46.300,71 Euros, classificado como comum;
· D..., CRL, no valor global de 523.451,32 Euros, dos quais, 495.207,45 Euros classificados como comuns e 28.243,87 Euros classificados como garantidos;
· C..., S.A., no valor global de 1.380.579,60 Euros, dos quais 1.313.031,27 Euros classificados como comuns e 67.548,33 Euros classificados como garantidos;
· Instituto da Segurança Social, I.P., no valor global de 198.608,97 Euros, dos quais 26.687,88 Euros classificado como privilegiado, 1.965,51 Euros como comum e 169.955,58 Euros classificado como garantido por hipotecas legais constituídas sobre os prédios:
a) Prédio rústico descrito na conservatória do Registo Predial ..., freguesia ... sob o n.º ...01, registada a favor da credora pela ap. n.º ...81, de 2017/04/10, para garantia de 30.807,02 Euros;
b) Prédio urbano descrito na conservatória do Registo Predial ..., freguesia ... sob o n.º ...09, registada a favor da credora pela ap. ...37, de 2012/08/17, para garantia de 139.148,56 Euros e ap. n.º ...81 de 2017/04/10 para garantia de 30.807,02 Euros;
c) Prédio urbano descrito na conservatória do Registo Predial ..., freguesia ... sob o n.º ...9, registada a favor da credora pela ap. n.º ...74, de 2012/08/16, para garantia de 139.148,56 Euros e ap. n.º ...81, de 2017/04/10, para garantia de 30.807,02 Euros;
· I..., Inc., no valor de 4.536.799,84 Euros, classificado como comum;
· U..., S.A., no valor de 12.826,61 Euros, classificado como comum.
2. No acordo de pagamento consta, além do mais:
· Que o requerente AA é colaborador do restaurante que opera sobre o nome comercial “...” sob a exploração de CC, NIF: ..., com contrato de trabalho, termo incerto, exercendo funções de “chefe de sala”, auferindo um salário mensal de 1.500,00€. Aufere ainda uma renda mensal de 300,00€, referente à cessão de exploração do referido restaurante e uma renda de igual montante referente à cessão de exploração do posto de combustível a M... Lda. Exerce ainda funções de mecânico na sociedade L..., Unipessoal, Lda., com o NIF ..., auferindo um salário médio mensal de 1.250,00€.
· Que BB exerce funções de ... da sociedade L..., Unipessoal, Lda., com o NIF ..., auferindo um salário médio mensal de 2.000,00€.
· Que os requerentes são proprietários dos bens e direitos a seguir identificados:
a) Prédio urbano sito no lugar de ... (…) descrito na conservatória do Registo Predial ..., sob o número ...75...…) com valor patrimonial tributário de 17.659,43€, onerado com uma hipoteca Voluntária a favor da C..., S.A. (…)
b) Prédio urbano sito no Lugar ... (…) descrito na conservatória do Registo Predial ..., sob o número ...74...…) com valor patrimonial tributário de 67.091,50€, onerado com Hipoteca Voluntária a favor da C..., S.A. (…). Os prédios urbanos acima descritos foram avaliados conjuntamente, por perito avaliador inscrito na CMVM, da qual resultou um valor de mercado no estado atual de 214.000,00€ e que se considera aqui integralmente reproduzido (…)
c) Prédio urbano sito no Lugar ... (…) descrito na conservatória do Registo Predial ... com o número ...85... (…) com valor patrimonial tributário de 2.801,40€uros, onerado com Hipoteca Voluntária a favor da C..., S.A. (…), com Hipoteca Voluntária a favor da C..., S.A. (…), com Hipoteca Legal a favor do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P. (…);
d) Prédio urbano sito no Lugar ... (…) descrito na conservatória do Registo Predial ... com o número ...85... (…) com valor patrimonial tributário de 35.372,75€uros, onerado com Hipoteca Voluntária a favor da C..., S.A. (…), com Hipoteca Voluntária a favor da C..., S.A. (…)  e com Hipoteca Legal a favor do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P. (…). Que os dois prédios urbanos acima descritos, correspondem à morada de família e têm um valor de mercado de 45.000,00€
e) Prédio Urbano, terreno para construção, sito no Lugar ... (…) do prédio rústico descrito na conservatória do Registo Predial ... com o número Processo: 529/21....); com valor patrimonial tributário de 43.339,26 €uros (…) que corresponde ao valor de mercado em caso de venda, onerado com Hipoteca Voluntária a favor da D..., CRL (…) e com Hipoteca Legal a favor do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P.
f) Quota no valor nominal de 5.000,00€, pertencente à sociedade por quotas “L..., Unipessoal, Lda.”, com o NIF ..., com o Capital Social de 20.000,00€, que por sua vez se encontra em Processo Especial de Recuperação, que correu os seus termos sob o n.º 584/16...., no Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo de Comércio ...
g) Quota no valor nominal de 5.000,00€, pertencente à sociedade “I..., LDA.”, com o NIF ..., com o Capital Social de 10.000,00€, que se encontra em Processo Especial de Revitalização, que correu os seus termos sob o n.º 7514/16...., no Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo de Comércio ... – Juiz
· ALTERAÇÕES DECORRENTES DO PLANO DE PAGAMENTO – PROVIDÊNCIAS COM INCIDÊNCIA NO PASSIVO/REESTRUTURAÇÃO DO PASSIVO: as medidas a adoptar com incidência no passivo dos devedores serão concretizadas através de um Plano de Pagamentos que permita acomodar as suas dívidas e sua maturidade, à sua capacidade libertar os meios financeiros suficientes tendentes à sua regularização, através da implementação de diversas medidas. Releve-se que as sobreditas providências visam dotar os Devedores de capacidade financeira, essencial ao desenvolvimento normal da sua atividade, de acordo com o princípio da continuidade, bem como ao cumprimento do Plano de Pagamentos proposto para a regularização das suas dívidas. Assim, nos termos supra expostos as medidas de regularização das dívidas é a que se passa a explicitar, revelando-se para os devidos efeitos que o reembolso dos créditos não viola o princípio da igualdade dos credores, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objetivas, as quais foram atendidas no presente, nem de tal Plano resulta uma situação mais desfavorável para os credores daquela que resultaria de uma situação de insolvência, como a seguir se demonstrará. (…)
· JUSTIFICAÇÃO DO RECURSO A PEAP: Os factores que determinam a opção pela reestruturação das dívidas e seu pagamento no âmbito de um Acordo de Pagamento, são as que a seguir se indicam: - Apesar das dificuldades económicas atuais, os rendimentos anuais auferidos pelos devedores permitem gerar cash-flow suficiente para fazer face a um serviço da dívida reestruturada e adaptada aos referidos; Tomada de consciência que só através da negociação das suas dívidas com os seus credores, quer através de um perdão quer através de um estabelecimento de um prazo mais alargado do que atualmente dispõe para o seu pagamento, conseguirão recuperar a sua estabilidade económica e pessoal e desta forma a prosseguir, de forma relativamente normal, o desenvolvimento das suas atividades profissionais.
· MEDIDAS PROPOSTAS DE REGULARIZAÇÃO DAS DÍVIDAS: a Proposta de Plano de Pagamento das dívidas possível e ajustado à capacidade dos devedores gerarem rendimentos é a que a seguir se expõe:
· DÍVIDAS AO ESTADO AUTORIDADE TRIBUTÁRIA: Não obstante se encontrar refletida na Lista Definitiva de Créditos Reconhecidos no âmbito do presentes Autos, uma dívida à Autoridade Tributária e Aduaneira no valor de 865.872,01 € o facto é que a certidão de dívidas obtida no dia 06/01/2022, revela que a mesma se cifra no montante total de 419.618,24 € (…) Assim, só o último valor será objeto de estabelecimento de medida de regularização no presente Acordo de Pagamento. Acresce que o suprarreferido valor e porquanto os devedores não o reconhecem, pelo menos na sua totalidade, foi objeto de reclamação pelo devedor AA junto da Direção de Finanças ..., enviada no dia 10.01.2022, por carta registada. Em face do exposto e no caso de verificar-se a exigibilidade da dívida reclamada (parte) pela Autoridade Tributária – Perda da Ação, a medida de pagamento da referida deverá ser regularizada através do seu enquadramento nos termos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 30.º e n.º 3 do artigo 36.º da LGT e artigos 196.º e 199.º do CPPT, isto é, a quantia exequenda, custas e juros de mora, serão regularizados em regime prestacional, o que de acordo com o regime legal aplicável aos créditos tributários deverá obedecer cumulativamente aos seguintes critérios: - Pagamento em regime prestacional, nos termos do artigo 196.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), ou seja: a) As prestações são mensais, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira até ao final do mês seguinte ao terminus do prazo previsto no n.º 5 do artigo 222.º-D do CIRE. b) Número máximo de prestações: - 150 prestações mensais, não podendo nenhuma delas ser inferior a 10 unidade de conta (atualmente €1.020); c) Não haver lugar à redução de coimas e custas; d) Não haver lugar a qualquer moratória; e) Pagamento de juros vencidos e vincendos à taxa legalmente fixada para os juros de mora aplicáveis às dívidas do Estado; f) A manutenção das garantias existentes, nos termos do n.º 13, do art. 199.º do CPPT; g) Relativamente à prestação de garantias adicionais, nos termos do art. 199.º n.º 13 do CPPT, o acordo prestacional no âmbito de processo especial de revitalização não depende da prestação de quaisquer garantias adicionais; h) Para os efeitos previstos do n.º 1 do artigo 222.º-E do CIRE, determina-se, nos termos da sua parte final, que a extinção dos processos fiscais só se dará nos termos do CPPT. A suspensão prevista naquele normativo cessa, conforme o que ocorrer primeiro, com o decurso das negociações ou do prazo previsto na lei para conclusão das mesmas (n.º 5 do artigo 222.º-D do CIRE).
· INSTITUTO DE SEGURANÇA SOCIAL, I.P Nota introdutória: Não obstante se encontrar refletida na Lista Definitiva de Créditos Reconhecidos no âmbito do presentes Autos, uma dívida ao Instituto de Gestão Financeira, I.P., no valor de 198.608,97, não se conformando com a referida, foi objeto de reclamação pelo devedor AA junto do Instituto da Segurança Social, I.P. – Centro Distrital ... enviada no dia 10.01.2022, por carta registada. Em face do exposto e no caso de verificar-se a exigibilidade da dívida reclamada (parte) pela Instituto de Gestão Financeira, I.P. – Perda da Ação, propõe-se a sua regularização nos seguintes termos: Estabelecimento de um Plano Prestacional a autorizar em 150 prestações mensais e sucessivas, no âmbito da execução fiscal, que deverá obedecer aos seguintes requisitos: a) O pagamento da primeira prestação deverá ocorrer no mês seguinte ao da homologação do Acordo de pagamento; b) Manutenção das garantias existentes e dispensa de prestação de garantias adicionais nos termos do artigo 199.º, n.º 13, do CPPT; e, c) As ações executivas pendentes para cobrança de dívidas à Segurança Social não são extintas mantendo-se suspensas após aprovação e homologação do plano de revitalização até integral cumprimento do plano de pagamentos que venha a ser autorizado.
· CREDORES GARANTIDOS: A regularização das dívidas aos credores garantidos deverá ocorrer nos seguintes termos: - Pagamento integral do capital em dívida; - Capitalização dos juros vencidos ao montante de capital em dívida de acordo com as taxas legais em vigor - Amortização do capital e juros em 144 prestações mensais, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira no mês subsequente ao trânsito em julgado da decisão de homologação do Acordo; - Juros vincendos, com periocidade mensal, calculados à taxa correspondente ao indexante Euribor três meses acrescido de spread de 3% (caso o indexante seja inferior a zero, deverá considerar-se para a determinação da taxa de juro aplicável que o valor daquele corresponde a zero), iniciando-se o seu pagamento no mês seguinte ao da prolação da Sentença Homologatória do Acordo; - Manutenção das garantias existentes.
· CREDORES COMUNS: A regularização das dívidas aos credores comuns, ocorrerá nos seguintes termos: - Perdão de 99% do capital em dívida. - Perdão de 100% dos juros vencidos e vincendos e demais custos devidos; - Pagamento de 1% do capital em dívida em 12 anos em prestações semestrais e sucessivas; - O pagamento da 1.ª Prestação deverá ocorrer no último dia útil do sexto mês seguinte ao do trânsito em julgado ao que se verificar a homologação do Plano. (…).
· CLÁUSULA DO REGRESSO DE MELHOR FORTUNA: O Plano de Pagamento fica subordinado à cláusula salvo regresso de melhor fortuna, que produz efeitos durante o período da sua vigência, nos termos em que, se e quando, a sua situação económico-financeira melhorar (o que será verificável pela regular informação declarativa à Autoridade Tributária) permitindo a libertação de meios, que, para além das prestações do Plano, lhe possibilite efetuar pagamentos aos credores, sem comprometer a sua sustentabilidade, os devedores comprometem-se a, de forma rateada, efetuar reembolsos, totais ou parciais, das dívidas, sem qualquer penalização ou encargo adicional resultante de resolução antecipada. (…)
· OBTENÇÃO DOS MEIOS DE SATISFAÇÃO DOS CREDORES: os meios serão obtidos através da continuidade do exercício das atividades profissionais desenvolvidas atualmente pelos devedores e/ou as que vierem a desenvolver no decurso de tempo estabelecido para o cumprimento do plano de Pagamentos.
· PROVIDÊNCIAS COM INCIDÊNCIA NO PASSIVO: A recuperação dos devedores, concretizar-se-á, através do pagamento integral, mas reescalonado do prazo de reembolso dos seus créditos garantidos/privilegiados e um perdão de 99,00% de capital em dívida e perdão de 100% dos juros dos créditos comuns, nos termos já referidos anteriormente, e que no ponto seguinte se quantificam nas projeções financeiras, tendo por base um juízo de prognose dos seus rendimentos, num grau de segurança adequado.
· IMPACTO EXPECTÁVEL DAS ALTERAÇÕES PROPOSTAS: A Proposta de Acordo de Pagamento apresentada no presente documento visa a regularização das dívidas dos requerentes, nos termos aqui definidos, que ocorrerão por via dos rendimentos auferidos pela continuidade do desenvolvimento das atividades por si desenvolvidas, permitindo desta forma a sua reabilitação quer económica quer pessoal. Por outro revela-se que tal recuperação se apresenta como o melhor cenário quer para os referidos quer para os seus credores, atento a que a concretizar-se, continuaram os requerentes a contribuir para o desenvolvimento da economia nacional, os seus credores que detém garantia real sobre os seus bens serão ressarcidos na sua totalidade e os credores comuns receberão valores que num cenário de insolvência – cenário alternativo, não é expectável que venha a ocorrer. Assim, e em face do exposto, o “melhor interesse dos credores”, ocorrerá através da aprovação e homologação do presente Acordo de Pagamento, já que nenhum credor ficará em pior situação do que a que se verificaria numa situação de não aprovação e/ou não Homologação do Acordo. Revela-se ainda que o Acordo em análise não prevê qualquer privilégio de credores, não viola de forma não negligenciável de regras procedimentais e/ou normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza. (…) Concretizando: A situação económica dos credores, ao abrigo do Acordo de Pagamento, é previsivelmente, mais favorável do que a ocorreria na sua ausência. De facto e de acordo com as previsões (cálculos efectuados) acima expostas, resulta que: - O pagamento da dívida aos credores garantidos/privilegiados, no decurso da implementação do Acordo correspondente a 12 anos (tendo em consideração um valor de avaliação dos ativos (melhor cenário) no montante de 307 339 €, e uma atualização dos fluxos anuais pagos à taxa de 0,8% (taxa das obrigações do tesouro a 10 anos)) dará um valor de retorno aos credores de 737.763 € - daqui resulta que este cenário de é o melhor para a satisfação dos credores. - No cenário alternativo de liquidação imediata do ativo prevê-se com elevado grau de certeza que, apenas os credores garantidos/privilegiados seriam parcialmente pagos no montante de 307 339,00 € e os credores comuns nada recebam tendo em conta que os 5.000,00 € afetos aos credores comuns, num cenário de insolvência, serão absorvidos pelas custas judiciais e demais encargos. (…)».
3. O acordo foi votado por 92,91% dos credores cujos créditos foram reconhecidos. Relativamente aos credores que emitiram o seu sentido de voto, 76,87% dos votos emitidos foram favoráveis e 23,13% dos votos foram desfavoráveis.
4. Votaram favoravelmente o acordo de pagamento dos devedores a Autoridade Tributária e Aduaneira e a I..., Inc.
5. Votaram desfavoravelmente o acordo de pagamento dos devedores o B..., S.A., a C..., S.A. e o Instituto da Segurança Social, I.P.

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Descritos os factos passemos à resolução da questão supra-referida.

A decisão sob recurso recusou a homologação do acordo de pagamento por entender que ele violava o princípio da igualdade pela desproporção injustificada das medidas de compressão dos credores comuns relativamente aos garantidos. E – continuou a decisão – estando em causa uma norma imperativa que regulava a elaboração do plano de recuperação, a respectiva violação configurava uma violação não negligenciável de regras procedimentais que determinavam a recusa oficiosa da homologação do acordo de pagamento.

Os recorrentes imputam à decisão a violação do disposto nos artigos 215.º e 216.º do CIRE, com base na seguinte linha argumentativa:
· O processo especial visa alcançar a recuperação económica do devedor, o que só se consegue com a colaboração e sacrifício dos direitos dos credores; 
· Perante a situação financeira dos requerentes descrito no acordo de pagamento, é-lhes impossível pagarem totalmente ou aproximadamente a sua dívida, pelo que o objectivo de recuperação dos devedores só é alcançado com perdão de capital e juros;
· A recuperação não seria possível se os devedores assumissem o compromisso de pagarem uma parcela significativa dos credores comuns;
· O plano não ofende o princípio da igualdade porque cada categoria de credores é tratada da mesma forma;
· O facto de o acordo prever a redução do valor dos créditos comuns em 99% e o perdão total dos juros vencidos e vincendos ao passo que prevê o pagamento integral do capital e dos juros dos créditos garantidos não implica a violação do princípio da proporcionalidade porque i) o sacrifício dos devedores também é muitíssimo relevante; ii) não há solução alternativa à recuperação dos credores (será que quer dizer que a recuperação dos devedores não podia ser obtido por outros meios menos gravosos para os credores comuns), iii) no cenário alternativo da liquidação/insolvência, a posição dos credores comuns ainda seria mais gravosa;
· O plano obteve o consentimento do credor comum com o crédito de maior montante.

O recurso é de julgar improcedente.

Em primeiro lugar, não tem sentido imputar à decisão sob recurso a violação do artigo 216.º do CIRE pois resulta das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 639.º do CPC que, versando o recurso sobre matéria de direito, só é pertinente imputar à decisão a violação das normas que constituíram fundamento jurídico do que foi decidido e é seguro afirmar-se que tal preceito do CIRE não serviu de fundamento à recusa de homologação do acordo de pagamento.

Em sentido lugar, o artigo 215.º do CIRE, que constituiu um dos fundamentos jurídicos da decisão, não foi violado pela decisão recorrida. Na verdade, dizendo este preceito – aplicado com as devidas adaptações no âmbito do processo especial para acordo de pagamento por remissão do n.º 5 do artigo 222.º-F - que o juiz recusa oficiosamente a homologação do acordo de pagamento aprovado pelos credores no caso de violação não negligenciável e regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, a decisão recorrida tê-lo-ia desrespeitado se o acordo aprovado não violasse, ou violasse em termos negligenciáveis, regras relativas ao procedimento ou normas aplicáveis ao conteúdo do acordo, o que não acontece, pois as medidas previstas no acordo de pagamento em relação aos créditos comuns não obedecem, como deviam, ao princípio da igualdade dos credores e ao da proporcionalidade.

Sobre estes princípios e a sua aplicação ao acordo de pagamento cabe dizer o seguinte.

A sujeição do acordo de pagamento a tais princípios tem o seu fundamento no n.º 1 do artigo 194.º do CIRE, aplicável com as devidas adaptações ao processo especial para acordo de pagamento por remissão do n.º 5 do artigo 222.º-F do mesmo diploma. Fazendo esta aplicação com as devidas adaptações, temos que o acordo de pagamento obedece ao princípio da igualdade dos credores dos requerentes, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas.

A igualdade de que fala o preceito é a igualdade material dos credores, a qual se cumpre tratando de maneira igual os credores que se encontrem em situações de facto iguais e tratando de maneira diferente os que estejam em situações de facto diferentes. A favor desta interpretação citam-se, a título de exemplo, as seguintes decisões judiciais: o acórdão do STJ proferido no processo n.º 1783/12.0TYLSB, em 25-11-2014; o acórdão do STJ proferido no processo n.º 863/14.2T8BRR, em 3-11-205; o acórdão do STJ proferido no processo n.º 700/13.5TBTVR, em 24-11-2015; o acórdão do STJ proferido no processo n.º 212/14.0TBACN, em 24-11-2015; o acórdão proferido pelo tribunal da Relação de Coimbra proferido no processo n.º 338/13.7TBOFR; o acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido no processo n.º 2438/14.7T8OAZ, todos publicados no sítio www.dgsi.pt.

No caso de tratar de maneira diferenciada alguns dos credores, resulta do n.º 2 do artigo 195.º do CIRE – também ele aplicável com as necessárias adaptações ao processo especial para acordo de pagamento por remissão do n.º 5 do artigo 222.º-F do CIRE – que o acordo deve conter a indicação das razões objectivas da diferenciação. Cita-se em abono desta interpretação o acórdão do STJ proferido em 24-11-2015, no processo n.º 212/14.0TBACN, publicado no sítio www.dgsi.pt. onde se afirmou expressamente “… e como resulta do nº 2 do art. 195º do CIRE, o plano deve conter todos os elementos relevantes para efeitos da sua aprovação pelos credores e homologação pelo juiz”.

No que diz respeito às razões objectivas que justificam a diferenciação de tratamento dos credores, o CIRE não as indica, sequer a título exemplificativo. Visto que é ao juiz que compete a decisão sobre a homologação (n.º 5 do artigo 222.º-F do CIRE), cabe-lhe a ele, socorrendo-nos das palavras de Carolina Cunha, “…a avaliação última do cânone de igualdade material em cada situação” [A Par Condicio Creditorum como Igualdade Formal dos Credores: Expectativa vs. Realidade, Almedina, página 177].

Na avaliação da legitimidade da discriminação dos credores intervém o princípio da proporcionalidade, também chamado princípio da proibição do excesso. Com efeito, socorrendo-nos das palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira, a propósito do princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa “as diferenciações de tratamento podem ser legítimas quando a) se baseiam uma distinção objectiva de situações; b) não se fundamentam em qualquer dos motivos indicados no n.º 2; c) tenham um fim legítimo segundo o ordenamento constitucional positivo; d) se revelem necessárias, adequadas e proporcionadas à satisfação do seu objectivo” [Constituição da República Portuguesa Anotada Artigos 1.º a 107.º, Coimbra Editora, página 340].

A necessidade, a adequação e a proporcionalidade das medidas discriminatórias de que falam os citados autores são subprincípios do princípio da proporcionalidade, como é afirmado de forma reiterada pelo Tribunal Constitucional. Citam-se a título meramente exemplificativo os acórdãos n.º 123/2018, de 6 de Março de 2018 e 154/2022, de 17 de Fevereiro de 2022. Neles afirmou-se a este propósito: “constitui jurisprudência constitucional reiterada e pacífica que o princípio da proibição do excesso se analisa em três subprincípios: idoneidade, exigibilidade e proporcionalidade:

«O subprincípio da idoneidade (ou da adequação) determina que o meio restritivo escolhido pelo legislador não pode ser inadequado ou inepto para atingir a finalidade a que se destina; caso contrário, admitir-se-ia um sacrifício frívolo de valor constitucional.

O subprincípio da exigibilidade (ou da necessidade) determina que o meio escolhido pelo legislador não pode ser mais restritivo do que o indispensável para atingir a finalidade a que se destina; caso contrário, admitir-se-ia um sacrifício desnecessário de valor constitucional.

Finalmente, o subprincípio da proporcionalidade (ou da justa medida) determina que os fins alcançados pela medida devem, tudo visto e ponderado, justificar o emprego do meio restritivo; o contrário seria admitir soluções legislativas que importem um sacrifício líquido de valor constitucional».

Segue-se do exposto que, apesar de o CIRE não conter preceito a afirmar expressamente que o acordo de pagamento obedece ao princípio da proporcionalidade, deve entender-se que a sujeição dele a este princípio resulta também do n.º 1 do artigo 194.º do CIRE.

Bem se compreende que assim seja. Na verdade, os direitos de crédito gozam de protecção constitucional, pois de acordo com jurisprudência constante do Tribunal Constitucional, o direito de propriedade a que se refere o artigo 62.º da Constituição "não abrange apenas a proprietas rerum, os direitos reais menores, a propriedade intelectual e a propriedade industrial, mas também outros direitos que normalmente não são incluídos sob a designação de 'propriedade', tais como, designadamente, os direitos de crédito…”. Cita-se em abono desta interpretação o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 620/2004, de 20-10-2004.

Sabendo-se que as providências com incidência no passivo do devedor são susceptíveis de compreender a extinção total ou parcial dos créditos (alínea a) do n.º 1 do artigo 196.º do CIRE) e que a decisão de homologação do acordo vincula os credores, ainda que estes não consintam no perdão ou na redução do valor dos seus créditos (n.º 8 do artigo 222.º-F do CIRE), justifica-se inteiramente submeter tais medidas ao crivo do princípio da proporcionalidade tal como ele é interpretado pelo Tribunal Constitucional.    

De resto, como é referido na decisão sob recurso, são várias as decisões judiciais que têm sindicado a legalidade dos acordos de pagamento e de planos de recuperação alcançados em sede de processo especial de revitalização à luz do princípio da proporcionalidade. Além das decisões indicadas na decisão recorrida, especialmente o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 6/10/2020, no processo n.º 616/20.9T8ACB.C1, o acórdão do mesmo tribunal proferido em 9/05/2017, no processo n.º 1006/15.0T8LRA-D.C1, e o acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido em 9/12/2014, no processo n.º 166/14.2TJPRT.P1, pode indicar-se também o acórdão desta Relação (Coimbra) proferido em 12-10-2021 no processo n.º 1097/1.5T8LRA.C1.

Observe-se que os princípios em questão integram o conteúdo obrigatório do acordo e não, como está implícito na decisão recorrida, as regras do procedimento. Na verdade, como escrevem Carvalho Fernandes e João Labareda, “normas procedimentais são, …, todas aquelas que regem a actuação a desenvolver no processo… Normas relativas ao conteúdo serão, …, todas as respeitantes à parte dispositiva do plano, mas, além delas, ainda aquelas que fixam os princípios a que ele deve obedecer imperativamente e as que definem os termos que a proposta deve contemplar” [Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Antado, página 713].

Tendo presentes o sentido e  alcance dos princípios da igualdade e da proporcionalidade e os factos julgados provados, é de afirmar, pelas razões a seguir indicadas, que não valem contra a decisão recorrida as alegações dos recorrentes tendentes a demonstrar que  o acordo de pagamento, na parte em que prevê a redução, em 99%, do valor do capital dos créditos comuns, o perdão dos juros vencidos e vincendos desses mesmos créditos e o pagamento da 1.ª prestação no último dia útil do sexto mês seguinte ao do trânsito em julgado ao que se verificar a homologação do acordo de pagamento não viola o princípio da igualdade, nem ofende o princípio da proporcionalidade.

Vejamos. Os recorrentes sustentam que o acordo de pagamento não ofende o princípio da igualdade dos credores porque ele confere exactamente o mesmo tratamento aos credores integrados em grupos da mesma categoria: credores públicos, credores garantidos e credores comuns.

O argumento seria pertinente se a decisão sob recurso tivesse afirmado que o acordo violava o princípio da igualdade porque dentro de cada uma daquelas categorias de credores havia diferenças de tratamento injustificadas. Não foi esta, no entanto, a razão da decisão recorrida. A discriminação que motivou a decisão do tribunal a quo foi a discriminação negativa e injustificada dos credores comuns em relação aos credores garantidos.  

A discriminação negativa é inequívoca. Com efeito, ao passo que, em relação aos créditos garantidos, o acordo prevê o pagamento integral do capital em dívida e o pagamento dos juros de mora vencidos e vincendos, no que diz respeito aos créditos comuns prevê a redução, em 99%, do valor do capital e o perdão dos juros vencidos e vincendos. Mais: no que diz respeito ao início do prazo de pagamento dos créditos prevê, em relação aos garantidos, que ele ocorra no mês seguinte ao da prolação da sentença homologatória do acordo, enquanto que, no que toca aos créditos comuns, o pagamento só se iniciaria no último dia útil do sexto mês seguinte ao do trânsito em julgado ao que se verificar a homologação do acordo.

Além de inequívoca, a discriminação não está justificada no acordo. Como se escreveu acima, à luz do princípio da igualdade material dos credores afirmado no n.º 1 do artigo 194.º do CIRE, a discriminação negativa dos créditos comuns seria admissível se fosse justificada por razões objectivas. Justificação que, como se também escreveu acima, devia constar do acordo de pagamento. Na verdade, não cabe ao juiz, no momento da homologação do acordo, entrar em suposições ou conjecturas sobre as razões do tratamento desigual. O tratamento desigual deve ser justificado e a justificação cabe a quem apresenta o acordo ou o plano, sob pena de a discriminação se ter por injustificada. Ora, no caso, não se encontra no acordo qualquer justificação para o facto de os créditos comuns terem sido discriminados negativamente nos termos em que o foram em relação aos créditos garantidos.

Em consequência não merece qualquer censura a decisão sob recurso quando afirmou que tal diferenciação negativa dos créditos comuns violava o princípio da igualdade material dos credores.

No que diz respeito à decisão de julgar que as medidas previstas para os créditos comuns ofendiam o princípio da proporcionalidade, os recorrentes contrapõem que tias medidas não põem em causa o citado princípio com base na seguinte linha argumentativa:
· O sacrifício dos devedores também é muito relevante, pelo que o sacrifício dos credores não é caprichoso ou inútil;
· Que não havia solução alternativa susceptível de conduzir à recuperação dos devedores; 
· Que no cenário alternativo da liquidação dos activos a posição dos credores seria ainda mais sacrificada;
· Que o plano obteve o consentimento do credor quantitativamente mais relevante de entre os comuns.

Salvo o devido respeito, esta alegação não colhe.

A alegação de que o acordo também implica para eles, recorrentes, um sacrifício muitíssimo relevante (era muitíssimo relevante porque implicava que eles abdicassem da totalidade dos rendimentos mensais ao longo do período do cumprimento do acordo) não colhe porque a proporcionalidade das medidas restritivas dos direitos dos credores não se afere em função dos sacrifícios que o acordo de pagamento implica para os próprios devedores. A proporcionalidade afere-se em função do fim visado com tais medidas. E, no caso, o fim visado com elas identifica-se com a finalidade do processo especial para acordo de pagamento. E a finalidade de tal processo é a conclusão de um acordo de pagamento com os credores que permita evitar a abertura do processo de insolvência (n.º 1 do artigo 222.º-A do CIRE). Nas palavras do acórdão do STJ proferido em 10-09-2019, no processo n.º 1820/17.2T8CHV.G1.S1., publicado em www.dgsi.pt. “… o PEAP não tem como finalidade a viabilização da atividade económica do devedor, mas sim permitir-lhe estabelecer um acordo de pagamento dos seus débitos, …”.

Também não colhe contra a decisão recorrida a alegação de que, para que os devedores recuperassem economicamente, não havia solução alternativa às medidas previstas para os credores comuns.

Em primeiro lugar, como resulta do exposto acima, o n.º 1 do artigo 222.º—A do CIRE não assinala directamente ao processo especial para acordo de pagamento a finalidade de recuperação económica dos devedores. Não se ignora, no entanto, que, visando a obtenção de um acordo para pagamento das dívidas que evite a abertura de um processo de insolvência, tal processo servirá indirectamente para que o devedor se recupere economicamente.

Em segundo lugar, os recorrentes não explicam por que razão é que não há alternativa às providências acordadas para os credores comuns, sendo certo que há factos que permitem duvidar da credibilidade de tal afirmação. Na verdade, havendo outros credores cujos créditos não estão sujeitos a um regime de indisponibilidade (referimo-nos aos credores garantidos), era admissível tomar em relação a eles providências semelhantes àquelas a que foram sujeitos os credores comuns, concretamente redução do valor do capital e perdão de juros.

Em terceiro lugar, ainda que não houvesse outra solução, havia que sujeitar tais medidas ao teste da proporcionalidade em sentido restrito, isto é, responder à questão de saber se seria razoável, justo, que os credores comuns ficassem sem 99% do valor do capital dos seus créditos e sem quaisquer juros para que os devedores alcançassem um acordo de pagamento dos restantes créditos e evitassem a abertura do processo de insolvência.

E a resposta deste tribunal a esta questão não difere da do tribunal a quo, ou seja, a diferença de tratamento é excessiva.    Mais: alegando os recorrentes que, para a sua recuperação económica, não havia alternativa às medidas aplicadas aos credores comuns, é legítimo duvidar da afirmação, feita por eles quando recorreram ao processo especial de acordo de pagamento, de que não estavam em situação de insolvência, mas em situação económica difícil. E é legítima esta dúvida pelo seguinte. Segundo o artigo 222.º-B do CIRE, para efeitos do processo especial de acordo de pagamento, encontra-se em situação económica difícil o devedor que enfrentar dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito. Sabendo-se que os créditos comuns representam 85% do passivo dos devedores, se estes só conseguiriam evitar a abertura do processo de insolvência se se reduzisse, em 99%, o valor do capital dos créditos comuns e se se perdoasse a totalidade dos juros vencidos e vincendos, isso só poderia querer dizer que a verdadeira situação deles quando recorreram ao processo especial não era a de dificuldade séria no cumprimento das suas obrigações. A verdadeira situação deles era a de impossibilidade de cumprimento da grande maioria das suas obrigações. Ora, resulta da alínea b) do n.º 1 do artigo n.º 1 do artigo 20.º do CIRE que se presumem em situação de insolvência os devedores que não cumpram uma ou mais obrigações que, pelo seu montante, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações.

A circunstância de, no cenário alternativo da liquidação dos activos, a posição dos créditos comuns ser ainda mais sacrificada do que é no acordo de pagamento, não justifica o tratamento diferenciado que foi dado, no caso, aos créditos garantidos e aos créditos comuns.

E não justifica porque, em primeiro lugar, a preferência que os créditos garantidos têm em relações credores comuns, que pode levar a que estes não sejam pagos em caso de insuficiência do património do devedor, tem o seu campo de aplicação na realização coactiva dos direitos de crédito (processo executivo e processo de insolvência com liquidação do património do devedor e repartição do produto obtido pelos devedores) e não em sede de processo especial para acordo de pagamento. Neste, embora a diferente classificação dos créditos constitua situação objectiva que justifique alguma diferença de tratamento, tal situação não justifica o sacrifício da quase totalidade do valor dos créditos comuns para salvaguardar o pagamento integral dos créditos garantidos. 

Em segundo lugar, não é indiferente para os credores comuns que os seus créditos não sejam pagos em consequência de acordo de pagamento alcançado em processo especial para acordo de pagamento ou em consequência de insuficiência de bens do devedor em processo de insolvência. Se os seus créditos não forem pagos por esta última razão, os credores mantêm a titularidade deles, ao passo que o acordo alcançado no processo especial de acordo de pagamento tem por efeito a extinção dos créditos, na parte em que se der a redução do seu valor ou o perdão.

Por último, também não vale contra a decisão recorrida o facto de o maior credor comum ter dado o seu consentimento ao acordo. Este facto impedia apenas o tribunal de recusar a homologação do acordo com fundamento no tratamento discriminatório e injustificado desse credor, pois resulta do n.º 2 do artigo 194.º do CIRE que o credor que, apesar de discriminado negativamente, vota a favor do acordo consente que seja tratado mais desfavoravelmente. Porém, o voto a favor o acordo por parte desse credor não impediria o tribunal de recusar a homologação do acordo com fundamento no tratamento injustificado e discriminatórios dos restantes credores comuns que votaram contra o acordo.

Pelo exposto conclui-se que a decisão sob recurso, ao não homologar o acordo de pagamento, não violou os preceitos indicados pelos recorrentes.


*

Decisão:

Julga-se improcedente o recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.

Responsabilidade quanto a custas:

Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e o facto de os recorrentes terem ficado vencidos no recurso, condenam-se os mesmos nas custas do recurso.

Coimbra, 10 de Maio de 2022