Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
137/14.9GAAVZ.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: PROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULOS MOTORIZADOS
ENTREGA DOS DOCUMENTOS
LICENÇA DE CONDUÇÃO
TRÂNSITO EM JULGADO
SENTENÇA
INÍCIO
CUMPRIMENTO
PENA ACESSÓRIA
Data do Acordão: 06/24/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (INSTÂNCIA LOCAL DE FIGUEIRÓ DOS VINHOS, SECÇÃO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA - J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 69.º, N.ºS 2 E 3 DO CP; 20.º, N.º 4, DA CRP
Sumário: Não obstante a disposição normativa do artigo 69.º, n.ºs 2 e 3, do CPP, no caso, como o dos autos, em que o arguido entregou, na secretaria do tribunal, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, a sua licença de condução, os princípios da confiança e lealdade processuais impedem que seja defraudada a legítima expectativa do condenado no sentido de o prazo de cumprimento da pena acessória de proibição de condução de veículos com motor se iniciar a partir do preciso momento da entrega/recebimento do referido documento.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

No processo sumário 137/14.9GAAVZ da Comarca de Leiria, Instância Local de Figueiró dos Vinhos, Secção de Competência Genérica, J1, o arguido A... foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelos artigos 69º, nº 1, alínea a) e 292º, nº 1 do Código Penal na pena principal de 70 dias de multa à taxa diária de 6 euros e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de cinco meses e quinze dias.

Foi o arguido advertido de que tinha o prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença para entregar a carta de condução na secretaria do Tribunal ou em qualquer posto policial.

Antes do trânsito em julgado da sentença, em 21.8.2014 o arguido entregou a carta de condução no Tribunal, o que foi aceite.

A sentença condenatória não foi objecto de recurso e transitou em julgado em 30.9.2014.

Em 17.2.2015 a Mmª Juiz a quo proferiu o seguinte despacho:

Promoção  de  fls.77  dos  autos:

O  Arguido  cumpriu  a  sanção  acessória  de  inibição  de  conduzir  pelo  período  de  5  (cinco)  meses  e  15  (quinze)  dias,  uma  vez  que  a  Sentença  condenatória  a  fls. 37-41  não  foi  objeto  de  recurso  (pelo  Arguido  e/ou  pelo  Ministério  Público);  o  Primeiro  entregou,  voluntariamente,  o  seu  título  de  condução  em  21.08.2014  (cfr.  o  termo  a  fls. 43  dos  autos);  e  considerando,  ademais,  tal  círcunstancialismo  (entenda-se,  a  ausência  de  recurso  e  a  entrega  voluntária  naquela  data)  no  âmbito  de  uma  leitura  e  interpretação  conjugada  do  disposto  na  primeira  parte  do  n.º 2  do  artigo  69.º  do  Código  Penal,  e  do  n.º 2  do  artigo  500.º  e  do  n.º 1  do  artigo  467.º,  estes  do  Código  de  Processo  Penal.

Nesta  ordem  de  ideias,  resulta  que,  à  presente  data,  decorreu,  já,  e  na  íntegra,  aquele  período  de  5  meses  e  15  dias,  durante  o  qual  o  título  de  condução,  voluntariamente  entregue  pelo  Arguido,  permanece  à  ordem  dos  presentes  autos,  pelo  que  declaro  extinta  a  sanção  acessória  em  que  o  Arguido  foi  condenado.

Notifique  e  comunique,  nos  termos  do  artigo  5.º,  nºs  1,  alínea  a)  e  2  da  Lei  n.º57/98,  de  18  de  Agosto,  sendo  o  Arguido  para  proceder  ao  levantamento  do  seu  título  de  condução.

Inconformado com o teor do transcrito despacho, dele recorreu o Ministério Público, condensando a respectiva motivação nas seguintes conclusões:

I.  Nos  termos  das  normas  constantes  do  art.  69.º,  nº  2  e  3  do  Código  Penal,  467.º,  nº  1,  475.º,  500.°,  nº  2  e  4  do  Código  de  Processo  Penal,  o  início  do  cumprimento  da  pena  acessória  ocorre  com  o  trânsito  em  julgado  da  sentença,  desde  que  o  título  de  condução  já  se  encontre  junto  aos  autos  nessa  data.

II.  Tendo  a  sentença  condenatória  transitado  em  julgado  em  30.09.2014,  o  início  do  cumprimento  da  pena  acessória  em  que  o  arguido  foi  condenado  não  poderá  iniciar-se  antes  dessa  data.

III.  Encontrando-se  o  título  de  condução  já  junto  aos  autos  aquando  do  trânsito  em  julgado,  i.e.,  em  30.09.2014,  terá  início  nessa  data  o  cumprimento  da  pena  acessória,  de  5  meses  e  15  dias  de  proibição  de  conduzir  veículos  com  motor;

IV.  Terminado  tal  pena  em  15.03.2015.

V.  O  período  decorrido  entre  a  data  de  entrega  voluntária  da  carta  de  condução  no  tribunal  (21.08.2014)  e  a  data  do  trânsito  em  julgado  da  sentença  (15.03.2015)  não  releva  para  efeitos  de  cumprimento  da  pena  acessória.

VI.  Esse  facto  decorre  da  interpretação  conjugada  das  normas  constantes  dos  artigos  69.º,  nº  2  e  3  do  Código  Penal  e  467.º,  nº  1,  475.º,  500.º,  nº  2  e  4  do  Código  de  Processo  Penal.

VII.  Assim,  ao  considerar  a  pena  acessória  integralmente  cumprida  em  17.02.2015  e  ao  declarar  extinta  tal  pena,  incorreu  o  tribunal  a  quo  na  violação  das  normas  constantes  dos  artigos  69.º,  nº  2  e  3  do  Código  Penal  e  467.º,  nº  1,  475.º,  500.º,  nº  2  e  4  do  Código  de  Processo  Penal;

VIII.  Pelo  que,  deveria  tribunal  a  quo  ter  interpretado  tais  normas  no  sentido  de  que  o  início  do  cumprimento  da  pena  acessória  apenas  teve  início  em  30.09.2014,  com  o  trânsito  em  julgado  da  sentença  condenatória,  devendo  declarar  a  mesma  extinta  apenas  após  essa  data.

Assim,  nos  termos  expostos  e  nos  mais  de  Direito,  deverá  o  despacho  recorrido  ser  revogado  e  substituído  por  outro  que  determine  o  cumprimento  pelo  arguido  do  remanescente  da  pena  acessória,  correspondente  aos  28  dias  compreendidos  entre  17.02.2015  e  15.03.2015,  fazendo  desta  forma  Vossas  Excias.  a  costumada  JUSTIÇA.

O recurso foi objecto de despacho de admissão.

Notificado, o arguido respondeu ao recurso, concluindo o seguinte:

1ª  -  No  caso  dos  autos,  não  houve  recurso  da  decisão  proferida  a  12/08/2014,  pela  qual  o  arguido  foi  condenado,  para  além  do  mais,  na  pena  de  proibição  de  conduzir  veículos  com  motor  por  um  período  de  5  (cinco)  meses  e  15  (quinze)  dias.

2ª  -  O  arguido  entregou  voluntariamente  a  carta  de  condução  em  21/08/2014  na  secretaria  do  tribunal.

3ª  -  A  execução  da  pena  acessória,  no  caso  dos  autos,  dá-se  a  partir  do  momento  em  que  ocorreu  o  desapossamento  do  título  de  condução  do  arguido.

4ª  -  Em  17/2/2015  data  do  despacho  recorrido  já  o  cumprimento  da  pena  acessória  aplicada  ao  arguido  de  cinco  (meses)  e  15  (quinze)  dias  havia  decorrido  nos  termos  das  disposições  conjugadas  do  artigo  69°  n.º  2  do  Código  penal;  artigo  500°  n.º  1  e  467°  n.º  1  do  Código  Processo  Penal.

5ª  -  Razão  pela  qual  o  recurso  deve  ser  julgado  sem  provimento  mantendo-se  o  douto  despacho  na  integra.

Mas  Vossas  Excelências,  com  o  mui  douto  suprimento,  apreciando  e  decidindo,  farão  como  sempre,  a  tão  costumada JUSTIÇA!

Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido de que o recurso não merece provimento de que transcrevemos o seguinte:

(...)

Mas  o  que  o  mesmo  tomou  em  devida  nota  é  que  tinha  um  prazo  de  10  dias  para  entregar  a  carta.  E  então  contou  este  prazo  desde  o  dia  em  que  ouviu  a  sentença,  pois  que,  diligentemente  diremos  nós,  entregou  a  carta  da  secretaria  do  tribunal  ao  nono  dia,  como  pode  ver-se  do  termo  de  fls.  43,  que  foi  recebida  pelo  Sr.º  Escrivão  Adjunto.

Ora,  desde  logo  a  secretaria  judicial  teria  um  especial  dever  de  reparar  no  caso  e  informar  o  cidadão  da  situação  dos  autos  e,  nomeadamente,  do  que  se  trata  quando  se  fala  em  trânsito  em  julgado,  mas  não  o  fez.  Antes  aceitou  a  carta  para  dar  início  ao  cumprimento  da  medida  de  inibição.

Decorrido  o  prazo  total  de  5  meses  e  15  dias  contados  desde  a  efectiva  entrega  da  carta  é  proferido  o  despacho  recorrido  a  julgar  a  mesma  pena  extinta.

É  certo  que  uma  leitura  linear  e  literal,  mais  positivista  das  normas  em  que  se  apoia  o  Ministério  Púbico  recorrente,  concretamente  dos  artigos  69.º,  n.º  2  e  3  do  C.  P.  e  do  467º,  n.º  1,  475°,  500º,  n.º  2  e  4  do  CPP  será  defensável  solução  propugnada  no  recurso,  sendo  certo  que  a  jurisprudência  se  tem  pronunciado  acerca  do  início  do  cumprimento  se  contar  apenas  após  o  trânsito  emjulgado.

Contudo,  parece-nos  que  a  situação  específica  dos  autos  tem  também  específicos  contornos,  alguns  dos  quais  já  foram  por  nós  referidos  e  que  passam  pelo  princípio  geral  da  confiança  que  os  cidadãos  devem  ter  nas  instituições  judiciárias  e  que  estas  agem  de  boa-fé  perante  os  particulares  que  com  eles  lidam.  Inclusivamente,  admitindo  que  existe  algum  erro  da  secretaria  judicial  tem  legal  consagração  esse  princípio  geral  quando  no  art.º  157º,  n.º  6  do  CPC  actual  (art.º  161°,  n.º  6  do  CPC  revogado)  se  prevê  que  "os  erros  e  omissões  dos  actos  praticados  pela  secretaria  judicial  não  podem,  em  qualquer  caso  prejudicar  as  partes". (sublinhado da relatora).

Neste  sentido  se  pronunciou  o  Tribunal  da  Relação  do  Porto  em  caso  igual  ao  do  presente,  recurso,  tal  como  adiante  se  referirá.

Ainda  assim  outros  argumentos  se  poderiam  aduzir  para  que  se  pondere  a  manutenção  do  despacho  recorrido.

Com  efeito,  é  ponto  assente  que  o  cidadão  cumpriu  já  a  totalidade  da  medida  de  inibição  antecipando  o  seu  início,  sendo  certo,  porém,  que  não  tendo  havido  recurso,  a  sentença  acabou  por  transitar  em  julgado.

Na  verdade,  ainda  a  propósito  da  questão  ultimamente  suscitada  amiúde  nos  Tribunais  Superiores  de  se  apurar,  se  o  cumprimento  parcial  de  uma  injunção  nos  termos  e  para  os  efeitos  do  disposto  nos  art.ºs  280°  e  281°  do  CPP  (suspensão  de  inquérito),  no  qual  seja  fixado  prazo  de  inibição  de  conduzir  e,  não  cumprindo  o  arguido  a  sua  totalidade,  u  ma  vez  condenado  em  julgamento  posterior  nos  mesmos  autos,  implica  ou  não,  o  desconto  na  pena  aplicada  a  título  de  inibição  aquele  cumprimento  parcial.

Vem  sendo  defendido  na  jurisprudência  maioritariamente  que  deve  ser  feito  na  pena  aplicada  aquele  desconto  parcial  da  medida  de  injunção  cumprida.

Neste  sentido,  designadamente,  Acs.  da  Relação  de  Coimbra  de  1-12-2014  e  de  11-02-  2015  nos  processos  n.º  23/13.0GCPBL.Cl  e  204/13.6GAACB.Cl  e  da  Relação  de  Guimarães  de  22-09-2014,  proc.n.º  7/13.8PTBRG.Gl,  sendo  que  nesse  se  faz  apelo,  por  analogia,  ao  instituto  legal  do  desconto  previsto  no  art.º  80º  do  C.  P.,  nas  penas  aplicadas.

Contudo  e  para  além  do  referido  já  o  Tribunal  da  Relação  do  Porto  com  data  de  08-11-2000,  proc.  n.º  123-A/99-1S,  se  pronunciou  sobre  situação  igual  à  dos  presentes  autos  em  termos  que  nos  parecem  apresentar  uma  visão  justa  para  o  problema,  na  devida  ponderação  da  realidade.  Neste  acórdão  se  deixa  reflectido  de  forma  sugestiva  que  por  isso  se  transcreve,  nomeadamente  o  seguinte:

Como  consta  dos  autos,  o  arguido  entregou  a  licença  de  condução  na  secretaria  do  tribunal  em  5  de  Agosto  de  1999,  com  a  finalidade  expressa  de  cumprir  a  pena  de  proibição  de  conduzir  veículos  motorizados,  em  que  tinha  sido  condenado.

Significa  Isto  que  o  arguido  entregou  a  licença  de  condução  sem  que  a  sentença  tenha  ainda  transitado.

Mas  significa  também  que  a  secretaria  lhe  aceitou  a  dita  licença  antes  do  trânsito  em  julgado  da  sentença  condenatória.  O  que  equivale  por  dizer  que  há  um  duplo  erro:  do  arguido  em  entregar  a  licença  de  condução  antes  do  trânsito;  da  secretaria  em  aceitá-la  naquela  altura.

Há  um  princípio  geral  do  direito,  e  por  isso,  também  subjacente  ao  direito  processual  penal,  que  impede  que  os  erros  da  máquina  judiciária  prejudiquem  as  partes  (cfr.  uma  afloração  do  princípio  no  n.º  3  do  art.º  198º  do  CPC).  Tal  princípio  também  se  aplica  aos  autos  -  vide  art.º  4°  do  CPP.

Acresce  que,  sendo  a  República  Portuguesa  um  Estado  de  direito  democrático  -  art.º  3°  da  CRP,  impõe-se  que  as  instituições  judiciárias  ajam  de  boa  fé,  a  fim  de  poderem  garantir  a  confiança  que  nelas  devem  ter  os  particulares.

Ora,  se  erro  houve  da  parte  do  arguido,  que  é  desculpável  pela  simples  razão  de  que  apenas  os  técnicos  do  direito  sabem  como  se  executam  as  penas,  e  não  já  os  cidadãos  comuns  (e  não  se  argumente  com  a  obrigatoriedade  de  conhecimento  de  lei,  já  que  o  erro  de  direito,  como  no  caso  sub  judice,  é  relevante-cfr.  art.º 17°  do  C.  Penal),  a  esse  erro  sobrepõe-se  um  outro  da  secretaria  do  tribunal,  que,  essa  sim,  tinha  obrigação  de  saber  que  a  pena  só  deveria  ser  cumprida  quando  transitasse  a  sentença  e  o  deveria  ter  comunicado  ao  arguido,  o  que  o  Ilustre  Recorrente  nem  sequer  alega.

Cometido  este,  o  arguido  não  pode  sair  prejudicado,  sob  pena  de  se  fazer  uma  interpretação  contrária  à  Constituição  dos  art.ºs  467º  do  CPP  e  69º  do  C.  Penal,  pois  que,  de  outra  forma,  teria  de  cumprir  duas  vezes  a  mesma  pena,  o  que,  a  todos  os  títulos,  é  absolutamente  inadmissível.

Para  impressionar,  imagine-se  que  se  tratava  de  prisão  por  dias  livres,  que  o  condenado  se  apresenta  no  estabelecimento  prisional  antes  da  data  constante  da  guia  de  apresentação,  ou  mesmo  na  data  dela  constante,  esta  por  lapso  anterior  ao  trânsito,  e  que  é  recebido  no  estabelecimento.

Parece  óbvio  que  os  períodos  assim  cumpridos  já  contam  para  efeitos  de  cumprimento  da  pena,  como  de  resto  o  impõe  o  art.º  80º  do  C. Penal,  se  não  por  aplicação  directa,  pelo  menos  por  aplicação  analógica.

Igual  tratamento  merece  o  caso  dos  autos.

A  entrega  e  recebimento  da  licença  de  condução  tem  de  equivaler  ao  início  do  cumprimento  da  sanção  acessória,  sob  pena  de  violação  do  princípio  da  confiança,  subjacente  ao  Estado  de  direito  democrático,  supra  referido.

Mas  se  assim  se  não  entendesse,  então  por  efeito  do  instituto  do  desconto  -  citado  art.º  80°  do  C.  Penal-,  pelo  menos  por  aplicação  analógica,  como  se  referiu  (são  equivalentes  as  razões  justificativas,  num  e  noutro  caso),  o  período  de  tempo  em  que  o  arguido  esteve  privado  da  licença  antes  do  trânsito  em  julgado  da  decisão  condenatória,  teria  de  ser  descontado  no  cumprimento  da  pena.

Nada  obsta  ao  recurso  à  analogia,  no  caso  concreto  pois  que  em  nada  se  contende  com  os  princípios  consagrados  no  art.º  29º  da  CRP  e  no  n.º  3  do  1º  do  C.  Penal.

Quanto  aos  inconvenientes  apontados  à  solução  ora  consagrada  pelo  Ilustre  recorrente  na  sua  motivação,  maxime  ao  da  não  possibilidade  de  controle  pelas  autoridades  policiais  do  cumprimento  da  sanção,  e  por  isso,  da  não  possibilidade  de  se  constatar  se  houve  ou  não  desobediência,  sempre  diremos  ser  irrelevante  tal  argumentação.

Desde  logo  porque  o  cumprimento  da  pena  acessória  não  está  dependente  do  facto  de  o  condenado  poder  ser  eficazmente  controlado,  ou  de  estar  ou  não  em  condições  de  lhe  poder  ser  imputada  a  prática  de  um  crime.  Veja-se,  a  título  de  exemplo,  o  caso  de  o  condenado,  após  o  trânsito  em  julgado,  entregar  a  licença  de  condução  na  secretaria  e  esta,  por  lapso  ou  outra  razão,  não  comunicar  a  decisão  atempadamente  à  DGV.  Também  aqui  falha  esse  pressuposto  e  não  se  poderá  argumentar  que  o  condenado  tem  de  cumprir  de  novo  a  pena  acessória.

Depois  porque  os  hipotéticos  benefícios  a  que  se  alude  são  bem  preferíveis  ao  prejuízo  certo  que  o  condenado  teria  de  se  lhe  exigir  cumprimento  em  dobro  da  pena,  o  que  seria  ilegal,  abusivo  e  arbitrário,  mesmo  que  se  diga  que  na  primeira  das  ocasiões  o  cumprimento  se  deveu  a  culpa  sua.

Em  conclusão:  Entregue  pelo  condenado  a  licença  de  condução  na  secretaria  do  tribunal,  para  cumprimento  da  pena  acessória  de  proibição  de  condução  de  veículos  motorizados,  antes  do  trânsito  em  julgado  da  sentença  condenatória,  e  aceite  pela  secretaria  tal  entrega,  é  nesta  data  que  se  inicia  o  cumprimento  de  tal  pena."

Anotamos  cm  face  do  exposto,  que  nos  parecem  válidos  os  argumentos  apresentados,  no  sentido  de  que a interpretação das  normas  no  caso  em  apreço  permite  uma  diferente  leitura  da  que vem  proposta  pelo  recorrente.

(...)

Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não tendo ocorrido resposta.

Procedeu-se a exame preliminar e foram cumpridos os demais trâmites legais.

Colhidos os vistos legais e realizada conferência, cumpre apreciar e decidir.


***

II. Apreciação do Recurso

            Como é sabido o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação (artigos 403º, nº 1 e 412º, nº 1 do Código de Processo Penal).

            Vistas as conclusões do recurso, a única questão a decidir consiste em saber se entregue e aceite pelo tribunal a licença de condução para cumprimento de pena acessória de proibição de conduzir antes do trânsito em julgado da decisão condenatória, deve o cumprimento ser contado a partir do momento da entrega.

           

            Apreciando:

            Como já se deixou consignado, o arguido procedeu à entrega da sua carta de condução para cumprimento da proibição de conduzir em que foi condenado antes do trânsito em julgado da sentença, discutindo-se se é a partir do momento da entrega que deve ser contado o período de proibição ou apenas após o trânsito em julgado, como defende o recorrente.

            É indubitável que os artigos 69º, nº 2 do Código Penal estipulam que a proibição de conduzir produz efeito após o trânsito em julgado da decisão, o que tem o sentido de consignar que essa pena (como aliás todas) só deve ser cumprida depois de a decisão transitar em julgado posto que só a partir desse evento se torna definitiva, estipulando o nº 3 do mesmo artigo e o artigo 500º, nº 2 do Código de Processo Penal que a licença de condução deve ser entregue para cumprimento da pena acessória.

            Não será por acaso que o artigo 9º, nº 1 do Código Civil estipula em matéria de interpretação da lei que esta “não deve cingir-se à letra lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico (…).

            No vértice da pirâmide legislativa encontra-se a constituição que define os princípios básicos do estado de direito, devendo toda a lei ordinária subordinar-se a tais princípios e merecer interpretação que se compagine com os mesmos.

            Se assim é, a conclusão de interpretação literal no sentido de que a proibição de conduzir só pode ocorrer após o trânsito em julgado da decisão condenatória e só pode ser imputado no seu cumprimento o tempo em que o condenado esteve privado da licença de condução depois do trânsito em julgado, tem, obviamente, que passar pelo crivo do disposto no artigo 20º, nº 4 da CRP que contempla um princípio estruturante de qualquer procedimento judicial e mormente do processo penal; o princípio do processo equitativo que implica, antes de mais, que em todos os termos do processo as partes sejam tratadas com lealdade e possam confiar na inexistência de decisões que as possam surpreender. O tratamento leal e a confiança na clareza dos procedimentos judiciais são, aliás, a base para a possibilidade de um processo equitativo com os derivados princípios do contraditório e da igualdade de armas que geralmente são salientados, mas que admitem várias outras derivações, entre as quais o direito a um processo orientado para a justiça material “sem demasiadas peias formalísticas” no dizer de Gomes Canotilho e Vital Moreira na sua CRP anotada, em comentário ao referido artigo.  

Como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 345/99, publicado em www.tribunalconstitucional.pt qualquer processo e mormente processo de natureza sancionatória está sujeito à exigência constitucional (artigo 20º, nº 4) de ser um processo equitativo (due processo of law – conceito importado para o nosso ordenamento jurídico através da Convenção Europeia dos Direitos do Homem) o que supõe, para além do mais, que todos os intervenientes do processo, incluindo o tribunal, se movam dentro de valores como a lealdade e a confiança. E não basta que estas existam é ainda necessário que transpareçam do processo.

            O princípio da confiança tem diversos afloramentos na lei ordinária, como seja o caso do artigo 157º, nº 6 do Código de Processo Civil actual (161º, nº 6 do anterior) prevendo que os erros e omissões dos actos praticados pela secretaria judicial não podem em qualquer caso prejudicar as partes (como bem salientou o Exmº Procurador Geral Adjunto no seu parecer).

            Ora, também por decorrência deste preceito, aplicável ao processo penal por força do artigo 4º do respectivo código, não pode o arguido ser prejudicado quando entregou no tribunal a licença de condução e tal foi aceite pelo funcionário que a recebeu. O princípio da confiança e lealdade impede que seja defraudada a legitima expectativa do arguido no sentido de que a partir desse momento se iniciou o cumprimento da proibição de conduzir.

            Encontrar nos citados preceitos motivo para divergir do exposto seria violar directamente o disposto no preceito acabado de referir e negar a validade da necessária interpretação sistemática que tem como elemento primário e primordial a Constituição.

            No mais remetemos para o transcrito parecer e jurisprudência aí citada que merece o nosso inteiro acolhimento.

            Não merece provimento o recurso.


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            III. Decisão

Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo a decisão recorrida.

Não há lugar a tributação do recurso por dela estar isento o Ministério Público.


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Coimbra, 23 de junho de 2015
(Texto processado e integralmente revisto pela relatora).

(Maria Pilar de Oliveira - relatora)

(José Eduardo Martins - adjunta)