Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
187/05.6TATND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇAÇLVES
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
SEGURANÇA SOCIAL
Data do Acordão: 01/20/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE TONDELA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 9º DO CC, 105º, Nº1, 107º DO RGIT,113ºDA LEI Nº º64-DE 31/12
Sumário: 1.O limite de € 7500 a que alude o art.105.º, n.º1 do RGIT, na actual redacção, que lhe foi introduzida pelo art.113.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, é um elemento não aplicável ao crime de abuso de confiança contra a segurança social previsto no art.107.º, n.º1 do RGIT.
2.Não há que chamar à colação o disposto no art. 2.º, n.º 2, do Código Penal, uma vez que os dois crimes de abuso de confiança contra a segurança social, um dos quais sob a forma continuada, pelos quais os arguidos foram condenados em 1.ª instância, não foram objecto de descriminalização.
3.Assim no caso não podia declarar-se extinto o procedimento criminal contra os arguidos, bem como a extinção da instância por impossibilidade suaperveniente da lide relativamente ao pedido de indemnização civil.
Decisão Texto Integral: Relatório


Pelo 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Tondela, sob acusação do Ministério Público, foram submetidos a julgamento em processo comum com intervenção de Tribunal Colectivo, os arguidos

AZ, filho de A de M, natural de… concelho de Tondela, nascido a …/…, casado,  residente …Tondela;

 BZ, filhe de A e de  natural de concelho de Tondela, nascido …./…, portador do B.I. n.º  solteiro,  …  – Tondela; e

“A… Lda, sociedade com o NIF …., com sede em … – Tondela,

imputando-se-lhes os factos constantes de folhas 354 a 359, pelos quais teriam cometido:

- os arguidos AZ e BZ, em co-autoria material e na forma consumada, dois crimes de abuso de confiança em relação à Segurança Social, sendo um na forma continuada, previsto e punível, à data dos factos pelo art. 27º-B do RJIFNA e actualmente pelo art. 107º do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, com referência ao seu art. 105º n.º 1 e ainda, quanto ao crime na forma continuada pelo art. 30º do Código Penal; e

- a arguida  “A… Lda” os mesmos crimes, pelos quais é responsável, nos termos do artigo 7º do RGIT.

O Instituto da Segurança Social, I.P., Centro Distrital de Viseu, deduziu pedido de indemnização civil contra os arguidos requerendo a condenação destes no pagamento do montante global de € 23.832,85, referente às quotizações em dívida e aos juros legais vencidos até Junho de 2008, acrescido, ainda, dos juros vincendos até efectivo e integral pagamento.

            Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Colectivo, por acórdão proferido… de 2009 ( com um voto de vencido do Ex.mo Juiz do Tribunal de Comarca) , decidiu julgar a acusação provada e procedente nos termos sobreditos, e, consequentemente:

a) Condenar o arguido AZ como co-autor e em concurso real:

- pela prática de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, p. e p. pelo artigo 107º da Lei 15/2001 de 5/6 que aprovou o RGIT, com referência aos arts. 105º Nº1 do RGIT,  referente às contribuições de Novembro de 2001, na pena de 4 ( quatro )  meses de prisão, a qual se não substitui por multa ou por outra pena não privativa de liberdade, por se entender que a pena de prisão se mostra exigível para prevenir o cometimento de novos crimes ( art. 43.º n.º1 C.P. na redacção em vigor à data da prática dos factos e também na redacção actualmente em vigor aprovada pela Lei 59/2007, de 4.9 );  

- pela prática de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelo artigo 107º da Lei 15/2001 de 5/6 que aprovou o RGIT, com referência aos arts. 105.º, n.º1 do RGIT e artigos 30.º, n.º 2 e 79.º, ambos do Código Penal, referente às contribuições de Junho de 2002 a Setembro de 2004, na pena de 20 ( vinte ) meses de prisão - pena esta que substitui a pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, o que perfaz a multa global de € 600,00, que foi aplicada ao arguido pela prática do crime de abuso de confiança fiscal em relação à Segurança Social na forma continuada no âmbito do Proc. Comum Singular Nº …./07.4TATND do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Tondela; e

- em cúmulo jurídico de tais penas, na pena única de 21 ( vinte e um ) meses de prisão -  pena esta que substitui a pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, o que perfaz a multa global de € 600,00, que foi aplicada ao arguido pela prática do crime de abuso de confiança fiscal em relação à Segurança Social na forma continuada no âmbito do Proc. Comum Singular Nº …./07.4TATND do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Tondela - cuja execução se suspende pelo período de 3 ( três ) anos e ( seis ) meses, condicionada ao pagamento das prestações tributárias em dívida e acréscimos legais no mesmo período de tempo.

b) Condenar o arguido BZ, como co-autor e em concurso real:

- pela prática de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, p. e p. pelo artigo 107º da Lei 15/2001 de 5/6 que aprovou o RGIT, com referência aos arts. 105.º , n.º1 do RGIT, referente às contribuições de Novembro de 2001, na pena de 4 ( quatro ) meses de prisão, a qual se não substitui por multa ou por outra pena não privativa de liberdade, por se entender que a pena de prisão se mostra exigível para prevenir o cometimento de novos crimes ( art. 43.º, n.º1 C.P. na redacção em vigor à data da prática dos factos e também na redacção actualmente em vigor aprovada pela Lei 59/2007, de 4.9 ); 

- pela prática de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelo artigo 107º da Lei 15/2001 de 5/6 que aprovou o RGIT, com referência aos arts. 105.º, n.º1 do RGIT e artigos 30.º, n.º 2 e 79.º, ambos do Código Penal, referente às contribuições de Junho de 2002 a Setembro de 2004, na pena de 20 ( vinte ) meses de prisão - pena esta que substitui a pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, o que perfaz a multa global de € 600,00, que foi aplicada ao arguido pela prática do crime de abuso de confiança fiscal em relação à Segurança Social na forma continuada no âmbito do Proc. Comum Singular Nº -----/07.4TATND do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Tondela; e

- em cúmulo jurídico de tais penas, na pena única de 21 ( vinte e um ) meses de prisão -  pena esta que substitui a pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, o que perfaz a multa global de € 600,00, que foi aplicada ao arguido pela prática do crime de abuso de confiança fiscal em relação à Segurança Social na forma continuada no âmbito do Proc. Comum Singular Nº …./07.4TATND do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Tondela - cuja execução se suspende pelo período de 3 ( três ) anos e ( seis ) meses, condicionada ao pagamento das prestações tributárias em dívida e acréscimos legais no mesmo período de tempo.

c) Condenar a arguida A… Lda., em concurso real:

- pela prática de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, p. e p. pelo artigo 107º da Lei 15/2001 de 5/6, com referência ao art. 105.º n.º1, 7º e 12º do RGIT, na pena de 150 ( cento e cinquenta ) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 ( sete euros ), o perfaz a multa de € 1.030,00 ( mil e trinta euros ), referente às contribuições de Novembro de 2001; e

- pela prática, de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelo artigo 107.º da Lei 15/2001 de 5/6, com referência aos arts. 105.º, n.º1, 7º e 12º do RGIT, que aprovou o RGIT e artigos 30º nº 2 e 79º, ambos do Código Penal, referente às contribuições de Junho de 2002 a Setembro de 2004, na pena de 350 ( trezentos e cinquenta ) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 ( sete euros ), o perfaz a multa de € 2.450,00 ( dois mil, quatrocentos e cinquenta euros ) -  pena esta que substitui a pena de 240 dias de multa, à taxa diária de € 7,00, o que perfaz a multa global de € 1.680,00 ( mil seiscentos e oitenta euros) que foi aplicada à arguida pela prática do crime de abuso de confiança fiscal em relação à Segurança Social na forma continuada no âmbito do Proc. Comum Singular Nº …/07.4TATND do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Tondela; e

- em cúmulo jurídico de tais penas, na pena única de 400 ( quatrocentos ) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 ( sete euros ), o que perfaz a multa de € 2.800,00 ( dois mil e oitocentos euros ) - pena esta que substitui a pena de 240 dias de multa, à taxa diária de € 7,00, o que perfaz a multa global de € 1.680,00 ( mil seiscentos e oitenta euros) que foi aplicada à arguida pela prática do crime de abuso de confiança fiscal em relação à Segurança Social na forma continuada no âmbito do Proc. Comum Singular Nº …./07.4TATND do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Tondela.
             2. Julgar totalmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido nos autos pelo Instituto da Segurança Social, I.P., Centro Distrital de Viseu, contra os arguidos e, consequentemente:
- Condenar solidariamente estes a pagar aquele o montante de € 14.802,87 ( catorze mil, oitocentos e dois euros e oitenta e sete cêntimos ), acrescido de juros de mora sobre tal montante, à taxa legal aplicável à mora do pagamento das contribuições da Segurança Social, vencidos e vincendos desde a data do vencimento das contribuições e até integral pagamento.

 

             Inconformados com o douto acórdão dele interpuseram recurso os arguidos  “A.. Lda.”, AZ, BZ, concluindo a sua motivação do modo seguinte:                                     

1. Após a alteração introduzida pelo artigo 113.º da Lei 64-A/2008, de 31/12, na redacção do artigo 105.º do RGIT foi introduzido o segmento seguinte:

            “de valor superior a € 7.500” .

2. A Lei Nova veio descriminalizar as condutas dos crimes de abuso de confiança fiscal e contra a segurança social até ao aludido limite monetário.

3. A remissão do n.º1 do artigo 107.º para as penas previstas no n.º 1 e 5 do artigo 105.º, só pode contemplar a limitação introduzida pela Lei Nova, como tutela de outros interesses também merecedores de consideração, designadamente, o descongestionamento dos Tribunais.

4.O douto Acórdão recorrido conclui, por mera opção, que não se encontra descriminalizado o crime, já que a fundamentação avançada também permita o entendimento inverso.

5. Cremos que o bem jurídico protegido no crime de abuso de confiança contra a segurança social "é constituído pelo património fiscal do Estado como instrumento da política financeira e distributiva”.

6. A deterioração de valores protegidos tem que ser idêntica para os dois tipos de crime em causa, o do artigo 105.º e o do artigo 107.º do RGIT.

7.    Na conjugação, por remissão, dos citados artigos 105.º e 107.º, os quantitativos da primeira sempre tiveram reflexo na segunda norma: fixação de um valor até ao qual era possível a extinção da responsabilidade criminal pelo pagamento; fixação de um valor a partir do qual o crime é qualificado; e agora fixação de um valor para atingir dignidade penal.

8. O direito penal não se pode bastar com incertezas, antes deve obedecer ao primado da legalidade.

9.    A “alteração operada no Art. 105.º, n.º 1 do R.G.IT não pode deixar, face à remissão para esse artigo constante do Art. 107.º do mesmo diploma legal e até por interpretação extensiva in bonam partem, de ser entendida como também o sendo para o valor agora aí constante, não sendo possível “fugir” à literalidade desta norma sob pena de se atingir uma interpretação jurídico‑penalmente proibida”.

10. Deve julgar‑se extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide quanto ao pedido de indemnização civil.

Termos em que, com o necessário suprimento, deve dar‑se provimento ao  presente recurso, revogando‑se a decisão recorrida e substituindo‑a por outra que declare extinto o procedimento criminal determinando o arquivamento dos autos, bem como extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide relativamente ao pedido de indemnização civil, com o que se fará inteira Justiça.

           Por despacho proferido a 28 de Outubro de 2009, já transitado em julgado, foi declarado sem efeito o recurso interposto pela arguida “A Lda.”, em face do não pagamento da taxa de justiça devida pela interposição do recurso.

           O Ministério Público na Comarca de Tondela respondeu ao recurso interposto pelos arguidos pugnando pela manutenção da condenação dos arguidos , por não se ter operado a despenalização dos crimes pelos quais foram condenados.

           O Ex.mo Procurador Geral Adjunto  neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso interposto pelos arguidos.

           Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.

           Colhidos os vistos cumpre decidir.

      Fundamentação

           A matéria de facto apurada, constante do acórdão recorrido, é a seguinte:

               Factos provados

1. A arguida A Lda. é uma sociedade por quotas que se dedica à actividade de prestação de serviços relacionados com a montagem de televisão por cabo, telecomunicações, construção civil, montagem e manutenção eléctrica.

2. Foi constituída por escritura pública datada de 04/04/2001 e encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial de… sob o número …. e com o número de identificação pessoa colectiva…

3. A gerência da sociedade aqui arguida pertence, desde o momento da sua constituição até ao presente, aos dois primeiros arguidos, AZ  e BZ.

4. Os dois primeiros arguidos são responsáveis pela administração da sociedade e pela gestão dos pagamentos aos credores, designadamente, pela entrega das contribuições à Segurança Social.

5. Enquanto gerentes da sociedade arguida, no período contributivo relativo ao mês de Novembro de 2001 e compreendido entre Junho de 2002 a Setembro de 2004 aqueles arguidos procederam mensalmente ao pagamento dos salários dos seus trabalhadores, entregando as respectivas folhas de remuneração mensal na Segurança Social.

6. Para além disso, os arguidos AZ e BZ  como gerentes da dita sociedade, também recebiam salários pelo que também constavam das folhas de remunerações mensais.

7. No desenvolvimento das suas actividades de gerentes os dois primeiros arguidos procederam ao desconto de 11% nos vencimentos efectivamente pagos aos trabalhadores da sociedade arguida e 10% nos seus próprios vencimentos, conforme imposição legal prevista no art. 5º n.º 2 do DL n.º 103/80, de 9 de Maio, art. 1º do DL nº 140-D/86, de 14 de Junho e arts. 3º e 13º n.º 2 do DL n.º 199/99, de 8 de Junho.

8. Estavam aqueles arguidos obrigados a entregar nos Cofres da Segurança Social os valores retidos nos salários efectivamente pagos aos trabalhadores e gerentes da sociedade arguida devendo esta entrega ser mensal e efectuada até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que as contribuições dissessem respeito, conforme dispõem os arts. 5º n.ºs 2 e 3 e 6º do DL n.º 103/80, de 9 de Maio e art. 18º do DL n.º 140-D/86 de 14 de Junho.

9. Porém, os arguidos AZ e BZ em comunhão de esforços e de intentos, em nome próprio, na qualidade de representantes da terceira arguida e no seu interesse, não entregaram as contribuições devidas à Segurança Social relativas ao mês de Novembro de 2001.

10. Os arguidos AZ e BZ mais formularam, a determinada altura do ano de 2002, o propósito de se apoderarem das demais contribuições que viessem a reter, para a terceira arguida, fazendo-o desde logo no mês de Junho de 2002.

11. E como tal situação não foi detectada pelos serviços competentes passaram em cada um dos meses seguintes (até Setembro de 2004) a formular idêntico propósito, sendo certo que as suas actuações foram facilitadas pelo facto de não serem fiscalizados pela Segurança Social.

12. Assim, agindo sempre em comunhão de esforços e de intentos, por si e em representação e no interesse da terceira arguida, os arguidos AZe BZ  não entregaram as cotizações devidas à Segurança Social até ao dia 15 do mês seguinte a que respeitavam, nem regularizaram tal situação nos noventa dias seguintes a cada um daqueles meses, nem até à presente data, nos períodos e montantes a seguir descriminados e que atingem os valores parciais de € 2.059,26 (quanto às contribuições retidas aos membros dos órgãos sociais) e de € 12.743,61 (quanto às contribuições retidas aos trabalhadores) no valor global de € 14.802,87 (catorze mil oitocentos e dois euros e oitenta e sete cêntimos):

Anos e Meses

Contribuições em Dívida e Retidas pelos arguidos AZ e BZ aos trabalhadores
Novembro de 2001€ 536,89
Junho de 2002€ 765,35
Julho de 2002€ 569, 02
Agosto de 2002€ 516,33
Setembro de 2002€ 505,13
Outubro de 2002€ 503,67
Novembro de 2002€ 609,94
Dezembro de 2002€ 869,99
Janeiro de 2003€ 480, 92
Fevereiro de 2003€ 461,14
Março de 2003€ 432,48
Abril de 2003€ 432,32
Maio de 2003€ 419,62
Junho de 2003€ 418,19
Julho de 2003€ 393,93
Agosto de 2003€ 486,18
Setembro de 2003€ 287,60
Outubro de 2003€ 356,73
Novembro de 2003€ 356,73
Dezembro de 2003€ 552,69
Janeiro de 2004€ 323,77
Fevereiro de 2004€ 323,77
Março de 2004€ 323,77
Abril de 2004€ 323,77
Maio de 2004€ 382,99
Junho de 2004€ 275,10
Julho de 2004€ 275,10
Agosto de 2004€ 422,89
Setembro de 2004€ 137,55

TOTAL:

€ 12.743,61

Anos e Meses

Contribuições Retidas pelos arguidos AZe BZ aos membros dos órgãos sociais
Novembro de 2001€ 68,84
Junho de 2002€ 69,60
Julho de 2002€ 69,60
Agosto de 2002€ 69,60
Setembro de 2002€ 69,60
Outubro de 2002€ 69,60
Novembro de 2002€ 69,60
Dezembro de 2002€ 69,60
Janeiro de 2003€ 69,60
Fevereiro de 2003€ 69,60
Março de 2003€ 69,60
Abril de 2003€ 69,60
Maio de 2003€ 69,60
Junho de 2003€ 71,32
Julho de 2003€ 71,32
Agosto de 2003€ 71,32
Setembro de 2003€ 71,32
Outubro de 2003€ 71,32
Novembro de 2003€ 71,32
Dezembro de 2003€ 71,32
Janeiro de 2004€ 73,12
Fevereiro de 2004€ 73,12
Março de 2004€ 73,12
Abril de 2004€ 73,12
Maio de 2004€ 73,12
Junho de 2004€ 72,98
Julho de 2004€ 73,12
Agosto de 2004€ 73,12
Setembro de 2004€ 73,12

TOTAL:

€ 2.059,26

    

13. Os arguidos, por si e na qualidade de legais representantes da terceira arguida, foram notificados no dia 29/01/2008 para, em 30 dias, procederem ao pagamento do valor acima indicado de € 14.802,87 (catorze mil oitocentos e dois euros e oitenta e sete cêntimos), correspondente às contribuições retidas e não entregues e respectivos juros de mora, conforme previsto no art. 105º n.º 4 al. b) do RGIT, tendo ainda sido advertidos que o referido pagamento no aludido prazo determinaria a extinção do procedimento criminal.

14. Não obstante os arguidos não procederam ao pagamento do aludido valor nos 30 dias seguintes a tais notificações, nem até à presente data.

15. Os dois primeiros arguidos, por si e em representação da terceira arguida, ao não entregarem as cotizações devidas à Segurança Social, locupletaram-se, em proveito da terceira arguida com as referidas importâncias, à custa da Segurança Social, integrando-as no giro económico normal da sociedade de que são gerentes.

16. Os arguidos AZ e BZ tinham perfeito conhecimento que todas as importâncias acima indicadas não lhes pertenciam e que, não procedendo às respectivas entregas na Segurança Social nos prazos legais, estavam-se a apropriar das contribuições retidas nas remunerações pagas aos trabalhadores e membros dos órgãos sociais, fazendo-as da sociedade aqui arguida e que legalmente representam e representavam nos períodos temporais acima indicados, o que queriam.

17. De facto diluíram-se nos meios financeiros da terceira arguida quantias que, por força do pagamento dos salários, pertenciam à Segurança Social, quantias essas que nunca pertenceram à entidade empregadora e que, por tal facto, delas não podia dispor como suas.

18. Os dois primeiros arguidos, por si e em representação da terceira arguida, agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a entrega das contribuições à Segurança Social configura uma obrigação legal que nasce no acto do pagamento das remunerações, sendo o desconto uma mera operação contabilística que visa, tão só, determinar o montante que as entidades patronais terão de entregar no mês seguinte à Segurança Social.

19. Não obstante isso, os dois primeiros arguidos retiveram e apoderaram-se das aludidas contribuições em proveito da sociedade arguida.

20. Ao agirem conforme descrito os dois primeiros arguidos fizeram-no ainda em nome e no interesse da sociedade arguida, na qualidade de seus representantes legais, e com perfeito conhecimento que causavam, como causaram, prejuízos ao Estado Português - Segurança Social.

21. Os arguidos sabiam que as condutas eram proibidas e penalmente punidas, circunstância que não os inibiu de agir como referido, o que queriam e lograram realizar.

22. Aquando dos factos a sociedade arguida atravessava dificuldades financeiras que a impediam de cumprir as suas obrigações para com os seus credores as quais não ultrapassou e que a levaram a deixar de laborar desde 2006, encontra-se actualmente ainda nessa situação e em regime de cessação da actividade.

23. Na sequência de acordo havido entre os dois primeiros arguidos e um credor da sociedade arguida que aqueles representam, os arguidos AZ e BZ têm encargos mensais com o pagamento do montante de € 580 até Outubro/Novembro/2009.

24. Também para satisfação de créditos de outros credores da sociedade arguida, os arguidos AZ BZ vêm arcando com o pagamento irregular de quantias não concretamente apuradas.

25. Os arguidos confessaram os factos.

26. Na sua actividade de pedreiro por conta de outrem que desenvolve em regime de deslocação durante a semana, o arguido AZ aufere o vencimento mensal de € 760.

27. Vive em casa própria adquirida com recurso a crédito bancário, despendendo na amortização deste o montante mensal de € 480.

28. A sua esposa frequenta as Novas Oportunidades, no que aufere o montante mensal que se cifra entre € 300 e 400.

29. Tem como habilitações literárias a 4ª classe.

30. Possui viatura própria, cujo ano de fabrico é 1998.

31. Constam do seu CRC junto aos autos as seguintes condenações:

            - na pena de 1 ano e 1 mês de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 5 anos com regime de prova condicionada ao pagamento do valor do imposto de valor acrescentado em falta, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, por factos ocorridos em 02.09.2004 e por decisão proferida em ….2006 e transitada em julgado em …2006, no âmbito do Proc. Comum Singular Nº ../04.1IDVIS do 2º Juízo do tribunal Judicial de Tondela.

            - na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, o que perfaz a multa global de € 600,00, pela prática como co-autor material de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada, p. e p. pelo Art. 105º Nº1 do RGIT, aprovado pela Lei 15/2001, de 5 de Junho, em conjugação com os Arts. 26º, 30º Nº2 e 79º do C. Penal, pela não entrega das contribuições à Segurança Social deduzidas às remunerações dos empregados e dos gentes da sociedade A… Lda. correspondentes aos meses de Outubro de 2004 a Janeiro de 2006, no montante global de € 2.565,93, por decisão proferida em ….2008 e transitada em julgado em ….2008, no âmbito do Proc. Comum Singular Nº …/07.4TATND do 2º Juízo do tribunal Judicial de Tondela.

32. Na sua actividade de director de produção que desenvolve por conta de outrem o arguido BZ aufere o vencimento mensal de € 450.

33. Vive com a sua companheira e com um seu filho de 5 anos de idade em casa dos seus pais, contribuindo para os encargos domésticos com a aquisição de produtos alimentícios e de higiene.

34. A sua companheira encontra-se desempregada e o seu filho frequenta o infantário.

35. A título de abono de família aufere o montante mensal de € 37.

36. Tem como habilitações literárias o 8º ano de escolaridade.

37. Constam do seu CRC junto aos autos as seguintes condenações:

               - na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 5 anos com regime de prova condicionada ao pagamento do valor do imposto de valor acrescentado em falta, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, por factos ocorridos em …2004 e por decisão proferida em …..2006 e transitada em julgado em …2006, no âmbito do Proc. Comum Singular Nº…/04.1IDVIS do 2º Juízo do tribunal Judicial de Tondela.

- na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, o que perfaz a multa global de € 600,00, pela prática como co-autor material de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada, p. e p. pelo Art. 105º Nº1 do RGIT, aprovado pela Lei 15/2001, de 5 de Junho, em conjugação com os Arts. 26º, 30º Nº2 e 79º do C. Penal, pela não entrega das contribuições à Segurança Social deduzidas às remunerações dos empregados e dos gentes da sociedade A Lda. correspondentes aos meses de Outubro de 2004 a Janeiro de 2006, no montante global de € 2.565,93, por decisão proferida em ….2008 e transitada em julgado em ….2008, no âmbito do Proc. Comum Singular Nº…./07.4TATND do 2º Juízo do tribunal Judicial de Tondela

            38. No âmbito do mencionado Proc. Comum Singular Nº…/07.4TATND do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Tondela e por decisão nele proferida em …..2008, transitada em julgado em ….2008, foi também a sociedade arguida A. Lda. condenada pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal em relação à Segurança Social sob a forma continuada, p. e p. pelos Art. 105º Nº1, 12º e 7º todos do RGIT e em conjugação com os Arts. 30º Nº2 e 79º do C. Penal, na pena de 240 ( duzentos e quarenta ) dias de multa, à taxa diária de € 7 ( sete euros ), num total de € 1.680 ( mil seiscentos e oitenta euros ) pela não entrega das contribuições à Segurança Social deduzidas às remunerações dos empregados e dos gentes da mesma correspondentes aos meses de Outubro de 2004 a Janeiro de 2006, no montante global de € 2.565,93.

            39. Para cobrança da totalidade das contribuições aludidas na factualidade provada foram instaurados pela Segurança Social os respectivos processos executivos que ainda se encontram pendentes.

            Factos não provados
            Mais nenhum outro facto se provou com relevo para a decisão da causa, designadamente os seguintes:
            - Da acusação:
- Os arguidos AZe BZ tivessem formulado, a determinada altura do ano de 2002, o propósito de se apoderarem das demais contribuições que viessem a reter, para eles próprios fazendo-o desde logo no mês de Junho de 2002.
- Os dois primeiros arguidos, por si e em representação da terceira arguida, ao não entregarem as cotizações devidas à Segurança Social, se tenham locupletado em proveito próprio com as referidas importâncias, à custa da Segurança Social.

- Os arguidos AZ e BZ tivessem feito suas todas as importâncias referidas na factualidade provada.

                                                             *
                                                                        *
                                                  
O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 [1] e de 24-3-1999 [2] e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [3], sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

No caso dos autos , face às conclusões da motivação dos recorrentes AZ e BZ, a questão a decidir é a seguinte:

- se a alteração introduzida pelo art.113.º da Lei n.º  64‑A/2008, de 31 de Dezembro, no art.105.º, n.º1 do RGIT, descriminalizando a não entrega total ou parcial, à Administração tributária, de prestação igual ou inferior a € 7500, é aplicável ao crime de abuso de confiança contra a segurança social previsto no art.107.º, n.º1 do RGIT, pelo que, face aos valores das contribuições que aqui estão em causa , deve revogar-se a decisão recorrida e declarar-se extinto o procedimento criminal contra os arguidos, determinando-se o arquivamento dos autos, bem como extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide relativamente ao pedido de indemnização civil.

            Passemos ao conhecimento da questão.

Cada um dos arguidos AZ e BZ,  foi condenado , no acórdão recorrido , pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. art.s 107.º, n.º1 e 105.º, n.º 1, do RGIT, na pena de de 4 ( quatro )  meses de prisão, porquanto , por si e na qualidade de legais representantes da arguida sociedade , em Novembro de 2001, retiveram € 536,89 de contribuições dos trabalhadores e € 68,84 , dos membros dos órgãos sociais e não as entregaram à Segurança Social, a quem eram devidas, integrando-as no giro comercial da sociedade arguida e foram ainda condenados, cada um deles, pela prática de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelo artigo 107.º da Lei 15/2001 de 5/6 que aprovou o RGIT, com referência aos arts. 105º,n.º 1 do RGIT e artigos 30º nº 2 e 79º, ambos do Código Penal, na pena de 20 ( vinte ) meses de prisão, pela não entrega das contribuições de Junho de 2002 a Setembro de 2004, das quais se apoderaram a favor da sociedade arguida, sendo que a contribuição de valor mais elevado não entregue pelos arguidos e devidas à Segurança Social é de € 869,99, relativa a Dezembro de 2002

A questão em apreciação versa directamente com o problema da interpretação da lei.

A interpretação jurídica tem por objecto descobrir, de entre os sentidos possíveis da lei, o seu sentido prevalente, sendo o art.9.º do Código Civil a norma fundamental a proporcionar uma orientação nesta matéria.

A letra da lei é o ponto de partida de toda a interpretação, cabendo-lhe, desde logo, uma função negativa: eliminar tudo quanto não tenha apoio ou correspondência no texto da norma.

A apreensão literal do texto é já interpretação, embora incompleta, pois será sempre necessária uma « tarefa de interligação e valoração, que excede o domínio literal.» [4].

Para reconstituir o pensamento legislativo a partir do texto, deve atender-se ainda a elementos de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica.

O elemento sistemático compreende a consideração de outras disposições que formam o complexo normativo em que se integra a norma a interpretar, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam questões semelhantes ( lugares paralelos); compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretada no ordenamento geral, assim como a sua concordância com o espírito ou a unidade intrínseca do sistema.

O elemento histórico abrange todas as matérias relacionadas com a história do preceito, as fontes da lei e os trabalhos preparatórios.

O elemento racional ou teleológico consiste na razão de ser da norma ( ratio legis), no fim visado pelo legislador ao editar a norma, nas soluções que tem em vista e nas finalidades que pretende realizar [5]

Vejamos.

A interpretação da alteração introduzida ao art.105.º, n.º 1 do RGIT pelo art.113.º da Lei n.º 64-A/2008, está a dividir a jurisprudência.

Enquanto, entre outros, os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 4-3-2009 ( proc. n.º 257/03.5TAVIS.C1), da Relação do Porto, de 25-3-2009 ( 1131/01.5TASTS), de 3-6-2009 ( proc. n.º 0715084, que reproduz um estudo do Ex.mo Desembargador da Relação de Guimarães Dr. Cruz Bucho) e de 25-5-2009 ( proc. n.º 1760/06.0TDPRT) e, da Relação de Guimarães, de 27-04-2009 ( proc. n.º 1304.8TABRG.G1) tomam posição no sentido de que o limite de € 7500 a que alude a nova  redacção do art.105.º, n.º 1 do RGIT,  introduzida pelo art.113.º da Lei n.º 64-A/2008, não é  aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, já os acórdãos da Relação de Lisboa, de 25-2-2008 ( proc. n.º 102/04.4TACLD.L1.3) e da Relação do Porto, de 27-5-2009 ( proc. n.º 343/05.7TAVNF.P1 ) – que se podem consultar in www.dgsi.pt) – defendem que o limite de € 7500 estabelecido no art.105.º, n.º1 do RGIT , na redacção que lhe foi dada pelo  art.113.º da Lei n.º 64-A/2008, tem aplicação ao crime de abuso de confiança contra a segurança social.

Cremos que é de seguir a posição daqueles que defendem que o limite de € 7500 estabelecido no art.105.º, n.º1 do RGIT , na redacção que lhe foi dada pelo  art.113.º da Lei n.º 64-A/2008, não tem aplicação ao crime de abuso de confiança contra a segurança social.

Neste sentido decidiu o ora relator no proc. n.º 590/02.3TAVIS-A.C1, proferido a 8 de Julho de 2009, que aqui se vai seguir.

O art.107.º do RGIT , ao abrigo do qual os arguidos foram condenados, estatui o seguinte:

« 1. As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n.ºs 1 e 5 do art.105.º.

    2. É aplicável o disposto nos n.ºs 4, 6 e 7 do artigo 105.º.».

Por sua vez  o art.105.º do RGIT tinha, à data da prolação da sentença que condenou o arguido ( 2 de Fevereiro de 2008 ), a seguinte redacção:   

« 1. Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar, é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.

   2. (…)

   3. (…).

   4. Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:

        a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;      

        b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.

    5. Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a € 50 000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.

    6. Se o valor da prestação a que se referem os números anteriores não exceder € 2000, a responsabilidade criminal extingue-se pelo pagamento da prestação, juros respectivos e valor mínimo da coima aplicável, pela falta de entrega da prestação no prazo legal, até 30 dias após a notificação para o efeito pela administração tributária.

    7. Para os efeitos do disposto nos números anteriores os valores a considerar são os que , nos termos da legislação aplicável, devam constar da cada declaração a apresentar à administração tributária.».

À data dos factos – Novembro de 2001 a Setembro de 2004 – parece-nos que era pacífico que o art.107.º, n.º 1 do RGIT , limitando a remissão para as penas previstas nos n.ºs 1 e 5 do art.105.º, do mesmo regime legal, queria apenas aproveitar as penas aqui previstas.

Os elementos constitutivos do crime de abuso de confiança fiscal, previstos no art.105.º, n.º1 do RGIT e do crime de abuso de confiança contra a segurança social, previstos no art.107.º, n.º1 do mesmo Regime eram diversos.

Entendendo-se que eram crimes tributários de natureza diversa, o crime de abuso de confiança contra a segurança social não ia buscar qualquer elemento objectivo ou subjectivo ao art.105.º, n.º1 do RGIT, para o preenchimento do tipo.

Efectivamente, o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social tinha , à data da sentença, autonomia relativamente ao crime de abuso de confiança fiscal.

No crime de abuso de confiança contra a Segurança Social está em causa o desvalor das entidades empregadoras que tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros de órgãos sociais as contribuições legais, não as entregam às instituições de Segurança Social.

As Instituições de Segurança Social são pessoas colectivas de direito público, dotadas de autonomia administrativa, financeira e patrimonial. – cfr. Lei n.º 2/2007, de 16 de Janeiro e DL n.º 214/2007, de 29 de Maio.

Os objectivos do sistema de segurança social, que dentro do orçamento do Estado, tem um orçamento próprio ( art.105.º, n.º1 da Constituição da República Portuguesa),são específicos, resumindo-se , no essencial, à protecção social dos trabalhadores e suas famílias nas situações de falta ou diminuição de capacidade de trabalho , de protecção das pessoas que se encontrem em situação de falta ou diminuição de meios de subsistência, e protecção da família através da compensação de encargos familiares. – Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro.

No crime de abuso de confiança fiscal está em causa a não entrega à Administração Fiscal, pelo devedor tributário, de prestações tributárias, de impostos, que em regra não estão afectos a fins específicos.

O crime de abuso de confiança fiscal pode ser punido como crime simples ( n.º1) ou como crime agravado, em função da entrega da prestação não efectuada ser de valor superior a € 50 000 ( n.º 5).

Correspondentemente, por força da remissão do art.107.º do RGIT, também o crime de  abuso de confiança contra a segurança social pode ser punido como crime simples ( n.º1) ou como crime agravado, em função da entrega da prestação não efectuada ser de valor superior a € 50 000 ( n.º 5).

Sendo diferentes os bens jurídicos protegidos, também a inserção sistemática dos crimes de abuso de confiança fiscal e de abuso de confiança contra a segurança social integravam capítulos diferentes: aquele o capitulo III e este o capitulo IV , do Título I da Parte III, do RGIT. 

O art.113.º, n.º 1 da Lei n.º 64-A/2008, veio entretanto aditar ao art.105.º, n.º 1 do RGIT um novo elemento respeitante ao valor da prestação tributária, passando este tipo legal a ter seguinte redacção:

« 1. Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a € 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar, é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.».

A Lei n.º 64-A/2008 não procedeu a qualquer alteração do art.107.º do RGIT.

Uma vez que a Lei n.º 64-A/2008 não alterou o disposto no art.107.º, n.º1 do RGIT, parece-nos medianamente claro que a remissão que este faz para o art.105.º, n.º 1 do RGIT é apenas para as penas aí previstas e nada mais.

Mantendo-se a autonomia e diversa natureza dos crimes de abuso de confiança fiscal e de abuso de confiança contra a segurança social, reflectida na já aludida sistematização dos crimes , não há razão alguma para ir buscar ao n.º1 do art.105 do RGIT , além das penas, o elemento do tipo traduzido no “valor superior a € 7500”.

Ao descriminalizar o abuso de confiança fiscal relativamente à não entrega de prestação tributária de valor igual ou inferior a € 7500, legislador sancionou essa conduta como contra-ordenação ( art.114.º, n.º5 , al. a) do RGIT, na redacção dada pela Lei n.º 64-A/2008).

A entender-se que o limite de € 7500 estabelecido no art.105.º, n.º1 do RGIT , na redacção que lhe foi dada pelo art.113.º da Lei n.º 64-A/2008, tem aplicação ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, a não entrega de contribuições devidas à segurança  social não seria punida como crime tributário, nem como contra-ordenação uma vez que nenhuma norma sanciona esta conduta como tal.

Sabendo-se que as contribuições para a Segurança Social que constam de cada declaração a apresentar a esta instituição são frequentemente de valor inferior a € 7 500 – como acontece com todas as declarações apresentadas pelos arguidos – ficaria seriamente comprometida a defesa do bem jurídico tutelado pelo crime de abuso de confiança contra a segurança social e os objectivos do sistema de segurança social.

Sabendo-se que os objectivos do sistema de segurança social são cada vez mais alargados aos cidadãos com dificuldades económicas e que as receitas não param de cair, fruto designadamente da grave crise económica e da baixa natalidade , dificilmente se concebe que o legislador quisesse deixar sem sanção a não entrega de contribuições à segurança Social de valor igual ou inferior a € 7 500.

Entre os crimes de fraude fiscal (art.103.º do RGIT) e os crimes de fraude contra a segurança social (art.106.º do RGIT), nota-se existir também um regime sancionatório mais severo nestes últimos.

Resulta do art.103.º, n.º2 do RGIT, na redacção actual, que lhe foi dada pela Lei n.º 60-A/2005, de 30-12, que os factos previstos no n.º1 não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a € 15 000. Já constitui crime de fraude contra a segurança social a prática dos factos previstos no art.106.º do RGIT se a vantagem  patrimonial ilegítima for for de valor superior a € 7 500.

Nenhum elemento histórico é mencionado pelo recorrente, nem o Tribunal da Relação o vislumbra, que permita concluir que o legislador incorreu em lapso ao não operar a modificação do teor do artigo 107.º n.º 1, do RGIT em linha directa com o que fez quanto ao n.º1 do artigo 105.º, do mesmo Regime.

A revogação do n.º6 do art.105.º do RGIT, pelo art.115.º da Lei n.º 64-A/2008, é o resultado da redacção dada ao n.º4, al. b), daquele art.105.º pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, uma vez que esta abrande as prestações não pagas sem referência a qualquer valor.

Não tendo o legislador querido modificar o crime de abuso de confiança contra a segurança social, com a revogação daquele n.º6 do art.105.º do RGIT a remissão do n.º2 do art.107.º do RGIT para aquele n.º6 , torna-se vazia, inútil.

Daí porém não resulta que o legislador tenha querido descriminalizar a não entrega total ou parcial, à Segurança Social de contribuição igual ou inferior a € 7500.

Em suma, o Tribunal da Relação entende que o valor de  € 7 500 a que alude o art.105.º, n.º1 do RGIT, na actual redacção, que lhe foi introduzida pelo art.113.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, é um elemento não aplicável ao crime de abuso de confiança contra a segurança social previsto no art.107.º, n.º1 do RGIT.

Deste modo, não há aqui que chamar à colação o disposto no art. 2.º, n.º 2, do Código Penal , uma vez que os dois crimes de abuso de confiança contra a segurança social , um dos quais sob a forma continuada, pelos quais os arguidos foram condenados em 1.ª instância, não foram objecto de descriminalização.

Não podendo declarar-se extinto o procedimento criminal contra os arguidos, bem como a extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide relativamente ao pedido de indemnização civil, impõe-se, deste modo, negar provimento ao recurso.

            Decisão

            Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelos arguidos AZ e BZ, e manter o douto despacho recorrido.

             Custas pelos recorrentes , fixando em 6 Ucs a taxa de justiça a cargo de cada um deles.

                                                                         *

(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.). 

                                                                      

   *

                                                                                        Coimbra,


[1]  Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98.
[2]  Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.
[3]  Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.
[4] Prof. José Oliveira Ascensão , O Direito, Introdução e Teoria Geral, 11.ª edição, Almedina, pág. 392.
[5] Prof. Francesco Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis, trad. do Prof. Manuel de Andrade, 3.ª edição, pág. 138 e seguintes. ; e Prof. José Oliveira Ascensão, ibidem, pág. 377 e seguintes.