Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
717/09.PBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: CRIME DE AMEAÇAS
Data do Acordão: 01/19/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 153º, Nº 1 E 155º, Nº 1, ALÍNEA A) DO CÓDIGO PENAL
Sumário: 1. O que distingue a ameaça do cometimento de um crime e o cometimento desse mesmo crime são as próprias circunstâncias da acção que revelam a intenção que lhe preside.
2. A exibição de uma arma acompanhada das palavras "nós matamos-vos" que indicam a intenção que presidiu ao agente, qual seja a de causar medo, não a iminência de matar, é idónea a causar medo.
Decisão Texto Integral: I. Relatório
No processo comum singular nº 717/09.PBCBR do 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Coimbra o arguido J..., devidamente identificado nos autos, foi submetido a julgamento mediante acusação pública da prática de um crime de dois crimes de ameaça agravados p. e p. pelos artigos 153º, nº 1 e 155º, nº 1, alínea a) do Código Penal.

Por sentença de 24 de Abril de 2010 foi decidido condenar o arguido J... pela autoria dos imputados crimes em duas penas parcelares de 100 dias de multa e, em cúmulo jurídico na pena única de 150 dias de multa à taxa diária de 7,50 euros, no montante 1.125,00 euros, a que corresponde a prisão subsidiária de 100 dias.

Inconformado com esta decisão, dela recorreu o arguido J..., rematando a correspondente motivação com as seguintes conclusões:
1. O Arguido entende que houve insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro na apreciação da prova produzida (artigo 410°, nº 2, al.s a) e c), CPP), uma vez que os depoimentos prestados pelas Testemunhas, constantes do suporte digital (CD, de 11:20:07 a 11:42:46 e de 11:42:47 a 12:03:47, respectivamente), revelam incongruências que afastam a sua credibilidade.
2.Assim, dadas as contradições e discrepâncias reveladas, as referidas Testemunhas não merecem a credibilidade que lhes foi dada pelo Tribunal a quo, não havendo elementos de prova que leve a que se dêem como provados os factos a) e b).
3. O apuramento de tais factos, que devem ser dados como não provados, determina uma alteração da qualificação jurídica da matéria de facto, influenciando a decisão a proferir.
4.Dai que, nesta perspectiva, o Arguido entenda haver insuficiência para a decisão da matéria de facto e que esta tem influência na decisão final. Tais factos merecem indagação e são necessários para a formulação de um juízo decisório que, no caso, é de absolvição.
5. Assim, merecem análise e avaliação os elementos probatórios supra referidos, devendo proceder-se, nos termos dos artigos 41º, nºs 3 e 4 e 430°, CPP, à sua renovação, o que se requer.
6. O Tribunal a quo, ao dar como provados os referidos factos deu como provados factos contra as regras de experiência comum pelo que existe erro na apreciação da prova, não podendo o recorrente concordar com apreciação que o Tribunal a quo fez das declarações das Testemunhas ouvidas.
7.As razões aduzidas pelo recorrente, supra, são, salvo melhor entendimento suficientes para pôr em causa a convicção do Tribunal a quo, pelo que se pode afirmar a existência de erro notório na apreciação da prova.
8. A Sentença de que se recorre contém insuficiente fundamentação e sofre de erro notório na sua apreciação, pois revela um juízo ilógico na apreciação efectuada pelo Tribunal a quo., uma vez que das declarações e depoimentos das Testemunhas ressalta que perante o Tribunal a quo se apresentaram diversas versões, opostas e contraditórias, sendo que cada uma delas se funda em diversos meios probatórios (declarações e depoimentos).
9. A fundamentação da matéria fáctica suporta-se na credibilidade subjectiva atribuída aos depoimentos das Testemunhas. Ora, dado todo o supra alegado, tais depoimentos permitem afirmar que é patente e ostensiva a necessidade de recurso ao princípio in dubio pro reo.
10. É manifesta e exigida nos autos a aplicação do princípio in dubio pro reo, pois, avaliando-se a prova segundo as regras da experiência e atento o princípio da liberdade de apreciação da prova, revela-se uma dúvida no espírito do Tribunal a quo sobre a existência dos factos dados como provados e aqui postos em crise.
Sem prescindir,
11. Entende o recorrente que da sentença recorrida não se afigura possível obter qualquer elemento fáctico, circunstancial, susceptível de permitir fazer este juízo de adequação entre a sua conduta e a susceptibilidade de esta preencher o requisito da adequação, essencial para o preenchimento do conceito legal do crime de ameaça, consistente na adequação ou aptidão da ameaça a provocar no destinatário da mesma um sentimento de medo ou inquietação.
12. Como também não existe qualquer facto concreto provado que permita extrair a conclusão de que o arguido tivesse representado a possibilidade de as Testemunhas acreditarem que, num momento posterior, ele as iria matar ou agredir, conformando-se com essa eventualidade. Não passando novamente o facto provado sobre esta matéria de um mero juízo conclusivo.
13. Existe quanto a estes elementos o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, prevista no artigo 410°, n° 1, ai. a), do C.P.P
Sem prescindir,
14. O arguido, ora recorrente, entende ainda que a sua dada como provada conduta não se subsume no tipo legal de crime p.p. pelo artigo 153°, n° 1, do Código Penal, por não preenchimento do elemento objectivo e subjectivo do tipo.
15. A expressão proferida pelo recorrente surge como a verbalização de um mal iminente, atendendo às concretas circunstâncias em que ocorreram os factos. Pelo que, tal afirmação dada como provada, feita pelo arguido, nos termos em que o foi, anuncia um mal actual e não um mal futuro esgotando-se no momento em que foi proferida.
16. Assim, o mal ameaçado, o acto intimidatório ou é executado de imediato, integrando o crime respectivo ou o agente ameaçador desiste de o executar, sem que o mal anunciado se projecte na liberdade de decisão e de acção futura da pessoa visada.
17. Pelo que, em face do supra exposto, também o elemento subjectivo do tipo de crime de ameaça, que exige o dolo, não se encontra preenchido. Não passando o facto provado sobre esta matéria de um mero juízo conclusivo.
18. Da prova produzida não resultam preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do crime de ameaça pelo qual vem acusado devendo por isso ser absolvido da matéria criminal.
19. Ao proferir aquela expressão, o arguido mais não fez do que proferir um desabafo, uma vez que não anunciou a intenção da prática de um concreto mal futuro às Testemunhas (Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 01/02/2010, proferido no processo 495/05.6GBMR.G2, que pode ser consultado em www.dgsi.pt).
20. Assim sendo, por todo o exposto, existiu violação do disposto no artigo 153°, do C.P.
Sem prescindir,
21.Ao determinar o quantum (dias) da pena de multa aplicada ao crime de ameaça e a taxa diária da mesma, entende o recorrente que o Tribunal a quo não obedeceu aos critérios subjacentes nos artigos 47°, n° 1 e 71°, nºs 1 e 2, ambos do Código Penal.
22.Também a medida da taxa diária é excessiva, não só atendendo ao crime em concreto e suas consequências mas especialmente atendendo à capacidade económica do recorrente.
Normas violadas: artigos 47°, n° 1,71°, nºs 1 e 2, 153° e 155°, todos do Código Penal e o artigo 32°, Constituição da República Portuguesa,
ASSIM, SEM MENOSPREZO PELA DOUTA SENTENÇA DE QUE SE RECORRE E SEMPRE COM O MUI DOUTO SUPRIMENTO DE VV. EXA.S, ESPERA-SE QUE SEJA DECRETADA A ABSOLVIÇÃO DO ARGUIDO, ORA RECORRENTE, J..., DADA A INSUFICIÊNCIA DA PROVA E O ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA MESMA, ORA ALEGADAS, PROCEDENDO-SE À RENOVAÇÃO DA PROVA REQUERIDA, E, DECIDINDO DE HARMONIA COM AS ANTECEDENTES CONCLUSÕES, OU, SE ASSIM NÃO FOR ENTENDIDO, REDUZINDO A PENA APLICADA E A RESPECTIVA TAXA DIÁRIA DE MULTA, VV. EXA.S FARÃO JUSTIÇA!

Notificado, o Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo o seguinte:
A sentença não enferma de qualquer dos vícios indicados no art. 410°, nº 2 do C.P.Penal.
A prova produzida foi correctamente valorada.
Os factos provados consubstanciam a prática, por parte do arguido, J..., de dois crimes de ameaça, ps. e ps. pelos arts. 153°, nº1! e 155°, nº1, al. a) do Código Penal.
A pena aplicada ao arguido traduz uma equilibrada e adequada aplicação dos critérios estabelecidos nos arts. 40°, 70° e 71 ° do Código Penal.
Não foram violadas quaisquer normas legais, nomeadamente, dos arts. 47°, nº1, 71°, nºs 1 e 2, 153° e 155° do C.Penal e do art. 32°, n° 2 da C.R.P.
Vossas Excelências, Senhores Desembargadores, negando provimento ao presente recurso, farão JUSTIÇA

Admitido o recurso e remetidos os autos a esta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer:
No que diz respeito à impugnação da matéria de facto, temos desde já por oportuno dizer o seguinte:
- Como é sabido, e entre outros princípios, a audiência pauta-se pela imediação (que se traduz, no essencial, no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova) e pela oralidade, princípios que permitem que as provas sejam apreciadas por quem assistiu à sua produção, «sob a impressão viva colhida nesse momento e formada através de elementos ou coeficientes imponderáveis, mas altamente valiosos, que não podem conservar-se num relato escrito das mesmas provas» (Assim, Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal", III Vol., págs. 232-233).
Dispõe, também por isso, o art. 127.° do CPP, que, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, operação que, na expressiva definição contida no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004 (DR, II série, de 2/6/2004) "não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas ( ... ) parte de dados objectivos para uma formação lógico-­intuitiva".
Vale isto por dizer que o tribunal julga livremente, de acordo com a sua convicção, mas em estrita observância de limites impostos pela lei e, por outro lado, pelos conhecimentos científicos e pelas regras da experiência, da lógica e da racionalidade V.g., regras de probabilidade e razoabilidade..
No sistema vigente, como é sabido, a prova não é repetida na 2ª instância. Por consequência, e citando o mesmo Aresto do T. Constitucional, "a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode ( ... ) assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na convicção ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção. Doutra forma, seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão".
Nesta perspectiva, cabe dizer que o papel do Tribunal de recurso no plano dos factos pode resumir-se da seguinte forma Assim, Acórdão da Rel de Lisboa de 19-07-06, proferido no Processo n.º 6006/06 – 3ª sec.. cujos fundamentos aqui reproduzimos, no essencial, até porque não saberíamos dizer melhor.
: «revelando-se a decisão recorrida compatível com os sobreditos parâmetros de apreciação da prova, isso significará que o julgamento da matéria de facto fixada não merece censura; revelando-se alguma ilegalidade ou arbitrariedade, então a decisão recorrida merece alteração.
Em função da concreta expressão da eventual insuficiência probatória ou deficiência do juízo de facto, várias possibilidades se poderão, então, revelar, desde uma situação de "dúvida razoável" relativamente à prova dos factos, até, no limite, ao "erro notório na apreciação da prova"».
Ora, no caso em apreço o recorrente não invoca qualquer ilegalidade, vício argumentativo ou quebra de objectividade no julgamento da matéria de facto, sendo certo que a "credibilidade dos depoimentos ( ... ) é um sector especialmente dependente da imediação do Tribunal, dado que só o contacto directo com os depoentes situados na audiência de julgamento, perante os outros intervenientes é que permite formar uma convicção que não pode ser reproduzida na documentação da prova e logo reexaminada em recurso" (17­02-2005, SJ200502170043245).
Ademais, e "ex abundante", que o Tribunal tenha reconhecido determinado valor e alcance a certos meios probatórios, e que nesse labor não seja secundado por quem quer que seja com interesse no resultado, é absolutamente indiferente, no sentido de que nunca a concepção de um qualquer interveniente processual haverá de prevalecer só por si, em detrimento da do julgador. E o certo é que a decisão impugnada, enunciando claramente os meios de prova que foram tidos em consideração, encontra-se suficientemente fundamentada, permitindo o controlo do processo lógico-­dedutivo empreendido pelo Tribunal "a quo" e a razão de ser da decisão tomada, não traduzindo, cremos, qualquer violação das regras que norteiam a actividade do julgador neste particular, correspondendo e contendo-se nos exactos limites do estruturante princípio da apreciação da prova: o da livre convicção do julgador.
Em todo o caso, e não tendo o arguido impugnado a matéria de facto de acordo com as exigências constantes do artº 412º nºs 3 e 4 do CPP, (antes tendo invocado vícios da decisão referidos no nº 2 do artO 410º do CPP ), donde ressaltamos o seu dever de indicação das provas que impõem uma decisão diversa neste campo, não deve ele esperar que possa ocorrer uma sua alteração nos moldes em que propõe, mesmo que parcialmente.
Donde, e sem necessidade de mais desenvolvidos considerandos, estejamos em crer que será correcta a decisão de direito que foi tomada: a condenação do arguido pelos dois crimes de ameaças.

No que respeita à matéria de direito, nada se nos oferece adiantar ao que vem dito pelo M.º P.º na sua resposta de flh. 151 e seg.
Não nos parece que a fundamentação da matéria de facto seja insuficiente como defende o arguido na conclusão 8. Com efeito, posto que sintética, nela se descortina o exame crítico da prova testemunhal, devendo obviamente ter-se em conta o modo de execução do crime.
Quanto às considerações sobre a não punibilidade dos factos, há que ter em conta o contexto em que a expressão foi proferida - aquando do exercício da condução automóvel, o que pressupõe que o mal que se anuncia não poderia ser cometido de imediato - sendo indiscutível que a exibição de uma arma ao mesmo tempo em que se anuncia a palavra "matar", tem que ser relevada.
Aliás, são conhecidas nos Tribunais situações de condutores desavindos em que a concretização da ameaça é um facto.
Vem a propósito lembrar o Ac desta Relação Proc. 5411D4.0BBPBL.C1 de 23-09-2009
1. No crime de ameaças não se exige que tenha sido provocado, em concreto o medo ou inquietação. Mas apenas que a ameaça seja adequada, em termos de juízo de causalidade adequada, a provocar medo ou inquietação no visado ou afectar a sua paz individual ou liberdade de determinação.
2. O arguido que sem ter efectiva oportunidade de agredir a ofendida ou cometer qualquer acto de execução, exibindo um taco de Base - Bal! diz "eu mato-te sua puta", comete o crime de ameaças.

Nestes termos, somos de parecer que deve improceder o recurso.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não foi exercido o direito de resposta.
Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos teve lugar conferência, cumprindo apreciar e decidir.
***
II. Fundamentos da Decisão Recorrida
Da sentença recorrida constam os seguintes fundamentos de facto e de direito:
Fundamentação:
De facto:
Factos provados:
a) No dia 06 de Abril de 2009, pelas 16h00, na Rua dos Combatentes da Grande Guerra, em Coimbra, na sequência de uma manobra de trânsito efectuada pela queixosa C..., a qual não mereceu a aprovação do arguido, este dirigiu-se à própria e ao seu marido F..., e exibindo-lhes uma pistola que consigo trazia no porta-luvas, afirmou: “nós matamos-vos”.
b) O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, pretendendo com o comportamento por si perpetrado infundir nos denunciantes um fundado receio de que um mal futuro lhes sucederia, nomeadamente às suas próprias vidas, o que logrou, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
c) O arguido é caixeiro viajante e trabalha para a firma …, auferindo €:475,00 por mês, a que acresce o pagamento das despesas com alimentação e deslocações.
Vive com a companheira, que trabalha como 1ª ajudante numa Conservatória do Registo Predial, em casa daquela.
Tem uma casa própria, que adquiriu recorrendo a empréstimo bancário e paga €:220,00 por mês do empréstimo que contraiu para a sua aquisição.
Tem um veículo de marca Skoda, modelo Otavia, de 2006.
Tem o 3º ano do Curso Geral de Electricista.
Não tem antecedentes criminais.
Da contestação:
d) Na paragem de semáforos da Avenida Sá da Bandeira existem três faixas, sendo uma para os transportes públicos.
e) Se as três viaturas seguirem em frente, pela avenida, alguma tem que ceder passagem às outras duas, pois apenas há duas faixas de rodagem.
f) As viaturas da faixa mais à esquerda e mais à direita podem virar à esquerda e direita.
g) O arguido seguiu o mesmo percurso que sempre faz para ir para a Lousã.
Factos não provados:
Com relevo para a decisão da causa, nenhum facto se provou para além dos que nessa qualidade se descreveram.
Em especial não se provou que:
- O arguido, no dia dos autos, ao volante da sua viatura, parou nos semáforos na Av.ª Sá da Bandeira, junto ao mercado e passados segundos chegam duas viaturas, um BMW do seu lado esquerdo e uma outra viatura do seu lado direito, a dos denunciantes;
- A viatura dos denunciantes apresentava-se à direita do condutor da faixa do meio e a querer seguir, em frente, tem que ceder passagem à viatura do meio, devido ao funilado da via, pois perde prioridade, se não quiser ultrapassar pela esquerda a viatura do meio, no caso a do arguido, pois tal faixa direita (a do semáforo na avenida é sobretudo para servir os condutores que pretendem virar à direita para o parque do mercado ou para artérias da alta, ou para os transportes públicos que têm uma paragem a poucos metros à sua direita e entram na faixa BUS).
- Ao sinal verde, o arguido, seguiu em frente, na sua faixa, com marcas no piso, imprimindo determinada velocidade à sua viatura, não tendo dado, ao que parece, mas sem qualquer intenção possibilidade de a condutora/queixosa ter ultrapassado a sua viatura pela esquerda, o que pretendia, entenda-se.
- O arguido entende, agora, a causa das buzinadelas e dos gestos que vinham da viatura dos queixosos, mas não ligou.
- O arguido foi ouvindo as buzinadelas e vendo os gestos de mãos dos denunciantes pelo retrovisor.
- No final da Rua dos Combatentes, perto da igreja de S.José e porque a via o permite, a viatura dos denunciantes ultrapassa a viatura do arguido, obrigando este a parar.
- Feito isto, de imediato saíram do carro, primeiro a denunciante, gritando e gesticulando contra o arguido, chegando a empurrar com a mão a face do arguido, que não reagiu a tão inusitada atitude da denunciante, completamente despropositada e sem qualquer fundamento.
- E foi, quando, nesse propósito tentava, sem êxito, convencer a denunciante a ter outras maneiras, que o denunciante F… abriu a porta direita da viatura do arguido, tendo este no banco da frente a sua carteira, que aquele violou ao mexer-lhe, abrindo-a, e por via disso, desse abuso de elementos da vida privada do arguido, viu a licença de uso e porte de arma de defesa que o arguido possui, mas que nunca anda munido com a mesma.
Motivação:
Para dar como provados os factos supra descritos, o Tribunal valorou as regras da lógica e as máximas da experiência, correlacionadas com as declarações prestadas em audiência de julgamento pelas testemunhas F...e C..., que de modo credível relataram o sucedido, em consonância com a factualidade provada.
Destes depoimentos resultou que ocorreu um desentendimento entre o arguido e os ofendidos, por questões de trânsito, na sequência do que o arguido adoptou a atitude descrita nos factos provados.
O arguido, é certo, negou ter praticado os factos de que vem acusado.
Contudo, reconheceu possuir uma pistola e parece-nos inverosímil que os ofendidos tivessem inventado que o arguido lhes mostrou uma pistola que, por uma enorme coincidência, o arguido de facto possui.
O arguido, explicando esta situação, diz que o ofendido F...pegou na carteira que ele tinha pousado no banco do condutor e viu certamente nesta altura a licença de uso e porte de arma que este ali trazia. Trata-se, no entanto, de uma explicação rocambolesca, pouco plausível: não só a atitude do ofendido, que o arguido descreveu, de abrir a porta do carro e de retirar do banco da frente a carteira do ofendido no meio de uma discussão acerca do trânsito é uma atitude pouco consentânea com as regras da experiência e do normal acontecer, como mais irrazoável é que ofendido, vendo que o arguido tinha uma licença de uso e porte de arma, tivesse decidido inventar que este lhe exibiu uma pistola.
Daí que se tivesse afastado toda a credibilidade que à versão carreada pelo ofendido se pudesse reconhecer.
Quanto às circunstâncias pessoais e económicas do arguido considerou-se o teor do depoimento deste.
No que respeita aos antecedentes criminais do arguido, valorou-se o teor do certificado de registo criminal junto aos autos.
Quanto aos factos não provados, não se fez prova dos mesmos, por a versão dos factos carreada pelo arguido não ter merecido credibilidade e nenhuma outra prova, para além das declarações do arguido, ter sido feita de tais factos.
Os factos da contestação que não se deram como provados nem como não provados são factos conclusivos ou de direito irrelevantes.

Enquadramento jurídico-penal:
O arguido vem acusado da prática de dois crimes de ameaça, p. e p. pelo art.º 153º n.º 1 e 155º n.º 1 al. a) do CP.
De acordo com o disposto no art.º 153º n.º 1 do CP comete um crime de ameaça “quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação”.
Este crime é agravado, nos termos do disposto no art.º 155º n.º 1 al. a), quando a ameaça for com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos.
Do ponto de vista da conduta descrita e no sentido que interessa ao preenchimento do tipo legal, ameaçar corresponde ao acto de prometer ou pronunciar um mal futuro, de anunciar, de modo explícito ou implícito, a intenção de causar um facto maléfico, injusto e grave, consistente em danos físicos, económicos ou morais, necessariamente futuros, independentemente do concreto prazo eventualmente assinalado para a concretização da ameaça. Posto é que, ao olhos do homem médio, dotado das características individuais do ameaçado, a concretização futura do mal anunciado dependa ou apareça dependente da vontade do agente.
O mal ameaçado tem, além do mais, de configurar em si mesmo um facto ilícito e típico, embora não necessariamente culposo.
Trata-se de um crime de perigo concreto, sendo necessário, para afirmar a respectiva prática, que através de um juízo ex ante se reconheça na ameaça perpetrada efectiva potencialidade intimidatória, isto é, aptidão para intimidar, criar sentimentos de medo ou de inquietação. E uma vez que o critério de adequação a utilizar para um tal efeito será do tipo objectivo-individual, para se aferir da idoneidade da ameaça, deve levar-se em consideração, além do mais:
- as circunstâncias do caso concreto (mal anunciado, sua credibilidade e exequibilidade, forma, tempo e lugar da conduta maléfica anunciada, capacidade do agente para delinquir e seus antecedentes criminais, costumes locais, etc.);
- as particulares condições do sujeito passivo (impressionabilidade, passividade, estado psicológico, idade, capacidade de resistência, etc.) e o conhecimento que o agente activo tenha, no momento da conduta, dessas particulares condições do sujeito passivo.
Indispensável é, para a punição do crime, que o sujeito passivo da ameaça tome dela conhecimento, sendo irrelevante a forma utilizada pelo agente do crime, que este ameace directa e pessoalmente ou que utilize um meio ou se sirva de terceira pessoa.
Ora, no caso dos autos demonstrado ficou que o arguido, após uma discussão com os ofendidos relacionada com questões de trânsito, lhes mostrou uma pistola e disse “nós matamo-vos”.
Considerando, pois, o contexto em que a expressão foi proferida, concretamente o facto de ter sido acompanhada da exibição de uma pistola, julgamos que efectivamente os ofendidos, ao ouvi-la, a sentiram como credível e foi por eles levada a sério como uma ameaça às suas vidas e não apenas à integridade física.
Por último, e no que toca ao elemento subjectivo, trata-se de um crime doloso.
Tendo ficado demonstrado que o arguido actuou de forma esclarecida e consciente, conclui-se, por tudo o exposto, que cometeu, com a actuação a que deu causa, um crime de ameaça p. e p. pelo art.º 155º n.º 1 do CP.
E, considerando que a ameaça se dirigiu à vida dos ofendidos, a conduta destes é subsumível ao disposto no art.º 155º n.º 1 al a) do CP.
Sendo dois os ofendidos, cometeu o arguido dois crimes de ameaça p. e p. pelo art.º 153º n.1 e 155 n.º 1 al. a) do CP.
Da Determinação da medida da pena:
Escolha das penas:
O crime que pelo arguido foi praticado é punido com pena de prisão ou pena de multa. Assim, cumpre proceder à determinação da espécie de pena que concretamente irá ser aplicada, atendendo, para o efeito, ao sentido e ao alcance do princípio geral que resulta da combinação dos arts. 40º e 70º do CP.
Ora, de acordo com estes preceitos, o critério geral de escolha da pena, nos casos em que o legislador tenha admitido o funcionamento alternativo de uma reacção detentiva e de uma pena não privativa da liberdade, é o de que o tribunal deverá dar preferência à segunda sempre que, através dela, for possível realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. E como a aplicação de penas tem por objectivo a protecção dos bens jurídicos e a integração do agente na sociedade, serão sempre e só considerações de prevenção geral e especial, e não finalidades de compensação da culpa, a decidir da possibilidade de preferir, no caso concreto, uma medida não detentiva a uma pena de prisão (cfr. Anabela Rodrigues, em anotação ao Ac. do STJ de 21/05/90, in RPCC, 2, 1991, pg. 243 e Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, p. 331).
Por outro lado, de entre as finalidades preventivas sobrelevam as finalidades de prevenção especial, já que são elas que justificam o movimento de luta contra as penas de prisão aplicável à pequena e média criminalidade. Deste modo, o tribunal só deverá recusar a aplicação da pena alternativa quando tal opção se revele desde logo inconveniente para a viabilidade e sucesso de um projecto de ressocialização. E, funcionando as exigências de prevenção geral, enquanto defesa do ordenamento jurídico, como limite à actuação das exigências de socialização, deve ainda o Tribunal recusar a substituição quando ela seja de modo a comprometer a preservação da paz jurídica comunitária, a necessária tutela dos bens jurídicos.
No presente caso, são diminutas as exigências de prevenção geral positiva, dado que a prática de crimes como o presente no contexto em que o foram não causa um especial alarme social.
As exigências de prevenção especial também são diminutas, uma vez que o arguido não tem antecedentes criminais e que está profissional., social e familiarmente inserido.
Daí que se decida aplicar ao arguido penas de multa.
Determinação da medida concreta da pena:
Dentro das molduras penais abstractas, deverão as penas ser concretamente determinadas em conformidade com o sistema dos dias de multa proposto pelo legislador no n.º2 do art.47º daquele diploma legal procedendo-se à fixação, em primeiro lugar, do número de dias de multa de acordo com o princípio regulador formulado no art.40º, e, seguidamente, do quantitativo diário a achar dentro dos limites definidos na lei considerando, para o efeito, a situação económico-financeira do arguido, bem como os encargos pessoais que ficaram demonstrados.
No que ao número de dias de multa diz respeito, importa considerar que, nos termos que resultam do art.71º do CP, deverá a pena ser concretamente determinada, dentro dos limites da lei, em função da culpa do agente e das exigências da prevenção.
Tendo, pois, em conta o princípio geral que acaba de ser formulado, deverão ser neste momento consideradas todas aquelas circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal convocado nem tendo sido já atendidas para efeitos de agravação, sejam expressivas da culpa do arguido e da medida das necessidades de prevenção.
No caso em apreço, relativamente a ambos os crimes, depõe contra o arguido, logo ao nível do tipo-de-ilícito, a gravidade da violação jurídica cometida, atento o dano (medo e inquietação) efectivamente ocasionado, representando o grau máximo de concretização do perigo considerado, e evidenciando uma intensa afectação do bem jurídico protegido. Mais há que valorar o dolo directo com que o arguido agiu.
Em favor do arguido valorar-se-á a ausência de antecedentes criminais e a inserção familiar e profissional.
Em face de tudo o exposto, julga-se adequada a aplicação ao arguido, pela prática de cada um dos crimes de ameaça, da pena de 100 dias de multa.
No que concerne ao quantitativo diário, tendo em conta a factualidade descrita, julgamos adequado, dentro dos limites constantes do n.º 2 do art.º 47º do CP, fixar o quantitativo diário em €:7,50.
A pena do concurso.
Tendo o arguido praticado dois crimes antes do trânsito em julgado da condenação por qualquer deles, cumpre, nos termos do art. 77º do CP, proceder à construção da moldura do concurso e, considerando globalmente o conjunto dos factos e a personalidade do arguido, determinar, dentro dela, a medida concreta da pena única a aplicar.
Considerando, pois, que o conjunto dos factos praticados está contextualizado e tem de ser entendido como um episódio isolado no contexto de uma vida fiel ao Direito, entende-se fixar, dentro dos limites supra referidos, a pena única em 150 dias de multa, à taxa diária de €:7,50.
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III. Apreciação do Recurso
A documentação em acta das declarações e depoimentos prestados oralmente na audiência de julgamento determina que este Tribunal, em princípio, conheça de facto e de direito (artigos 363° e 428° nº 1 do Código de Processo Penal).
Não obstante, o concreto objecto do recurso é sempre delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal) sem embargo das questões do conhecimento oficioso.
Vistas as conclusões do recurso interposto, as questões que reclamam solução são as seguintes:
1. Se a sentença recorrida padece dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova, previstos no artigo 410º, nº 2, alíneas a), b) e c) do Código de Processo Penal;
2. Se ocorre o erro de julgamento apontado pelo recorrente e se a matéria de facto deve ser modificada nos termos por si preconizados, com a sua consequente absolvição;
3. Se a factualidade provada não é susceptível de integrar a prática dos imputados crimes de ameaça;
4. Se a pena aplicada é excessiva, quer no que respeita aos dias de multa, quer no que respeita à respectiva taxa diária.

Apreciando:

Dos invocados vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova
Vejamos, então, se a sentença recorrida padece dos alegados vícios, começando por citar a norma legal que os prevê.
Preceitua o artigo 410º, nº 2, a) e b) do Código de Processo Penal que «mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da sentença recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
Imediatamente importa reter que estamos perante vícios cuja verificação deve resultar exclusivamente do texto da própria decisão recorrida por si ou conjugada com as regras da experiência, sem apelo a elementos a ela externos como o conteúdo da prova produzida.
E desde logo se verifica que o recorrente, na primeira conclusão do recurso, em que invoca os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro na apreciação da prova, por referência ao artigo 410º, nº 2, com base em incongruências que afastam a credibilidade de depoimentos, confunde estes vícios com o erro de julgamento da matéria de facto (diferente fundamento de recurso – artigo 412º, nº 3 do Código de Processo Penal) para cujo reconhecimento importa confrontar o conteúdo concreto da prova produzida, posto que consiste em o tribunal ter dado como provado facto que a prova não consente, ou ter considerado como não provado facto que em face do teor da prova devia ser considerado provado.

A insuficiência alegada e a que se reporta este preceito é um vício que ocorre quando a matéria de facto é insuficiente para a decisão de direito, o que se verifica porque o tribunal deixou de apurar a matéria de facto que lhe cabia apurar dentro do objecto do processo, tal como este está circunscrito pela acusação e pela defesa, sem prejuízo do mais que a prova produzida em audiência justifique. Tal vício consiste na formulação incorrecta de um juízo: a conclusão extravasa as premissas; a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada (cfr. Simas Santos/Leal-Henriques, Código de Processo Penal, Volume II, em anotação ao artigo 410º).
Para fundamentar a existência do vício de insuficiência o recorrente invoca a existência de contradições e discrepâncias entre depoimentos que lhes retiram credibilidade, o que não tem coincidência com a noção de insuficiência acima consignada que apenas se verifica quando o tribunal deixou de apurar factos necessários à boa decisão de causa, sendo os apurados insuficientes para a qualificação jurídica efectuada.
Ainda invoca o recorrente (conclusões 11 a 13) no domínio do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada que da sentença recorrida não é possível obter qualquer elemento fáctico susceptível de permitir fazer um juízo de adequação entre a sua conduta e a susceptibilidade de esta preencher o requisito adequação ou aptidão da ameaça a provocar no destinatário medo ou inquietação, como não existe qualquer facto provado que permita extrair a conclusão de que o arguido tivesse representado a possibilidade de as testemunhas acreditarem que num momento posterior ele as iria matar ou agredir, conformando-se com essa eventualidade.
Esta alegação, na segunda parte mencionada, já seria susceptível de integrar o invocado vício caso se verificasse que o Tribunal a quo não teria averiguado e dado como provados ou não provados os factos necessários à imputação dos crimes de ameaças que fundaram a condenação proferida.
Mas, analisada a decisão proferida quanto a matéria de facto, verificamos que se encontra provado que o arguido, dirigindo-se aos ofendidos, afirmou "nós matamos-vos" (alínea a) dos factos provados) e que agiu pretendendo infundir nos denunciantes um fundado receio de que um mal futuro lhes sucederia (alínea b) dos factos provados).
O juízo a extrair sobre a adequação da expressão proferida para causar medo ou inquietação não pertence à categoria factual mas de integração jurídica dos factos, sendo certo que mesmo desse ponto de vista não se vislumbra como possa ser defensável que as palavras proferidas no contexto em que o foram; sério e acompanhado da exibição de uma arma, não fossem adequadas a causar medo.
Quanto à intenção do arguido, consta efectivamente da factualidade provada e, segundo esta, integra a modalidade de dolo directo, acção empreendida voluntariamente para causar medo, o que significa que está assente que não só previu essa possibilidade, como até a quis. Essa intenção que presidiu à actuação deriva em primeiro lugar da factualidade objectiva descrita, a actuação levada a cabo que, segundo as regras da experiência, indica, salvo casos excepcionais, que quem exibe uma arma e diz "matamos-vos" sem concretizar imediatamente a acção anunciada, quer causar medo.
Também nesta vertente se não vislumbra a ocorrência do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Quanto ao alegado erro notório na apreciação da prova, trata-se daquele que é de tal modo patente que não escapa à observação do cidadão comum, na leitura do texto da decisão recorrida ainda que conjugada com as regras da experiência comum e pode traduzir-se, nomeadamente, na violação do princípio contido no artigo 127º do Código de Processo Penal (o tribunal dá como provado facto que afronta ostensivamente as regras da experiência) ou na violação do princípio in dubio pro reo (o tribunal expressa juízo de dúvida sobre determinado facto e, no entanto, considera-o provado).
Como é sabido, o conceito de erro notório na apreciação da prova tem de ser interpretado como o tem sido o conceito de facto notório em processo civil, ou seja, como o facto de que todos se apercebem directamente, ou que, observado pela generalidade dos cidadãos, adquire carácter notório (v. por ex. Ac. do S.T.J. de 6.4.94 in Col. Jur. Acs. do STJ, II, tomo 2, 186).
Na definição de M. Simas Santos e M. Leal Henriques em Código de Processo Penal Anotado, Volume II, 2ª edição, pag. 740, existe erro notório na apreciação da prova quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária, contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto contido no texto da decisão. Mais existe esse erro quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis (cfr. também Ac. do S.T.J. de 13.10.99 in C.J., Ano VII, Tomo III, pag. 184 entre outra jurisprudência abundante).
Para sedimentar a existência de erro notório o recorrente invoca que o Tribunal a quo deu como provados factos contra as regras da experiência, sendo ilógico o juízo de apreciação da prova efectuado uma vez que das declarações e depoimentos ressalta a existência de versões opostas e contraditórias. A fundamentação do Tribunal a quo tem como suporte a credibilidade subjectiva atribuída aos depoimentos das testemunhas, sendo evidente a necessidade de recurso ao princípio in dubio pro reo, pois, avaliando-se a prova segundo as regras da experiência, revela-se uma dúvida no espírito do Tribunal a quo sobre a existência dos factos dados como provados.
Deve dizer-se em primeiro lugar que analisada a motivação constante da decisão recorrida e apenas esta releva para o reconhecimento do mencionando vício, verificamos que a convicção positiva do Tribunal a quo se encontra sustentada nos depoimentos dos ofendidos cujo conteúdo foi no sentido de confirmar os factos que constam da factualidade provada, como se afirma na motivação expressa. E para justificar a sua convicção nesses meios de prova é acentuada, por um lado, a credibilidade desses depoimentos e, por outro lado, em contraponto, a versão negatória inverosímil que o arguido apresentou dos factos.
A apreciação da prova não é uma operação de cariz matemático em que os opostos se anulem; a existência de meios de prova cujo teor seja contrastante não tem como efeito que se deva concluir pela falta de prova suficiente. Antes o princípio da livre apreciação que é uma liberdade vinculada à análise da prova segundo as regras da experiência impõe ao julgador uma operação intelectual de conjugação e dissecação lógica da prova oral e demais elementos, a que o artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal se refere como "exame crítica da prova" que deve ser vertido para a motivação da convicção do tribunal o que, aliás, no caso ocorre.
E nesse exame crítico intervêm aspectos a que podemos designar de subjectivos que estão ligados à forma como o próprio depoimento é prestado e que lhe conferem ou não credibilidade independentemente do seu conteúdo verbal. Mas apenas a oralidade e a imediação conferem a possibilidade desse tipo de análise.
Ora a motivação que o Tribunal a quo expressa para além de não apresentar juízo dubitativo sobre os factos que consignou como provados, o que afasta a possibilidade de afirmar que na dúvida decidiu contra o arguido, violando o princípio in dubio pro reo, encontra-se estribada em análise da prova oral que não se afasta de critérios de razoabilidade e normalidade, ou seja, das regras da experiência.
Pelo exposto se conclui que a sentença recorrida não padece do vício de erro notório na apreciação da prova.


Da impugnação da matéria de facto
O recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto, considerando que foram mal julgados os factos constantes das alíneas a) e b) dos factos provados da sentença recorrida, entendendo que os mesmos deviam ser considerados não provados.
Embora não o indique de forma linear e expressa, resulta do alegado que na sua perspectiva impõem decisão diversa da recorrida, para além da sua versão negatória, os depoimentos das testemunhas F… e C..., simultaneamente ofendidos, cujo teor expressamente refere em alguns trechos (apenas na motivação) salientando o que na sua perspectiva são contradições entre eles e concluindo que não merecem credibilidade, tendo ocorrido violação das regras da experiência e do princípio in dubio pro reo.
Confrontado o teor de tais depoimentos, verificamos que na maior parte são coincidentes e descrevem efectivamente os factos tal como foram consignados na matéria de facto provada.
A expressão que ambos referem ter sido proferida pelo arguido tem exactamente o mesmo conteúdo e significado, F… referiu "nós matamos-vos" e C... referiu "vamos-vos matar", o contexto em que foi proferida também não diverge, ambos tendo acentuado que foi exibida uma arma que se encontrava dentro de um coldre que não a tapava completamente e permitia ver que efectivamente era uma arma (pistola).
Do depoimento da testemunha C... flui, mesmo sem os benefícios da oralidade, a sua estupefacção perante a exibição da arma e que foi por isso que foram logo à polícia apresentar queixa (este facto não deixa de ser um elemento relevante para avaliar da credibilidade dos depoimentos – a queixa imediata).
A pequena divergência, apenas de forma verbal, quanto à expressão proferida pelo arguido e outras, como o momento em que C... terá saído do veículo, passados poucos minutos ou apenas segundos depois de F... o ter feito, ou ainda se terão ocorrido ou não insultos entre o arguido e F..., este confirma que sim, C... mencionou que não, esclarecendo depois que poderá não ter ouvido e ficando no ar a hipótese de não ter ouvido por não ter saído imediatamente de dentro do carro, ao invés de poderem descredibilizar os depoimentos, constituem até elementos que revelam a existência de um discurso não previamente ensaiado e combinado.
Não se alcança, pois, em que medida o Tribunal a quo, certamente enriquecido com a oralidade e imediação dos depoimentos e sempre mais bem apetrechado para avaliar a sua dimensão "subjectiva", possa ter violado as regras da experiência na credibilidade que lhes concedeu em detrimento da versão do arguido ou possa ter violado o princípio in dubio pro reo quando a sua convicção se encontra alicerçada em depoimentos que permitiram a formulação de uma convicção positiva sobre os factos impugnados.
Por outro lado e tal como bem refere o tribunal recorrido na motivação expressa, as declarações do arguido no sentido de que efectivamente tem uma pistola e que o ofendido F... pegou na carteira que tinha no banco do seu carro e terá visto a licença respectiva, explicando assim que terá sido por isso que apresentou queixa da exibição de uma arma, é que carece de manifesta plausibilidade, merecendo certamente a qualificação de rocambolesca que lhe é dada pelo Tribunal a quo.
E pelas razões expostas não vislumbramos a existência de fundamento para alterar a convicção expressa pelo Tribunal recorrido que se mostra perfeitamente justificada perante os meios de prova que lhe foram presentes.

Da qualificação jurídica dos factos
Entende o recorrente que a conduta dada como provada não se subsume ao tipo legal de crime do artigo 153º, nº 1 do Código Penal porque a expressão proferida surge como a verbalização de um mal eminente, anunciando um mal actual e não um mal futuro, esgotando-se no momento em que foi proferida, não preenchendo o elemento objectivo e subjectivo do tipo.
A distinção entre mal actual e mal futuro não assenta no texto legal que é do seguinte teor:
"Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação é punido …"
Quando o tipo legal se refere a ameaça não exige expressa ou implicitamente que o mal anunciado seja expresso numa forma verbal futura. E tendo presente o outro elemento típico de adequação do mal anunciado a causar medo ou inquietação, tanto uma forma verbal presente, como uma forma verbal futura é adequada a causar medo. Tanto causa medo ao visado dizer-se vou-te matar ou irei matar-te e nem a expressão vou-te matar ou a proferida "matamos-vos" indica a realização de uma acção imediata, podendo também significar acção a realizar num futuro próximo.
E se é verdade que a doutrina refere que o mal anunciado tem de ser futuro, essa referência apenas é feita para afastar as situações da ocorrência de um mal iminente. Nas palavras de Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, pág. 343 "isto significa apenas que o mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, pois que, nesse caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal."
Assim, a confusão que poderá estabelecer-se a esse propósito diz respeito a outra realidade, a distinção que há que fazer entre o crime correspondente ao mal anunciado e o crime de ameaça e haverá situações em que a distinção é difícil. Assim, cometerá crime de homicídio na forma consumada ou tentada quem diz eu mato-te e dispara de imediato uma arma, já cometerá o crime de ameaça quem o mesmo diz e apenas exibe uma arma.
Ou seja, o que distingue a ameaça do cometimento de um crime e o cometimento desse mesmo crime são as próprias circunstâncias da acção que revelam a intenção que lhe preside.
E também no caso em análise são as circunstâncias da acção de mera exibição de uma arma acompanhada das palavras "nós matamos-vos" que indicam a intenção que presidiu ao agente, qual seja a de causar medo, não a iminência de matar, sendo certo que essa actuação é idónea a causar medo e, efectivamente causou-o, como vem provado.
Estando, pois presentes na factualidade provada quer os elementos objectivos, quer os subjectivos do crime de ameaça e não ocorrendo causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, constituiu-se efectivamente o recorrente como autor de dois crimes dessa natureza, como foi considerado na decisão recorrida que, também neste aspecto, não merece censura.

Da pena
O arguido foi condenado em primeira instância como autor de dois crimes de ameaça p. e p. pelo artigo 153º, nºs 1 e 155º, nº 1, alínea a) do Código Penal em duas penas parcelares de 100 dias de multa. Em cúmulo jurídico foi condenado na pena única de 150 dias de multa à taxa diária de 7,50 euros.
Pugna no sentido de que a pena de multa deve ser reduzida em dias e na respectiva taxa diária em razão do disposto nos artigos 47º, nº 1 e 71º do Código Penal cujos critérios não terão sido observados.
Sendo as finalidades da punição consignadas no artigo 40º do Código Penal a trave mestra que determina o doseamento da pena, dir-se-á de forma resumida, reproduzindo Figueiredo Dias, em Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, pag. 84, que «a pena concreta é limitada no seu máximo inultrapassável pela medida da culpa; dentro desse limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função das exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais».
Postas estas considerações gerais, que devem estar presentes no juízo conducente à pena concreta e adequada, o artigo 71º, nº 1 do Código Penal preceitua, na senda do citado artigo 40º, que a determinação concreta da pena, dentro dos limites legalmente definidos, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção e o nº 2 do mesmo artigo determina que o tribunal atenda a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, enumerando algumas a título exemplificativo, circunstâncias estas que nos darão a medida das exigências de prevenção em concreto a realizar porque indicadoras do grau de violação do valor em causa e da prognose de no futuro o agente se poder determinar com o respeito pelo valor penalmente protegido.
Lembremos que os crimes cometidos são puníveis com pena de multa de 10 a 240 dias.
Dada a natureza e gravidade não despicienda dos ilícitos praticados, apenas se vislumbrando com pendor atenuante muito mitigado a inexistência de antecedentes, estado normal de qualquer cidadão e a integração familiar do arguido, circunstâncias que apontam para um limite mínimo ditado pela prevenção geral de integração sensivelmente acima do limite mínimo previsto nas normas incriminadoras, sob pena de insuficiente defesa do ordenamento jurídico, e considerando as molduras penais acima expostas e as concretas exigências de prevenção especial, manifesta-se com evidência o equilíbrio do doseamento das penas realizado, quer das penas parcelares, quer da pena única (artigo 77º, nºs 1 e 2 do Código Penal) sem que de algum modo se mostre beliscado o limite imposto pela culpa.

Já no que respeita à taxa diária da multa, considerando o disposto no artigo 47º, nº 2 do Código Penal que determina a sua fixação em função da situação económica e financeira do condenado, considerando os rendimentos e encargos do arguido que vêm provados também não vislumbramos qualquer desadequação ou exagero na taxa fixada que se aproxima do limite mínimo legalmente previsto, devendo este ser reservado para situações de pobreza efectiva ou no limiar desta.
Também no que respeita à pena não merece censura a decisão recorrida.
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IV. Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, mantendo-se integralmente a sentença recorrida.
Pelo seu decaimento condena-se o recorrente em custas, fixando a taxa de justiça devida em quatro unidades de conta.
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Maria Pilar Pereira de Oliveira (Relatora)

José Eduardo Fernandes Martins