Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
7285/18.4T8CBR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: EXECUÇÃO
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
FALTA DE PAGAMENTO DAS RENDAS
TÍTULO EXECUTIVO COMPLEXO
INDEMNIZAÇÃO
MORA
Data do Acordão: 06/04/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - SOURE - JUÍZO EXECUÇÃO - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.1045, 1084 CC, 703 Nº1 D) CPC, 9, 14-A NRAU
Sumário: I – O título executivo a que se reporta o art. 14º-A do NRAU tem natureza complexa, sendo integrado pelo contrato de arrendamento e pela comunicação ao devedor (arrendatário ou fiador).

II – O título executivo do dito art. 14º-A do NRAU confere ao exequente suporte para a realização coativa do valor inerente às rendas “em dobro”, rectius, “indemnização” pela mora na restituição do locado, a que se refere o art. 1045º, nos 1 e 2 do C.Civil, a par das “rendas” singulares igualmente em dívida.

III – Não obstante, tem de constar da comunicação feita [ao arrendatário e a eventual fiador] que serão peticionados valores respeitantes a rendas vincendas e a indemnização, em ordem a que tais valores estejam abrangidos pelo título executivo, contendo este todos os dados para o cálculo aritmético dos montantes devidos.

Decisão Texto Integral:







            Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

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            1 - RELATÓRIO

Nos presentes autos de Execução para Pagamento de Quantia Certa em que era Exequente “A (…)”, sendo Executados [como arrendatários] E (…) e mulher S (…)e [como fiadora] M (…), foi proferido o seguinte Despacho:

«A exequente instaurou a presente execução contra os arrendatários e contra a fiadora também M (…).

Está em causa, nesta execução, a apresentação de um título executivo complexo e de formação extrajudicial, ao abrigo do disposto no artº. 14-A, do NRAU.

De facto, a exequente procedeu à notificação pessoal, por intermédio de carta registada com a-r, da fiadora M (…) e respeitante à comunicação da resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas.

APRECIANDO.

De acordo com o novo artº. 14-A, do NRAU, o contrato de arrendamento urbano, acompanhado do comprovativo da comunicação ao arrendatário do montante em dívida, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente às rendas, aos encargos ou às despesas que corram por conta do arrendatário.

O título executivo, assim formado, é dotado de dois elementos corpóreos: o contrato de arrendamento escrito e o documento comprovativo da comunicação ao arrendatário do montante em dívida (1).

A exigência de comunicação ao arrendatário tem em vista “obrigar o exequente a proceder a uma espécie de liquidação aritmética extrajudicial prévia dos montantes em dívida (2).

Essa comunicação para resolver o contrato por mora superior a 2 meses, de acordo com o artº. 9, nº. 7, do NRAU, ex vi do artº. 1084, nº. 2, do CC, deve realizar-se através de notificação judicial avulsa, contacto pessoal de advogado, solicitador ou agente de execução ou ainda escrito assinado e remetido pelo senhorio por carta registada com aviso de recepção (3).

Quanto ao fiador:

Uma vez que quer os arrendatários, quer a fiadora estão vinculados pelo contrato de arrendamento e visto que foi efectuada a comunicação à fiadora nos mesmos termos que a efectuada ao arrendatário, nenhuma razão existe para excluir essa fiadora do presente título executivo (4).

Por isso, a presente execução prosseguirá igualmente contra a fiadora.

A exequente peticiona o pagamento:

(i) rendas vencidas e não pagas no valor de 990,00 Euros (€ 330,00 x 3 meses)

(ii) indemnização do art.º 1045.º/2 do C.C. no valor de 9.900,00 Euros (€ 330,00 x 15 meses x 2, num total de 10.890,00 Euros (dez mil oitocentos e noventa euros).

O artº. 15-J, nº. 5, do NRAU, dispõe que “O título para desocupação do locado, quando tenha sido efectuado o pedido de pagamento das rendas, encargos ou despesas em atraso, e a decisão judicial que condene o requerido no pagamento daqueles constituem título executivo para pagamento de quantia certa ”, pelo que o valor de 9.900,00 euros não pode ser peticionado nos moldes do artº. 1045, nº. 2, do Código Civil, pois trata-se de uma indemnização.

A exequente tem apenas direito ao valor correspondente às rendas vencidas até efectiva entrega do locado, o que ocorreu em 21 de Julho de 2017.

Isto porque só o pedido de rendas, encargos ou despesas EM ATRASO poderão ser cobrados por via da execução para pagamento de quantia certa, pelo que considero que inexiste Título executivo válido para exigir o pagamento de € 9.900,00 euros.

Ao abrigo do disposto no artº. 726, nº. 3, do Novo Código de Processo Civil, o juiz pode indeferir parcialmente o requerimento quanto à parte do pedido que exceder os limites constantes do título executivo.

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Nestes termos, uma vez que o título apresentado pela exequente não cabe na previsão do disposto no artº. 14-A, do NRAU e da alínea d), do artº. 703, nº. 1, do NCPC, não pode o mesmo valer como título executivo no que concerne ao pedido de pagamento de 9.900,00 euros, a título de indemnização.

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DECISÃO:

Em face do exposto, e nos termos do cit. artº. 726, nº. 3, indefiro AINDA parcialmente o requerimento executivo na parte em que peticiona o pagamento coercivo, com base em título formado de acordo com o artº. 14-A, do NRAU, de 9.900,00 euros, a título de indemnização, uma vez que, nessa parte, o título não se mostra revestido de força executiva.

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Custas do incidente, que fixo em 1 UC e meia, a cargo da exequente – artigo 527.º, n.º 1, do Novo Código de Processo Civil, e artigo 7.º, nº. 4, e Tabela II do Regulamento das Custas Processuais.

Notifique e comunique ao AE.

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(1) V. Ac. do TRLisboa de 12-12-2008, in www.dgsi.pt.

(2) V. Ac. antes citado em 1.

(3) Cfr. Rui Pinto, in “Manual da Execução e Despejo”, Coimbra Ed., 2013, p. 1.162 e ss..

(4) Neste sentido, ac. do TRLisboa de 18-01-2018, in www.dgsi.pt.»

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            Inconformado com essa decisão dela interpôs recurso a Exequente, de cujas alegações extraiu as seguintes conclusões:

«1. O Exequente intentou requerimento executivo contra os Executados, com vista à cobrança coerciva do valor total de 10.915,50 Euros (dez mil novecentos e quinze euros e cinquenta cêntimos).

2. Valor que corresponde a rendas vencidas e não pagas no montante de 990,00 Euros (€ 330,00 x 3 meses); à indemnização, nos termos do art. º 1045.º/2 do C.C, no valor de 9.900,00 Euros (€ 330,00 x 15 meses x 2). Acrescidos das custas processuais com a entrada da execução no valor de 25,50 Euros (vinte e cinco euros e cinquenta cêntimos).

3. Na sequência do contrato de arrendamento habitacional celebrado em 1 de Maio de 2015, o Exequente procedeu à resolução do contrato de arrendamento, com fundamento no não pagamento das rendas, mediante comunicação registada e enviada com A/R para a morada do locado.

4. Nem os arrendatários, nem a fiadora, ora Recorridos, procederam ao pagamento de qualquer quantia ao senhorio, ora Recorrente, nem o seu recebimento foi recusado ou repelido.

5. Não tendo os Executados liquidado a totalidade das rendas em falta e, bem assim da mora respeitante a 50% pelo atraso no seu pagamento, no período mediado entre 04.04.2016 e 04.05.2016, não se encontra verificada a situação prevista no n. º 3 do artigo 1084.º do C.C e, em consequência, a resolução produziu retroativamente os seus efeitos a 04.04.2016.

6. O contrato cessou todos os seus efeitos nessa data, momento em que os Executados arrendatários deveriam ter procedido à entrega do locado.

7. O que só veio a suceder em 21 de Julho de 2017.

8. Portanto, além das rendas vencidas e não pagas à data da resolução do contrato de arrendamento o Exequente peticionou ainda que lhe fossem pagas pelos Executados as quantias vincendas desde a data da resolução e até entrega efetiva do locado, a título de indemnização, nos termos do disposto no n. º 2 do art. º 1045.º do C.C.

9. O Tribunal a quo entendeu que o valor da indemnização não deveria proceder, pelo que rejeitou parcialmente o requerimento executivo quanto ao pedido de pagamento da quantia indemnizatória.

10. O que o Exequente não pode aceitar, salvo o devido respeito pelo entendimento perfilhado, uma vez que a exequibilidade do título é extensiva às rendas que se vencerem entre a comunicação efetuada às partes e a efetiva entrega do locado.

11. Na referida interpelação que constitui título executivo, pode ler-se que, não sendo entregue o locado na sua data de cessação, será peticionado, “o valor referente à indemnização correspondente ao valor da renda, elevada ao dobro em caso de mora, desde o momento em que o contrato cessou e até efetiva entrega do locado (cfr. Art.º 1045.º, n. ºs 1 e 2 do C.C.).

Ora,

12. O valor em causa é apurado com base num simples cálculo aritmético.

13. Por isso e, à data do envio da comunicação às Partes, esse valor ainda não se encontrava aritméticamente calculado, contudo à data do envio do requerimento executivo o pedido formulado pelo Exequente é um pedido líquido.

14. Assim, o pedido do Exequente é inteiramente líquido e os valores indemnizatórios peticionados, nos termos do artigo 1045.º n.º 2 do C.C, revestem força executiva com base no título formado de acordo com o disposto pelo artigo 14.º-A do NRAU.

Nestes termos,

Devem V. Exas. Venerandos Juízes Desembargadores, julgar o recurso procedente e, em consequência, revogar a douta sentença recorrida, fazendo-se assim a ACOSTUMADA

JUSTIÇA!»

                                                           *

            A co-Executada M (...) apresentou contra-alegações a fls. 23-34, as quais contêm as seguintes conclusões:

«I. O título executivo no qual se fundou a acção executiva intentada pelo Exequente, ora Recorrente diz respeito a um contrato de arrendamento habitacional conjugado pelo facto de terem sido cumpridos os termos no disposto no art. 14º - A do NRAU.

II. O contrato foi, efectivamente, firmado entre os executados ((…)) e o exequente, assumindo a executada, ora recorrida, M (…) a qualidade de fiadora.

III. Pela execução, a Exequente, ora Recorrente, exigiu a quantia total de € 10915, 50 (dez mil novecentos e quinze euros e cinquenta cêntimos).

IV. Escalpelizando: A dívida alegada pelo exequente/recorrente reparte-se no montante de € 990, 00 referente a três meses de rendas não pagas (€ 330, 00 x 3 meses) e o montante de € 9 900, 00 a título de indemnização (art. 1045º, nº 2 do CC), perfazendo, deste modo, o total da dívida exequenda no montante de € 10 915, 50 (dez mil novecentos e quinze euros e cinquenta cêntimos);

V. Sucede porém que o montante requerido a título de indemnização, no valor de € 9 900, 00, não pode ser pedido nos termos do art. 1045º, nº 2 do CC, senão vejamos:

VI. De acordo com este normativo legal, intitulado por “Indemnização pelo atraso na restituição da coisa”, (como referido no ponto ii do art. 14º do requerimento executivo) refere que:

“1. Se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, excepto se houver fundamento para consignar em depósito a coisa devida.;

 2. Logo, porém, que o locatário se constitua em mora, a indemnização é elevada ao dobro.”

VII. Ou seja, o direito a tal indemnização só tem lugar quando o locado não for entregue, ou pelo período que o contrato findou até à data da entrega do locado e só nesses termos se terá lugar a indemnização, que é elevada ao dobro, ainda que como se verá a seguir, a comunicação efectuada pelo exequente não é suficiente para exigir os montantes peticionados a título indemnizatório do referido nº 2 do art. 1045º CC.

VIII. Ainda neste mesmo sentido, preceitua também o Art. 15º - J, nº 5 do NRAU que “O título para desocupação do locado, quando tenha sido efetuado o pedido de pagamento das rendas, encargos ou despesas em atraso, e a decisão judicial que condene o requerido no pagamento daqueles constituem título executivo para pagamento de quantia certa, aplicando-se, com as necessárias adaptações, os termos previstos no Código de Processo Civil para a execução para pagamento de quantia certa baseada em injunção”

IX. Logo tal valor requerido pelo recorrente a título de indemnização, não pode ser peticionado nos termos do art. 1045º, nº 2 do CC, uma vez que a acção executiva foi pedida para o pagamento de rendas, encargos ou despesas em atraso, logo inexiste título executivo para se exigir o pagamento de indemnização.

X. Deste modo, a dívida exequenda só deve recair sobre o valor das rendas não pagas, ou seja, sobre o montante de € 990, 00.

XI. Saliente-se também que a ora executada, recorrida, não tinha conhecimento da existência da falta de pagamento de rendas por parte dos inquilinos, ora também executados, e que até acredita que tais montantes foram liquidados, não podendo a executada/fiadora/recorrida aceitar os valores peticionados como dívida pois desconhece se tal dívida subsiste.

XII. Só teve conhecimento de tal situação aquando da recepção da interpelação pelo ora exequente, a saber, resolução de contrato de arrendamento por falta de pagamento das rendas por parte dos inquilinos;

XIII. Note-se que após tal conhecimento a fiadora, executada/recorrida, entrou de imediato em contacto com os executados ((…)), arrendatários, para obter informações acerca da falta de pagamento, ao que lhe responderam que tal assunto se encontrava a ser tratado.

XIV. Neste conspecto, e atendendo ao supra dito, a ora executada não se preocupou mais com a situação uma vez que os mesmos disseram que iriam regularizar a situação e proceder ao respectivo pagamento das rendas, o que efectivamente, não sabe se chegou acontecer, mas acredita que sim;

XV. Assim, a ora executada/recorrente só teve conhecimento dos montantes exactos da alegada dívida aquando da interposição da acção executiva, ainda assim mantém tudo o supra dito nos artigos anteriores.

XVI. Neste sentido e atendendo ao facto da ora executada ter assumido a qualidade de fiadora do contrato de arrendamento, dispõe o art. Art. 627.º intitulado “Noção. Acessoriedade” que: “1. O fiador garante a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado perante o credor.; 2. A obrigação do fiador é acessória da que recai sobre o principal devedor.”

XVII. Logo a obrigação do pagamento da presente dívida exequenda deve recair primeiramente sobre os inquilinos, ora executados e só posteriormente, acessoriamente e subsidiariamente, sobre a ora executada fiadora.

XVIII. Deste modo, tal obrigação de pagamento da dívida exequenda, a existir, deve recair na totalidade sobre os executados/arrendatários, devedores originários e só em última ratio sobre a executada/fiadora/recorrida, ou seja, só subsidiariamente, deve a executada/fiadora ser executada, uma vez que a mesma só deverá responder pelas dívidas caso já não existam mais bens penhoráveis sobre os executados/arrendatários.

XIX. Certo é que, a executada assinou o contrato sem ter noção do que estava a assinar, precisamente, no que diz respeito à renúncia ao benefício da excussão prévia.

XX. À ora executada/fiadora/recorrida nunca lhe foi explicada a noção concreta do que significa tal renuncia e a mesma não possui conhecimentos sobre estas questões, destes termos – a mesma assinou o contrato para ajudar a filha.

XXI. Posto isto, a executada/fiadora/recorrida só deverá responder por tal dívida, apenas e tão-só, quando todo o património dos executados/arrendatários se mostrar insuficiente para saldar a dívida exequenda, inclusive a penhora dos ordenados dos executados/arrendatários e só depois ser a executada/fiadora responsabilizada, subsidiariamente.

XXII. Assim, em bom rigor, e atendendo ao todo supra exposto, a executada/fiadora só teve conhecimento da falta de pagamento das rendas aquando da notificação da execução, pois sempre pensou que os executados/arrendatários tivessem procedido ao pagamento de todas as rendas.

XXIII. Saliente-se também que, os executados/arrendatários libertaram o locado, tendo o mesmo sido entregue em 21 de Julho de 2017.

XXIV. Não se entende portanto, como pode a exequente só agora vir, judicialmente, a 29 de Setembro de 2018 interpor uma acção executiva?

XXV. Com o devido respeito, o exequente, ora recorrente, deveria ter interposto logo a acção executiva aquando do incumprimento contratual (falta de pagamento das rendas) e aquando da não entrega do locado, precisamente, deveria ter interposto o requerimento executivo a partir de Maio de 2016, e não o fez, certamente para peticionar a indemnização (o valor das rendas até entrega do locado) e aumentar os juros moratórios – o que não faz qualquer sentido este espaço temporal para interpor a competente acção.

Por tudo o exposto, e sem necessidade de mais amplas considerações, deverá a presente apelação ser julgada improcedente, por não provada, e, consequentemente, confirmar a decisão proferida pelo tribunal a quo com todos efeitos legais, justamente porque não violou quaisquer preceitos legais, "maxime" os mencionados pelo recorrente.

P.D.»

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            Cumprida a formalidade dos vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

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            2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela Exequente e ora Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4, 636º, nº2 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:

            - erro de decisão quanto a ter-se indeferido [parcialmente] o requerimento executivo na parte em que peticiona o pagamento coercivo, com base em título formado de acordo com o art. 14º-A, do NRAU, de 9.900,00 euros, a título de indemnização [por se entender que, nessa parte, o título não se mostrava revestido de força executiva].

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3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO: os pressupostos de facto a ter em conta para a pertinente decisão são os que essencialmente decorrem do relatório que antecede.

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4 – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Questão do erro de decisão quanto a ter-se indeferido [parcialmente] o requerimento executivo na parte em que peticiona o pagamento coercivo, com base em título formado de acordo com o art. 14º-A, do NRAU, de 9.900,00 euros, a título de indemnização [por se entender que, nessa parte, o título não se mostrava revestido de força executiva]:

Em nosso entender – e releve-se o juízo antecipatório! – assiste razão à Exequente e ora Recorrente, por tal decorrer das melhores regras sobre a interpretação jurídica face ao circunstancialismo em causa nos presentes autos.

Senão vejamos, e começando precisamente por perscrutar o regime legal invocado, que é o efetivamente aplicável.

O art.14º-A do NRAU sob a epígrafe “Título para pagamento de rendas, encargos ou despesas” dispõe:

«O contrato de arrendamento, quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente às rendas, aos encargos ou às despesas que corram por conta do arrendatário».

Por sua vez, dispõe-se assim no art. 1045º do C.Civil, com a epígrafe de “Indemnização pelo atraso na restituição da coisa”:

«1. Se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, excepto se houver fundamento para consignar em depósito a coisa devida.

 2. Logo, porém, que o locatário se constitua em mora, a indemnização é elevada ao dobro.»

Importa ainda ter presente que, nos termos do disposto no art. 703º, al. d) do n.C.P.Civil, «à execução (…) podem servir de base (…) os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva».

Ora se assim é, será que in casu se podia concluir que estava formado título executivo quanto ao reclamado montante de “indemnização” ex vi do art. 1045º, nos 1 e 2 do C.Civil?

Cremos bem que sim, pelo conjunto de razões que se vai passar a expor.

Consabidamente, o título executivo a que se reporta o art. 14º-A do NRAU tem natureza complexa, sendo integrado pelo contrato de arrendamento e pela comunicação ao devedor (arrendatário ou fiador).

Sendo certo que é título executivo especial, complexo, porque apenas existe da conjugação dos documentos aí previstos, não valendo isoladamente nem o contrato de arrendamento nem a dita comunicação.

Mas qual o âmbito sobre o qual se forma o título executivo?

Cremos que a resposta é de meridiana clareza, em função do conteúdo material do título executivo apresentado, sem prejuízo do teor literal constante do já anteriormente citado art. 14º-A do NRAU, mais concretamente, que o título executivo [execução para pagamento de quantia certa] é o «correspondente às rendas, aos encargos ou às despesas» (sublinhado nosso).

Pois que se impõe concluir que a “indemnização” ex vi do art. 1045º, nos 1 e 2 do C.Civil corresponde ou integra a categoria das “rendas” em causa.

Temos presente que a interpretação jurídica tem por objecto descobrir, de entre os sentidos possíveis da lei, o seu sentido prevalente ou decisivo.

A apreensão literal do texto, ponto de partida de toda a interpretação, é já interpretação, embora incompleta, pois será sempre necessária uma «tarefa de interligação e valoração, que excede o domínio literal».[2]

Nesta tarefa de interligação e valoração que acompanha a apreensão do sentido literal, intervêm elementos lógicos, apontando a doutrina elementos de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica.[3]

Ora, em matéria de interpretação das leis, o artigo 9º do Código Civil consagra os princípios a que deve obedecer o intérprete ao empreender essa tarefa, começando por estabelecer que «[a] interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» (nº1); o enunciado linguístico da lei é, assim, o ponto de partida de toda a interpretação, mas exerce também a função de um limite, já que não pode «ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» (nº2); além disso, «[n]a fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (nº3).

Dito isto, importa referir que na nossa jurisprudência não tem sido pacífico o entendimento sobre a questão em apreciação, pois que já tem sido entendido que o título abrange as rendas vincendas mas não a indemnização devida, reportando-se o citado artigo 14º-A do NRAU, apenas às rendas e encargos.[4]

Não é esse, contudo, o nosso entendimento.

Isto porque entendemos que a expressão “renda” foi empregue no referenciado art. 14º-A do NRAU com sentido que abrange a indemnização prevista no art. 1045º, nos 1 e 2 do C.Civil, na medida em que o desiderato legal que faculta a cobrança executiva de verdadeiras “rendas” ao abrigo desse normativo é precisamente idêntico ao desiderato legal que justifica a cobrança de indemnizações que são sucedâneo de verdadeiras rendas, rectius, trata-se de uma “renda em dobro”, devida a título de indemnização, mas que nem por isso deixa de corresponder a uma “renda” e a dever ser considerada enquanto tal.

Foi por ser perfilhada uma linha de interpretação semelhante, s.m.j., que já foi sustentado que «Com o NRAU quis-se alargar a eficácia executiva conferida a actos promovidos pelos senhorios, precisamente para evitar o recurso a acções declarativas, sendo contrário à evidente intenção legal de desjudicialização dos litígios e cobranças inerentes a assuntos de arrendamento apenas conferir título executivo para cobrança de verdadeiras rendas, obrigando o senhorio a instaurar acção declarativa como passo necessário – possivelmente instrumental de segunda execução – para cobrar aquelas indemnizações, as quais não passam de sucedâneo – legal e económico – de verdadeiras rendas.»[5]

O que tudo serve para dizer que não temos dúvidas de que o título executivo ajuizado comportava a realização coativa da “indemnização” ex vi do art. 1045º, nos 1 e 2 do C.Civil, interpretação esta que encontra no texto da norma aplicável o mínimo de correspondência verbal.

De referir que, como já se viu, o art. 14º-A do NRAU é claro na afirmação de que constitui título executivo para a execução para pagamento de rendas, o contrato de arrendamento quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, sendo certo que, in casu, constava da comunicação feita [aos arrendatários e fiadora] que seriam peticionados valores respeitantes a rendas vincendas e a indemnização, donde, estão tais valores abrangidos pelo título executivo, contendo este todos os dados para o cálculo aritmético dos montantes devidos.

Logo, o título executivo dos autos conferia à Exequente suporte para a realização coativa do valor inerente às rendas “em dobro”, rectius, “indemnização” pela mora na restituição do locado, a que se refere o art. 1045º, nos 1 e 2 do C.Civil, a par das “rendas” singulares igualmente em dívida.[6]

Procede, assim, a argumentação neste sentido sustentada pela Exequente e ora recorrente, pois que o normativo aplicável, na sua interpretação dogmática, consente e permite a interpretação pretendida.

Finalmente, tendo em conta o vindo de decidir – que se traduz na procedência do recurso – nem sequer importa aquilatar sobre o constante das contra-alegações da co-executada, traduzido na objecção de a mesma ser “fiadora”, donde não lhe ser extensível/aplicável o título exequendo atenta a acessoriedade da obrigação desta, na medida em que uma tal apreciação só seria jurídica e processualmente devida se uma tal questão tivesse sido formulada na veste de recurso subordinado ou, pelo menos, na veste de ampliação do recurso, sendo que nada disso teve lugar…

Ainda assim, sempre se diga que se nos afigura como claramente prevalecente o entendimento jurisprudencial no sentido de que estando ambos vinculados pelo contrato de arrendamento e constando efetuada a comunicação ao fiador nos mesmos termos que a efetuada ao arrendatário, nenhuma razão existe para excluir o fiador do título executivo em causa a que alude o citado art. 14º-A do NRAU.[7]

Nestes termos, e sem necessidade de maiores considerações, procede inapelavelmente o recurso, importando revogar a decisão recorrida e substituí-la por outra que determina o prosseguimento dos autos pelo valor total indicado à execução.

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5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – O título executivo a que se reporta o art. 14º-A do NRAU tem natureza complexa, sendo integrado pelo contrato de arrendamento e pela comunicação ao devedor (arrendatário ou fiador).

II – O título executivo do dito art. 14º-A do NRAU confere ao exequente suporte para a realização coativa do valor inerente às rendas “em dobro”, rectius, “indemnização” pela mora na restituição do locado, a que se refere o art. 1045º, nos 1 e 2 do C.Civil, a par das “rendas” singulares igualmente em dívida.

III – Não obstante, tem de constar da comunicação feita [ao arrendatário e a eventual fiador] que serão peticionados valores respeitantes a rendas vincendas e a indemnização, em ordem a que tais valores estejam abrangidos pelo título executivo, contendo este todos os dados para o cálculo aritmético dos montantes devidos.

                                                                       *

6 – DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se, a final, na procedência do recurso, revogar a decisão recorrida e substituí-la por outra que determina o prosseguimento dos autos pelo valor total indicado à execução.

Custas do presente recurso a cargo da Executada/recorrida.

                                                                                   Coimbra, 4 de Maio de 2019

                                                 Luís Filipe Cravo ( Relator )

                                                  Fernando Monteiro

                                                   António Carvalho Martins


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carvalho Martins

[2] Cfr. JOSÉ OLIVEIRA ASCENSÃO, in “O Direito, Introdução e Teoria Geral”, 11.ª edição, revista, Livª Almedina, 2001, a págs. 392.
[3] Sobre este tema, cfr. KARL LARENZ, in “Metodologia da Ciência do Direito”, 3.ª edição, tradução, a págs. 439-489; BAPTISTA MACHADO, in “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, 12.ª reimpressão, Coimbra, 2000, a págs. 175-192; FRANCESCO FERRARA, in “Interpretação e Aplicação das Leis”, tradução de MANUEL ANDRADE, 3.ª edição, 1978, a págs. 138 e segs.
[4] Assim, inter alia, o acórdão do T. Rel. do Porto de 18.10.2011, proferido no proc. nº 8436/09.5TBVNG-A.P1, acessível em www.dgsi.pt/jtrp, embora tendo como referência o art. 15º, nº2 do NRAU, que era a norma aplicável na anterior redacção desse diploma, mas com preceituação perfeitamente equiparada.
[5] Assim no acórdão do T. Rel. do Porto de 22.03.2012, proferido no proc. nº 5644/11.2TBMAI-A.P1, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jtrp, e relativamente ao qual se faz a mesma ressalva a que se aludiu na parte final da nota antecedente.
[6] Neste sentido, o acórdão do T. Rel. de Lisboa de 18.01.2018, proferido no proc. nº 10087-16.9T8LRS-B.L1-6, acessível em www.dgsi.pt/jtrl, sendo de referir que este aresto foi citado – paradoxalmente – na própria decisão recorrida, ainda que a propósito do aspeto da extensão/aplicabilidade do título executivo à fiadora (de que se cuidará na sequência).
[7] Assim também no acórdão referenciado na nota antecedente, no qual, aliás, se cita vasta jurisprudência desse mesmo sentido, o que tudo para este efeito aqui se dá por reproduzido.