Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
90/13.6GBGVA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: RECURSO DO DEMANDANTE
CASO JULGADO DA PARTE CRIMINAL
Data do Acordão: 02/24/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (INSTÂNCIA LOCAL DE GOUVEIA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 71.º, 400.º E 402.º, DO CPP; ART. 129.º DO CP
Sumário: I - A prática de um crime, para além de responsabilidade penal, pode também dar origem a responsabilidade civil, isto é, dar origem a uma indemnização de perdas e danos de natureza exclusivamente civil.

II - A interdependência das acções penal e civil tem o significado de que, na primeira, o que está em causa, o que constitui o seu objecto, é o conhecimento dos factos imputados, definidores do ilícito criminal, enquanto constitui atributo próprio da segunda o conhecimento dos factos que, fundados naqueles outros, definem os danos a reparar [os danos e o nexo de causalidade entre o facto – o crime – e estes].

III - O trânsito em julgado da decisão penal constante da sentença recorrida – que determinou a absolvição do arguido da prática do imputado crime de furto – determina a não verificação dos pressupostos da responsabilidade civil, facto, ilicitude e imputação subjectiva do facto ao agente [o facto típico, ilícito e culposo em que se traduz o crime] pelo que, não se tratando, manifestamente, de um caso de responsabilidade objectiva, é inevitável a improcedência do recurso relativo à matéria civil.

Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

            No Tribunal Judicial da comarca da Guarda – Gouveia – Instância Local – Secção de Competência Genérica – J1, mediante despacho de pronúncia, foi submetido a julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, o arguido A... , com os demais sinais nos autos, a quem era imputada a prática, em autoria material, de um crime de furto, p. e p. pelo art. 203º, nº 1 do C. Penal.

            O demandante civil B... deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, com vista à sua condenação no pagamento da quantia de € 6.000, por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos.

            Por sentença de 11 de Junho de 2015, foi o arguido absolvido da prática do imputado crime de furto e do pedido de indemnização civil contra si deduzido.


*

            Inconformado com a decisão, recorreu o demandante civil B... , formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

                1. O ora Recorrente, não se conforma de todo, com o resultado e fundamentos da M. D. Sentença que veio a absolver o arguido;

2. O ora Recorrente, em sede de queixa / inquérito, instrução, debate instrutório, acusação e julgamento, carreou para o processo, numerosa documentação que atesta a propriedade e legítimo uso e seu usufruto há largos anos, da área de terreno objecto dos presentes autos, que lhe adveio à sua esfera jurídica, por partilha hereditária ocorrida em 28 de Outubro de 2008.

3. Antes da sua propriedade e do seu uso e usufruto, já a referida área era propriedade e usufruída pelo falecido pai do ora Recorrente, sendo que tal falecimento ocorreu em 11 de Janeiro de 2005.

4. O ora arguido, – que é tio do ora Recorrente – mandou cortar de uma área de aproximadamente 900 m2 – novecentos metros quadrados, propriedade do ora Recorrente, sita no lugar dos Cabritos, em Melo, concelho de Gouveia, numerosas árvores, especialmente eucaliptos, pinheiros e castanheiros, com idades já avançadas e de elevado porte;

5. O ora Arguido alegou ter recebido do madeireiro, F... , por tal madeira, a quantia líquida de € 1.250,00 – mil duzentos e cinquenta euros.

6. O ora Recorrente, entregou no presente processo nomeadamente, certidão de teor da Conservatória do Registo Predial, Caderneta Predial Rústica e mapas topográficos, com a delimitação da área e extremas do perímetro do imóvel sua propriedade.

7. O ora Arguido, não entregou nos autos, qualquer documento que atestasse a posse, mera detenção e/ou propriedade de todo e qualquer terreno no local dos Cabritos, em Melo, tendo apenas entregue, um "rascunho" produzido pelo seu punho.

8. Em sede de debate instrutório, o MP deduziu acusação pública pelo crime de furto.

9. Em sede de debate instrutório, o I. Juiz de Instrução proferiu igualmente despacho de pronúncia.

10. Ao longo da M. D. Sentença, que ora se põe em crise, o Mmo. Juiz a quo, vem a referir por diversas ocasiões o termo "enclave", termo utilizado pelo próprio ora Recorrente, no seu depoimento em sede de audiência de discussão e julgamento e que se refere à parte de sua propriedade que foi objecto do corte e do consequente furto, por parte do ora Arguido / Recorrido.

11. Ora salvo o devido e merecido respeito – que aliás é muito – andou mal o Mmo. Juiz a quo, quando pretende colar o termo "enclave" à ideia de qualquer dúvida sobre a sua propriedade e/ou posse, por parte do ora Recorrente.

12. Em momento algum processual, são suscitadas dúvidas sobre a propriedade e/ou posse do dito "enclave" por parte do ora Recorrente.

13. É o Arguido e a sua filha, C... , os únicos que referem que tal terreno foi de seu uso e posse, mas que não podem muito bem determinar onde começa e acaba e, que área abrange, sendo que para além da sua palavra, não apresentam todo e qualquer documento.

14. Saliente-se que a filha do Arguido, na qualidade de testemunha, faltou à verdade perante o Mmo. Tribunal, facto que levou a I. Magistrada do M.P. a requerer certidão com vista a eventual procedimento penal futuro.

15. Concluída a audiência de discussão e julgamento, a I. Magistrada do M.P., concluiu em alegações pela condenação do Arguido pela prática do crime pelo qual vinha acusado.

16. F... , madeireiro que procedeu ao corte, e que teve de ser conduzido ao M.D. Tribunal sob escolta policial, visto não ter comparecido voluntariamente no local, ainda que devidamente notificado para o efeito, testemunhou que havia sido contratado pelo Arguido para o efeito.

17. Todas as testemunhas apresentadas pelo Arguido, não souberam informar o M.D. Tribunal sobre a titularidade do imóvel, ou dos seus frutos, alegando contudo, que conheciam tanto o ora Recorrente como o ora Arguido;

18. O ora Recorrente para além dos documentos oficiais emitidos pela Conservatória do registo predial e serviço de finanças competente, carreou igualmente para os autos, uma cópia da notificação judicial avulsa, do Tribunal da Comarca de Leiria, em que seu falecido pai, notificava o seu irmão, em princípios dos anos 90, do século passado, ora Arguido / Recorrido nos presentes autos, que a área de terreno sita em Melo, era de sua exclusiva propriedade e usufruto, e que o ora Arguido se deveria abster de realizar actos ofensivos de tal propriedade e posse.

19. De igual forma, por acta de conferência de partilhas datada de 07 de Julho de 1993, do Tribunal Judicial da Comarca de Gouveia, o pai do ora Recorrente, K... e seu irmão, e ora Arguido / Recorrido, acordaram em atribuir o terreno objecto do presente processo ao pai do ora Recorrente.

20. E mais referem, que nessa data, o ora Arguido / Recorrido, não era proprietário e/ou possuidor de todo e qualquer imóvel confinante com o imóvel que era adjudicado a seu irmão.

21. O ora Arguido / Recorrido, não logrou provar – nomeadamente documentalmente – toda e qualquer propriedade e/ou usufruto / posse, no local de Melo, fosse ou não confinante com a propriedade legitimamente registada a favor do ora Recorrente.

22. O ora Arguido / Recorrido, em 26 de Março do presente ano de 2015, junto do Serviço de Finanças de Gouveia, requereu a inscrição a seu favor de 11.212,30 m2, ou seja mais de um hectare de terreno rústico, que segundo a sua intenção, incluirá os 900 m2, da área de corte realizada.

23. Vem assim tentar legitimar a posteriori, a sua conduta, mais de dois anos volvidos sobre os factos do crime perpetrado, e mais de 25 anos volvidos sobre ter sido notificado judicialmente para se abster de factos que ofendessem a legítima propriedade e/ou posse do imóvel, e de, em sede de conferência de partilhas judiciais, ter atestado perante Juiz de Direito que não tinha imóvel no local/zona de Melo.

24. Tomando conhecimento de tal facto, o ora Recorrente de imediato impugnou tal inscrição.

25. A M.D. Decisão ora recorrida e ora posta em crise, inverte-se o ónus da prova que prevê, que a posse se presume a favor do seu legítimo proprietário.

26. O ora Arguido / Recorrido, com a presente inscrição em Março de 2015, é ele mesmo que atesta e prova, que não tinha – nem tem – todo e qualquer título relativamente ao referido terreno.

27. Se dúvidas houvessem quanto à titularidade do referido "enclave", a testemunha que melhor afere tal situação, G... , engenheira agrónoma responsável pela gestão florestal das propriedades do ora Recorrente, em Melo, referiu que por diversas ocasiões, desde 2008, data em que foram contratados os serviços da URZE Associação Florestal da Encosta da Serra da Estrela, sempre cuidou de toda a propriedade dos Cabritos e que quanto ao local havia referido ao ora Recorrente, a necessidade de desmatação sistemática, para desenvolvimento progressivo de algumas árvores em detrimento de outras de menor porte.

28. Nestes termos não se compreende, como foi possível concluir na M.D. Sentença, ora Recorrida, em considerar como não provado que:

"Com relevo para o boa decisão da causa, resultaram os seguintes factos não provados:

1. O descrito em H. e I. seja da propriedade de B... ;

2. O arguido ao vender a madeira, eucaliptos e pinheiros, sabia que esta não lhe pertencia e que actuou com o objectivo ilegítimo de se apropriar de algo que não era seu e que sabia não o ser, pois sabe que o terreno/propriedade não lhe pertencia e que estava a efectuar tal, sem autorização e em prejuízo e contra a vontade do legítimo proprietário;

3. No descrito em K., o arguido bem sabendo que os mesmos lhe não pertenciam;

4. O arguido bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei e ainda assim não se inibiu de levar a cabo os seus intentos;

5. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente;

6. O valor recebido pelo demandado no montante líquido de € 1.250,00 é reduzido face aos valores praticados e correntes nesta prática;

7. O valor mínimo adequado e corrente é de € 2.500,00, considerando o volume e a área arbórea recolhida;

8. A reposição do terreno importará um valor mínimo de € 2.000,00;

9. Só daqui a 15 anos o terreno poderá voltar a dar rendimento;

10. A dimensão do eucaliptal é de 1.200,00 m2;

11. Foram cortados cem eucaliptos e 10 pinheiros;

12. No descrito em M. tenha sido em quatro ocasiões, o que importou custos e encargos, num valor de € 1.000,00;

13. As partilhas efectuadas entre o arguido e o pai do demandante incluem o terreno onde se procedeu ao corte;

14. O arguido já vendera madeira do mesmo local a um outro madeireiro de Melo, Acácio Pita, já falecido, sem que nunca tivesse tido qualquer problema." sic.

29. De facto, a referida matéria dada como não provada é totalmente contrária aos depoimentos realizados em sede de audiência de discussão e julgamento, se não, vejamos:

a) Para além do referido pelo Arguido, que não soube em momento algum localizar exactamente o local do corte, qualquer outra testemunha conseguiu alegar que tal área, era ou não propriedade e/ou posse do ora Recorrente;

b) A testemunha, G... , referiu de forma explícita a localização do terreno e que havia intervindo no mesmo desde 2008;

c) Pelo menos desde a data da Notificação Judicial Avulsa e da Partilha Hereditária, ou seja desde os princípios dos anos 90 do século passado, ou seja há mais de 20 anos, que o ora Arguido sabia que não podia intervir naquele terreno;

d) Pelo que de forma livre, deliberada e com convicção o ora Arguido locupletou-se de árvores que bem sabia não serem de sua propriedade;

e) Os valores aferidos e indicados, foram os únicos referidos por elemento idóneo ao processo a testemunha G... , engenheira agrónoma da URZE;

f) O mesmo sucede quanto ao período temporal que decorre até nova capacidade produtiva e de rentabilidade do terreno;

g) Ficou de igual modo provado, que o ora Recorrente teve de deslocar-se ao local do corte em diversas ocasiões;

h) Por seu lado, as partilhas entre o pai do ora Recorrente e o Arguido, incluem o terreno do corte, doutro modo, não estaria inscrito na partilha a ausência de bens confinantes, e maxime, o facto de só em Março de 201S, há pouco mais de 2 meses, o ora Arguido ter ido à pressa inscrever uma parcela de terreno no referido local dos Cabritos, em Melo.

30. Afigura-se totalmente infundado que se conclua que: "Em primeiro lugar, pelo facto da total ausência de identificação matricial e predial do prédio ou da parte onde ocorreu o corte. Em segundo lugar, pela total ausência da identificação dos seus limites e confrontações e, nessa sequência, do local onde e de onde ocorreu a subtracção. Realidades não descritas, nem imputadas na acusação pública, nem decisão instrutório, nem no pedido de indemnização civil." sic., considerando que nunca em momento algum processual, se impugnou a Certidão de teor da Conservatória do Registo Predial e/ou a Caderneta Predial Rústica, juntas aos autos pelo ora Recorrente.

31. Apenas o Arguido e a sua filha, afiançam tal tese.

32. Mas na sua defesa nunca impugnaram tais documentos oficiais.

33. Suscita-se assim a legítima dúvida:

a) Para quê registar um imóvel, se alguém por mera alegação verbal, pode afastar a presunção de propriedade que o registo confere?; ou,

b) Para quê, declarar junto da Autoridade Tributária um imóvel, e cumprir os pagamentos inerentes, se todo e qualquer indivíduo, pode livremente levantar e locupletar-se com os rendimentos, indo a todo o tempo, e nomeadamente a meio de um processo judicial inscrever o dito terreno em seu nome, ainda que alegue que sempre foi seu?;

c) Considerando a avançada idade do Arguido, foi só em Março de 2015, que se lembrou de tal facto?;

d) Porque não o fez quando foi notificado pelo seu irmão para não mais realizar actos ofensivos da referida propriedade?;

e) E porque não deixou esclarecida tal situação a quando da escritura pública de partilha hereditária? ou;

f) A quando da M. D. Sentença de acordo de partilhas judiciais, que correram termos no Tribunal Judicial da Comarca de Gouveia?;

g) E porque é que o Arguido que se mostrou cioso dos seus bens, só agora realizou tal inscrição e, sabendo dos legítimos interesses do ora Recorrente, não esclareceu, com o mesmo tal situação?

34. Os factos e documentos apresentados falam por si e são elemento mais que suficiente – na N. modesta opinião – para legitimarem a posição defendida pelo ora Recorrente.

35. No decurso do processo subjudice, em diversos momentos se fez apelo à resolução extrajudicial do mesmo, nomeadamente pela via cível, contudo tal não foi alcançado e salvado o devido respeito – que aliás é muito – o acto do ora Arguido é premeditado e consciente.

36. O Arguido sabia que tais árvores não lhe pertenciam, pelo que locupletou-se com os valores recebidos.

37. Tal intervenção causou danos no terreno do ora Recorrente, que importaram em custos e que só por tal situação merecia a condenação do ora Arguido.

38. Se alguém em sede de audiência de discussão e julgamento foi isento, foi a Eng.ª G... que referiu com isenção os valores que compõem o conteúdo peticionado pelo ora Recorrente em sede de pedido de indemnização cível.

39. Os € 6.000,00 – seis mil euros peticionados e devidamente fundamentados, por parte do ora Recorrente, incluíam as diversas parcelas, quer quanto ao valor da madeira furtada, danos causados directamente pela intervenção de corte no local, lucros cessantes e pedido indemnizatório.

40. O ora Arguido deveria ter sido condenado, tanto na matéria criminal como na matéria cível.

Nestes termos e nos melhores de Direito aplicável, deverão Vªs. Excªs., dar provimento ao presente Recurso, e, em consequência revogar a M. D. Sentença, concluindo pela condenação do ora Arguido pela prática do crime de furto simples e em consequência pela condenação do mesmo, no pedido de indemnização cível deduzido pelo ora Recorrente, sendo o mesmo condenado a pagar a quantia líquida de € 6.000,00 – seis mil euros.

Assim farão Vªs. Excªs. a costumada Justiça.


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            Por despacho de 15 de Setembro de 2015, o recurso não foi admitido quanto à matéria penal, por ilegitimidade do recorrente, e foi admitido da parte da sentença relativa à indemnização civil.

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            Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

                1. Dado que o recurso é restrito à matéria do pedido cível, carece o Ministério Público de legitimidade para responder por não ser sujeito processual afectado pelo recurso.

                2. Embora, concordando na totalidade com o despacho de M, Juiz a quo que não admitiu o recurso quanto à parte criminal, uma vez que o recorrente não assistente, faltando-lhe legitimidade, sempre se dirá que, ao recorrente é exigida a explanação dos concretos pontos de facto que, no seu entendimento, foram incorrectamente decididos, pelo que não basta que manifeste a sua discordância, exigindo-se que apresente as razões da mesma e, bem assim, as provas que permitem uma decisão alternativa.

3. O recurso da matéria de facto não visa a reapreciação de toda a prova produzida nos autos, como se de um segundo julgamento se tratasse, mas unicamente a detecção e correcção de erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto que o recorrente deverá apontar claramente.

4. Tal ónus de impugnação deve ser observado para cada um dos factos impugnados, o que equivale a dizer que relativamente a cada um deles têm de ser citadas as provas concretas que impõem decisão inversa e em que sentido deveria ter sido essa decisão.

5. No presente recurso, a impugnação da matéria de facto não cumpre as prescrições legalmente estabelecidas, porquanto o recorrente pretende tão-somente atacar a forma como o tribunal formou livremente a sua convicção, limitando-se a transcrever a contestação por si apresentada e, bem assim, a sentença que ora impugna, razão pela qual não nos pronunciaremos quanto à matéria de facto.

6. Nas conclusões formuladas o recorrente não faz qualquer referência à norma ou normas jurídicas que o tribunal a quo violou, no seu entender, na decisão proferida.

7. Na verdade, nas suas conclusões, que não passam de uma transcrição fiel do alegado, o recorrente apenas se contém juízos de facto, sem criticar esta como insuficiente ou resultante de erro notório na apreciação da prova, apenas propondo uma diferente interpretação da matéria de facto dada como provada.

8. De facto, o recorrente faz a transcrição dos factos dados como provados na douta sentença em crise e refere que a mesma é contrária aos depoimentos realizados, limitando-se a fazer um "apanhado" do que foi dito por cada uma das testemunhas e que a seu ver, contrariam a decisão. Todavia, não explica de que modo, em que concretos pontos, não impugna sequer, a nosso ver a douta decisão recorrida apenas concluindo pela condenação do arguido pela prática do crime de furto e em consequência a condenação no pedido cível formulado pelo ora recorrente.

9. Assim, deve o presente recurso ser liminarmente rejeitado, porquanto não contém, nas suas conclusões, a(s) norma(s) jurídica(s) violada(s).

10. Caso assim, não se entenda, deverá o recorrente ser convidado ao aperfeiçoamento das suas conclusões, sendo que a sua apreciação apenas se deverá cingir ao pedido cível formulado.

Termos em que não deve ser dado provimento ao presente recurso, mantendo-se na íntegra a douta sentença recorrida.


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O Exmo. Procurador-Geral Adjunto apôs o seu visto.

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Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

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            II. FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

- A incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto;

- A condenação do arguido pela prática de um crime de furto;

- A condenação do arguido no pedido de indemnização civil contra si formulado.


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            Para a resolução destas questões importa ter presente o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim:

            A) Nela foram considerados provados os seguintes factos:

            “ (…).

                A. B... possui uma propriedade no local de Cabritos, Melo, em Gouveia, com cerca de 4,4 hectares, cujas confrontações e localização exactas não se apuraram;

B. F... é sócio gerente da empresa denominada W..., Lda. e negoceia em compra de madeira;

C. Em data não concretamente apurada, mas situada no período compreendido entre os dias 03.04.2013 e 08.06.2013, o arguido contactou o F... para saber se estava interessado em comprar um lote de eucaliptos e pinheiros de uma propriedade sita no local de Cabritos, Melo, em Gouveia;

D. O arguido disse ao F... que a propriedade era de sua pertença;

E. Para o efeito, e em data não concretamente apurada, mas situada no período compreendido entre os dias 03.04.2013 e 08.06.2013, o F... deslocou-se à propriedade em causa, para ver se estava interessado, e como interessado, concretizaram o acordo da venda dos pinheiros e eucaliptos;

F. O arguido assinou e entregou ao F... uma declaração, datada de 03.04.2013, onde declarou que vende à empresa denominada W... , Lda. um lote de eucaliptos e pinheiros sito na zona dos Cabritos, na Freguesia de Melo, Gouveia;

G. O F... , nessa altura, efectuou logo o pagamento na totalidade e antecipadamente ao corte dos mesmos, o valor de € 1.250,00 (mil duzentos e cinquenta euros);

H. Em data não concretamente apurada, mas situada no período compreendido entre os dias 03.04.2013 e 08.06.2013, o F... procedeu então ao abate e corte da madeira acima mencionada;

I. No dia 08.06.2013, cerca das 16H00 quando B... chegou ao local onde ocorreu corte, em Cabritos, Melo, em Gouveia, verificou que o eucaliptal com cerca de 900 metros quadrados tinha sido cortado;

J. Pelo abate dos eucaliptos foram causados estragos no terreno de propriedade não apurada, bem como, pela passagem das viaturas para o abate e transporte dos referidos eucaliptos;

K. O arguido logrou fazer em seu único e exclusivo proveito, o valor da venda dos mesmos, o que logrou conseguir, e integrou-o na sua esfera patrimonial.

L. Foi deixado no local material de depósito;

M. Por força do acima descrito, o demandante teve de deslocar-se ao referido terreno, de Carnaxide, concelho de Oeiras, onde reside;

[» No que concerne aos antecedentes criminais do arguido, mais se provou que:]

N. Do certificado do registo criminal do arguido não consta a menção à condenação anterior pela prática de ilícitos criminais.

[» No que concerne à situação económica e social do arguido, provou-se ainda que:]

O. O arguido dedica-se ao comércio de mobiliário;

P. O arguido aufere uma reforma de € 270,00;

Q. A mulher do arguido está acamada no Lar da Misericórdia;

R. O arguido despende no apoio à sua mulher € 700,00;

S. O arguido está a liquidar um empréstimo com prestações mensais de € 300,00;

T. O arguido apoia a filha, que vive consigo;

U. O arguido tem um veículo automóvel, da marca Fiat, modelo Uno, com cerca de 20 anos;

V. O arguido fez a admissão ao Liceu.

(…)”.

B) Nela foram considerados não provados os seguintes factos:

“ (…).

1. O descrito em H. e I. seja da propriedade de B... ;

2. O arguido ao vender a madeira, eucaliptos e pinheiros, sabia que esta não lhe pertencia e que actuou com o objectivo ilegítimo de se apropriar de algo que não era seu e que sabia não o ser, pois sabe que o terreno/propriedade não lhe pertencia e que estava a efectuar tal, sem autorização e em prejuízo e contra a vontade do legítimo proprietário;

3. No descrito em K., o arguido bem sabendo que os mesmos lhe não pertenciam;

4. O arguido bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei e ainda assim não se inibiu de levar a cabo os seus intentos;

5. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente;

6. O valor recebido pelo demandado no montante líquido de € 1.250,00 é reduzido face aos valores praticados e correntes nesta prática;

7. O valor mínimo adequado e corrente é de € 2.500,00, considerando o volume e a área arbórea recolhida;

8. A reposição do terreno importará um valor mínimo de € 2.000,00;

9. Só daqui a 15 anos o terreno poderá voltar a dar rendimento;

10. A dimensão do eucaliptal é de 1.200,00 m2;

11. Foram cortados cem eucaliptos e 10 pinheiros;

12. No descrito em M. tenha sido em quatro ocasiões, o que importou custos e encargos, num valor de € 1.000,00;

13. As partilhas efectuadas entre o arguido e o pai do demandante incluem o terreno onde se procedeu ao corte;

14. O arguido já vendera madeira do mesmo local a um outro madeireiro de Melo, Acácio Pita, já falecido, sem que nunca tivesse tido qualquer problema.

(…)”.

C) E dela consta a seguinte motivação de facto:

“ (…).

A Convicção do Tribunal assentou na análise crítica e conjugada de toda a prova produzida e examinada em audiência de discussão e julgamento, filtrada pelas máximas da experiência comum e das regras do direito probatório, aferindo-se do conhecimento de causa e isenção de cada um dos depoimentos prestados, de acordo com o artigo 127.º do Código de Processo Penal. Foram igualmente analisados e ponderados os documentos juntos aos autos.

Esclarecido sobre o direito em prestar declarações ou em não prestar declarações, sem que o silêncio o pudesse desfavorecer, o arguido prestou declarações. Declarações essas que vão de encontro aos factos que se dão como provados, porquanto foram por si aceites e confirmados. Negou, contudo, que tenha subtraído eucaliptos e pinheiros ao seu sobrinho, pois que, segundo alega, fê-lo em terreno seu. As suas declarações são a prova dos factos atinentes à sua situação económica e social.

As declarações do arguido são ponderadas com o testemunho de F... que, em conjunto, atestam a realização do negócio e o período temporal em que os factos aconteceram. Assim também o documento de folhas 174 – declaração de venda. O depoimento de F... foi valorado positivamente, porquanto depôs de forma estruturada e verosímil.

C... , sem prejuízo da apreciação a propósito dos limites e confrontações do prédio, depôs com conhecimento directo da existência de negociações entre o seu pai e madeireiro. O telefonema havido na altura do seu aniversário baliza no tempo os factos e a necessidade de proceder a desmate para conseguir o corte – fotos 25 a 34.

D... e E... são testemunhas de factos instrumentais que evidenciam os contactos havidos entre o arguido e a testemunha F... . Depuseram de forma isenta e escorreita, na medida do conhecimento que tinham dos factos.

Resultam, assim, demonstrados os factos provados em B. a H. e K.

Nesta medida, as declarações do demandante B... revelaram-se enquadradas no resultado probatório acima mencionado e que sustentam os factos dados como provados. Mais se prova o facto I. O facto M. resulta igualmente das declarações do demandante, das regras da experiência, assim como da demais prova testemunhal que refere as suas vindas a Gouveia, no contexto dos factos em discussão, mas em número, modo e custos não apurados (dando-se não provado o facto 12.).

Os factos J. e L. resultam da análise das fotos 25 a 34, das declarações do demandante e da testemunha G... que, sem prejuízo da apreciação abaixo exposta, nesta questão revelou conhecimento directo e objectivo.

Diferente se conclui quanto aos factos não provados.

O elenco dos factos não provados, assim como a motivação que se expende partem da forma como a alegada propriedade é apresentada em juízo pelo demandante, pelo Ministério Público e pelo Tribunal de Instrução Criminal, isto é, “propriedade no local de Cabritos, Melo, em Gouveia, com cerca de 4,4 hectares”.

A formulação apresentada é, quanto a nós e salvo melhor opinião, insuficiente para demonstrar que algo pertença do demandante fora subtraído contra a sua vontade pelo arguido, com conhecimento e vontade deste, sabendo que praticava uma conduta proibida punida por lei.

Em primeiro lugar, pelo facto da total ausência de identificação matricial e predial do prédio ou da parte onde ocorreu o corte. Em segundo lugar, pela total ausência da identificação dos seus limites e confrontações e, nessa sequência, do local onde e de onde ocorreu a subtracção. Realidades não descritas, nem imputadas na acusação pública, nem decisão instrutória, nem no pedido de indemnização civil.

O que vem de se dizer assume especial importância, pois que é necessário localizar a acção criminosa num determinado espaço físico a fim de aferir se o mesmo foi contra um prédio e um objecto propriedade e património do demandante, ou, do próprio arguido, ou até, de terceiro, não queixoso. Por consequência, assume especial importância para apurar a autoria dos factos, também na vertente subjectiva.

Além da prova testemunhal produzida, a que nos referiremos de seguida, socorre-se o Tribunal dos documentos juntos aos autos e que descrevem a suposta propriedade alegada na acusação pública e no despacho de pronúncia.

Na certidão emitida pelo Serviço de Finanças de Gouveia, em 10/07/2006, consta, e para o que o caso importa, em anexo uma cópia das antigas cadernetas prediais, referente ao prédio rústico, localizado em Cabritos, inscrito na matriz sob o número 17, freguesia de Melo, concelho de Gouveia – folhas 18 a 20.

Nesse documento consta a área de 4,4670 ha, a confrontar a norte e a sul com caminho, a nascente com (...) e a poente com (...) .

A inscrição matricial acabada de referir é a mesma que consta da certidão de teor de folhas 24, impressa em 27/07/2010 – agora com o B... a figurar como titular.

De acordo com a informação predial, datada de 27/07/2010, o prédio rústico em apreço, está descrito na Conservatória do Registo Predial de Gouveia, sob o n.º 126, freguesia de Melo, com a área total e descoberta de 44670 m2, a confrontar a norte e a sul com caminho, a nascente com (...) e a poente com (...) , com inscrição matricial, sob o n.º 17, e com a propriedade registada a favor de B... , desde 28/11/2008 – folhas 22 a 23.

O arguido e o demandante estão em sintonia em dois aspectos: o prédio rústico acima mencionado é pertença do demandante e naquela localização de cabritos o pai do arguido e avô do demandante foi comprando bocados de terreno, tendo comprado terreno para lá do caminho, onde ocorreram os factos em discussão.

A divergência entre ambos reside no facto de o arguido alegar que o local/terreno, onde os factos ocorreram, não ser propriedade do demandante, pois que aquela parte de terreno, a que atribui cerca de 1 ha foi-lhe doada pelo seu pai (avô do demandante) e acertado por acordo com o seu irmão (pai do demandante) no momento das partilhas, tudo verbalmente. Alega, assim, o arguido que a propriedade do seu sobrinho (o demandante) termina no caminho, portanto, antes do local onde ocorreu o corte das árvores.

Por sua vez, o demandante alega que a propriedade vai para além do caminho e que abrange aquilo que designou de “enclave”, pois que o seu tio (arguido), em partilhas, não ficou com nenhum prédio em Cabritos, tendo ficado só para o seu pai, entretanto falecido. Mais refere que antigamente era tudo de boca e que as confrontações estão desactualizadas.

Aqui chegados, cumpre concluir que não existe correspondência certa entre o alegado pelo demandante e os documentos juntos aos autos. Com efeito, em momento algum, dos documentos citados se afere que a propriedade vai para além do dito caminho público “secular” e abrange a área desmatada pelo arguido.

Ou, dito, de outro modo, nada demonstra que a área inscrita na matriz sob o número 17 e a descrita no Registo Predial sob o n.º 126 abrange aquele pedaço de terra para além do caminho público.

Perguntado ao demandante, o mesmo não referiu factos que permitam inferir o contrário, tendo alegado falhas na actualização das confrontações e de que o avô fora comprando parcelarmente.

Nem o Ministério Público, nem o demandante fizeram prova da propriedade do dito “enclave” (expressão que usamos sem qualquer conotação, mas apenas para situarmos o discurso nas palavras do demandante e assim tornar perceptível a comunicação). Das duas uma, ou o dito enclave está incluído nos 4,4670 ha, ainda que de forma não suficientemente clara nos documentos, ou o dito enclave está omisso, quer na inscrição matricial, quer no registo predial.

A propriedade demonstra-se por títulos e no caso o único título é a escritura de partilhas feita entre o arguido e o seu irmão (pai do demandante), através do qual a verba 2, tal como acima descrita e identificada, foi adjudicada ao segundo. Inexistindo qualquer salvaguarda sobre a parte do terreno para lá do caminho. Isto é, nem se salvaguardou o arguido de que estariam a partilhar verbalmente aquele “enclave”, nem se salvaguardou o pai do demandante que estariam a partilhar a seu favor também o “enclave” – folhas 171 a 173.

Acresce que não é suficiente para afastar a motivação que se expende o facto de estar consignado na escritura que “nenhum prédio rústico nesta partilha adjudicado a um interessado é contíguo a qualquer outro prédio, nesta mesma partilha”, pois que efectivamente os prédios nunca seriam, à data, contíguos, pois que têm um caminho público a separá-los. Mais se dirá que não existe prova suficiente para formular qualquer juízo de interpretação da declaração negocial constante naquela escritura. Tanto mais, que em todos os documentos escritos o prédio inscrito sob o n.º 17 é sempre mencionado como limitado a norte por caminho – veja-se a própria notificação judicial avulsa.

Ouvido como demandante cível, B... não mencionou a existência de marcos, nem de outra factualidade que permita afirmar com certeza que aquela parte de terra lhe pertence e que diz respeito ao prédio rústico dos documentos juntos aos autos. A referência de que no Serviço de Finanças lhe foi transmitido que era inviável o terreno com as confrontações de folhas 243, a verdade é que tal não foi demonstrado em juízo e não demonstra que a sua propriedade vai para além do caminho. Os documentos de folhas 257 a 259 (impugnação) demonstram a não estabilização das confrontações do espaço em litígio.

G... , Engenheira Florestal, ainda que tenha deposto de forma desprendida, testemunhou com algumas incongruências e de forma conclusiva. O seu testemunho não altera a motivação que antecede.

Por um lado, as plantas de localização que elaborou e que se encontram juntas a folhas 196 e 197 foram elaboradas de acordo (como a própria o afirmou) com as indicações do alegado proprietário, tendo ainda por referência os documentos existentes. Por outro lado, a mesma referiu que inexistem barreiras/limites físicos, apenas referindo o caminho público a norte. Dessa forma, evidencia-se uma incongruência no seu discurso que tem a ver com a menção repetida à existência de um limite a norte, o caminho, e a elaboração do limite da propriedade para lá desse caminho. Essa incongruência resulta naturalmente da fragilidade do seu conhecimento, pois que como a própria referiu, seguiu as instruções do demandante. Estas instruções são coincidentes com as suas declarações em juízo, pelo que a planta reflecte o próprio discurso do demandante em Tribunal e não os documentos juntos aos autos.

Ora, a ser assim, e não tendo sido referidos quaisquer marcos ou outras circunstâncias que evidenciem de forma objectiva a propriedade do dito “enclave” por parte do demandante, imperioso é concluir que não há prova da propriedade como pretende B... .

O facto de o demandante se apresentar como proprietário desde 2008 daquele espaço, altura em que inscreveu na URZE, e no contexto das fragilidades probatórias acima mencionadas, é insuficiente para demonstrar o contrário do que se defende. À data de 2013, data dos factos, tinham decorrido 05 anos, prazo insuficiente para qualquer tipo de concretização da propriedade.

Regista-se igualmente que a planta de localização – folhas 196 e 197 – faz menção a uma área de 3,42 ha e não à área de 4,4670 ha. Não se ignora que as áreas inscritas muitas vezes não correspondem à área real, mas a verdade é que não basta, no contexto em apreço, aceitar com esse argumento e sem mais a divergência apontada que, salvo melhor opinião, não está justificada.

Neste contexto, não se valorizam a planta de localização e o levantamento topográfico, juntos pelo arguido com a contestação de folhas 244 e 245. Pelos argumentos já avançados, pelo facto de as mesmas não estarem assinadas e não terem sido defendidas em juízo.

A notificação judicial avulsa, de folhas 246 a 250, que o demandante juntou aos autos no intuito de demonstrar que o arguido já havia praticado actos contra aquela propriedade, ainda em vida do seu pai (pai do demandante), e que por isso sabia que a propriedade não era dele, não demonstra os factos que se dão como não provados. Isto, por duas ordens de razão. A primeira, porque, como afirmado pelo demandante, não foi na zona em litígio (embora não factualmente alegada), mas noutro ponto qualquer da propriedade que terá havido o litígio de então. A segunda, porque também esta notificação judicial avulsa faz menção, tão só, às confrontações acima mencionadas, sem qualquer especificação de eventual área para lá da confrontação a norte com caminho. Certamente por lapso, a área aí mencionada não é a mesma do registo predial.

C... , no que concerne à propriedade das terras, apresentou um discurso inseguro e confuso, mas sobretudo do que ouviu dizer ao arguido. Não convenceu que tivesse conhecimento directo, motivo pelo qual não foi atendido para aferir dos limites e confrontações das parcelas de terreno.

Em suma, nem o demandante, nem o Ministério Público alegam com rigor, nem exactidão a propriedade, nem a propriedade e local onde ocorreram os factos. Nem tão pouco juntaram títulos para demonstrar essa propriedade, nem que aquele “enclave” integrou a verba n.º 2 da partilha efectuada entre o arguido e o seu irmão.

Impõe-se ao tribunal concluir que o dito “enclave”, quer na sua propriedade, confrontações e áreas, não tem reflexo em nenhum dos documentos juntos aos autos, nem foi demonstrado pela prova testemunhal. Diremos mais. A parte de terreno em apreço não tem, pelo menos neste processo, existência (demonstração certa) matricial, nem predial – isto é, está omisso. Repita-se, não se demonstrou que fosse igualmente parte integrante das partilhas efectuadas entre os irmãos (seja no sentido alegado pelo arguido, seja no sentido alegado pelo demandante).

A ser assim, e não obstante o arguido não tenha apresentado a melhor explicitação, instalou-se a dúvida quanto ao facto de o arguido estar ou não a actuar em terreno alheio e a actuar com conhecimento e vontade de que estava a actuar contra a propriedade e o património do seu sobrinho.

Nessa medida impõe-se dar como não provados os factos 2 a 5 e 13.

É também, neste contexto, que se dá como provado o facto A, com a especificação aí constante, e como não provado o facto descrito em 1.

Em relação aos demais factos dados como não provados (6 a 11) e recuperando a análise do depoimento de G... , somos de considerar que nesta parte o seu depoimento foi conclusivo e não sustentado. A própria testemunha viu-se na necessidade de se defender referindo que carecia de elementos para uma análise rigorosa. As conclusões foram por aproximação e genericamente, sem factos concretos. O Tribunal não retira do seu discurso factos para confirmar o seu raciocínio. Aliás, fosse pedido o contraditório a outro técnico, portanto, uma segunda avaliação, o mesmo não teria por onde proceder à contra avaliação, já que os elementos e valores concretos que levam à conclusão do valor avançado são desconhecidos pelo Tribunal e por qualquer um dos sujeitos processuais.            No contexto das questões que foram colocadas, não assumiu relevância a questão suscitada contra a testemunha C... de ter ocultado ao Tribunal ou não que era Solicitadora de Execução. A testemunha terá exercido as duas actividades e, ainda que de forma confusa, não negou esse facto, apenas o explicitou de acordo com as vicissitudes do processo disciplinar a que esteve sujeita. Os documentos juntos em audiência não são certificados, pelo que não são atendidos, pese embora a mesma não tenha negado o processo disciplinar.

O facto 14 não teve qualquer prova.

            (…)”.


*

            Da incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto

            1. Em jeito de ponto prévio, e como se referiu já, o despacho de 15 de Setembro de 2015 apenas admitiu o recurso na parte da sentença relativa à indemnização civil, não tendo admitido o recurso na parte relativa à matéria penal. A decisão proferida ficou a dever-se à circunstância de o recorrente, invocando embora a qualidade de queixoso e assistente no requerimento de interposição do recurso (cfr. fls. 304], nunca ter requerido a constituição como assistente e, consequentemente, nunca lhe ter sido reconhecida nos autos tal qualidade processual. Efectivamente, o recorrente tem apenas a qualidade processual de parte civil, mais especificamente, de demandante civil.

            O Ministério Público não recorreu da sentença absolutória proferida nos autos, sendo certo que tinha legitimidade para o fazer (cfr. art. 401, nº 1, a) do C. Processo Penal). Também o assistente, se existisse nos autos, teria, em princípio, legitimidade para recorre da sentença proferida (cfr. arts. 69º, nº 2, c) e 401º, nº 1, b), ambos do C. Processo Penal). Igualmente as partes civis têm legitimidade para recorrer, mas apenas da parte das decisões contra cada uma proferidas (cfr. art. 401º, nº 1, c) do C. Processo Penal).

            É, portanto, correcta a restrição feita no despacho em referência, restrição que o recorrente, aliás, não reclamou. E a decorrente consequência é a do trânsito em julgado da decidida absolvição do arguido pela prática do crime de furto, pela qual foi pronunciado. 

2. Como é sabido, a prática de um crime, para além de responsabilidade penal, pode também dar origem a responsabilidade civil isto é, dar origem a uma indemnização de perdas e danos de natureza exclusivamente civil, estabelecendo, a propósito, o art. 129º do C. Penal, que a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.

Quando numa concreta situação, ao lado da responsabilidade penal se perfila a responsabilidade civil, separados que há muito estão, o processo civil e o processo penal, coloca-se a questão de saber como pode o ofendido/lesado exercer o respectivo direito.

Em tese, são possíveis três soluções: um sistema de independência absoluta, em que o crime e a indemnização civil são conhecidos e decididos no respectivo foro; um sistema de adesão alternativa, onde a jurisdição penal e jurisdição civil, podem conhecer da indemnização civil, cabendo a opção ao lesado e; um sistema de adesão obrigatória, onde a indemnização civil tem que, necessariamente, ser conhecida e decidida no processo penal. 

            O C. Processo Penal vigente – no seguimento do Código de 1929 – consagrou o sistema de adesão obrigatória, dispondo no seu art. 71º, sob a epígrafe «Princípio de adesão»: O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei. O sistema, que comporta, no entanto, algumas excepções (cfr. art. 72º, nº 1 do C. Processo Penal), permite obter ganhos em termos de economia e celeridade processual e em termos de economia de meios, assegurar o prestígio institucional, e contribui ainda para a afirmação do fim retributivo e preventivo da pena e, deste modo, alcançar o fim do processo penal, realçando ainda a realização mais rápida, mais barata e mais eficaz do direito do lesado à indemnização (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Edição 1974, Reimpressão, Coimbra Editora, pág. 562). 

            São pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, o facto, a ilicitude, a culpa, os danos e o nexo de causalidade entre o facto e estes (cfr. art. 483º, nº 1 do C. Civil).

            Nos casos, como nos autos, em que, em processo penal, ao lado da responsabilidade criminal existe a responsabilidade civil, o facto típico, ilícito e culposo em que se traduz o crime praticado, dá corpo aos três primeiros pressupostos da responsabilidade [o facto, ilicitude e culpa]. 

            De tudo isto resulta que a interdependência das acções penal e civil tem o significado de que, na primeira, o que está em causa, o que constitui o seu objecto, é o conhecimento dos factos imputados, definidores do ilícito criminal, enquanto constitui atributo próprio da segunda o conhecimento dos factos que, fundados naqueles outros, definem os danos a reparar [os danos e o nexo de causalidade entre o facto – o crime – e estes]. 

            O nº 3 do art. 400º do C. Processo Penal, ao permitir o prosseguimento da acção civil ‘enxertada’ no processo penal, verificados os requisitos previstos no seu nº, 2, mesmo depois de terminada a acção penal, para além de constitui uma inflexão ao princípio da adesão e de arredar a jurisprudência do Assento nº 1/2002 de 14 de Março (DR, I-A, de 21 de Maio de 2002), veio criar uma dificuldade acrescida. Com efeito, em que medida pode o tribunal ad quem conhecer do recurso em matéria civil quando não seja admissível recurso da matéria penal ou, quando desta não tenha sido interposto por quem tinha legitimidade para o fazer?  

            Dúvidas não subsistem de que, transitada em julgado a decisão penal, ela é, nos termos gerais, insusceptível de modificação. Por isso que entendamos, na esteira do Acórdão do nosso mais Alto Tribunal de 5 de Novembro de 2008 (CJ, STJ, Ano XVI, Tomo III, 2008, pág. 213 e ss.) que o recurso na parte relativa ao pedido de indemnização civil não pode, em caso algum, afectar o caso julgado formado relativamente à responsabilidade criminal do arguido e por isso, a impugnação da matéria de facto que, pela via recursória, pretenda questionar a matéria de facto que suporta aquela responsabilidade, seja no sentido da condenação, seja no sentido da absolvição, não é legalmente admissível. Transitada em julgado a decisão penal, o recurso relativo ao pedido de indemnização civil apenas poderia impugnar a decisão de facto na parte relativa ao conhecimento e decisão dos danos reparáveis.

            Posto isto.

            3. Como vimos, o recorrente, que não é assistente mas apenas parte civil, recorreu, nos termos do art. 402º, nº 1 do C. Processo Penal, de toda a decisão, portanto, da matéria penal e da matéria civil pedindo, a final, a condenação do ora Arguido pela prática do crime de furto simples e em consequência pela condenação do mesmo no pedido de indemnização cível deduzido. Também vimos que o recurso, dada a falta de legitimidade do recorrente quanto à decisão penal, apenas foi admitido quanto à parte da matéria civil.

            Não tendo o Ministério Público recorrido da sentença quanto à decisão penal nela proferida, está verificado o respectivo trânsito em julgado o que vale dizer que, não mais nos autos e por isso, nem pela via do recurso, pode ser questionada aquela decisão, in casu, absolutória. 

            Sucede que o pedido de indemnização civil tem como pressuposto que as árvores vendidas pelo arguido à testemunha F... se encontravam plantadas e foram cortadas em terreno propriedade do recorrente, estando o arguido ciente, ao efectuar o negócio e ao receber o preço acordado, que se apropriava e vendia coisa alheia, sem para tanto estar autorizado, assim causando prejuízo ao dono.

            Não se tendo provado que o terreno onde se encontravam plantadas as árvores vendidas e, consequentemente, que estas, pertencessem ao recorrente [ponto 1 dos factos não provados] e não se tendo provado que o arguido, ao vender as árvores, actuou voluntariamente, com o propósito de se apropriar de coisa alheia, pois sabia que o terreno onde elas se encontravam não era seu, que agia sem autorização e contra a vontade do dono, e que a sua conduta era proibida e punida por lei [pontos 2, 3, 4 e 5 dos factos provados] portanto, não se tendo provado os factos preenchedores do tipo objectivo e subjectivo do crime de furto, e estando transitada, quanto a eles, a sentença recorrida, a imodificabilidade de tais factos torna absolutamente inútil o conhecimento da impugnação da matéria de facto deduzida pelo recorrente quanto à sobrante matéria relativa ao pedido de indemnização civil designadamente, quanto ao valor de mercado das árvores abatidas e vendidas, quanto ao custo da reposição do terreno e quanto ao período em que o mesmo ficará incapaz de produzir rendimento. 

            Em suma, o trânsito em julgado da decisão penal constante da sentença recorrida – que determinou a absolvição do arguido da prática do imputado crime de furto – determina a não verificação dos pressupostos da responsabilidade civil, facto, ilicitude e imputação subjectiva do facto ao agente [o facto típico, ilícito e culposo em que se traduz o crime] pelo que, não se tratando, manifestamente, de um caso de responsabilidade objectiva, é inevitável a improcedência do recurso relativo à matéria civil.  


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            III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.

            Custas pelo recorrente (arts. 523º do C. Processo Penal e 527º, nºs 1 e 2 do C. Processo Civil)



            Coimbra, 24 de Fevereiro de 2016

                (Heitor Vasques Osório – relator)

               (Fernando Chaves - adjunto)