Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
227/01.8TBOBR-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: EXECUTADO
HABILITAÇÃO
HERANÇA INDIVISA ACEITE
FALTA
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
Data do Acordão: 05/24/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE INSTÂNCIA CRIMINAL DE OLIVEIRA DO BAIRRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 6º E 373º DO CPC
Sumário: I – A decisão de habilitação dos sucessores de um Executado, por falecimento deste na pendência da execução, tem como único efeito fazer prosseguir essa execução contra quem – os sucessores que aceitaram a herança – pode ocupar a posição desse Executado.
II – Essa decisão de habilitação, em si mesma considerada, não dispõe, por se tratar de matéria totalmente fora do objecto do incidente de habilitação, sobre que bens respondem pela dívida do Executado ou em que circunstâncias se efectuará a responsabilidade dos herdeiros habilitados por essa dívida.

III – A herança indivisa já aceite (já não jacente) não dispõe de personalidade judiciária (artigo 6º, alínea a) do CPC, a contrario), não podendo ser demandada nem, por identidade de razão, passar a ser demandada, num quadro de substituição processual decorrente de um incidente de habilitação: a substituição decorrente do falecimento da parte opera, nestes casos, pela habilitação dos herdeiros.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


            1. Relativamente a uma acção executiva iniciada em 26/11/2011[1], na qual é Exequente A… e foi Executado B…, foram habilitados[2], por falecimento do Executado, os filhos deste, D… e J… (Habilitados e Apelantes neste recurso).

            Foi essa habilitação requerida pelo Exequente, existindo uma escritura de habilitação dos aqui Habilitados, sendo que estes não deduziram oposição no âmbito dessa tramitação incidental – todas estas informações são colhidas no texto da Sentença apelada (fls. 14/15) e não são colocadas em causa pelos Habilitados/Apelantes na motivação deste recurso.

            1.1. Inconformados com o decidido a respeito da sua intervenção na execução – ocupando a posição processual do Executado –, interpuseram os Habilitados o presente recurso de apelação, motivando-o a fls. 2/9, aí formulando as seguintes conclusões:
“[…]


II – Fundamentação


            2. O âmbito objectivo da presente apelação foi delimitado pelos Apelantes através das conclusões transcritas no antecedente item. É o que resulta da conjugação dos artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC).

            Os factos a considerar na apreciação do recurso resultam do relato da marcha do processo constante de todo o antecedente item 1., estando em causa incidências que apresentam suporte documental directo ou indirecto nos autos (referimo-nos a estes autos de recurso de apelação com subida em separado).

            Trata-se, pois, atendendo às conclusões apresentadas, de sindicar a decisão de habilitação dos Apelantes expressa na Sentença certificada a fls. 14/15, para uma execução, na qual se realiza o valor correspondente uma indemnização a cargo do Executado[3], entretanto falecido, sendo a qualidade de herdeiros dos Apelantes evidenciada por uma escritura de habilitação notarial (a existência desta escritura conduziu à decisão do incidente nos termos do artigo 373º, nº 1 do CPC), não tendo os Habilitados deduzido qualquer oposição à habilitação, quando para ela citados nos termos do artigo 372º, nº 1 do CPC (como facilmente se intui não preenche o presente recurso, por absoluta inadequação do meio, esse objectivo de deduzir oposição à pretensão de os trazer à lide executiva).

            2.1. Resulta da conjugação de todos os dados expostos que o Tribunal a quo nunca poderia decidir o incidente de habilitação de modo distinto do que o fez, tão clara a situação se prefigura à partida, na verificação dos pressupostos positivos da habilitação. De facto, não tendo os ora Apelantes contestado a pretensão de os habilitar (v. artigo 303º, nº 3, ex vi do artigo 302º, ambos do CPC), e estando a respectiva qualidade de únicos herdeiros do Executado seu pai notarialmente reconhecida (v. artigo 373º, nº 1 do CPC) – qualidade que os habilitados, aliás, reafirmam corresponder-lhes, na conclusão 4. deste recurso –, estando tudo isto perfeitamente assente, dizíamos, outro caminho não se oferecia ao Tribunal que não fosse, como se disse, o de julgar positivamente a habilitação dos Apelantes, com a consequência de a execução prosseguir contra eles.

Com efeito, aceitaram os Habilitados expressamente a herança de seu pai, por forma tão expressiva quanto a que decorre de um instrumento de habilitação notarial, e fizeram-no, dada a natureza própria desse acto de tabelionato (v. artigos 83º, nº 1 e 86º, nº 1 do Código do Notariado), “pura e simplesmente”, no sentido que é relevante para o artigo 2052º, nº 1 do Código Civil (CC), e irretratavelmente (v. artigo 2061º do CC).    

            Tendo isto em atenção, o presente recurso só se explica – para usarmos o que, provavelmente, corresponderá a um eufemismo – com base numa confusão quanto ao verdadeiro sentido significativo da decisão de habilitação. Esta, com efeito, assume o alcance de fazer prosseguir uma acção executiva, colocando na posição do Executado, dado que o processo se não extingue por perda de utilidade ou por extinção do seu objecto, aqueles que lhe sucederam no respectivo património[4], no sentido em que garante (a habilitação) o prosseguimento de uma instância que se suspendeu ope legis (artigo 276º, nº 1, a) do CPC) e só reinicia a sua marcha “[…] quando for notificada a decisão que considere habilitado o sucessor da pessoa falecida […]” (artigo 284º, nº 1, alínea a) do CPC)[5], tudo isto, enfim, no quadro geral da efectivação do direito de acção, aqui materializado na tutela executiva conferida ao credor.

            É neste sentido, como indica Salvador da Costa – parafraseando a definição de Castro Mendes –, que a habilitação corresponde, “[…] fundamentalmente, [à] prova da aquisição, por sucessão ou transmissão, da titularidade de um direito ou complexo de situações jurídicas, independentemente da sua existência efectiva”[6].

            2.1.1. Vale tudo isto, enfim, pela constatação da total ausência de sentido da pretensão pretendida fazer valer neste recurso, nos termos em que esta é expressa pelos Apelantes na conclusão 18. acima transcrita: “[…] a presente acção executiva instaurada contra o executado B... deverá prosseguir os seus termos contra a herança indivisa do mesmo, e não contra os habilitados conforme douta sentença […]”.

            Com efeito, esquecem os Apelantes, desde logo, que a herança indivisa já aceite (como aqui sucede com a herança do Executado) não tem personalidade judiciária por extensão, como sucede com a herança jacente (v. artigo 6º, alínea a) do CPC; retira-se desta norma, a contrario, que a herança já aceite não tem sequer personalidade judiciária[7]), não podendo (a herança indivisa já aceite) ser demandada nem, por identidade de razão, passar a ser demandada, num quadro de substituição processual decorrente de um incidente de habilitação: a substituição por falecimento da parte opera, pois, nestes casos, pela habilitação dos herdeiros. E esquecem os Apelantes, enfim, que a decisão de os habilitar a prosseguir na posição do Executado nesta acção, nada dispôs, por se tratar de matéria totalmente fora do respectivo objecto, sobre que bens respondem pela dívida do Executado ou em que circunstâncias se efectuará a responsabilidade dos herdeiros por essa dívida[8], tal como não dispôs sobre quais os bens que podem – agora numa execução que prossegue contra os herdeiros – ser penhorados[9].

            2.2. Improcede, pois, o recurso, por completa falta de fundamento, havendo que confirmar a decisão recorrida, depois de sumariar os argumentos que conduziram à afirmação dessa improcedência:
I – A decisão de habilitação dos sucessores de um Executado, por falecimento deste na pendência da execução, tem como único efeito fazer prosseguir essa execução contra quem – os sucessores que aceitaram a herança – pode ocupar a posição desse Executado.
II – Essa decisão de habilitação, em si mesma considerada, não dispõe, por se tratar de matéria totalmente fora do objecto do incidente de habilitação, sobre que bens respondem pela dívida do Executado ou em que circunstâncias se efectuará a responsabilidade dos herdeiros habilitados por essa dívida.
III – A herança indivisa já aceite (já não jacente) não dispõe de personalidade judiciária (artigo 6º, alínea a) do CPC, a contrario), não podendo ser demandada nem, por identidade de razão, passar a ser demandada, num quadro de substituição processual decorrente de um incidente de habilitação: a substituição decorrente do falecimento da parte opera, nestes casos, pela habilitação dos herdeiros.


II – Decisão

            3. Assim, na improcedência da apelação, confirma-se inteiramente a decisão de habilitação ora recorrida.

            Custas da apelação a cargo dos Apelantes.


J. A. Teles Pereira (Relator)
Manuel Capelo
Jacinto Meca


[1] Esta data (posterior a 01/01/2008, não obstante o processo matriz, que originou a sentença/título executivo, datar de 2001), esta data, dizíamos, determina a aplicação neste caso do regime de recursos em processo civil decorrente da reforma introduzida pelo do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. os respectivos artigos 11º, nº 1 e 12º, nº 1). As normas do Código de Processo Civil adiante mencionadas, pressupõem a redacção introduzida pelo referido DL nº 303/2007.
“[No que] respeita aos recursos que, no âmbito de processos já pendentes [em 01/01/2008], tenham por objecto decisões proferidas em apensos posteriormente iniciados, como sucede, no âmbito da acção executiva, com a oposição à execução, reclamação de créditos, separação de meações ou embargos de terceiro, ou de procedimentos cautelares incidentalmente requeridos relativamente a processos já pendentes. Considerando que se trata de fases incidentais ou de procedimentos de uma instância já iniciada, tais recursos continuarão a obedecer ao regime anterior.
Já, porém, a solução é diversa se estiverem em causa decisões proferidas no âmbito de processos executivos que tenham por base sentenças exaradas em acções declarativas anteriormente instauradas” (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil. Novo Regime, 3ª ed., Coimbra, 2010, p. 16, sublinhado acrescentado) – note-se que o entendimento expresso na decisão singular do ora relator de 16/06/2008, proferida no processo nº 280/07.0TBLSA-F.C, disponível na base do ITIJ, directamente, em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/db953307306506a2802574710050bb1, tal entendimento, dizíamos, não tem aplicação a uma acção executiva com esta natureza.
[2] Pela Sentença certificada a fls. 14/15 que constitui a decisão objecto do presente recurso.
[3] Indemnização fixada em processo-crime através de pedido de indemnização civil aí deduzido (v. o artigo 71º do Código de Processo Penal).
[4] Está em causa a realização da responsabilidade patrimonial do Executado de cuius, através do alcance executivo do seu património, face à transmissão deste aos seus herdeiros.
[5] É neste sentido que a habilitação é qualificada nestes casos de obrigatória (Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 5ª ed., Coimbra, 2008, p. 244).
[6] Incidentes…, cit., p. 243, cfr. “Obras completas do Professor Doutor João de Castro Mendes”, Direito Processual Civil, Vol. II, Lisboa, 1987, p. 294.
[7] O uso do advérbio “sequer” vale aqui relativamente à afirmação implícita de que a herança não dispõe de personalidade jurídica (v. José de Oliveira Ascensão, Direito Civil Sucessões, 5ª ed., Coimbra, 2000, p. 397), não dispondo da susceptibilidade de ser parte (personalidade judiciária) com essa base (v. artigo 5º, nº 2 do CPC), só por extensão, ou ficção, podendo ser demandada, quando ainda jacente (artigo 6º, alínea a) do CPC). É neste sentido que a herança que já não é jacente, porque já foi aceite (v. artigo 2046º do CC), nem sequer dispõe de personalidade judiciária, que o mesmo é dizer, de susceptibilidade de ser parte (v. artigo 5º, nº 1 do CPC).
[8] Esta sempre resultará do disposto no artigo 2071º, nº 2 do CC (v. Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direito das Sucessões, 3ª ed., Lisboa, 2008, pp. 336/338).
[9] Valerá aqui, se a questão se vier a colocar, o disposto no artigo 827º do CPC, sendo que este, como é sabido, não afasta totalmente a possibilidade de serem penhorados bens dos herdeiros não recebidos do de cuius (v. Luís A. Carvalho Fernandes, Lições…, cit., p. 338).