Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
145/04.8IDPMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ESTEVES MARQUES
Descritores: INFRACÇÃO TRIBUTÁRIA
SUSPENSÃO DA PENA
Data do Acordão: 02/10/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE PORTO DE MÓS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 14º Nº1 DO LEI Nº15 /2001 DE 05/06
Sumário: 1, No caso das infracções tributárias, no que diz respeito à suspensão da execução da pena, aplica-se o regime do artigo 14º nº1 do Lei nº15 /2001 de 05/06, diploma especial, e não a norma do artigo 50º do CP.
Decisão Texto Integral: RELATÓRIO

            No 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Porto de Mós, em processo comum singular, por sentença de 09…..28, foi, para além do mais e no que para a apreciação do presente recurso importa, decidido:

            Condenar o arguido MZ pela autoria de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art.º 105.º, 1 do RCIT, na pena de dois anos e quatro meses de prisão, cuja execução lhe foi suspensa, pelo período de dois anos e quatro meses, sob as condições de:

            - pagamento, pelo arguido, à Fazenda Nacional, da quantia de € 125.251,15, durante o prazo da suspensão;

            - cumprimento, por parte do arguido, durante o mesmo prazo, de todas as obrigações declarativas que lhe incumbam, a título pessoal ou como legal representante ou gerente de facto de qualquer pessoa colectiva, perante a administração fiscal e a segurança social.

            Inconformado, o arguido interpôs recurso da sentença, concluindo na sua motivação:

            “1. A pena concreta aplicada, 2 anos e quatro meses de prisão, apesar de suspensa na sua execução pelo mesmo prazo, na condição de o Recorrente pagar ao Estado o valor das prestações tributárias em dívida no valor de € 125.251,15, é injusta;

            2. A condição imposta é excessiva, de cumprimento inviável e, portanto violadora da lei;

            3. Face dos rendimentos auferidos pelo Recorrente, nunca este virá a conseguir reunir os meios necessários para pagar o montante a que se encontra subordinada a condição de suspensão da execução da pena privativa de liberdade a que foi condenado.

            4. O "previsível" incumprimento da condição imposta não advém de opção própria do Recorrente mas, antes, de impossibilidade de facto em consequência da sua insuficiência económica como impeditiva, e até por razões conjunturais actuais alheias à sua vontade.

            5. O tribunal não pode exigir ao arguido o cumprimento de qualquer reparação que lhe seja de todo impraticável. Não podendo deixar de exigir apenas o que é razoável sob pena de violar o princípio da equidade e proporcionalidade;

            6. Os factos de que o Recorrente vem condenado ocorreram entre os anos de 2001 e 2004;

            7. À data dos factos vigorava o regime decorrente da redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, onde, no artº 50, nº 5 do C.P. se previa que o tribunal poderia estipular o prazo de suspensão de execução de pena de prisão pelo prazo máximo de 5 anos, a contar do trânsito em julgado da decisão.

            8. Sucede porém que a redacção em vigor à data da sentença, resultante das alterações introduzidas através da Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, determina que o período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença.

            9. Daí decorria, até às alterações introduzidas através da Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto um regime mais favorável ao Recorrente;

            10. A actual norma do art. 50º do C.P. mostra-se desfavorável ao Recorrente, porque, ao restringir o período de duração da suspensão, vai obrigá-lo a um esforço financeiro bem maior para conseguir pagar, num período mais curto, o elevado montante da prestação tributária em dívida.

            11. Nos termos do art. 2° nº 1 do Código Penal, "as penas e as medidas de segurança são determinadas pela lei vigente no momento da prática dos factos ou do preenchimento dos pressupostos de que dependem", esclarecendo o nº 4 que "quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto forem diferentes dos estabelecidos em leis posteriores é sempre aplicado o regime que se mostrar mais favorável ao agente".

            12. A lei se com os ilícitos fiscais tenta proteger as receitas tributárias, compreende-se que o regime da suspensão da execução da pena nestes casos se afaste do novo regime geral do C.P., continuando o juiz, independentemente da duração da pena, a ter a faculdade de fixar, para a suspensão, um prazo que na realidade permita ao condenado proceder ao pagamento das prestações tributárias em falta.

            13. Deve a douta Sentença ser revogada por violação do princípio da proporcionalidade consagrado no artº 51, nº 2 e violação do princípio do tratamento mais favorável ao arguido consagrado no artº 2, nº 4.

            14. Devendo dar-se provimento ao recurso e, consequentemente, revogar-se a douta sentença recorrida proferindo-se decisão que suspenda a pena de prisão por um período de cinco anos.”.

            Respondeu o MP, concluindo que o recurso deve ser julgado improcedente.  

            Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido do improvimento do recurso.

            Colhidos os vistos, cumpre decidir.


FUNDAMENTAÇÃO

É a seguinte a matéria de facto dada como provada:

            1. A sociedade "D… Lda." dedicou-se nos anos de 2001 a 2004 à actividade de construção civil e encontra-se enquadrada, para efeitos de IVA, no regime normal de periodicidade trimestral.

            2. Durante este período, foi o arguido MZ o único gerente da referida sociedade.

            3. Em finais de 2001, o arguido decidiu que deixaria de entregar à Fazenda Nacional as quantias retidas a título de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) no salário dos trabalhadores da D..LDA e, bem assim as quantias relativas ao imposto sobre o valor acrescentado (IVA) liquidado nas facturas dos vários clientes, e que passaria a utilizar tais quantias em proveito próprio e/ou da DLDA, integrando-as na sua esfera patrimonial e/ou na esfera patrimonial daquela sociedade.

            4. Assim, na execução desse propósito, agindo em representação daquela sociedade, o arguido, em Dezembro de 2001 e durante todo o ano de 2002, reteve o IRS (categoria A) no processamento e pagamento das remunerações aos seus trabalhadores, no valor global de € 2.072,07, assim discriminado:

            Ano de 2001 – IRS (Categoria A)

            Dezembro                    € 642,93

            Ano de 2002 – IRS (Categoria A)

            Janeiro                         € 190,05

            Fevereiro                     € 190,05

            Março                         € 115,23

            Abril                            € 115,23

            Maio                           € 115,23

            Junho                           € 115,23

            Julho                            € 115,23

            Agosto                        € 115,23

            Setembro                     € 115,23

            Outubro                       € 88,29

            Novembro                   € 77,07

            Dezembro                    € 77,07

            5. De igual forma o arguido, agindo igualmente em representação da DLDA em 2002, 2003 e 2004 liquidou e recebeu dos seus clientes o montante global de € 140.191,29, a título de IVA, assim discriminado:

            Ano de 2002 - IVA

            3º trimestre                  € 26.487,74

            4º trimestre                  € 34.652,11

            Ano de 2003 – IVA

            1º trimestre                  € 23.008,03

            2º trimestre                  € 11.441,88

            3º trimestre                  € 29.661,12

            4º trimestre                  € 6.406, 42

            Ano de 2004- IVA

            1º trimestre                  € 6.586,57

            2º trimestre                  € 1.947,15

            6. Sabia o arguido que os montantes retidos a título de IRS deveriam ter sido entregues à Fazenda pública até ao dia 20 do mês seguinte a que diziam respeito e os montantes retidos a título de IV A deveriam ter sido entregues à Fazenda Nacional até ao dia 15 do 2° mês seguinte ao trimestre a que respeitavam as operações.

            7. O arguido não remeteu à Administração Fiscal as declarações periódicas de IV A relativas aos 3° e 4° trimestres de 2002, aos 4 trimestres de 2003 e aos 1 ° e 2° trimestres de 2004.

            8. O arguido foi notificado por carta registada datada de 13-06-2008 e 16-06­2008, remetida para o seu domicílio fiscal, para proceder ao pagamento das quantias ilicitamente retidas a título de IRS.

            9. Até ao momento o arguido não procedeu ao pagamento de qualquer das importâncias supra referidas.

            10. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que se apropriava de quantias em dinheiro que devia entregar ao Estado.

            11. Sabia também o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei.

            12. O arguido confessou genericamente os factos que lhe são imputados, ainda que com reservas e sem que pudesse precisar os valores concretos da apropriação.

            13. O arguido sofreu já as seguintes condenações criminais:

            - No processo comum colectivo nº ...IDSTR, que correu termos no 1° Juízo Criminal de Santarém, foi o arguido condenado pela prática do crime de fraude fiscal, praticado em 1992, na pena de 16 meses de prisão, suspensa por 2 anos, por sentença transitada em julgado em 19-….2002, tendo já esta pena sido declarada extinta pelo cumprimento;

            - No processo comum singular nº …/04.2T ALRA, que correu termos no 10 Juízo Criminal de Leiria, foi o arguido condenado pela prática do crime de desobediência, na pena de 90 dias de multa, por sentença transitada em julgado em 9-…-2005.

            14. Presentemente o arguido tem outra empresa do mesmo ramo, auferindo por via desta quantia mensal média não apurada mas não inferior a € 600,00.

            15. Vive com a sua esposa e uma filha de 19 anos que é estudante universitária, em casa arrendada pela qual paga a importância mensal de € 200,00.

            16. A sua esposa é auxiliar de acção educativa e aufere o salário mínimo nacional. “

           

Sendo o âmbito do recurso demarcado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, a única questão colocada à apreciação deste Tribunal, é a de saber qual o regime concretamente mais favorável relativamente à suspensão da execução da pena e condição imposta ao arguido de pagar o montante em dívida à Fazenda Nacional

            Pugna então o arguido para que essa suspensão lhe seja fixada pelo período de 5 anos.

            Alega para o efeito que, tendo os factos que estão subjacentes à sua condenação, ocorrido entre os anos de 2001 e 2004, o regime aplicável que concretamente lhe é mais favorável é aquele que previa essa duração entre 1 e 5 anos (artº 50º nº 5 na redacção do Dec. Lei 48/95, de 15 de Março), pois o actual ao fazer corresponder esse período ao da pena de prisão aplicada (na redacção dada a tal preceito pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro) é mais penalizante pois a condição de pagar o montante em falta nesse prazo é excessiva face aos seus rendimentos.

            Pois bem, face aos factos provados, dúvidas não há de que à data da prática dos factos por que o arguido foi condenado, o período de suspensão da execução da pena era fixado entre 1 e 5 anos a contar do trânsito em julgado da decisão (artº 50º nº 5, na redacção resultante da revisão do Código levada a efeito pelo Dec. Lei nº 48/95, de 15 de Março).

            Com a alteração introduzida nesse preceito através da Lei 59/2007, de 4 de Setembro, o período de suspensão passou a ter duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão.

            Porém o que acontece é que no caso vertente o apuramento do regime aplicável não passa pelo confronto entre os dois referidos regimes, porquanto existe uma lei especial, a qual não foi revogada nem alterada neste segmento – Lei 15/2001, de 5 de Junho (RGIT), que estabeleceu o regime geral para as infracções tributárias.

            Tal diploma é, como referimos, uma lei especial, só subsidiariamente se aplicando as disposições do Código Penal, como expressamente se prevê no artº 3º a) do RGIT.

            Assim o recurso à aplicação subsidiária de outros acervos normativos e no caso em análise do Código Penal, só ocorrerá na falta de regulamentação do RGIT.

            Ora o regime da suspensão da execução da pena de prisão, foi consagrado expressamente neste diploma, no seu artº 14º, estabelecendo-se no nº 1 que “ A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa”.

            Daí que concordemos inteiramente com o Ac desta Relação de 09.01.21 proferido no Pº 342/04.6TAAVR[1], de que foi relator o Exmº Desembargador Ribeiro Martins, quando refere:

            “Esta formulação legal tem como pressuposto um prazo de suspensão que não seja inferior ao prazo dado para o pagamento.

            E não pode ter-se por tacitamente revogado nesta parte o art.º 14º do RGIT já que a lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador como estatui o n.º3 do art.º7º do Código Civil. Ora, essa diferente intenção do legislador não existe no caso (cfr. a Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro).

            De resto tornava-se absurdo que –, impondo a lei o pagamento como condição para a suspensão da execução da pena –, quanto mais leve fosse a pena por força duma menor culpabilidade, menor fosse o prazo concedido para o pagamento, criando-se situações mais gravosas para culpas mais leves. Ou seja, quanto maior fosse a culpa maior o prazo concedido para o pagamento de montantes em falta quiçá sensivelmente de iguais. “

            Deste modo, atenta a situação económica e familiar do arguido dada como provada e tendo em conta a necessidade do cumprimento da condição de pagamento imposta para a suspensão da execução da pena, julgamos ser mais correcto e equilibrado fixar o prazo dessa suspensão em quatro anos, ao abrigo do supra citado artº 14º do RGIT.

            Termos em que se conclui que o recorrente tem razão no recurso que apresentou.

 

DECISÃO

            Pelo exposto e sem necessidade de mais considerações, acordam os Juízes desta Relação, em julgar procedente o recurso interposto pelo arguido, pelo que revogam parcialmente a decisão recorrida, fixando agora, embora por razões diferentes, o período de suspensão da execução da pena, em quatro anos, condicionada ao pagamento à Fazenda Nacional da quantia em dívida, no mesmo prazo.

            Sem tributação

                Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (artº 94º nº 2 CPP)

            Coimbra, 10 de Fevereiro de 2010.


[1][1] http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/68104c0369fb0d6880257555004c9fbd?OpenDocument