Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
75/16.0PFLRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: SUBSTITUIÇÃO DA MULTA POR PRESTAÇÃO DE TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
ARGUIDO PRESO PREVENTIVAMENTE OU EM CUMPRIMENTO DE PENA
Data do Acordão: 03/27/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE LEIRIA – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 48.º DO CP
Sumário: Por existir incompatibilidade entre a prestação de trabalho a favor da comunidade – no caso, decorrente da substituição da pena de multa – e a privação da liberdade, estando o arguido preso preventivamente ou em cumprimento de pena, faltam os pressupostos que permitem a aplicação da dita medida.
Decisão Texto Integral:







Acordam, em conferência, os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório:
A) No âmbito do processo comum (tribunal singular) n.º 75/16.0PFLRA que corre termos na Comarca da Leiria – Juízo Local Criminal de Leiria – Juiz 1, em 10/4/2018, foi proferida o seguinte Despacho:
“Considerando objetivamente a pena de 60 dias multa em que o arguido A. foi condenado e o seu passado judiciário nada obstaria que, em abstrato, se procedesse à sua substituição pela requerida e promovida pena de prestação de trabalho, nos termos dos artigos 48.º n.º 1 e 58.º n.º 3 do Código Penal e 490.º do Código de Processo Penal.
Acontece, porém, que o arguido se mostra preso à ordem do processo n.º 75/17.3JALRA da Instância Central Criminal da Comarca de Leiria – J1 – e a aguardar julgamento de um outro processo onde se mostra acusada da prática de um crime de tráfico de estupefacientes (processo n.º 4/16.1PELRA). Não sendo a insuficiência económica invocada pelo arguido condenado, como sabemos, um requisito material para a procedência desta substituição de pena, é-o, todavia, a circunstância de o condenado se encontrar livre na sua pessoa. Trata-se de uma pena de execução em liberdade – cfr Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 05.11.2014, disponível em www.dgsi.pt.
Como tal “não deve ser substituída por trabalho a favor da comunidade (artº 481.º CP) o cumprimento da pena de multa se o condenado se encontra em cumprimento de pena de prisão, por se diluir no cumprimento desta e não deverem ser cumuladas” – cfr Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11.07.2013, disponível em www.dgsi.pt.
Sendo certo que nos casos em que o arguido cumpre pena de prisão efetiva em E.P. não se mostra legalmente admissível cumular a pena de prisão que se executa com uma pena de prestação de trabalho (forma de execução de uma pena de multa), em cumprimento simultâneo - cfr Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26.10.2017, disponível em www.dgsi.pt.
Termos em que se indefere a requerida e promovida substituição da pena de multa por trabalho por inadmissibilidade legal.
Notifique, sendo o arguido nos termos do art. 114.º n.º 1 do Código de Processo Penal.”
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B) Inconformado com a decisão recorrida, dela recorreu, em 16/5/2018, o arguido, defendendo que o Despacho recorrido deve ser substituído por outro que conclua pela substituição da pena de multa por trabalho a favor da comunidade, extraindo da motivação as seguintes conclusões:
I – Apesar de se encontrar preso à ordem de outros autos, ao arguido não pode ser negada a possibilidade de cumprimento da multa penal através da realização de horas de serviço comunitário.
II – Sabendo-se das dificuldades económicas do arguido e sendo legalmente permitido ao arguido a substituição da multa penal por horas de serviço a favor da comunidade, negar-lhe a possibilidade de cumprimento da multa através de trabalho comunitário é priva-lo da sua liberdade, condenando-o a priori numa pena de prisão por mais 40 dias pelo seu não pagamento da multa penal, o que não se admite.
III – O indeferimento do requerimento de substituição da multa por trabalho comunitário coloca em crise dois dos mais elementares princípios constitucionais como são o direito à igualdade e o direito à liberdade consagrados nos Art.º 13.º e Art.º 27 da Constituição da República Portuguesa.
IV - A este propósito vide o entendimento do douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora de 20/10/2015 (Processo 819/09.7GEALR-A.E1), bem como o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26/11/2009 (Processo 173/03.0TASRQ-E.L1).
V – Tendo o arguido requerido a substituição da pena de multa por trabalho a favor da comunidade, verificados que se mostram os pressupostos dos art.ºs 47º, nº 3 e 48º do Cód. Penal, não deve tal pretensão ser indeferida pelo facto de o arguido se encontrar preso a cumprir outra pena de prisão de longa duração, devendo pois a possibilidade de substituição da pena de multa por serviço comunitário ser concedida ao arguido, e, por conseguinte, ser executada quando o arguido se encontrar em liberdade.
Termos em que, e nos melhores de Direito que doutamente V. Exas. suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, e em consequência ser o Despacho recorrido ser substituído por outro que conclua pela substituição da pena de multa por trabalho a favor da comunidade.
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C) O recurso em 23/5/2018, foi admitido.
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D) Em 23/572018, foi, também, nos termos do artigo 414.º, n.º 4, do CPP, conforme fls. 25/28, sustentado o Despacho ora em crise.
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E) O Ministério Público, em 25/6/2018, respondeu ao recurso, no sentido de que não merece provimento, concluindo do seguinte modo:
1 - Por douta sentença, transitada em julgado a 01/02/2018, foi o arguido condenado, em autoria material e na forma consumada, pela prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros);
2 - O mesmo apresentou requerimento aos autos, a 20/03/2018, alegando não ter rendimentos que lhe permitam efetuar o pagamento do valor da multa, ter encargos financeiros, padecer de doença oncológica e por estar “provisoriamente detido”, requerendo a substituição da referida pena de multa por prestação de trabalho, “assim que sair em liberdade”;
3 - Tal requerimento foi indeferido, pelo douto despacho proferido 10/04/2018, do qual vem o arguido recorrer;
4 - O arguido encontra-se preso preventivamente, à ordem do processo comum coletivo n.º 75/17.3JALRA, do Juízo Central Criminal de Leiria – Juiz 1, aguardando o trânsito em julgado do douto acórdão proferido;
5 - Apesar da alegada insuficiência económica, encontrando-se em regime de prisão preventiva, o mesmo não tem liberdade para cumprir, tal pena de prestação de trabalho, em substituição da referida pena de multa;
6 - O pedido de substituição de multa, por prestação de trabalho, tem que ser apreciado e executado no presente, atentas as atuais circunstâncias em que se encontra o requerente, no caso concreto, o arguido, ora recorrente;
7 - Assim, não pode proceder a pretensão do mesmo, que seja substituída a pena de multa por prestação de trabalho, e relegando-se a execução de tal pena para o futuro, quando ele se encontrar em liberdade;
8 - A referida pretensão não se mostra compatível com o disposto no regime legal aplicável, designadamente, o disposto no artigo 48º. e 59º., nº. 1, ambos do Código Penal, e
9 - Pelo douto despacho proferido não foi violada qualquer norma ou princípio legal, inclusive, os alegados princípios constitucionais.
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F) Em 26/9/2018, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto Parecer, no sentido de que “deve ser revogado o douto despacho recorrido, ordenando-se que o tribunal a quo profira a decisão sobre o requerimento do arguido só depois de transitar em julgado a decisão proferida no Processo 75/17.3JALRA, e, eventualmente, depois de apurar qual a medida cautelar aplicada ou a aplicar no processo 4716.1PELRA, em função do trânsito em julgado da decisão no processo 75/17.3JALRA.”
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G) Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido exercido o direito de resposta.
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H) Foi aberta conclusão nos autos, em 18/10/2018.
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I) Por motivo da situação de baixa médica prolongada da Exma. Relatora, em 8/2/2019, foi lavrado nos autos, a fls. 365, Termo de Cobrança e Redistribuição.
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J) Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar a legal conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II. Apreciação do Recurso:
O objeto de um recurso penal é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do C.P.P.
A questão a conhecer é a seguinte:
- Saber se, tendo o arguido requerido a substituição da pena de multa por trabalho a favor da comunidade, verificados que se mostram os pressupostos dos artigos 47.º, n.º 3, e 48.º, ambos do Código Penal, não deve tal pretensão ser indeferida pelo facto de o arguido se encontrar a cumprir pena de prisão, devendo a possibilidade de substituição da pena de multa por serviço comunitário ser concedida ao arguido e, por conseguinte, ser executada quando o arguido se encontrar em liberdade.
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O arguido A., por sentença proferida nestes autos em 7/11/2017, transitada em julgado em 1/2/2018, pela prática de um crime p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, b), do Código Penal, foi condenado na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de 5 euros, a que corresponde uma pena subsidiária de 40 dias.
Tendo sido notificado da conta nos termos do artigo 31.º, do Regulamento das Custas Processuais, veio aos autos, nos termos do disposto no artigo 490.º, do CPP, expor, em síntese, não ter rendimentos para efetuar os respetivos pagamentos e encontrar-se provisoriamente detido no Estabelecimento Prisional de Leiria, à ordem do processo 75/17.3JALRA.
Mais referiu não ter rendimentos para proceder ao pagamento das custas no valor de € 252,00, sendo certo que desconhecia que o apoio judiciário havia sido indeferido pela segurança Social, facto que o levou a impugnar a respetiva decisão.
Acabou por requerer a substituição da multa no montante de € 300,00 por dias de trabalho na devida proporção, a cumprir assim que restituído à liberdade, e, ainda, que fosse dada sem efeito a guia para pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, aguardando os autos pelo resultado da impugnação da decisão do apoio judiciário efetuada junto da Segurança Social.
Na sequência, veio a ser proferido o despacho ora em crise.
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A pretensão do arguido foi indeferida em virtude do Tribunal a quo considerar como requisito material para a pretendida substituição “a circunstância de o condenado se encontrar livre na sua pessoa”, o que não acontecia em 10/4/2018 (inadmissibilidade legal).
A questão deve ser vista no presente e não de forma diferida, já que as razões que determinam a substituição da multa por prestação de trabalho a favor da comunidade devem reportar-se e ser aferidas ao momento em que é feito o requerimento nesse sentido.
A não ser assim, estaria o tribunal a proferir uma decisão quanto a pressupostos que, eventualmente, poderiam não se concretizar.
Pois bem, não conhecemos jurisprudência uniforme quanto à possibilidade de arguido privado da liberdade ver substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade pena de multa em que foi condenado.
Salvo o devido respeito, entendemos que, estando o arguido preso preventivamente ou em cumprimento de pena, falecem os pressupostos que permitem a aplicação da prestação de trabalho a favor da comunidade.
Como decorre da interpretação literal da lei, o legislador previu tal pena no pressuposto de que o arguido se encontre em liberdade e que tal trabalho assuma, ainda assim, uma restrição dessa mesma liberdade ao sujeitar-se a determinadas atividades laborais impostas; só assim a prestação de trabalho comunitário poderá cumprir a sua finalidade.
Existe, pois, incompatibilidade entre a prestação de trabalho a favor da comunidade e a privação de liberdade.
E não se diga, como o fazem os defensores da tese oposta, que a não ser assim, se viola o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º, da CRP, pois não se pode comprar o que, à partida, não é comparável nem parte de situações igualitárias entre cidadãos.
Na realidade, uma coisa é estar em liberdade e outra é estar legal e legitimamente preso em cumprimento de pena ou sujeito a prisão preventiva.
A violação do princípio a igualdade só ocorreria se, estando os dois cidadãos em iguais condições (de liberdade ou de prisão) se negasse a um o que outro se concedeu.
Pelo exposto, se conclui pela improcedência do recurso.
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IV – DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os Juízes neste Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
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Coimbra, 27 de março de 2019
(elaborado e revisto pelo relator, antes de assinado)

José Eduardo Martins (relator)

Maria José Nogueira (adjunta)